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LIVROS PUBLICADOS

Sequência

Ameríndias: performances do cinema indígena no Brasil, AA.VV.,

seleção de textos de Rita Natálio, Rodrigo Lacerda, Susana de Matos Viegas

Matchundadi: género, performance e violência política na Guiné-Bissau, Joacine Katar Moreira, prefácio de Pedro Vasconcelos

Esferas da Insurreição: notas para uma vida não chulada, Suely Rolnik, prefácio de Paul B. Preciado

O Desensino da Arte: projecto de uma Escola Ideal, Maria Sequeira Mendes, Marta Cordeiro, Marisa F. Falcón

Coisas de Theatro e Loisas de Theatro, Sousa Basto, Santos Gonçalves, prefácio de André e. Teodósio, prelúdio de Paula Gomes Magalhães

Uma Coisa Não É Outra Coisa: teatro e literatura, José Maria Vieira Mendes

Recordações d’uma Colonial (Memorias da preta Fernanda), A. Totta & F. Machado, introdução de Pedro Schacht Pereira, epílogo de Inocência Mata

A ideia é nossa! (Arte, filosofia e mundo), AA.VV., organização de André Barata, André e. Teodósio, José Maria Vieira Mendes

A Construção Sonora de Moçambique 1974-1994, Marco Roque de Freitas, prefácio de Nataniel Ngomane

Páginas da Minha Vida, Carmen de Brito (Madame Britton), introdução e cronologia de Daniel Tércio

Série

Curta introdução a um catálogo sem autor, Anónimo, prefácio de Cyriaque Villemaux

Impasse, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Diogo Bento, introdução de André e. Teodósio

Anda, Diana, Diana Niepce, prefácio de André e. Teodósio, J.M. Vieira Mendes

Delirar a Anatomia, Partituras-Poemas de Ana Rita Teodoro + (des)léxico para A.A. de Joana Levi

a body as listening – resonant cartography of music (im)materialities, Joana Sá #aseriesofprotectivestyles, Vol. I. A Coroa, Petra.Preta

Blue Kida, Aurora

Vaxzevria cantus, Rui Eduardo Paes

Pais & Filhos, Pedro Penim

Série

coleção dirigida por André e. Teodósio e José Maria Vieira Mendes

«ed._________» resulta da colaboração da editora Sistema Solar com o Teatro Praga. Esta chancela é composta por duas coleções. A coleção «Série» divulga o património imaterial das artes performativas contemporâneas. A coleção «Sequência» organiza-se em livros temáticos oriundos de diversas disciplinas, que ofereçam uma reflexão sobre sistemas de poder e protesto na atualidade. Pretende-se assim colmatar a ausência, no panorama editorial português, de uma bibliografia regular e consistente dedicada às artes performativas, bem como pensar o mundo e a história com recurso a disciplinas estéticas, filosóficas e políticas.

P a u lo P a s oc a l

Paulo Pascoal

para Amerie e Amaryllis

Promessa

Terça-feira, 19 de setembro de 2000

Hoje é uma data que por si só não diz nada. Devido ao meu mal-estar, decidi começar com uma promessa que fiz a mim própria. Durante os últimos anos mantive um diário: álbuns de fotografias com resumos ou pequenos cadernos com notas, memórias para o futuro. Como vivo longe das pessoas que mais amo, é uma forma de comunicar com elas. No tempo em que vivi em Espanha, por exemplo, enviava um álbum a cada avô, avó, tias, tios e amigues. Escrevia cartas e enviava fotografias minhas nos lugares que mais me marcavam. A minha avó Rina, a tia Xichão e a tia Telinha eram as correspondentes mais frequentes. Escreviam-me cartas encorajadoras e belas, com desenhos, tão extensas quanto as minhas. Os correios em Angola eram lentos e algumas vezes as minhas cartas não chegaram ao seu destino. Foram muitos anos assim, a contar histórias por correspondência. Só que nessas cartas eu nunca contava os meus segredos ou o que me fazia menos bem. Este manuscrito é sobre isso. Sobre tudo o que não contei até agora.

Eu sou Paulo Nuno de Azevedo Pascoal e tenho 18 anos. Encontro-me num dos piores dias da minha vida, porque as incertezas, as dúvidas, as inseguranças, que são emoções muito frequentes em mim, voltaram a invadir-me. Estou mal. O dia foi pesado! Sinto-me culpada com o que se está a passar aqui em casa. A minha mãe decidiu falar sobre as suas inquietações. Desabafou e não mediu palavras. Isso porque já há algum tempo que eu e a minha família — um irmão, uma irmã, duas «hermanastras» (filhas do meu padrasto), duas primas, a minha mãe e o meu padrasto — estamos em Nova Iorque.

O meu padrasto veio em missão diplomática das Nações Unidas, representando Angola, e nós decidimos vir também. Tivemos de vir. Angola não é país para ninguém viver. As condições são muito precárias. Sinto que estou em guerra

desde que nasci, apesar de só em 1992 ter realmente sentido o peso de um bombardeamento em Luanda. Lembro-me como se tivesse sido ontem. Foi horrível. Era uma quinta-feira de junho. Eu e as minhas amigas, vizinhas, estávamos a preparar-nos para jogar futebol quando começou o tiroteio. Fomos chamadas para dentro das casas. Acontecia várias vezes termos de nos abrigar dos tiros. Nesse final de tarde, os disparos não cessaram. Estar em Nova Iorque é sempre bom. Todas as minhas melhores amigas foram viver para outros países. Umas foram para o Brasil, outras para Portugal, algumas para Inglaterra, Cuba, até para a Rússia.

