na sublimação do tempo
Braga nos arquivos fotográficos de Carneiro e Arcelino
textos
António Gonçalves
Duarte Belo
Miguel Melo Bandeira
Nuno Borges de Araújo
documenta
na sublimação do tempo
Braga nos arquivos fotográficos
de Carneiro e Arcelino
APRESENTAÇÃO
António Gonçalves
Director do Museu Nogueira da Silva
De cada vez que nos é lançada a possibilidade de regresso ao passado, somos remetidos a uma sensação de viagem através da memória. O tempo labora em nós um propósito tomado pela razão e sensibilidade que nos conquista atenções perante os registos que alvorecem as recordações.
Os arquivos fotográficos possuem uma vasta e profunda base de memórias. Neles estão contidos muitos fragmentos que inscrevem pretéritos que contribuem para a preservação do conhecimento e da herança.
O Museu Nogueira da Silva detém um Centro de Documentação Fotográfica fundado por Luís Mateus, nos anos oitenta, a partir do depósito dos arquivos de Manuel Carneiro e, mais tarde, do de Arcelino, feito pela ASPA (Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural). Um dos singulares centros de recolha e tratamento de imagens criados naquela época em Portugal e que contribuiu para a preservação e estudo dos núcleos destes fotógrafos naturais de Braga, território que lhes permitiu desenvolver o seu trabalho.
A exposição apresentada na Galeria do Paço e no Museu Nogueira da Silva vem revisitar olhares da cidade que foram registados no final do século XIX e meados do século XX, olhares atentos e sensíveis por parte dos dois
fotógrafos que viam no quotidiano da cidade um pretexto para o capturarem e fixarem em fotografia. Estas imagens ficaram arquivadas, preservando o tempo, conferindo-lhe um cunho e uma aura. Um contributo para a regeneração das convivências que se apuram nos espaços comuns, onde as relações vivificaram experiências e instruíram sociabilização. Retomar um olhar a partir destas fotografias, mediante a selecção do curador Duarte Belo, é dar oportunidade a uma sublimação do tempo, um exercício que desafia a compreensão da Cidade, do seu crescimento e suas alterações. Hoje, observadores destas fotografias, assumimos um papel de mediadores dos fragmentos da história que nos são dados a ver; o que deles podemos retirar, de forma consciente e cuidada, irá contribuir para a prossecução do enriquecimento dos territórios que habitamos e a que damos existência. Uma percepção temporal que se põe ao dispor de atentos olhares e estímulo de apuradas sensibilidades.
Esta edição deixa reunidas muitas dessas imagens, para que a cada momento nos seja proporcionada a revisitação e contacto com tão excelsas memórias do transcorrido.
A CIDADE DAS FOTOGRAFIAS
Duarte Belo Arquiteto, fotógrafo
Os acervos de Manuel Carneiro e de Arcelino incluem o registo fotográfico de outras geografias, mas foi sobretudo a Braga que dedicaram maior atenção. Esta cidade é o foco da exposição que reúne estes dois olhares que cobrem um século de fotografias do espaço urbano. Desde o início que foi proposta a ideia de não fazer duas exposições individuais, mas juntar os dois trabalhos. Assim, há um permanente diálogo entre tempos diferentes da cidade, mas que, muitas vezes, nem é percetível porque são registados os mesmos espaços ou edifícios do centro histórico de Braga. Há uma monumentalidade urbana, particularmente evidente na arquitetura religiosa, que, ainda hoje, exerce sobre os habitantes e os visitantes da cidade um poderoso fascínio.
Foi a partir de um conceito temático que se estruturou a exposição. Ao invés de uma organização cronológica, e em resposta ao espaço fragmentado da Galeria do Paço, optámos por uma sequenciação temática. A introdução à exposição é feita com imagens do próprio Largo do Paço, que simbolicamente corresponde ao mais primitivo núcleo da cidade cristã. Ao integrar o conjunto arquitetónico da Sé Catedral, afirma-se como a praça que polariza todo o espaço em redor. Ambos os fotógrafos, pontualmente,
procuraram pontos elevados para a leitura da malha urbana. São fotografias que nos permitem ter uma visão de conjunto de determinados ângulos da cidade. A avenida e o jardim representavam o centro cívico do aglomerado urbano. Novas arquiteturas foram-se afirmando e dilatando a cidade pelo território envolvente. Os edifícios de habitação foram ganhando um significado cada vez maior, ao mesmo tempo que desenhavam novas ruas. Curiosamente, e ao contrário do que acontece com outras cidades portuguesas, em Braga a presença da arquitetura militar é pouco significativa. Na planta da cidade é claramente visível o antigo casco histórico que era contornado pela muralha medieval, mas desta praticamente não se encontram vestígios. Permanecem algumas torres que nos falam dessa dimensão defensiva e de um tempo em que os conflitos armados e as tentativas de saque eram uma realidade frequente.
