Além

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J.-K. Huysmans ALÉM

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes

TÍTULO DO ORIGINAL: LÀ-BAS

© SISTEMA SOLAR, CRL

RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2024

ISBN: 978-989-568-039-9

1.ª EDIÇÃO: JULHO DE 2024

CAPA: DIERIC BOUTS, L’ENFER (PORMENOR), 1450

REVISÃO: DIOGO FERREIRA

DEPÓSITO LEGAL: 535331/24

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ACDPRINT, SA RUA MARQUESA D’ALORNA, 25-19 2620-271 RAMADA

Coube-lhe a irreverência num ano de obras como Les Cahiers d’André Walter de Gide, Chansons pour elle de Verlaine, ou mesmo o sarcástico L’Écornifleur de Jules Renard. Além, romance de 1891, foi levado a grande audácia nos jornais de Paris e multiplicou-se na tiragem até às dezenas de milhares — surpresa num autor de prestígios que mal rompiam o circuito dos intelectuais do Quartier Latin.

Joris, Karl, Huysmans: pelo nome talvez um estrangeiro decidido a escrever em francês. Mas não. Charles-Marie-Georges tinha surgido na literatura apagando as marcas do baptismo (por aversão à mãe, por aversão ao padrasto) e preferia-se todo holandês para honrar a memória de Godfried Huysmans, seu pai litógrafo e pintor que desde os oito anos de idade ele se habituara a visitar no cemitério de Montparnasse.

Solitário, magoado e misógino desde a adolescência, dividido por uma bissexualidade activa mas fechada aos afectos, continuou nesta cor de cinza quando se sentou à secretária de um ministério onde o mandaram vigiar burocraticamente as casas de jogo e os casinos da França. Enfrentou enormes tédios profissionais pela tranquilidade de uma segurança material; cumpriu deveres de cela para respirar a libertação de fins de tarde que o atirava, entre jantaradas e vinho, às turbulências da margem esquerda do Sena. «Ulisses das tascas» — chamou-lhe um dia Maupassant, acrescentando: «com uma Odisseia limitada às viagens entre pratos onde mal cheiravam as manteigas rançosas à volta de carnes intragáveis»; frase ressentida de quem tinha visto este confrade das letras, este obcecado pela

sujidade parisiense, fugir de vez para distâncias estranhas e hostis às certezas muito mais terrenas do naturalismo.

Com vinte e seis anos de idade tinha editado o seu primeiro livro, exibido um prazer sensual na utilização de palavras pouco ouvidas ou, para compor uma música de esquisita originalidade, levemente infiéis ao dicionário. Um «ornamento de ouro em trabalho bizantino», veio a escrever o inglês George Moore quando se referiu à sensação-Huysmans da sua mocidade frequentadora de Paris e de obras em francês.

O seu amor às joalharias do estilo perturba, na verdade, o entendimento de tudo aquilo que o ligou ao grupo de Zola. Tentou seguir, disciplinado, os conselhos do autor de L’Assommoir e de Nana; fez-se autor de quatro romances naturalistas a todo o custo mas em desfavor perante as eficiências do mestre que lhe ditava o desvio das exuberâncias barrocas, de um sopro transfigurador nas histórias que o seu clube literário queria bem mais assentes nas verdades reconhecíveis do homem da rua. Os naturalismos de Huysmans foram a contra-senso da sua personalidade literária e apagam-se hoje no que vive dessa veia submissa às barreiras do senso comum; mas ainda assim refira-se a singularidade de En ménage (1881), com Schopenhauer à vista e anunciador do destempero misógino que veio a marcar até ao sangue muitas das suas ficções posteriores.

Aconselhado a não se deixar à solta (e, mesmo assim…), cerceado pelas certezas do positivismo, forçou-se a personagens comuns, com pouco de si próprio, evitou-se como centro das suas ficções — a vocação maior, haveria de ver-se, do seu talento de escritor. Reconhecendo-se pouco aberto às verdades múltiplas do homem e do mundo, como é do mérito dos grandes romancistas, num momento de autocrítica surgiu com laivos de masoquismo num jornal, debaixo do pseudónimo A. Meunier (nome inspirado pelo da sua amante Anne Meunier): «Um dos grandes defeitos dos livros do M. Huysmans é, na minha opinião, o tipo único que segura a corda em cada uma das suas obras. Cyprien Tibaille e André, Folantin e Des

Esseintes não passam, em suma, de uma única pessoa transportada para meios diferentes. Essa pessoa é, com muita evidência, o M. Huysmans, e isto sente-se. Estamos longe da arte perfeita de Flaubert, que se apagava atrás da obra e criava personagens tão magnificamente diversas. O M. Huysmans é incapaz de um tal esforço. O seu rosto sardónico e em crispação surge emboscado ao virar de cada página, e a constante intromissão de uma mesma personalidade, por muito interessante que seja, segundo me parece diminui a grandeza de uma obra e, com o tempo, a sua invariabilidade fatiga.»

Esta auto-flagelação é posterior ao erro da sua fase naturalista e à ruptura com a escola de Médan. Liberto de rótulos e consciente do seu estreito campo como orquestrador de ficções, pôde permitir-se o tipo de romance que praticou até ao fim da vida, com uma história de si próprio esfumada atrás do mundo que o rodeava, com tiradas que o exibiam num esplendor de erudição. «Pronto, já está!» — escreveu no prefácio de À Rebours, que em 1884 se anunciava como corte radical e foi pretexto para o azedume dos seguidores de Zola, exercido sem esmorecimento até ele morrer.

No seu novo romance fazia o retrato do esteta decadente, de um Des Esseintes que parece viajar desde as pinturas de Odilon Redon e Gustave Moreau até a uma história de nevroses e flores de estufa, até a uma orgia dos sentidos a contrapelo do senso e das razões do mundo vulgar — «navalha envenenada», chamou Barbey d’Aurevilly ao luxo abafado da sua ourivesaria.