Desde que cá chegámos que as coisas não estão lá muito bem. Achámos que íamos viver o «Sonho Americano». Só que não. Enquanto escrevo estas pequenas frases, vou-me lembrando de coisas que aconteceram durante a minha vida e sinto-me numa espiral decadente e abismal. Estou mesmo muito mal. Preciso de parar de escrever por um momento…

Como te estava a contar, estamos num país novo, sem amigas, sem conhecimentos e é tudo muito difícil. Recomeçar a vida é uma ótima oportunidade para melhorarmos ou corrigirmos falhas, mas neste caso é complicadíssimo. As condições que o Governo de Angola deu ao meu padrasto são mínimas, talvez por sermos muitas pessoas. Estamos a passar por dificuldades por que nunca antes tínhamos passado.

As palavras da minha mãe foram:

«Meu filho, até fico triste de te ver assim. Dá-me vontade de me matar. Pensar em como fui capaz de fazer uma coisa dessas. Também fui enganada. Isto está a dar cabo de mim. Eu vou arranjar maneira de me ir embora e tu fazes o que quiseres, porque é melhor. Vai lá estudar para Barcelona, volta para Lisboa. É melhor. Eu não sei em que é que isto vai dar.»

Antes de vir para Nova Iorque, passei uma temporada em Portugal. Pouco mais de um ano. Terminei o ensino médio em Espanha e em Lisboa estava a ambientar-me. Comecei a fazer alguns trabalhos de moda, publicidade, trabalhei numa discográfica e conheci muita gente. Apaixonei-me várias vezes. A minha família ainda não sabe que sou queer. Neste momento identifico-me como sendo gay, mas acho que ninguém é apenas uma coisa.

Como estamos neste limbo americano, disse à minha mãe que queria voltar para Lisboa para cumprir um contrato que tenho com uma agência de modelos. Ela ficou chateada. Disse-me: «Não se pode confiar em ninguém». E a verdade é que menti. Só quero ir-me embora daqui. Não estou cá a fazer nada.

As condições que o Tito, o meu padrasto, disse que teríamos não são as que estamos a ter. Eu sei que ele fez tudo com a melhor das intenções. A minha mãe sempre foi uma mulher de luta. Já passou por muitas dificuldades, mas sempre foi muito independente e agora sente-se com as mãos atadas. Não há dinheiro, ninguém conhece ninguém... Ela é toda cheia de energia, está habituada a trabalhar, a fazer pela vida e a ser ela a decidir as coisas, a resolver todos os assuntos. Mulher que faz de tudo pelas outras, mas por quem pouco fizeram.

Nani, a lutadora

Ana Maria Lopes de Azevedo é o nome da minha amada mãe. Toda a gente a trata por Nani. Lutadora, é o adjetivo que vou dar a essa mulher que me trouxe ao mundo e que para mim servirá de exemplo para toda a vida, embora ela talvez ache que não. Ela é a que se bate com entusiasmo, a que não desanima. Lutou e serviu a vida toda, por todas. A minha mãe é a minha «ídola». A minha Deusa na terra. A minha fortaleza.

(Choro. Estou muito angustiada.)

Desde muito pequenina que disse que escreveria um livro sobre ela. Desde muito pequenina que reconheci na minha mãe um poder imensurável. Lembro-me que essa ideia de querer escrever sobre ela surgiu quando ela trabalhava para um designer de moda, o Dino. Ele, alegadamente, assediou-a, e ela reagiu, virou-se contra ele. Desconheço os detalhes dos acontecimentos, mas sei que ele inventou que a minha mãe o tinha roubado ou algo assim. Prenderam-na. Não sei quanto tempo foi, mas foi muito tempo para ter uma mãe presa. Nunca a visitámos na prisão. Um dia, ela surgiu, bela como sempre. Sorridente! A minha mãe tem o sorriso mais lindo à face da terra. O tipo de sorriso que te faz sorrir involuntariamente. Como dizem as más-línguas da minha família, nenhuma de nós herdou o sorriso dela. Nem a Kathy, nem o Bebão, nem eu, as únicas filhas biológicas que ela tem, apesar de ter criado mais de 11 crianças. Já te explicarei mais à frente.

Voltando ao assunto da prisão. Depois de não sei quanto tempo, ela reapareceu como se nada tivesse acontecido. Nesse dia, eu pensei: «Um dia vou escrever um livro sobre a minha mãe». Poderia até ser este o título. Eu teria uns 9 anos, exatamente metade dos que tenho agora. A empresa para quem ela trabalhava fazia desfiles de moda, de alta-costura. Não eram umas passarelas comuns, eram exuberantes, brilhantes, com tecidos metálicos, banhadas a ouro ou prata. Gowns & Tuxedos — era um luxo. O proprietário, o Dino, era um homem negro, esguio,