No Museu Nogueira da Silva é mostrado um segundo núcleo de fotografias. Se na Galeria do Paço eram reveladas várias dimensões da cidade, aqui optámos por mostrar fotografias da periferia, onde os santuários do Bom Jesus do Monte, de Nossa Senhora do Sameiro e de Santa Maria Madalena assumem destaque. São pontos altos sacralizados a partir dos quais se obtêm amplas panorâmicas sobre a paisagem envolvente.
Com a câmara fotográfica de grande formato, Manuel Carneiro registou, em longas exposições, uma cidade intemporal. Arcelino, em certa medida, faz o mesmo mas leva mais longe o âmbito temático das suas imagens. A evolução tecnológica associada à fotografia permitiu, no seu tempo, máquinas fotográficas de pequena dimensão que eram operadas sem a necessidade de um tripé. As lentes eram mais luminosas e os filmes mais rápidos, mais sensíveis à luz. Há, no trabalho de Arcelino, fotografias de eventos sociais em que é notória a agilidade na captura da imagem. Em Manuel Carneiro a cidade também está povoada de figuras, mas estas estão quase sempre estáticas, muitas vezes a observarem o fotógrafo, a singularidade de uma atividade em que era ele praticamente o único a fazê-lo de forma sistemática.
Este conjunto de fotografias representa, atualmente, uma memória que urge preservar. Não são apenas fotografias de um tempo antigo, a que já não
temos acesso. São o mais digno registo de uma cidade que nos permite, em larga medida, perceber a sua evolução. Esta passagem do tempo não é relativa à cristalização de uma metrópole, mas dá-nos dados sobre o desenvolvimento urbano e, sobretudo, social. A cidade reflete a sociedade que a habita. Braga vai-se expandindo e agarrando montes e vales que lhe são contíguos. Do tempo do crescimento lento, habitamos hoje uma aceleração entrópica em que deixamos de perceber a coerência primordial de uma urbe firmemente agarrada ao solo. Não é fácil ler a cidade contemporânea. A qualidade do espaço público, da arquitetura e da construção parece estar em perda permanente. As fotografias de Manuel Carneiro e de Arcelino são o elogio da memória, sublimadas por um olhar lento e demorado, um jogo de luz e sombra sobre o tempo que habitamos, num presente contínuo.
Julho, 2024
RETRATICIDADE
Um século da imagem de Braga pelos olhares de Carneiro e Arcelino (-)
Miguel Melo Bandeira Presidente do Conselho Cultural
Quando hoje empregamos a palavra Cidade estamos já a enveredar pelo domínio polissémico do intangível. A ideia moderna da cidade concreta perspetivada principalmente a partir da morfologia urbana, dos estudos urbanísticos que tão marcadamente enlaçaram a arquitetura, o urbanismo e o desejo inalienável de se pensar o futuro, entrou inevitavelmente no domínio da distopia. Concentração, densidade, troca, tecnologia, reprodutibilidade e outros atratores associados, que congregaram no tempo esse feixe de conceitos consensualizados em torno do termo cidade, são hoje atributos sobretudo inerentes à cidade industrial, de crescimento contínuo e em velocidade acelerada. Do mesmo modo que esta rompeu com a cidade barroca, dominadora e consumidora, a cidade que se quis modernista no século passado perdeu sentido em devir, perante os alvores da «cidade global». Mais ou menos inteligente, uniforme de configurações, mas sobretudo fragmentada e dispersa, que nos põe perante um espaço que é todo ele urbano, mesmo aquele que agonicamente presumimos ter por natural. O colapso das delimitações anunciado pelas áreas de influência e as polarizações do território, se não eliminaram a cidade tal como a concebíamos até ao final do século XVIII – não tendo necessariamente que se fazer disso um drama – relegaram o conceito,
elevando-o ao estatuto de uma ideia generosa. Dir-se-ia, uma ontologia da humanidade corporizada ao território. Reduto, sem dúvida, dos símbolos, da(s) identidade(s), palco das representações humanas e sociais, enfim, o teatro do mundo.