Se a passagem de mais de um século pôs o precioso exercício de À Rebours tão distante como as elegâncias de Oscar Wilde, as redundâncias de Sarah Bernhardt, os desvarios dandistas de Robert de Montesquiou, não subtrai força ao retrato nem lhe desgarante a fascinação. Roger Vailland, apesar de tão afincadamente anos quarenta e cinquenta do século XX, registou nos seus Écrits intimes: «Acabei de ler À Rebours. Não houve livro que me marcasse mais.» E Jean Borie, também rendido a esta obra de ruptura

no romance francês, deu a sua personagem central como arquétipo de outras bem conhecidas da literatura contemporânea: «Des Esseintes é [pela angústia que o seu tempo lhe merece] o antepassado do Bardamu de Céline e do Roquentin de Sartre.»

Contudo, as originalidades mais fortes deste pico da sua criação literária, entaladas entre o que foi uma dispensável experiência naturalista e a mal entendida cruzada de matriz cristã, encontram-se nas páginas de En Rade 1 (1887) e de Além (1891), títulos que André Breton manteve erguidos como uma bandeira quando o surrealismo dividiu águas e foi de incansável hostilidade perante os valores preservados sob o velho pó das academias. Um trecho de En Rade figura na sua Anthologie de l’humour noir, e ambos os títulos surgem referidos nas primeiras páginas da narrativa Nadja, como admiração e uma grande dívida: «Mais importante para o espírito que o encontro de certas disposições de coisas», diz ele, «surgem-me as disposições de um espírito perante certas coisas, e só estas duas espécies de disposição dominam todas as formas da sensibilidade. Por isso estou com o Huysmans de En Rade e de Além nas formas de apreciar tudo quanto me é proposto, de escolher com a parcialidade do desespero entre o que existe, e apesar do meu grande agastamento por só ter podido conhecê-lo da obra, talvez me seja o menos estranho dos amigos. Pois não foi ele quem fez mais do que qualquer outro para levar ao extremo essa discriminação necessária, vital, entre o elo de tão frágil aparência que pode ser-nos de máximo socorro, e o aparelho vertiginoso das forças que se conjuram para nos meter no fundo? Apresentou-me esse tédio vibrante que todos os espectáculos, mais ou menos, lhe causaram; antes dele não houve quem soubesse mais do que levar-me a assistir ao grande despertar do maquinal sobre o terreno devastado das possibilidades

1 Editado em português nesta colecção, com o título O Castelo do Homem Ancorado.

conscientes, pelo menos convencer-me humanamente da sua fatalidade absoluta, e da inutilidade de procurar aí escapatórias pessoais.»

Como é evidente, não se construiu sobre esta onda de fundo o êxito popular de Além; e é difícil admitir que o leitor típico daquela época pudesse empolgar-se com uma arquitectura tão pouco adaptada aos hábitos do romance — trezentas páginas de diálogos e monólogos a consentirem não mais do que o fio de uma história ali intrometida e, como se não bastasse, celibatária e sentada no meio de fumos, de cigarros que se acendem à mesa de jantares suculentos onde pairam temas defendidos sob o esteio de uma erudição bizarra, espalhada por existências quase imóveis, alheias às alegrias e às lágrimas de um normal romance de amor.

O êxito de Além só foi possível com uma hábil vitória de narrador sobre as dificuldades que um romance em dissertações encontra nos grandes públicos. Como um desses malabaristas que mantêm vários objectos no ar, Huysmans reteve o leitor pela surpresa e pela singularidade dos temas que ali convergem e se fundem, chegados de várias frentes. Havia a história de Gilles de Rais, o monstruoso pedófilo dos tempos de Joana d’Arc e Carlos VII, levada pela primeira vez ao mais cru num livro de grande circulação; havia as promiscuidades do satanismo com as altas instâncias da Igreja; o relato das suas persistências e de malefícios que deixavam a Lião daqueles dias sob suspeitas e escândalos abafados, sob acusações de inércia feitas a um clero indiferente perante os desvios sacrílegos que lhe caberia punir; ainda havia a missa negra «assistida» por um escritor de raro talento nas descrições e grandes faustos na palavra; uma aventura em lençóis um tanto frios mas que não estendia o véu de nenhum disfarce sobre a sua sexualidade malsã. Tudo o que fez Léon Bloy (depois de longos anos de amizade, azedo e em desavença pessoal com o autor) gritar por escrito e com irritação: «É a mais monstruosamente fútil das rapsódias contemporâneas», «é a viagem ao esgoto».

Huysmans tinha vencido os escolhos de uma longa investigação para escrever as páginas de Além. Tinha-se arrastado por fontes bibliográficas

de acesso difícil ou de existência quase mítica para dar a palavra a um sineiro de Saint-Sulpice, seguidor sem quebras da ortodoxia católica e dos simbolismos esotéricos; ao astrólogo Gévingey, um conciliador das forças planetárias com a fé cristã; a Durtal e Des Hermies, alter-egos de Huysmans, dois hereges (pouco seguros na sua heresia, diga-se a verdade) invulgarmente interessados pelo contraponto maligno que a religião de Satanás levanta à do Deus imposto como único salvador.