bastante efeminado. Poderia jurar de pés juntos que não era apenas heterossexual. Mas, em Angola, sabe-se lá! Conheciam-no como um mulherengo. Ao que parece, tinha muitas filhas e era um estilista conceituado. Lembro-me do ateliê, que também era loja, restaurante e palco para os desfiles que eram puras performances. Era tudo um tanto barroco, mas à africana. Ele parecia um Versace, um Jacques Leclair da novela brasileira Ti Ti Ti. Era muito flamboyant. Uma vez, quando estava a acompanhar os ensaios para o evento que iria acontecer mais tarde nesse dia, ele mandou-me andar. Andar, sim! Desfilar! Eu fi-lo, cheia de vergonha, mas a dar tudo. Ele virou-se para a minha mãe e disse que era uma pena, porque eu tinha a perna curta como ela. Aquilo marcou-me. Fiquei triste. Nessa mesma noite, desfilei pela primeira vez. Convidou-me para fazer parte do espetáculo, tentou restaurar a minha autoestima. Desfilei com um fato apenas, com tudo a que tinha direito: casaco, colete e laço. E ganhei-o de oferta! Usei-o no mesmo ano para o casamento da minha tia Telinha. Fiz a coreografia da entrada do bolo de noiva, com a participação de todas as crianças da família. Não correu muito bem. O carrinho onde eu levava o bolo entalou-se entre as pedras do pavimento, as crianças deixaram de cantar e eu gritei enfadada: «Continuem!». Tenho filmagens disso, vimo-las muitas vezes.

O Dino costurava para todos os géneros e para todas as idades. Infelizmente, numa sociedade patriarcal e hipercapitalista, ele achava que podia fazer tudo o que lhe apetecesse. Deu-se mal. Muito mal. Nunca mais soube nada dele. Nem quero saber nada dele. Fiquei muito desapontada com o que ele fez com a minha mãe. A minha mãe, entretanto, conseguiu superar o trauma.

A minha mãe sempre foi uma matriarca, empreendedora. Chegou a ter uma churrascaria, o seu primeiro grande negócio, no quintal da casa dos meus avós maternos, na Sagrada Família. Chamava-se a Churrasqueira da Sagrada Família. Não tenho grande memória desse tempo, porque vivia com os meus avós paternos, em Malanje, que é uma província mais a norte do país. Lembro-me, sim, de passar lá alguns fins de semana e de ter sempre a casa cheia de clientes, maioritariamente indianos. Foi um desses grupos de indianos que levou o meu macaco Zimbo para o curar. O macaco estava doente e começou a atacar as pessoas. Num final de semana, convidaram-nos para almoçar numa quinta fora da cidade e o meu macaco foi-nos servido num guisado cortado aos cubos. Até hoje não como carne, sobretudo se for carne guisada.

Nani, a lutadora

A minha avó Santa, mãe da minha mãe, era outra força da natureza. Vivia com todas as suas filhas, com os seus respetivos maridos e todas as netas. Quer dizer, fora os seus dois primeiros filhos, o tio Carlos e o tio Júlio. Um vivia em Portugal há muitos anos e o outro, que se casou e divorciou, vivia no mesmo bairro, uns quarteirões acima.

Já deves ter reparado que estou a tratar-me com o pronome feminino e a utilizar os plurais no feminino também. Prefiro. Abaixo o patriarcado. Viva o matriarcado. A minha natureza é feminina.

Na churrasqueira, a minha mãe apaixonou-se por um dos clientes: o Babá. O Babá era filho de um casal luso-indiano de Bombaim. Não, não era nenhum guru, muito menos a reencarnação de um deus. Apesar de Babá ser um termo honorífico, este Babá era mundano e cheio de vícios. Era viciado no jogo. Rígido. Tinha o cabelo liso, muito escuro, usava risca ao lado e um bigode massivo. Em casa chamavam-lhe secretamente o tio Bigodinho. Era magro e elegante, tinha muito pelo no peito. A camisa aberta até ao terceiro botão, as calças justas e uma pochete de cabedal que não abandonava o seu sovaco. Fumava muitos cigarros, cheirava muito a perfume e sentava-se sempre de pernas cruzadas. Tinha muito bom gosto, mas não me transmitia confiança. Tão-pouco gostava da forma como falava comigo, às vezes com piadinhas homofóbicas. Gostava, sim, quando me corrigia a pronúncia em português. Às vezes fazíamos viagens até à Praia da Corimba, alugávamos uma cabana e ficávamos por lá tardes inteiras. São as melhores memórias da experiência com ele. A minha mãe amava-o e toda a gente o respeitava, até demasiado. Tinham medo dele. Usava-se um «Olha o tio Bigodinho» para intimidar as crianças. Até eu, às vezes, tinha medo dele. No entanto, ele tinha atos generosos, não era nenhum monstro. No meio dos vícios, arranjava sempre tempo para sacar um daqueles ursinhos de peluche das máquinas das casas de jogos. Passava horas em casinos. Colecionava muitas coisas do género. Colecionava-as para não as dar. O Babá não foi o único que se fez às cortes da Sagrada Família. A minha avó Santa tinha um fascínio qualquer com querer casar as netas com os expatriados do sul asiático. Eles eram bons clientes, pareciam bons trabalhadores e apareciam em grandes grupos. Uma das vítimas foi a minha prima-irmã Sónia. Ela insistia que a Sónia casasse com um deles. Aos 14 anos, a Sónia já tinha colocado um anel de noivado no dedo. Ficou prometida a Bill, um filipino, mas apaixonou-se pelo Zézinho, um angolano e nosso vizinho. Toda a gente era contra a Sónia casar sem vontade, até mesmo a avó Santa. O que ela não queria era entregar a neta nas mãos de

outro homem violento. A Sónia é a neta mais velha, filha do meu tio Carlos. A mãe desapareceu quando ela ainda era muito novinha, devia ter uns 7 anos, e passou a ficar sob tutela da minha mãe. Daí também ser uma das minhas irmãs. Ela e o irmão, o Hélder Jorge.