Como podemos então revisitar a cidade dos alvores da fotografia através da sua própria linguagem intrínseca?! Essa filha lídima da industrialização, maravilha deslumbrante, como o foi a iluminação elétrica, a locomotiva ou o telefone?! Chegados a Braga com a modéstia tardia de uma inovação seleta, porém, como nos é característico, contendo o pioneirismo que Manoel Carneiro e, sequencialmente, Arcelino nos deixaram por testemunho?!
Porque as imagens que captaram durante um século (1871-1972), mormente desde o final do século XIX até à década de setenta do XX, preservaram essa fisionomia de cidade que inscreve Braga na sua época e no seu contexto. Mas, mais importante ainda, porque fixaram uma genealogia iconográfica que transformou o seu acervo fotográfico num símbolo do nosso ser coletivo.
Tal como hoje, quando celebrarmos os 50 anos do 25 de abril, ao rememorarmos os acontecimentos, especialmente para aqueles que não o viveram, construímos a imagem coletiva dos eventos pelo olhar de Eduardo Gageiro, Alfredo Cunha e, no caso de Braga, de José Delgado (1954-2017).
Do mesmo modo, Manoel Carneiro e Arcelino, com a sua quase exclusividade, escrutinaram a cidade para a posteridade, determinando um certo modo de nos ver e nos vermos a nós próprios.
Como há quase vinte e cinco anos notámos, quando discorremos pelas fotografias do arquivo da Foto Aliança, também ele um repositório essencial deste mesmo fim, interpretámos o fotógrafo como um encenador da memória urbana, neste caso nas marcações dos ritmos, os temas, os enquadramentos e, até, a própria luz, que essa espantosa inovação técnica decifrou e foi capaz de recriar.
Estamos a falar de um intervalo de tempo em que a cidade e as suas imediações oscilaram entre menos de 30% e metade dos habitantes que tem hoje. Desde o tempo, com Manoel Carneiro, em que o tráfego rodoviário
era praticamente uma ausência do espaço público, até ao período de Arcelino, em que este se circunscrevia à Praça da República e ao topo da atual Avenida da Liberdade.
Entre estes fotógrafos há, porém, um maior denominador comum do que a diferença resultante das distinções da evolução da fotografia. Neles é comum a preferência pelos objetos monumentais de maior relevância patrimonial, o edificado vetusto e os principais espaços públicos da cidade. Os grandes espaços abertos (…) os recintos onde a luz jorra abundantemente, aproveitados pela invariabilidade da jornada solar. Onde os peões mais ou menos incautos são apanhados num instante de vida. Desde as primeiras captações, ainda surpresos pela novidade da técnica, de silhuetas distantes, sem se distinguir quem são, até à aproximação de focagem e enquadramento, à medida que se banaliza a fotografia. Sob o desenrolar cénico deste referencial comum há muitas vezes um jogo entre o espaço aberto e o edificado de referência, que pontua as fugas do nosso olhar. Sem dúvida, o domínio inequívoco e em toda a linha do número de espécimes revelados vai para o amplo Campo de Sant’Anna (Praça da República/Avenida Central), verdadeiro cais de chegada e de partida, epicentro da vida urbana local. Ponto icónico de identificação da paisagem de Braga. Neste propósito, segue-se a Sé Catedral e o Arco da Porta Nova, dois ícones da cidade. Por outro lado, a frequência de incidências nos grandes templos religiosos, em particular o Santuário do Bom Jesus do Monte, mas também os sacromontes, e as igrejas de maior alcance artístico, denotam afirmação crescente da profissionalização da fotografia na sua relação direta com a emergência das práticas de vilegiatura. É preciso não esquecer que alguns destes clichés deram origem a postais ilustrados e a fotografias de guias turísticos.
A figura humana, mais rala em Manoel Carneiro do que em Arcelino, começa por se valorizar, sobretudo através da multidão, na expressão dos mercados e das feiras, dos desfiles e visitas de Estado, nas festas com as suas decorações públicas. Ora é precisamente o São João e a Semana Santa, enquanto principais celebrações da cidade, a merecer o destaque fotográfico. Aqui as pessoas começam a ganhar o primeiro plano.