Huysmans obriga-se a que este programa não caia em águas mornas pelo receio de enfrentar cruezas, inevitáveis na descrição das práticas satânicas que figuram como ponto alto na história do seu livro. Na opinião de alguns críticos tinha chegado a excessos «repelentes», a afirmações «delirantes», embora lhes fosse difícil provar a existência de inexactidões no essencial daqueles factos desconhecidos da generalidade do público mas alegadamente vividos num curso paralelo e subterrâneo aos actos da fé visível, praticados sob a respeitabilidade das catedrais. Huysmans defendia-se: Os apectos menos conhecidos e mais desagradáveis da vida de Gilles de Rais constavam nas actas do processo de Nantes, conservadas desde a Idade Média; e tinha sido Berthe Carrière (a companheira «satânica» do escritor Rémy de Gourmont, que ele misturou com Julie Thibault e Henriette Maillat, suas amantes, para criar a Mme Chantelouve do romance) a mediadora capaz de fazê-lo chegar à presença de Boullan, o ocultista lionês que lhe pormenorizou os rituais usados na luta contra os malefícios, e de Louis Van Eœcke, o padre de Bruges punido pela hierarquia da Igreja depois de ter sido acusado como poluidor de hóstias e oficiante de missas negras.

Huysmans contava a sua própria experiência no cruzamento destes temas, vertia-se num Durtal que era espelho dos seus incómodos de homem e de escritor nesses dias assombrado pela vontade de concretizar no plano literário o equivalente de um realismo transfigurado com exemplo máximo numa crucificação de Matthias Grünewald exposta no museu de Cassel; dominado pela sensação de que a mulher ideal seria sempre a mulher

distante, e de que a melhor sexualidade era de actos com a mulher-objecto dos lupanares; vergado à irremissível descrença na sociedade regida com a democracia dos votos; obcecado pela vontade de uma solidão de claustros impossível porque não sabia admiti-la sujeita à religião do Cristo. O fim que decidiu para o seu romance não abre nenhuma porta às esperanças luminosas e paracletianas sonhadas pelo sineiro e pelo astrólogo para o futuro do mundo. Durtal e Des Hermies permanecem inamovíveis no seu pessimismo: … Este século está-se positivamente nas tintas para o Cristo glorioso; contamina o sobrenatural e vomita o além. Como ter esperança, então, no futuro, como imaginar que possam ser limpos os filhos saídos dos fétidos burgueses deste tempo sujo? Educados desta maneira, pergunto a mim próprio o que irão fazer na vida.

— Vão fazer o mesmo que os pais e as mães deles. Encher as tripas e despejar a alma pelo baixo-ventre!

A heresia equívoca de Além já anunciava o J.-K. Huysmans católico. No ano seguinte ao deste êxito de escândalo surgiram os primeiros sintomas de um novo escritor exaltado pelo Cristo, o que viveu nas imediações do convento beneditino de Val Notre-Dame, o que se rendeu às humildades do oblato, o que regressou a uma Paris sem tascas, sem bordéis, para se instalar num anexo do convento da rua Monsieur.

Depois de não entusiasmar a crítica com as páginas de En Route, provou em 1898 que havia neste seu novo estado de espírito controvérsia e rebeldia bastantes para outro grande êxito de vendas: La Cathédrale (com dois capítulos que a Igreja considerou sacrílegos), esforço de investigação tão árduo como o de Além mas para desenovelar simbologias nos pormenores arquitectónicos da catedral de Chartres. Dir-se-á que esta consagração pública lhe devolveu alguma capacidade de convívio com os homens e fê-lo decidir que a sombra do convento não era incompatível com os lados mundanos da vida literária. Aceitou o lugar de presidente da Academia Goncourt; coube-lhe dirigir a cerimónia das primeiras entregas ( Force

ennemie de John-Antoine Nau e La Maternelle de Léon Frapié) do que viria a ser o prémio literário mais prestigiado do seu país.

Depois do sobressalto satanista de Além, Huysmans acompanhou-se reflectido em Durtal e fê-lo percorrer o itinerário de um homem enamorado por Deus. Em 1895 descreveu-o na ascensão à Tebaida sagrada de En Route, em 1898 como estudioso das interpretações simbólicas de La Cathédrale, em 1903 rendido aos êxtases e às serenidades de L’Oblat. Tomando-o por imagem da sua própria experiência, mostrou-o como um conciliador das realidades visíveis com invisibilidades reconhecidas, dizia ele, desde as longínquas idades da fé.

Era uma batalha sem tréguas contra os homens no seu mundo; derrotada de um só golpe no Inverno de 1906-1907 pelas dores do cancro que lhe desfazia os maxilares sem a medicina desses dias poder ajudá-lo com analgésicos, momentos difíceis em que mostrou a coragem já fora de época dos velhos mártires do Cristo. A França dos escritores comentou com espanto os seus heroísmos de grande místico, e Paul Léautaud ridicularizou-os: «O fim de Huysmans», escreveu no seu diário, «desse homem atingido por uma doença horrível, que viveu os maiores sofrimentos pedindo a Deus que lhos mandasse ainda maiores, toca as raias da imbecilidade!»

J.-K. Huysmans sobrevive numa posteridade discreta, apesar das universidades que o estudam, apesar dos investigadores que o biografam, apesar das colecções de bolso que o editam. Um percurso manso com estremecimentos, como o elogio rasgado de Mallarmé, ou Paul Valéry a profetizar que «os seus livros continuarão a atrair estranhos visitantes e bem extraordinárias correspondências»; André Breton a trazê-lo ao culto das hostes surrealistas; Julien Gracq e Roger Vailland a dizerem o que lhe devem; Drieu La Rochelle a lembrar que ninguém, como ele, «mostrou o homem das cidades na sua suprema imobilidade».