É muita informação e ainda nem cheguei ao que me levou a começar este diário.

As lembranças mais amorosas que tenho do Babá e da minha mãe juntos são de quando eles me iam buscar de manhã para me levarem à escola. A mim e à minha irmã Kathy. Iam buscar-nos a casa das minhas tias paternas, no Bairro do Alvalade, onde vivíamos. Eu estava no quinto ano e a Kathy no terceiro ano. Eu na escola Ngola Mbandi e a Kathy na escola José Martí. Duas figuras emblemáticas das revoluções de Angola e Cuba. Ngola Mbandi foi um dos soberanos do Reino do Ndongo durante o período inicial da dominação portuguesa em Angola. Diz-se que acumulou muitas derrotas e morreu de desgosto. No século XVII ainda não se conhecia a depressão como doença. Segundo parece, isolou-se na Ilha Kindonga e envenenou-se. Foi um monarca triste. Já José Martí foi um dos mártires da Independência de Cuba. Quando as tropas espanholas o atingiram, mutilaram o seu corpo e exibiram-no à população. Quando era mais nova, essas histórias davam-me muito mais medo do que o Babá.

Sinto que foi nessa altura, pós-cadeia, que a minha mãe começou a querer passar mais tempo connosco. E todos os dias, ao apanharem-nos, traziam-nos lanche: iogurtes, sandes, sumos em pacote e uma peça de fruta. Quando penso na dificuldade que devia ser encontrar esses produtos em Angola e no esforço de despertar todos os dias antes das 7h para nos levarem à escola já com os farnéis preparados, sinto muito amor. Amor de Mãe. Ela aparecia com o LADA 2105, verde seco, dos primeiros que a Rússia vendeu em Angola, já com alguns quilómetros de estrada; acelerava e nós saíamos a correr. «Despachem-se. A vossa mãe já chegou», diziam as minhas tias. Nós conseguíamos distinguir quem vinha ao volante ao entrar na nossa rua, a Fernão Mendes Pinto. O Babá buzinava ao virar da esquina, a minha mãe acelerava já depois de estacionar. Já agora, Fernão Mendes Pinto, em 1537, chegou à Índia, em Diu, Bombaim, que desde 1996 se chama Mumbai, cidade de onde o Baba é oriundo. Mumba Devi Mamdir é um templo antigo dedicado à Deusa Amba e que dá o nome à cidade. Eu adoro a cultura hindu. Aprendi algumas coisas sobre a Índia com o Babá. Gostava muito de um dia lá ir. Mumbai é a maior cidade da Índia, fica na costa oeste e é o coração da indústria cinematográfica de Bollywood. Eu costumava ver muitos filmes de Bollywood

Nani, a lutadora

com a minha família. Especialmente com a minha avó Rina, ela amava. Chorámos muito juntas. Era lindo! Tenho muitas saudades dela.

Retomando o assunto Mãe. Depois de viver cerca de 8 anos com o Babá, a relação terminou. Nunca soube bem porquê. Não interessa. Ela começou a trabalhar para o Gabinete de Investimento Estrangeiro e acho que foi aí que conheceu o Tito, o meu atual padrasto, que é um homem bom. Antes disso também foi sócia-gerente de um videoclube, chamava-se Clube Mania. Fez uma parceria com umas vizinhas e alugavam VHS aos cinéfilos. Foi assim que comecei a ver muitos filmes. Tudo o que eu mais gosto de fazer tem uma relação direta com os melhores momentos que passei com a minha mãe. Ah! E esqueci-me de te contar que o meu avô Zé, o pai dela, é alfaiate. Sim, o meu avô Zé fez o primeiro fato de cerimónia do primeiro presidente de Angola, o Dr. Agostinho Neto, que era médico e poeta. Morreu na Rússia, com um cancro no pâncreas. Os meus avós maternos são muito engraçados. Tiveram oito bebés: Carlos, Júlio, Mara, Nani, Hélder, Gaby, Artur e Dina. Até à morte da minha avó Santa, no ano passado, sempre viveram juntos, mas não se falavam. E mais, odiavam-se. Há anos que dormiam em quartos separados, enquanto as filhas viviam nos anexos do quintal com os seus companheiros. Ya! Que loucura!

Sinto que já me vais conhecendo melhor. Tiro muito prazer em partilhar um pouco da minha história. Nasci em duas famílias disfuncionais. E quando te digo que estou agoniada… não é mentira. Na discussão que tive hoje com a minha mãe, ela também me disse:

— O que queres que eu faça? Que me prostitua? Ao que eu respondi, em pensamento: — Não precisas de fazê-lo tu. Eu faço.

Bem-vindas ao meu mundo. (Choro)

Quarta-feira, 20 de setembro de 2000

Eu, este ser com 18 anos de existência, que decidiu contar-te a história da sua vida, ainda está num turbilhão. Estou em Nova Iorque há cerca de um mês. É pouco tempo, eu sei, mas vim cheia de expectativas. Como já tenho 18 anos, achava que viria para aqui proclamar a minha independência, mas, afinal, aqui, ainda sou menor de idade. É a segunda vez que venho desde que a minha família se mudou para as Américas. Desta vez, decidi deixar a minha vida em Lisboa e tentar estar mais perto da minha família, já que nunca antes tinha vivido debaixo do mesmo teto com a minha mãe e a sua nova família.