O fotógrafo mais antigo privilegiará as panorâmicas, algumas captadas dos pontos mais altos da envolvente à urbe e dos campanários das igrejas. Do fotógrafo mais recente, que experimentará a fotografia a cores, revela-se-nos o foco nas realizações materiais, ideia de progresso, quiçá encomenda propagandística do regime ditatorial em querer registar as novas obras públicas, como a rodovia, as habitações sociais, o novo estádio, entre outras. A fotografia urbana enquanto património narrativo.
Do mesmo modo que o modernismo, com a fotografia e o cinema, se sobrepôs à hegemonia literária e romanesca que dominou a narrativa da cidade durante o século XIX, hoje a imersão digital e multimédia que globaliza o estilo de vida urbana faz ingressar a técnica e a estética de Manoel Carneiro e de Arcelino na galeria dos nossos afetos e elege o seu património fotográfico como um arquétipo cultural de Braga. Referente fundamental do nosso modo de estar e de ser perante a produção contínua das nossas identidades cívicas e individuais. Isto é, o sentido de reconhecermos e pensarmos a nossa Cidade.
Braga, maio de 2024
CARNEIRO E ARCELINO
Dois olhares sobre a cidade
Nuno Borges de Araújo Arquiteto, investigador
Esta exposição reúne e justapõe imagens de dois fotógrafos bracarenses, Manuel Carneiro e Arcelino de Azevedo, cujos arquivos se encontram em depósito no Museu Nogueira da Silva – Universidade do Minho. Entre a produção fotográfica de ambos passou cerca de meio século.
Manuel Carneiro fotografou no final do século XIX e início do século XX. As imagens de Arcelino que aqui vemos datam na sua maioria dos anos 50 e 60 do século XX. Muita coisa mudou quer técnica quer esteticamente entre estas duas épocas.
Carneiro usou uma máquina de grande formato montada sobre um tripé e negativos sobre chapas de vidro. Na sua época as emulsões fotográficas já tinham evoluído o suficiente para obter imagens instantâneas. Apesar disso, vemos em algumas delas exposições de alguns segundos, provavelmente usando emulsões de reduzida sensibilidade em situações de luz deficiente, o suficiente para as pessoas se deslocarem e deixarem um rasto fantasmagórico. Dada a dimensão dos negativos, regra geral imprimia as suas imagens por contacto.
Arcelino usou uma câmara de médio formato com negativos de película de acetato de celulose, de maior sensibilidade, mais fácil de transportar e dis-
pensando o uso regular de um tripé. Em fotografias noturnas ou com iluminação deficiente normalmente usava um flash que lhe permitia obter uma imagem instantânea. A impressão dos positivos era feita com um ampliador.
Entre as imagens de Carneiro e de Arcelino o que mudou? É óbvia a mudança na técnica do registo, na roupa dos bracarenses, nos transportes e nos acontecimentos. Mas o que os distingue como fotógrafos?
Apesar da evolução técnica que os separa, as temáticas das imagens de espaços urbanos não são muito diversas, mas a forma de fotografar de cada um revela diferenças significativas, não apenas relacionadas com o espírito da época em que ambos fotografaram, mas com opções que revelam a sua personalidade.
Na fotografia dos espaços urbanos, podemos dizer que Carneiro valoriza particularmente o registo da sua vivência, a ocupação dinâmica das pessoas nas suas atividades quotidianas, enquanto Arcelino tem um olhar mais depurador dos espaços. Excetuando os registos de festas e acontecimentos, ao fotografar espaços e edifícios vê-os na sua qualidade de objetos a documentar. A presença de pessoas ou está ausente ou é cuidada e intencional, tal como o é a escolha da iluminação natural, sobretudo na fotografia de interiores.
Pela sua extensão e qualidade, Carneiro e Arcelino deixaram-nos dois registos fotográficos da maior importância para a documentação da imagem da cidade de Braga e dos seus acontecimentos.
A urbanidade habitada do Paço registada por Carneiro dá lugar à monumentalidade despida e vazia de Arcelino.
Na Sé este regista expressões da fé humana e vê na luz filtrada pela forma arquitetónica a sua espiritualidade.