A igreja de Saint-Sulpice, presente em muitas cenas de Além, não suscita curiosidades associadas ao romance que chamou mais atenção para a sua presença naquela praça apagada atrás das árvores e das áleas do Luxembourg. Os visitantes vão ver os Eugène Delacroix que enfeitam a entrada da nave lateral direita (A Luta Com o Anjo, Heliodoro Expulso do Templo, São Miguel a Matar o Dragão), e quando de lá saem deitam um olhar distraído à Fonte dos Quatro Pontos Cardeais, entram no café histórico De La Mairie… e desaparecem. «Não queremos na escada pessoas estranhas à igreja», começa por explicar o encarregado a quem quebra esta rotina com a vontade de uma visita à torre do sineiro. «As obras de restauro foram desastrosas, o revestimento de betão fissurou a estrutura interior, que dá evidentes sinais de decadência. É perigoso subir até aos sinos».

— Mas não se trata disso — pode acontecer que o visitante fora da norma lhe responda. — Trata-se apenas de entrar nas salas do primeiro piso da torre, para ver se ainda estão como num romance escrito há mais de cem anos por um célebre autor francês.

(A persuasão prolonga-se, com progressos lentos.)

— De que país o senhor é?

(Há uma ponta de fastio nesta curiosidade.)

— De Portugal.

— Temos guardada no depósito uma Nossa Senhora de Fátima.

Bem, vamos lá… — pode acontecer que o oiçamos dizer, se estivermos num momento de sorte.

Sem luzes acesas, a torre é um Edgar Poe visto por Roger Corman e abre-nos à esperança de alguns arrepios de conto gótico. Vencida a espiral até às dependências de Carhaix, elas surgem-nos com a mesma luz triste que é dada a imaginar ao leitor de Além, oferecida com avareza por aquela janela em semicírculo, indiferente ao sol que nesse dia, por um acaso, pôs entre as suas escolhas a cidade de Paris. Tudo está como esteve na memória de Huysmans, com a excepção dos móveis, dos ladrilhos que já não existem

ou existem ocultos pelo actual pavimento de madeira. A mesa não é, por certo, a de Carhaix, e no seu tampo há um rádio com uma actualidade agressiva para quem ali vai à espera de um cenário fiel ao dos serões de Durtal e Des Hermies.

— Não costumam aparecer interessados numa visita a estas divisões?

— Há tempos, um sueco. De outra vez um jornalista que fez uma autêntica devassa a todo o edifício. Trazia uma autorização. Até no telhado andou. Mas a curiosidade do público resume-se aos murais da igreja. Vêm nos guias turísticos.

— Nunca leu o romance Além? Muitas das suas páginas são passadas em Saint-Sulpice.

— Não. Nunca li nem vou ler.

— Porquê?

— Não sou de muitas leituras. E disseram-me que é o livro de um louco. Que é mentiroso. Que é indecente.

Nas suas palavras há uma sonoridade seca que levanta suspeitas de moralidade ofendida, o receio de enfrentar ousadias centenárias de um clássico da literatura em francês; ou, se outra coisa for, um eco transportado de uma cidade antiga, com fiacres e candeeiros a gás, talvez a voz do próprio Carhaix, o sineiro de Huysmans com alma ainda viva nas pedras da sua torre.

Mas esta ilusão dissipa-se no telemóvel tão dois mil e cinco que a sua impaciência consulta na expectativa de uma qualquer mensagem, e naquela praça lá fora, que não ilude uma Paris de muitos anos mais tarde, a que receia atentados e põe em transparente os receptáculos do lixo público, a que fabrica o sucedâneo triste de uma Côte d’Azur despejando areia e palmeiras na margem do Sena, a que dá a pastar a sua Gioconda às curiosidades a vento dos filhos de Dan Brown.

ALÉM

— Acreditas tanto nessas ideias, meu caro, que abandonaste o adultério, o amor, a ambição, todos os temas que o romance moderno domestica, para escreveres a história de Gilles de Rais. — E depois de um silêncio acrescentou:

Ao naturalismo eu não censuro as palavras de caserna nem o vocabulário de latrina e de hospício, porque seria injusto e absurdo fazê-lo. Para começar, certos temas reclamam-no; e além disso, com a caliça das expressões e o alcatrão das palavras podem erigir-se obras enormes e poderosas, temos a prová-lo A Taberna do Zola; não, o problema é outro; não censuro ao naturalismo o betume pesado do traço grosso do seu estilo, mas a imundície das ideias; censuro-lhe ter encarnado o materialismo na literatura, glorificado a democracia da arte!

Boa criatura, digas tu o que quiseres, que teoria própria para miolos com má reputação, que método o seu, acanhado e pelintra! Com a pretensão de ficar restrito às barrelas da carne, rejeitar o supra-sensível, negar o sonho, sem mesmo compreender que o cu rio so da arte só co meça onde os sentidos deixam de ter serventia!

Encolhes os ombros, mas olha: o que viu o teu naturalismo de todos estes mistérios desencorajadores que nos andam à volta? Nada. Quando esteve em causa explicar uma paixão vulgar, quando foi preciso sondar uma chaga ou mesmo limpar a mais benigna das mazelas da alma, tudo foi levado à conta dos apetites e dos instintos. Cio e ataque de loucura são as suas únicas diáteses. Para resumir, só esquadrinhou do umbigo para baixo, e mal se aproximou das virilhas fez divagações

banais; é um herniário de sentimentos, envolveu almas com ligaduras, e nada mais!

Além disto, Durtal, repara que ele não é só inepto e obtuso; é fétido porque preconizou esta vida moderna atroz, elogiou o novo americanismo dos costumes, chegou ao elogio da força bruta, à apoteose do cofre-forte. Com um prodígio de humildade reverenciou o gosto pestilento das multidões, e repudiou o estilo; repeliu tudo o que fosse pensamento altaneiro, todos os impulsos para o sobrenatural e o além. Palavra de honra! Fez-se tão bom representante das ideias burguesas, que até me parece saído de um acasalamento da Lisa, a salsicheira de O Ventre de Paris, com o Homais!