O meu pai foi assassinado quando eu tinha 6 anos. Alegadamente, pelo motorista, o David, que eu suspeito estar morto também. Suspeito não, tenho a certeza. Ele confessou e foi morto depois disso. Sinto que nunca soube totalmente a verdade. O David era ajudante do meu pai. O meu pai era filho único, o «macho», em quem o meu avô Paulo Pascoal — de quem herdei o nome — tantas esperanças depositava. O meu pai chamava-se Gaspar. O avô Paulo foi, nos seus tempos de abundância e fortuna, um grande comerciante angolano, que tinha lojas de conveniência espalhadas pelo país. O meu pai era o camionista que levava a mercadoria para as lojas nas diferentes províncias. Numa dessas viagens, que eram muito perigosas, porque o país estava em guerra, os camiões foram saqueados. O meu pai e o David iam juntos. Foram sequestrados e o David foi obrigado a disparar contra o meu pai com uma bala incendiária numa das pernas, creio que a esquerda, e abandoná-lo no meio do mato. Obviamente que ele não sobreviveu. Pelo que o próprio David contou, isso deve ter acontecido a 17 de abril de 1988, e ele, o David, a 6 de julho do mesmo ano, apareceu na nossa casa, três meses depois, para confessar o que tinha feito. Quando apareceu, quem o viu primeiro fui eu. Abri-lhe a porta e perguntei, «David, o papá?» Ele ajoelhou-se diante de mim, dizendo, «Paulinho, perdão. Perdão, Paulinho», em prantos e agarrando-me as

mãos. Eu chamei a tia Xichão, ela foi chamar as outras pessoas que estavam pela casa. De repente, uma gritaria ensurdecedora. Não me lembro de voltar a ouvir som tão alto quanto o daquela tarde.

Antes de o meu pai partir para essa viagem sem retorno, os meus pais andaram à bulha. Sim, estou a ser simpática. A minha mãe tem 1m65cm e o meu pai 1m90cm. O meu pai bebia muito e voltava para casa tarde e com vontade de armar confusão. Eles estavam juntos há mais de 7 anos. Tiveram três filhas, sendo eu a primogénita. O Bebão, o meu irmão mais novo, não teria ainda 2 anos. A Kathy iria fazer 4 anos. A Kathy era considerada a chorona. Bastava ouvir o som do travão de mão do camião a descansar que ela desatava a chorar. O meu pai entrava pela casa assumindo que a minha mãe estaria a destratá-la e por aí começava sempre a discussão, que, muitas vezes, acabava em agressão física.

A Kathy era a filha do papá, a única menina, ninguém podia tocar nela. Eu herdei isso, ninguém toca na minha irmã. Uma vez, no portão da nossa casa, umas abelhas construíram o seu ninho. Tínhamos muitas árvores em casa, um mamoeiro, uma figueira, vários limoeiros, uma bananeira e uns quantos arbustos de erva-príncipe entre roseiras e outras espécies de plantas, tudo isso espalhado pelo nosso quintal. O ninho das abelhas estava escondido dentro de um dos canos metálicos do portão de entrada. As abelhas aterrorizavam-nos e várias de nós já tínhamos sido picadas. No entanto, quando elas estavam tranquilas, nós íamos meter-nos com elas. Num desses dias, eu fiz com que a minha irmã fosse espreitar as abelhas. Uma delas saiu do esconderijo e picou-a mesmo no centro do nariz. A minha irmã, que já era a choramingas mestre, não se calou durante horas. Ficou toda inchada pela picada. Foi aterrorizador. Eu, sentindo-me culpada, decidi tratá-la o melhor que conseguia. No dia seguinte, levei-a à escola com uma sombrinha enorme para que o sol não aumentasse a inflamação. A Kathy tinha chorado tanto que não fez os trabalhos de casa. As aulas dela eram das 7h às 10h, e as minhas das 14h às 18h, ambas ainda estudávamos na escola José Martí. A escola fica a uns 3 ou 4 quilómetros de nossa casa, no cimo do monte que era o nosso bairro, também conhecido como o Bairro das Embaixadas, Alvalade. A descida mais íngreme era uma pista para as competições de skate e para todos os truques com bicicletas e motorizadas.

À porta da escola, vejo a minha irmã aproximar-se de mim no final das aulas. Vinha ainda inchada da cara e também com as mãos inflamadas e avermelhadas. Tinha levado umas reguadas da professora Natália, que era também a diretora

da nossa escola primária. Senti um ódio! Depois de deixá-la em casa, fui até à casa da nossa diretora. Era hora de almoço. Ela vivia no mesmo bairro, só era necessário atravessar a Zona Verde — uma área problemática do nosso bairro. Fui até lá. Toquei à campainha e fiquei à espera no portão enquanto os seus cães ladravam raivosamente. Não tive medo. Assim que ela apareceu pela varanda, eu pedi que se aproximasse e em tom ameaçador disse-lhe: «Nunca mais volte a tocar na minha irmã Kathy. Está a ouvir?».