Cidade dos arcebispos, Braga foi profundamente marcada pelo domínio da Igreja Católica. A Sé, centro da cidade medieval, na velha expressão mais antiga do que a maioria das coisas de que há memória, é o epicentro desta religiosidade. Foi construída sobre o limite da cidade romana, permanência de um local de culto mais antigo. Próximo dela os arcebispos construíram o seu paço senhorial, remodelando e ampliando sucessivamente o medieval, o maneirista e o barroco.
No interior do Paço, um esboço de claustro denota a ordem cósmica do Éden. No seu centro já brotou água, fonte e promessa de vida. O largo do mesmo nome desenha-se como um claustro mutante, aberto para a cidade. A água já não é só som e símbolo, é para tudo e para todos.
Cidade
Do centro espiritual para a cidade que a envolve, subimos aos pontos mais altos dos edifícios e debruçamos o olhar. A vista é ampla, panorâmica, e revela colagens de planos próximos e distantes. Identificamos ao longe edifícios de que apenas vemos o topo. Exercitamos a mente e traduzimos em planta a sua perspetiva. Lá em baixo as pessoas cruzam os espaços públicos e neles exercem as suas atividades.
Nas praças e nos jardins a vegetação disciplinada organiza o vazio, para nosso prazer e satisfação da nostalgia da natureza.
No interior dos quarteirões as hortas e campos residuais. Ao longe, os montes que cercam a cidade.
ASPA
Miguel Melo Bandeira Associado da ASPA
Passaram já mais de 36 anos desde que a ASPA – Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural, no âmbito da sua missão ativa e participante, ainda hoje praticamente exclusiva no seu género, celebrou com a Universidade do Minho, em 20 de novembro de 1987, o protocolo de depósito dos acervos fotográficos de Manoel Carneiro (1871-1956), Arcelino (1913-1972), e da casa Foto-Stúdio 5. Pela sua iniciativa foi possível salvaguardar um dos mais importantes e significativos espólios da imagem da cidade de Braga e do Entre Douro e Minho, compreendendo um universo de cerca de sete milhares de negativos, cobrindo mais de um século de recolha de imagens. Foi ainda nos anos imediatos da pós-revolução de abril que foi confiado à ASPA esse desígnio, tendo esta realizado algumas exposições demonstrativas do alcance patrimonial e de estudo que a fotografia representava para a memória coletiva dos bracarenses. Primeiro, com Antiga Braga –Fotografias (1978), depois, no ano seguinte, com a exposição Para o Estudo da Imagem de Braga. O Postal Ilustrado. Como nos recorda Helena Trindade1, do sucesso destas iniciativas e da recolha do arquivo de Manoel Carneiro – «fotógrafo amador» e editor de postais da região, a ASPA, em conjunto com a então Unidade de Museologia da Universidade do Minho, criaram o projeto do Centro de Documentação Fotográfica, abrindo caminho para aquela que, por força da incorporação de novas reservas, deu origem à Fototeca do Museu Nogueira da Silva – Unidade Cultural da Universidade do Minho.
O primeiro a ser depositado foi o acervo de negativos em vidro de Manoel Carneiro, em 1980, e dois anos depois, o de Arcelino Augusto de Azevedo. Posteriormente viria a ser incorporado o da Foto-Stúdio 5, quando esta casa encerrou definitivamente as suas portas. Ficaram assim garantidas as condições da sua preservação e acesso aos investigadores e aos cidadãos, conscientes da importância do estudo e da divulgação dignificada que este património merece, sobretudo numa época em que a imagem, no seu sentido global, é constantemente devassada. As imagens destes arquivos permitem conhecer melhor as praças e ruas, de um modo geral, a imagem urbana de Braga nessas épocas, a riqueza do seu património arquitetónico, o equipamento urbano e, ainda, os modos de vestir e de mobilidade. Permitem, também, conhecer vivências rurais, familiares e religiosas, razão pela qual constituem um forte contributo para estudos que incluam os temas do património de Braga e de concelhos vizinhos.
1 «Entre Aspas, Apontamento para a Memória Fotográfica da Cidade» (1) e (2), Diário do Minho, 13 e 27 de janeiro de 2014.