— Com a breca, vais embalado — respondeu Durtal de cabeça perdida. — E depois de voltar a acender o cigarro: — O materialismo tanto me repugna a mim como a ti, mas não é razão para negarmos os serviços inesquecíveis que os naturalistas prestaram à arte; porque afinal foram eles que nos livraram dos fantoches desumanos do romantismo e sacaram a literatura de um idealismo de tansos e de uma debilidade de solteirona exaltada pelo celibato! Para resumir, depois de Balzac foram eles que criaram seres visíveis e palpáveis, e os puseram de acordo com o que havia à sua volta; ajudaram ao desenvolvimento da língua começado pelos românticos; souberam o que é o verdadeiro riso, e por vezes até tiveram o dom das lágrimas; afinal, nem sempre foi o fanatismo pelas baixezas, por ti referido, que os desinquietou!

— Foi, sim senhor, porque gostam do seu século, e basta isso para os julgar!

— Mas, que diabo! Nem o Flaubert nem os Goncourt gostavam do seu século!

— Dou-te razão; são artistas probos, e rebeldes, e altaneiros; por isso também os ponho num lugar à parte. Não me repugna nada confessar que o Zola é um grande paisagista e um prodigioso manipulador

de massas, e um intérprete do povo. Além do mais, agradeça-se a Deus que nos romances não tenha levado até ao fim teorias de artigos seus, que se vergam à intromissão do positivismo na arte. Mas Rosny, o seu melhor aluno e o único romancista com talento que a bem dizer se impregnou com as ideias do mestre, transformou-se numa laboriosa gala de erudição laica e de ciência que só é de ajudante de mestre, para empregarmos um banal palavreado de laboratório de química! Não, não podemos deixar de dizer que a réstia de vida de toda a escola naturalista reflecte as apetências de um tempo detestável. Fez-nos chegar a uma arte tão rastejante e chata, que até me dá vontade de lhe chamar larvismo. Ah, não? Se releres os seus últimos livros, o que é que lá encontras? Anedotas banais, com um estilo que é vidro colorido de má qualidade, casos do dia recortados do jornal, só contos fatigados e histórias bichosas que nem sequer têm uma ideia sobre a vida, sobre a alma, que as sustente. Quando acabo de ler essas obras, chego a não me lembrar das descrições incontinentes, dos arrazoados insípidos que elas encerram; só me resta a surpresa de pensar que houve um homem capaz de escrever trezentas a quatrocentas páginas sem ter absolutamente nada para nos revelar, nada para nos dizer.

— Olha, Des Hermies, se não te importas vamos falar de outra coisa porque nunca havemos de entender-nos sobre o naturalismo. Basta ouvires esse nome, para perderes as estribeiras. Diz lá: em que ponto vai a tal medicina Mattei? Os teus frascos de electricidade e os teus glóbulos ao menos conseguem dar alívio a alguns doentes?

— Pff! Curam um pouco melhor do que as panaceias do Codex, mas não significa que tenham efeitos persistentes e seguros; de resto, eles ou outra coisa… E com esta me ponho a andar, meu caro, porque estão a dar dez horas e o teu porteiro vai apagar o gás da escada. Boa noite. Até breve, não é verdade?

o certo é que desfaleceu de horror e voltou para a França esgotado, meio morto.

— Diabo! — exclamou Durtal. — Nem tudo é cor-de-rosa nessa profissão; mas olha lá, quando se entra numa tal via só os espíritos do mal podem ser evocados?

— Achas que os anjos, que neste mundo só obedecem aos santos, recebem ordens do primeiro que aparece?

— Mas, enfim, entre os espíritos de luz e os espíritos de trevas deve haver um meio termo, espíritos nem celestes nem demoníacos, da mediania; por exemplo, os que debitam tão fétidas parvoíces nas sessões de espiritismo!

— Uma noite ouvi da boca de um padre que as larvas indiferentes, neutras, habitam um território invisível e natural, qualquer coisa como uma pequena ilha que os bons e os maus espíritos sitiam por todos os lados. Ao serem cada vez mais repelidas, acabam por se dissolver num ou noutro campo. Mas, claro está, como os ocultistas não podem chamar os anjos, ao evocarem tantas vezes estas larvas acabam, queiram ou não queiram e sem o saber, por atrair os espíritos do mal e por se mover no diabolismo. Foi aí, em suma, que em dado momento o espiritismo desaguou!

— Sim, quando admitimos a repelente ideia de um médium imbecil poder evocar os mortos, com mais forte razão devemos reconhecer que há nessas práticas a marca de Satanás.

— Sem dúvida nenhuma. Seja qual for o lado para onde nos voltemos, o espiritismo é uma imundície!

— Visto isso não acreditas na teurgia, na magia branca?

— Não, é uma trapaça! É um ouropel que serve para pândegos, como os rosa-cruzes, esconderem os seus mais repugnantes ensaios de magia negra. Ninguém se atreve a confessar que sataniza. Apesar das belas frases com que os hipócritas ou os pacóvios condimentam a

magia branca, do que é que queres que ela trate, a que é que queres que ela conduza? Aliás, a Igreja que perante compadrios destes não se deixa enganar, condena indiferentemente uma e outra destas magias.

— Ah! — exclamou Durtal depois de um silêncio, a acender um cigarro. — Mais vale conversarmos sobre política ou corridas. Mas que salgalhada! Vamos acreditar em quê? Metade destas doutrinas é louca e a outra metade com um tal mistério que nos leva na onda. Confirmar o satanismo? Bolas, que é uma exorbitância, embora possa parecer quase incontestável. Se a nós próprios exigirmos lógica, há que acreditar no catolicismo. E nesse caso só nos resta orar, porque o budismo ou qualquer outro culto do mesmo gabarito não tem dimensão para lutar contra a religião do Cristo!