A minha irmã estava no segundo ano de escolaridade e eu no quarto ano. Era o meu último ano naquela escola. Tinha 8 anos. Sim, foi na mesma altura em que a minha mãe esteve presa. A professora Natália sorriu e disse, «Sim, Paulinho, nunca mais, nem eu nem ninguém daquela escola tocará na Catarina. Eu prometo.» E assim foi.

Kathy é o apelido, a versão curta de Catarina: Catarina Anilde de Azevedo Pascoal. O nome foi-lhe dado em homenagem à minha avó Rina, que é Catarina Faustino Pascoal. Eu passei muito tempo com os meus avós. Já era crescida, mas em Malanje ainda dormia no quarto com os meus avós. Chuchei os polegares até aos 8 anos e a minha avó despertava-me, ou eu a ela, de madrugada para me dar um copo de leite. Imagina! Fui muito mimada. Acho que ainda sou. Mimada, caprichosa e mereço. A minha avó Rina deu-me tanto, mas tanto amor, que eu gostaria de desenvolver todo um método de ensino para um programa escolar. Um método que se chamaria: R.I.N.A. (Reconexão Imaginativa para Nativos Africanos).

Reza a lenda que ela foi raptada pelo meu avô Paulo, teria apenas 13 anos. Ele era um jovem promissor, 10 anos mais velho do que ela, e quero acreditar que foi por amor. O meu avô Paulo é um homem de poucas palavras, sério, muito alto, a cabeça platinada com a sua coroa de canas. É asmático. Tem uma figura que impõe respeito. Tiveram cinco filhas. Três das quais viveram poucos anos entre nós: a tia Titi, o tio Joel e o meu pai. Agora, só estão as tias Lizete, Xichão e Telinha — continuam em Angola e são um grande obstáculo no caminho que penso seguir, porque não as quero decepcionar jamais.

Sin embargo, sinto que terá de ser. Se não, serei uma infeliz para o resto da vida. É realmente difícil decidir. Sou ambiciosa, tenho objetivos. Durante muitos anos, quis ser médica. Queria poder curar a minha avó Rina, que era diabética. Ela abalou no ano passado. Teve um arresto cardíaco no final da sua última sessão de

Crash! Boom! Bang!

Sábado, 18 de agosto de 2001

Diário, a minha vida está uma verdadeira onomatopeia! Lembro-me de ter comprado essa cassete dos Roxette quando ainda estudava no seminário de padres, em Espanha. Em Angola, nas férias, depois de ouvir aos berros no quarto «Un Día Sin Tí», «Habla Corazón» e «Soy Una Mujer», descia as escadas para ouvir e cantar «Crash! Boom! Bang!» com a tia Xichão. Ela adorava essa canção: «cada vez que me enamoro yo…» É a nossa música. É verdade que todas essas músicas moldaram a minha vida e a minha personalidade.

Tenho tanto para te contar que não sei por onde começar. Cantei no The Duplex. Não estava à espera que viesse tanta gente! O Nick apareceu, foi a maior surpresa, e tocou ao piano. Ainda nem acredito que ele aprendeu a tocar a música para partilhar comigo aquele sonho. O Mathew foi superquerido. Deu-me a maior força. Foi ele quem me pôs na lista e quem me inspirou a cantar em público. A malta das aulas de dança também veio, muitos mais dos que estava à espera. Parecia que era o meu concerto. O Mo veio com as gémeas. Senti-me muito acarinhada e que tenho verdadeiras amigas em Nova Iorque. A minha voz, não sei bem como, saiu intacta, sem erro, as respirações foram todas certas, consegui alcançar os agudos todos, muitos que às vezes em casa não conseguia. Foi como ter uma experiência fora do corpo. Como se tivesse sido possuída e canalizada para um propósito maior, por forças do além, desde a primeira frase, «Pride can stand a thousand trials, the strong will never fall…» Não fiz o Mmmmm do início, fiquei a ouvir o Nick ao piano. Foi tão lindo! Estou a chorar. Quando acabei de cantar fui tão aplaudida que me vieram as lágrimas aos olhos. Que pena não ter conseguido partilhar esse momento com ninguém da minha família. Estava lá o representante de uma editora chamado Gerald, que me deu o seu contacto. Perguntou se eu tinha temas originais e aconselhou-me a gravar alguns. Recomendou-me alguns estúdios e diz que me vai ajudar com a demo tape. Há uma semana que não te

escrevo, porque tenho estado a escrever canções. Abriram-se novos caminhos e o futuro promete.