MANUEL CARNEIRO
Nuno Borges de Araújo
Manuel Marques Carneiro nasceu a 16 de novembro de 1871, na cidade de Braga. Desconhecemos as circunstâncias em que iniciou a prática da fotografia, o que terá acontecido no final do século XIX. Fotografou com chapas de gelatina – sais de prata no formato 13 × 18 cm, que normalmente imprimia sobre papel por contacto. Tudo indica que estaria informado da atualidade fotográfica através de publicações da especialidade. Como a maioria dos fotógrafos amadores deste período, fotografou os membros da sua família, amigos, e grupos em encontros e atividades lúdicas. No entanto, a temática que perpetuou a sua fotografia foi a imagem da cidade, dos seus espaços e monumentos, onde fervilham os bracarenses nas suas atividades quotidianas, nas festas locais e outros acontecimentos. Nestes registos viu certamente a oportunidade económica de preencher uma lacuna nas iniciativas editoriais bracarenses: a edição de postais ilustrados. A importação direta de postais ilustrados franceses para venda no estabelecimento comercial do seu pai Bernardo Carneiro (1838-1902), na Rua do Souto, a partir de 1900, estará relacionada com esta iniciativa. Na correspondência sobrevivente de Bernardo e Manuel Carneiro está documentado o contacto com firmas impressoras alemãs e francesas pedindo orçamentos para a impressão de postais e de um álbum (1900-1901), e na correspondência com uma delas, a firma A. Bergeret & C.ie, de Nancy, que fora distinguida na exposição universal de Paris de 1900 com uma medalha de ouro pelas suas fototipias, a confirmação da impressão de bilhetes-postais com esta técnica fotomecânica planográfica a partir dos seus negativos fotográficos (1901). Inicialmente impressos com o nome Bernardo Carneiro, certamente o financiador deste projeto, conhecemos duas edições suas com vistas de Braga e de Guimarães, onde se destaca o interesse histórico e monumental destas cidades, circuladas em 1901-1903. Após a sua morte, em 1902, foram editados novamente postais com imagens das referidas cidades, onde passou a constar o nome Manoel Carneiro, seu filho mais velho, circulados em 1903-1904, e uma edição com a primeira folha de jornais locais de 1903 com dois rasgões, um dos quais revelando vistas urbanas de Braga, uma ideia gráfica de que também conhecemos exemplares em Espanha e na França Posteriormente, Manuel Carneiro fez edições associado ao seu irmão João Marques Carneiro (1875-1931) com o nome da firma Manoel Carneiro & Irmão, quer a preto quer coloridos, tendo alargado a sua edição de postais à Póvoa de Varzim e a Vizela, pela sua importante afluência sazonal, respetivamente como praia e estância termal, que circularam em 1905-1906 e datas posteriores. Esta firma editou ainda dois álbuns de imagens, também impressos pela técnica da fototipia: o Álbum de Braga, e o Álbum da Sé de Braga. Quando editaram os postais e os álbuns em que consta o nome desta firma ela ainda não existia formalmente, uma vez que apenas foi constituída em 4 de fevereiro de 1906 com um marceneiro local para o fabrico de móveis, que Manuel Carneiro também fotografou para fins comerciais. Na Casa Carneiro também se venderam máquinas, artigos e produtos para a prática da fotografia, certamente pensando na expansão da prática amadora.
Manuel Carneiro faleceu em 1956 na cidade de Braga, tendo os seus descendentes mantido a continuidade da atividade do seu estabelecimento comercial na Rua do Souto. O seu arquivo fotográfico, com cerca de um milhar e meio de negativos fotográficos, encontrava-se arrumado num canto do sótão deste prédio e em 1979 foi entregue à ASPA e transferido para o Museu Nogueira da Silva – Universidade do Minho, onde se procedeu ao seu tratamento e conservação.
BIBLIOGRAFIA
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Álbum de Braga [S.d.]. Braga: Manoel Carneiro & Irmão.
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Sousa, Vicente de & Jacob, Neto (1985). Portugal no 1.º Quartel do Séc. XX Documentado pelo Bilhete Postal Ilustrado da 1.ª Exposição Nacional de Postais Antigos. Bragança: Câmara Municipal de Bragança. Trindade, Maria Helena. «Apontamento para a memória fotográfica da cidade», Diário do Minho. Braga, 13 jan. 2014, p. 10, e 27 jan. 2014, p. 10.
ARQUIVOS
Arquivo Distrital de Braga – Universidade do Minho. Fundo Paroquial de Braga, São João do Souto e Panoias (Braga), e Guilhofrei (Vieira do Minho).
Arquivo Distrital de Braga – Universidade do Minho. Fundo Notarial. VV. anos.