— Então, acredita!

— Não posso; há dentro dela uma porção de dogmas que me desencorajam e revoltam!

— Eu também não tenho a certeza de grande coisa — continuou a dizer Des Hermies — embora haja momentos em que me sinto quase, quase a acreditar. Em todo o caso verifico que o sobrenatural existe, seja ele cristão ou qualquer outra coisa. Negá-lo é negar a evidência, é ficarmos atolados no auge do materialismo, na gamela estúpida dos livres-pensadores!

— De qualquer modo, é aborrecido vacilarmos assim! Ah! Como invejo a fé robusta do Carhaix!

— Não exiges muito — respondeu Des Hermies. — A fé não passa do guarda-lamas da vida, é o único molhe atrás do qual o homem sem mastros pode encalhar em paz!

— Gostam disto? — perguntou a mamã Carhaix. — Para variar, ontem fiz cozido e guardei a carne de vaca; por isso, vamos ter esta noite um caldo com aletria, uma salada de carne fria com arenque fumado e aipo, um bom puré de batata com queijo e sobremesa. E além disso vão provar a nova sidra que recebemos.

— Oh! Oh! — exclamaram Des Hermies e Durtal, que antes da refeição saboreavam um copo de elixir da longa vida. — Sabe, senhora Carhaix, a sua cozinha incita-nos ao pecado da gula. Mesmo que isto seja sol de pouca dura, vamos transformar-nos em ventrícolas e Gamaches!

— Não brinquem! Mas que maçada, este atraso do Louis!

— Alguém sobe a escada — disse Durtal, porque ouvia um barulho de solas nos degraus de pedra da torre.

— Não, não é ele — disse a Mme. Carhaix, a abrir a porta. — São os passos do senhor Gévingey.

De facto, com um cumprimento teatral o astrólogo entrou, de capote azul, de chapéu de feltro; depois de as jóias das suas manápulas se esfregarem nos dedos dos presentes, perguntou pelo sineiro.

— Foi à carpintaria; as traves mestras de carvalho, as que aguentam os sinos maiores, racharam e o Louis teme que elas caiam.

— Oh, diacho!

— Há novidades sobre as eleições? — perguntou Gévingey, enquanto puxava do cachimbo e lhe soprava para dentro.

— Neste bairro não; só logo à noite, por volta das dez, vão ser conhecidos os resultados do escrutínio. De resto, nos votos não haverá

surpresa porque esse tal senhor Pâris só diz disparates; é garantido que o general Boulanger vai comer-lhe as papas na cabeça.

— Afirma um provérbio da Idade Média que os loucos surgem mal as favas dão flor. Mas não estamos na época!

Carhaix entrou, pediu desculpa pelo atraso, e enquanto a sua mulher trazia a sopa calçou as galochas e respondeu às perguntas dos amigos:

— Sim, a humidade corroeu as virolas de ferro e apodreceu a madeira. As vigas fazem barriga; chegou a altura de o carpinteiro intervir. Acabou por me prometer que vai estar aqui amanhã com os seus homens, sem falta. Para o caso tanto faz. Estou contente é por me apanhar em casa. Nas ruas vejo tudo a girar, fico estúpido, hesitante, bêbado; só me sinto à vontade no meu campanário ou nesta sala. Deixa isso a meu cargo, ó mulher — disse ele deitando a mão à colher para remexer a salada de aipo, arenque e carne de vaca.

— Que cheirinho! — exclamou Durtal, aspirando o odor incisivo do arenque. — O que este perfume sugere! Evoca-me a visão de uma chaminé com fornilho onde estalam varas de zimbro, num rés-do-chão com uma porta a dar para um grande porto! É como se à volta destes ouros fumados e destas ferrugens secas existisse uma auréola de alcatrão e algas salgadas. É requintado — continuou a dizer, enquanto saboreava a salada.

— Pois está à sua disposição, senhor Durtal. Não tem gostos difíceis de contentar — disse a mulher de Carhaix.

— Infelizmente! — disse o marido, a sorrir. — Porque se o corpo dele é fácil de satisfazer, a alma!… Quando penso nos desesperantes aforismos da noite passada! Entretanto já rezámos para Deus o iluminar. Olha — disse de repente à mulher — havemos de invocar São Nolasco e São Teódulo, que são sempre representados ao pé de sinos. Têm qualquer coisa da casa, e por certo far-se-ão intercessores de pessoas que os veneram, a eles e aos seus emblemas!

— Só com milagres dos bons o Durtal ficaria convencido — disse Des Hermies.

— Já houve sinos que os provocaram — proferiu o astrólogo. — Lembro-me de ter lido não sei onde que anjos tocaram a rebate no momento em que Santo Isidoro de Madrid morreu.

— E há muitos outros! — exclamou o sineiro. — Os sinos repicaram sozinhos quando São Sigisberto cantava o De Profundis sobre o cadáver do mártir Plácido; e quando os assassinos de Santo Enemundo, bispo de Lião, atiraram o seu corpo para dentro de um barco sem remadores e sem vela, estava a embarcação a passar, a descer o Saône, e também tocaram sem ninguém os ter posto a vibrar.

— Sabe em que é que eu penso? — disse Des Hermies, a olhar para Carhaix. — Penso que devia ocupar-se de uma compendiosa recolha hagiográfica ou de preparar um in-folio erudito sobre heráldica.

— Então porquê?

— Porque vive muito longe da sua época, valha-me Deus! Como tem tanto fervor por coisas que ela ignora ou abomina, como tudo isso ainda o exalta! O meu bom amigo é um homem definitivamente incompreensível para as gerações futuras. Tocar sinos tendo adoração por eles, entregar-se aos trabalhos fora de moda da arte feudal ou a labores monásticos de vidas de santos seria perfeito; seria muito alheio a Paris, muito ligado aos aléns, muito distante, de velhas idades!