Domingo, 19 de agosto de 2001

A minha casa, a casa dos meus pais, foi invadida, arrombada pela polícia de madrugada por minha causa. Entraram para aqui com armas nas mãos, lanternas, cães, cavalos, com helicópteros a sobrevoar o bairro, foi todo um espetáculo, toda uma operação policial, porque faltei à audiência no Tribunal. Nessa noite, não dormi em casa. Fiquei a dormir em casa do Mo. A minha mãe ligou-me a dizer que eles tinham estado lá em casa e que deixaram um contato para, de manhã, eu ligar. Eu basicamente já não consegui voltar a dormir. Contei a história ao Mo e saí com a intenção de ligar ao tal contato, que não me atendeu. Pelas 9h, o agente ligou-me a dizer que ficaria à minha espera na judiciária de Tribeca. Eu fui ter com ele. Quando cheguei, ele encostou-me contra o carro, separou-me as pernas, algemou-me com o discurso que já conhecemos, «You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have a right to an attorney. If you cannot afford an attorney, one will be appointed for you.» Eu não queria acreditar no que estava a viver. Que exagero! Levaram-me no carro da polícia até ao Court Downtown. Eram várias audiências. Fiquei sentada no meio do auditório do Tribunal, a ouvir todas as penas e condenações, até que chegou a minha vez, e a juíza disse simplesmente que eu estava absolvida, que tinha cumprido o serviço comunitário e que durante seis meses, se não cometesse mais nenhum crime, o meu cadastro ficaria limpo. Soltaram-me e vim-me embora para casa ouvir o resto da história do que se tinha passado naquela noite. Aparentemente, quase levaram o meu primo Jorge, que é parecido comigo. Tiraram a temperatura da minha cama e tudo porque podia ser que tivesse fugido naquele momento. Enfim, coisas mesmo à americana. Quem falta a uma audiência judicial é criminoso, independentemente da gravidade do crime que tenha cometido. Acho que posso dizer que me fizeram uma emboscada, só que eu não estava em casa. Imagina se estivesse. O trauma. Lição aprendida.

They really care about us

Domingo, 26 de agosto de 2001

Hoje é um dia especial, é o aniversário do meu irmão Bebão. Eu amo o meu irmão, é o único irmão biológico que tenho, portanto só ele pode sentir as mesmas coisas que eu sinto. Somos muito diferentes, mas isso não importa nada. O amor entre nós supera essas diferenças. Estamos a dar-nos muito melhor. Já não discutimos e muitas vezes até concordamos. Provavelmente já te contei que sou responsável por esse nome: Bebão. Lembro-me de, há 15 anos, quando ele nasceu, estar às escuras no carro com o meu pai, à espera de subir para o ver na Maternidade Lucrécia Paim. Ao contrário de mim, ele nasceu à noite. Lembro-me de subir as escadas até ao sexto andar do hospital, onde ele estava com a minha mãe, recém-nascido, e de ser um bebé muito grande. Não me deixaram ficar no quarto muito tempo, mas eu fui toda contente para casa. Quando me perguntaram se a minha mãe já tinha tido o bebé, eu disse que não era um bebé, era um bebão. Para mim será sempre um Bebão. Um Bebão que faz muitas birras. Ele tem muitas alcunhas: Bebão, Goducha, Godunha, Testang 3… não quero ser bully. O meu padrasto, o Tito, acordou cheio de boa energia. Está a ouvir música bem alta, música angolana antiga, os clássicos de Elias Dya Kimuezo, Teta Lando, Filipe Mukenga, André Mingas, Gaby Moy, David Zé... Hoje seguramente que vamos almoçar fúngi o que inclui cabidela, feijoada, muamba, moqueca… e provavelmente receberemos visitas. Hoje é um dia especial, é o aniversário do meu irmão Bebão.

Segunda-feira, 27 de agosto de 2001

Hoje levei a câmara de filmar para as aulas de dança e conheci a Emily que se destacou ao fazer a coreografia ao som de Britney Spears. Fiz uma aula de hip-hop com a Sheryl Murakami e foi muito incrível. Superssexy. Ela puxou-me logo para dançar solo e dançou comigo. Senti-me em casa na aula dela. Foi a primeira vez.

O Gerald, o A&R da editora, ligou-me a dizer que vai haver um grande concerto para celebrar os 30 anos de carreira do Michael Jackson e perguntou-me se estou interessada em participar! Imagina! Michael Jackson, claro que sim. Como não! Como assim? Nem acredito. Ele diz que tem vários talentos e que muitos já estão a ensaiar para o espetáculo. Muitas colegas do Broadway Dance Center também vão participar. Estive a investigar se era mesmo verdade. O James, que faz parte do show do The Lion King na Broadway, disse-me que eles vão fazer a abertura do espetáculo com a Whitney Houston. OMG! Quero. Estou tão perto, Diário. Tão perto. Combinei com o Gerald encontrarmo-nos amanhã para ele me dar todas as diretrizes. O trabalho dele como A&R (artistas e repertório) é encontrar novos talentos para as editoras de música assinarem contratos e os lançarem na indústria.

Quarta-feira, 29 de agosto de 2001

Hoje, a minha irmã Kathy faz 17 anos e o Michael Jackson faz 43 anos de idade. A minha irmã Kathy é a maior. É dos melhores presentes que o Universo me deu. Amanhã começo os ensaios para o concerto do Michael Jackson. Será que ele vai lá estar? Estou com taquicardia só de pensar. Se puder, vou trazer a minha irmã para assistir ao concerto, como prenda de aniversário. Ela é muito fã do Usher e acho que ele também vai cantar. Disseram-me que na lista de artistas estão as Destiny’s Child, a Monica, a Deborah Cox, a Tamia, a Mya… os The Jackson 5 vão atuar juntos depois de 20 anos e até a Liza Minnelli vai cantar! WOW!