Arquivo da Câmara Municipal de Braga. Cemitério Municipal de Braga. Livros de enterramentos.
Cemitério Municipal de Braga. Arquivo da Secretaria. Museu Nogueira da Silva – Universidade do Minho. Correspondência da família Carneiro.
ARCELINO DE AZEVEDO
Nuno Borges de Araújo
Arcelino Augusto de Azevedo nasceu a 23 de setembro de 1913, na cidade de Braga. Iniciou a atividade fotográfica com o fotógrafo Joaquim dos Santos Lima, no seu atelier do Largo Barão de S. Martinho. Além da técnica, aprendeu com ele o gosto pela arte fotográfica, que exerciam com perfecionismo, e a reivindicação do estatuto de fotógrafo-artista. A sua prática habitual de assinar as imagens reforça esta noção. Depois da casa de Santos Lima, que cerca do início dos anos 40 se mudou para a capital onde continuou a sua atividade fotográfica, passou à Foto Pelicano, no mesmo largo, que até à data era apenas um Centro Fotográfico, fundado por Francisco Maria Pelicano, onde apenas se vendia material desta especialidade, passando então a associar a parte de venda de máquinas, aparelhos e material fotográfico e a de atelier. Apesar de ser funcionário deste, o proprietário do estabelecimento permitiu-lhe manter alguma autonomia na sua atividade, o que também se revela no facto de frequentemente assinar as imagens que executava. Anos após o falecimento de Francisco Pelicano, a firma constituída pelos herdeiros da Foto Pelicano sofreu reestruturações a partir de 1966 e, entre meados dos anos 60 e o início dos anos 70, Arcelino veio a abrir um atelier fotográfico próprio no Largo de S. Francisco, que não mantinha porta aberta, funcionando apenas por atendimento. Ali retratava e tinha o seu laboratório, onde, por vezes, era auxiliado por familiares. As fotografias do seu fundo que se encontra no Museu da Casa Nogueira da Silva – Universidade do Minho foram obtidas com uma câmara de formato 120 (negativos de acetato de celulose de 6 × 6 cm) e emulsões de gelatina – sais de prata.
Além do retrato, que sempre constituiu a base económica do trabalho dos fotógrafos, Arcelino tirou vistas da cidade de Braga e de outras localidades do Minho, dos seus monumentos e objetos de arte, particularmente sacra e heráldica. Fez reportagens de festas locais como a Semana Santa e o São João, e de acontecimentos como as comemorações do 28 de maio em 1966. A fotografia industrial e aérea foram outras áreas temáticas em que desenvolveu atividade. As suas fotografias de Braga foram publicadas no periódico Correio do Minho, tal como tinham sido as do seu antecessor Santos Lima, e as imagens de monumentos e objetos de arte foram publicadas em estudos de história da arte de Braga e sua região, bem como as de casas senhoriais e heráldica. Além da ilustração de livros, as suas fotografias foram abundantemente publicadas em bilhetes-postais ilustrados a preto e coloridos, que foram vendidos em estabelecimentos comerciais. A sua reputação como artista fotográfico foi consolidada em Braga com a participação em salões fotográficos e exposições nos anos 40 e 50, com imagens selecionadas, que foram distinguidas com vários prémios.
Arcelino faleceu no dia 11 de novembro de 1972, na sua residência na cidade de Braga. Frequentador assíduo do café A Brasileira, situada no largo onde exerceu por muitos anos a atividade fotográfica, foi homenageado pela Associação de Fotografia e Cinema Amador de Braga, que ali descerrou a 8 de maio de 1976 uma placa em que recordava «com saudade o fotógrafo artista». Autor de um dos mais significativos, se não o mais significativo registo
fotográfico bracarense do século XX, o seu arquivo foi depositado pela ASPA no Museu da Casa Nogueira da Silva – UM, em 1982. Desde então foram realizadas duas exposições com imagens suas (1985, 2009), que também integraram exposições temáticas coletivas.
BIBLIOGRAFIA
I Salão de Arte Fotográfica, organizado pela Confraria do Bom Jesus do Monte, Braga, 24 de agosto a 7 de setembro de 1952 no Casino da Estância. Braga: Confraria do Bom Jesus do Monte, 1952.