— Ai de mim! — disse Carhaix. — Não passo de um pobre homem que nada sabe, embora exista esse tipo em que está a pensar. Creio que um sineiro, na Suíça, desde há anos tem vindo a coligir um memorial heráldico. Resta saber — continuou a dizer, a rir-se — se uma das ocupações não prejudica a outra.

— Não lhe parece que a profissão de astrólogo ainda está mais desacreditada, mais proscrita? — disse Gévingey com azedume.

— Olhem, que tal acham a nossa sidra? — perguntou a mulher do sineiro. — Está um pouco verde, não?

— Não, é novata de sabor mas depois de um copo passa ao ponto certo — respondeu Durtal.

— Mulher, serve o puré sem esperarem por mim. Fiz-vos atrasar com os meus afazeres, e a hora do angelus está a chegar. Não se preocupem comigo, comam porque vou conseguir apanhar-vos, mal volte a descer.

E enquanto o marido acendia a lanterna e saía da sala, a mulher trouxe um prato com uma espécie de bolo coberto por uma crosta manchada a caramelo e a uma cristalização dourada.

— Oh! Oh! — disse Gévingey. — Afinal não é puré de batata!

— É, apenas acontece que a parte de cima foi gratinada no forno de lenha; provem, lá dentro pus tudo quanto era preciso, deve estar bom.

A verdade é que estava saboroso e foi aclamado; mas depois calaram-se porque era impossível ouvirem-se. Nessa noite o sino ribombava, mais poderoso e mais claro. Durtal tentava analisar esse ruído que parecia pôr a sala a baloiçar. Como que havia nele um fluxo e um refluxo de sons; primeiro o choque formidável do badalo contra o bronze do vaso, depois uma espécie de esmagamento de sons que acabavam por se difundir com rotundidade, finamente moídos; por fim o regresso do badalo com uma nova pancada que acrescentava ao almofariz de bronze outras ondas sonoras moídas e repelidas, dispersas na torre.

Depois estes dobres espaçaram-se; não tardou que apenas fossem o ronrom de uma roda enorme; algumas gotas foram mais lentas a cair, e Carhaix entrou.

— Que tempo este, mais desconchavado! — disse Gévingey, pensativo. — Já não se acredita em nada, e engole-se tudo. Todas as manhãs se inventa uma ciência nova; nos tempos que correm impera

a lapalissada a que chamam demagogia! E já ninguém lê esse admirável Paracelso que tudo encontrou, tudo criou! Nos vossos congressos de sábios vá hoje dizer-se, de acordo com este grande mestre, que a vida é uma gota da essência dos astros, que cada um dos nossos órgãos corresponde a um planeta e depende dele, e em consequência disso somos um resumo da esfera divina; vá dizer-se que todos os homens nascidos sob o signo de Saturno são melancólicos e pituitosos, taciturnos e solitários, pobres e inúteis, o que é confirmado pela experiência; que esse astro pesado e tardio nas marcas predispõe às superstições e às fraudes, preside às epilepsias e à mesquinhez, às hemorróidas e às lepras, que é infelizmente o grande fornecedor dos hospícios e das prisões. Gozariam imenso e encolheriam os ombros, esses burros ajuramentados, esses gloriosos pedantes!

— Sim — disse Des Hermies — Paracelso foi um dos mais extraordinários praticantes da medicina oculta. Conhecia os mistérios do sangue já hoje esquecidos, os efeitos medicinais da luz ainda por conhecer. Aliás, tal como os cabalistas professava que o ser humano é formado por três partes, um corpo material, uma alma e um perispírito também chamado corpo astral; curava sobretudo este último, e com processos incompreensíveis ou fora de uso fazia o envólucro exterior e carnal reagir. Tratava feridas através do sangue que saía delas, e não dos tecidos. Há mesmo quem garanta que curava certas doenças!

— Graças aos seus profundos conhecimentos de astrologia — disse Gévingey.

— Mas se o estudo da influência sideral é assim tão importante, por que é que o senhor não tem alunos? — perguntou Durtal.

— Alunos! Mas onde vou eu desencantar pessoas que consintam trabalhar durante vinte anos sem proveito nem glória? Porque antes de estarmos aptos a estabelecer um horóscopo, há que ser astrónomo de primeira água, saber matemáticas a fundo e ter amarelecido longa-

mente sobre o latim obscuro dos velhos mestres! E depois também são necessárias a vocação e a fé que se perderam!

— Tal como os tocadores de sinos — disse Carhaix.

— Não, senhores — continuou a dizer Gévingey. — Como sabem, no dia em que as grandes ciências da Idade Média soçobraram na indiferença sistemática e hostil de um povo ímpio, na França a alma acabou! Agora só nos resta cruzar os braços e escutar as afirmações insípidas de uma sociedade que se diverte e ao mesmo tempo grunhe!

— Vamos lá, não devemos desesperar tanto; as coisas hão-de correr melhor — disse a mamã Carhaix num tom conciliatório; e antes de se retirar deu um aperto de mão a cada uma das visitas.

— O povo — disse Des Hermies enquanto deitava água na cafeteira — em vez de a melhorar faz com que os séculos a deteriorem, ponham prostrada, embrutecida! Lembrem-se do Cerco, da Comuna, dos entusiasmos irreflectidos, dos ódios tumultuosos e sem razão, de toda a demência de uma populaça mal alimentada que tinha bebida a mais e armas na mão! Em nada se parece com a plebe ingénua e misericordiosa da Idade Média! Conta lá, Durtal, o que fez o povo quando Gilles de Rais foi levado à fogueira.

— Sim, conte-nos — pediu Carhaix, com os grandes olhos afogados no fumo do cachimbo.