Sexta-feira, 31 de agosto de 2001

A Joshua Suzanne, da Rags-A-Gogo, tem uma grande amiga que trabalha na administração da Alvin Ailey, que é uma companhia de dança composta apenas por pessoas negras. Vai começar a temporada de espetáculos e ela convidou-me para ir assistir a uma performance com ela. YAY! Ela diz que os bilhetes esgotam muito depressa, mas como tem a amiga foi convidada e convidou-me para ir com ela. Alvin Ailey foi um bailarino, coreógrafo, ativista americano que fundou a Alvin Ailey American Dance Theater (AAADT) em 1958, para expressar a universalidade da experiência negra através da dança. Um visionário. Faleceu em 1989 com complicações do SIDA. Eu vou ficar atenta para saber quando é que abrem as audições, pode ser que me aceitem por lá. Yes!

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Quarta-feira, 5 de setembro de 2001

Hoje é o aniversário da minha DEUSA PRIMORDIAL, a minha Excelentíssima Mãe. A casa está animada. Ela está bem de saúde, estamos todas felizes. Amanhã é o primeiro concerto do Michael Jackson: 30th Anniversary Celebration. O outro é no dia 10 de setembro. Hoje, nos ensaios, conheci alguns membros da companhia de bailado africano Batoto Yetu, fundada pelo Júlio T. Leitão há 10 anos aqui no Harlem. Batoto Yetu quer dizer «As Nossas Crianças» em suaíli. A companhia trabalha com crianças desfavorecidas e o Júlio T. Leitão já ganhou um Prémio da Paz das Nações Unidas. É uma ótima referência.

Segunda-feira, 10 de setembro de 2001

APERTEI A MÃO DO MICHAEL JACKSON, MAMÃ!

Nunca mais vou lavar a mão. Gratidão, Deusas de Dentro. Gratidão.

Terça-feira,

11 de setembro de 2001

Hoje acordei com a minha mãe a chamar-me aos gritos dizendo que estamos em guerra. Que os Estados Unidos da América estão sob ataque. Eu subi a correr, da cave até à sala de visitas, e quando cheguei à televisão, estava o segundo avião a chocar contra a Torre Sul do World Trade Center. Passavam 3 minutos das 9h. Já um outro avião tinha chocado contra a Torre Norte há cerca de 15 minutos. São agora 14h e não consigo escrever sem chorar. Os últimos dias foram absolutamente inacreditáveis e agora estamos em guerra, o que significa que podemos morrer nas próximas horas. O Pentágono também foi atingido por aviões, o Secretário da Defesa do Estado já falou e diz que estamos a sofrer um ataque terrorista. Entre as 10h e as 10h30, as duas torres colapsaram. As imagens têm passado ao vivo. Muitas pessoas estão a perder a vida. Eu recebi um e-mail da Remy, que estava na agência e decidiu mandar um e-mail para toda a gente a despedir-se. Mundo! Deuses! Porquê? Os nossos telefones não funcionam. As linhas estão todas ocupadas. O meu padrasto ainda não chegou a casa. Fugimos de uma guerra em Angola para vir parar a uma bem pior. Ainda bem que não vivemos em Manhattan. Pode ser que as bombas não cheguem até aqui. Talvez Long Island não interesse aos terroristas. Estamos coladas à televisão para acompanharmos tudo ao detalhe. Eu não quero morrer, não agora.

Quarta-feira, 19 de setembro de 2001

Faz hoje 1 ano que comecei a escrever-te, Diário. Um ano! E vou continuar a escrever-te. Não têm sido dias fáceis. Estamos de luto. Sobrevivemos. A cidade que não dorme está anestesiada. Todos os dias ouvimos histórias de mais alguém que perdeu entes querides, amigues, amantes. O Rodrigo das aulas de dança perdeu o amor da sua vida. Eu perdi a primeira pessoa que me agenciou em Nova Iorque. Não temos saído de casa a não ser que seja muito necessário. Durante

vários dias, as estradas, os túneis, as pontes, o metro estiveram fechados. As ruas estão desertas e ainda escurecidas com o pesar da nuvem tóxica que assombrou as nossas vidas. Uma falha de eletricidade, um gemido, uma paragem abrupta, um tropeçar é motivo suficiente para que as pessoas se assustem e gritem desesperadamente. O medo é latente. Até para respirar é preciso ter cautela, mas deixa-me confessar-te: numa cidade como esta, em que as pessoas mal olham para o lado e raramente se importam umas com as outras, numa cidade em que nem sequer sabem o nome dos vizinhos… parece que finalmente começamos a perceber que isto, a vida, pode acabar a qualquer momento.

Obrigada por me acompanhares sempre durante este ano, Diário.

De coração.

Gratidão, salvaste-me a vida.

Foto: Monica Trejo

Paulo Pascoal — Desde 2014 a viver em Portugal, depois de estudar em Espanha, nos EUA, e também no Canadá. Paulo Pascoal é bioficcionárie com uma carreira profissional de mais de vinte anos em teatro, televisão, rádio e cinema. A sua escrita intuitiva reflete uma biografia que atravessa a política cultural, o ativismo e as artes performativas, com a facilidade de quem não foge da vida.

© Teatro Praga / Sistema Solar (chancela ed._________ ), 2024

Textos © Paulo Pascoal

1.ª edição, julho de 2024

500 exemplares

ISBN 978-989-568-151-8

Conceção gráfica

Horácio Frutuoso

Revisão

Elga Fontes

Impressão e acabamento

Europress

Rua João Saraiva, 10 A 1700-249 Lisboa, Portugal

Depósito legal 000000/24

Esta publicação recebeu o apoio da República Portuguesa – Cultura | DGARTES –Direção-Geral das Artes

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