1.º Salão de Arte Fotográfica, sob o patrocínio da Câmara Municipal de Braga, 7 a 24 de fevereiro de 1953. Braga: Câmara Municipal de Braga, 1953. Arcelino. Museu Nogueira da Silva [http://www.mns.uminho.pt/fototeca/midle_Arcel.html, consultado 29 mar. 2023].
Arcelino: fotógrafo de Braga (1985). Braga: Museu dos Biscainhos. Costa, Luís (2008). Fotógrafo Arcelino [bragamonumental2.blogs.sapo.pt/5806.html, consultado 29 mar. 2023]. Ferreira, Rui & Prata, Rui (2014). São João d’Outros Tempos. Museu da Imagem – Câmara Municipal de Braga. Cadernos do Museu, 4. Gusmão, Artur Nobre de (1994). Vistas e Olhares do Românico em Portugal na Fototeca do Museu Nogueira da Silva Braga: Museu Nogueira da Silva – Universidade do Minho.
Nóbrega, Vaz-Osório da (1970-1973). Pedras de Armas e Armas Tumulares do Distrito de Braga, vols. 1-3. Braga: Junta Distrital de Braga. Oliveira, Eduardo Pires de (1979). Para o Estudo da Imagem de Braga: o postal ilustrado. Braga: ASPA. Prata, Rui (2009). Arcelino: retrato de uma cidade. Museu da Imagem – Câmara Municipal de Braga. Coleção do Museu, 15. Prata, Rui (coord.) (2014). Braga: caminhos de paixão. Museu da Imagem – Câmara Municipal de Braga. Cadernos do Museu, 2.
Trindade, Maria Helena. «Apontamento para a memória fotográfica da cidade», Diário do Minho. Braga, 13 jan. 2014, p. 10, e 27 jan. 2014, p. 10.
ARQUIVOS
ADB-UM. Conservatória do Registo Civil de Braga, livro de nascimentos n.º 5 (1913), registo n.º 1682, fl. 42. Cemitério Municipal de Braga. Arquivo da Secretaria. Livros de enterramentos.
Conservatória do Registo Civil de Braga. São João do Souto, livro de casamentos de 1941, n.º 327, fl. 327-327v.
Conservatória do Registo Civil de Braga. São João do Souto, livro de óbitos de 1972, n.º 860.
Conservatória do Registo Comercial e Automóvel de Braga.
ENTREVISTAS
D. Maria Teresa Ana de Jesus Pelicano, em out. 2023. Murilo da Costa dos Santos Lima, em abr. 2024.
Este livro foi publicado por ocasião da exposição
Na Sublimação do Tempo – Braga nos arquivos fotográficos de Carneiro e Arcelino realizada na Galeria do Paço – Universidade do Minho e na Galeria do Jardim, Museu Nogueira da Silva – Universidade do Minho 23 maio > 31 agosto, 2024 exposição
Direção : António Gonçalves
Coordenação : António Gonçalves, Helena Trindade
Curadoria : Duarte Belo
Textos : Nuno Borges de Araújo
Tratamento documental: Duarte Belo, Helena Trindade
Serviço educativo: Paula Simões
Design gráfico: Gabinete de Comunicação e Imagem
Secretariado : Emília Ferreira
Montagem da exposição: António Ferreira
agradecimentos
ASPA (Associação para a Defesa do Património Cultural e Natural)
© SISTEMA SOLAR CRL (DOCUMENTA), 2024
RUA PASSOS MANUEL 67 B, 1150-258 LISBOA
© UNIVERSIDADE DO MINHO
imagens © ASPA
textos © ANTÓNIO GONÇALVES (pp. 7-8); DUARTE BELO (pp. 9-11); MIGUEL MELO BANDEIRA (pp. 13-16, p. 216); NUNO BORGES DE ARAÚJO (pp. 17-18, 20, 32, 52, 60, 100, 124, 136, 142, 150, 190, pp. 217-221)
ISBN: 978-989-568-164-8
1.ª EDIÇÃO: JULHO DE 2024
DIREÇÃO: ANTÓNIO GONÇALVES
COORDENAÇÃO: DUARTE BELO
TRATAMENTO DOCUMENTAL: DUARTE BELO, HELENA TRINDADE
REVISÃO: HELENA ROLDÃO
TIRAGEM: 800 EXEMPLARES
DEPÓSITO LEGAL: 535781/24
PRÉ-IMPRESSÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO: MAIADOURO SA