— Pois bem! Como sabem, em consequência de crimes inauditos o marechal de Rais foi condenado à forca e a ser queimado vivo. No cárcere para onde o levaram depois do julgamento dirigiu uma derradeira súplica ao bispo Jean de Malestroit. Pediu-lhe para interceder junto dos pais e das mães das crianças que tão furiosamente tinha violado e assassinado, e solicitou que o assistissem no suplício.

E este povo, a quem ele tinha trincado e cuspido o coração, soluçou de piedade; naquele senhor demoníaco só viu um pobre homem

que chorava os seus crimes e ia enfrentar a assustadora cólera da Santa Face; e desde as nove da manhã do dia da execução percorreu a cidade num longo cortejo. Cantou salmos nas ruas, fez questão de entrar nas igrejas e cumprir a promessa de jejuar durante três dias para garantir o repouso da alma do marechal.

— Como vêem, estamos longe da lei americana de Lynch — disse Des Hermies.

— Depois — continuou a dizer Durtal — às onze horas foi ter com Gilles de Rais à prisão e acompanhou-o ao campo de La Biesse, onde estavam instaladas altas piras encimadas pelas forcas.

O marechal dava apoio aos seus cúmplices, beijava-os, exortava-os a um «grande desagrado e à contrição pelos seus crimes», e a bater no peito suplicava à Virgem que os poupasse enquanto o clero, os camponeses e o povo salmodiavam as estrofes sinistras e implorativas da Prosa dos Defuntos:

Nos timemus diem judicii

Quia mali et nobis conscii

Sed tu, Mater summi concilii

Para nobis locum refugii

O Maria!

Tunc iratus Judex…

— Viva Boulanger!

Longos gritos libertaram-se com um ruído de mar que subia desde a praça Saint-Sulpice até à torre: Boulange! Lange! E depois uma voz rouca, enorme, uma voz de vendedor de ostras, de empurrador de carroças, elevando-se acima das outras dominou todos os hurras. Voltou a bradar: Viva Boulanger!

— Esta gente berra à frente do edifício municipal o resultado das eleições — disse Carhaix com desdém.

Olharam todos uns para os outros.

— O povo de hoje! — disse Des Hermies.

— Ah! Ele não aclamaria assim um sábio, um artista, nem mesmo o ser supernatural que um santo é — troou Gévingey.

— E no entanto fazia-o na Idade Média!

— Sim, mas era mais ingénuo e menos estúpido — continuou a dizer Des Hermies. — E depois, onde estão os santos que o salvaram? Não é de mais repetir que os sotaineiros de agora têm corações rachados, almas com disenteria, miolos que perdem o tino e fogem! Ou é pior ainda: fosforam como estrume e minam o rebanho sob a sua guarda! São todos diáconos Docre, satanizam!

— Dizer-se que este século de positivistas e ateus virou tudo ao contrário excepto o satanismo, que não conseguiu fazer recuar um passo!

— Isso tem uma explicação — exclamou Carhaix. — O satanismo ou é calado ou é desconhecido. Creio que o padre Ravignan demonstrou que a maior força do Diabo é ter conseguido que o neguem!

— Meu Deus! Que trombas de imundície sopram no horizonte! — murmurou Durtal com ar triste.

— Não — exclamou Carhaix — não, não diga isso! Neste mundo está tudo decomposto, tudo morto. Mas lá em cima!… Ah! Confesso que a efusão do Espírito Santo, a chegada do divino Paracleto, está a demorar! Mas os textos que a anunciam são inspirados; o futuro está portanto creditado, e a alvorada será clara!

E de olhos baixos e mãos postas rezou com fervor.

Des Hermies levantou-se e deu alguns passos na sala.

— Tudo isso é muito bonito — resmungou — mas este século está-se positivamente nas tintas para o Cristo glorioso; contamina o

sobrenatural e vomita o além. Como ter esperança, então, no futuro, como imaginar que possam ser limpos os filhos saídos dos fétidos burgueses deste tempo sujo? Educados desta maneira, pergunto a mim próprio o que irão fazer na vida.

— Vão fazer o mesmo que os pais e que as mães deles — respondeu Durtal. — Encher as tripas e despejar a alma pelo baixo-ventre!

ÚLTIMOS LIVROS SISTEMA SOLAR

O filho de duas mães, Edith Wharton

A armadilha, Emmanuel Bove

Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès

Erotika Biblion, Conde de Mirabeau

A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet

Paludes, André Gide

O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins

Sol, D.H. Lawrence

Cagliostro, Vicente Huidobro

As magias do Ceilão, Francis de Croisset

Má sorte que ela fosse puta, John Ford

Chita — uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn

A mulher 100 cabeças, Max Ernst

A dificuldade de ser, Jean Cocteau

O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen

A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat

Casa de incesto, Anaïs Nin

Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel

Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont

Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac

Babilónia, René Crevel

O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier

Carmilla, Sheridan Le Fanu

Mulheres na vida, Guy de Maupassant

O plantador de Malata, Joseph Conrad

A mandrágora, Jean Lorrain

A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre

Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud

O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard

Salomé, Salomés…, Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Guillaume Apollinaire

e ainda Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa

Battling Malone, Pugilista, Louis Hémon

Kyra Kyralina, Panait Istrati

Codine, Panait Istrati

Carmen seguido de Lokis, Prosper Mérimée

Jésus-La-Caille, Francis Carco

Don Juan da Inglaterra ou o sonho de Lord Byron, Guillaume Apollinaire

O concílio de amor – Uma tragédia celeste, Oskar Panizza

Coração das Trevas, Joseph Conrad

Moscardino, Enrico Pea

Do Andrógino – Teoria Plástica, Joséphin Péladan

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