Pais & Filhos

Page 1


LIVROS PUBLICADOS

Sequência

Ameríndias: performances do cinema indígena no Brasil, AA.VV., seleção de textos de Rita Natálio, Rodrigo Lacerda, Susana de Matos Viegas

Matchundadi: género, performance e violência política na Guiné-Bissau, Joacine Katar Moreira, prefácio de Pedro Vasconcelos

Esferas da Insurreição: notas para uma vida não chulada, Suely Rolnik, prefácio de Paul B. Preciado

O Desensino da Arte: projecto de uma Escola Ideal, Maria Sequeira Mendes, Marta Cordeiro, Marisa F. Falcón

Coisas de Theatro e Loisas de Theatro, Sousa Basto, Santos Gonçalves, prefácio de André e. Teodósio, prelúdio de Paula Gomes Magalhães

Uma Coisa Não É Outra Coisa: teatro e literatura, José Maria Vieira Mendes

Recordações d’uma Colonial (Memorias da preta Fernanda), A. Totta & F. Machado, introdução de Pedro Schacht Pereira, epílogo de Inocência Mata

A ideia é nossa! (Arte, filosofia e mundo), AA.VV., organização de André Barata, André e. Teodósio, José Maria Vieira Mendes

A Construção Sonora de Moçambique 1974-1994, Marco Roque de Freitas, prefácio de Nataniel Ngomane

Páginas da Minha Vida, Carmen de Brito (Madame Britton), introdução e cronologia de Daniel Tércio

Série

Curta introdução a um catálogo sem autor, Anónimo, prefácio de Cyriaque Villemaux

Impasse, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Diogo Bento, introdução de André e. Teodósio

Anda, Diana, Diana Niepce, prefácio de André e. Teodósio, J.M. Vieira Mendes

Delirar a Anatomia, Partituras-Poemas de Ana Rita Teodoro + (des)léxico para A.A. de Joana Levi

a body as listening – resonant cartography of music (im)materialities, Joana Sá

#aseriesofprotectivestyles, Vol. I. A Coroa, Petra.Preta

Blue Kida, Aurora

Vaxzevria cantus, Rui Eduardo Paes

XPR4 xTX, Paulo Pascoal

Série

coleção dirigida por André e. Teodósio e José Maria Vieira Mendes

«ed._________» resulta da colaboração da editora Sistema Solar com o Teatro Praga. Esta chancela é composta por duas coleções. A coleção «Série» divulga o património imaterial das artes performativas contemporâneas. A coleção «Sequência» organiza-se em livros temáticos oriundos de diversas disciplinas, que ofereçam uma reflexão sobre sistemas de poder e protesto na atualidade. Pretende-se assim colmatar a ausência, no panorama editorial português, de uma bibliografia regular e consistente dedicada às artes performativas, bem como pensar o mundo e a história com recurso a disciplinas estéticas, filosóficas e políticas.

siaP & FilhosPedro mineP

Pedro Penim

PAIS & FILHOS

Pais & Filhos de Pedro Penim

a partir da obra homónima de Ivan Turguéniev 1

Personagens e atores:

Arkasha, um jovem recém-formado — David Costa

O seu pai — Diogo Bento

O seu tio — Pedro Penim

A sua camarada — João Abreu

A mãe da camarada — Rita Blanco

Anna — Joana Barrios

Katya — Ana Tang

Fenitchka, o marido do tio — Hugo van der Ding

O valete — Bernardo de Lacerda

Trouble — Olívia

O sinal / indica interrupção nesse mesmo sítio pela deixa seguinte.

1 Com citações de / ideias inspiradas por: Full Surrogacy Now: Feminism Against Family de Sophie Lewis, Gender Nihilism: An Anti-Manifesto e Beyond Negativity: What Comes After Gender Nihilism? de Alyson Escalante, Abolitionism in the 21st Century: From Communization as the End of Sex, to Revolutionary Transfeminism de Jules Joanne Gleeson, Kinderkommunismus: A Feminist Analysis of the 21st-century Family and a Communist Proposal for its Abolition de Kate Doyle Griffiths e Jules Joanne Gleeson, To Abolish The Family — The Working-Class Family and Gender Liberation in Capitalist Development de M.E. O’Brien, Gender Nihilism de Aiden Rowe, Bædan 1 – Journal of Queer Nihilism de Bædan, Plagiarism, Kinship and Slavery de Mario Biagioli, My Preferred Gender Pronoun Is Negation de Pittsburgh, Fathers and Sons de Brian Friel, Nothing Sacred de George F. Walker, Autumn Sonata de Ingmar Bergman, Mãe Arrependida de Karla Tenório e Diventare papà de Alessandro Valera.

(Ouve-se «Voice of the Blood» de Hildegard von Bingen. PEDRO encontra-se quase sozinho em cena, apenas acompanhado por um vídeo de Jorge Jácome. Dir-se-ia que PEDRO está tenso. E dir-se-ia também que o espetáculo é, na verdade, uma conferência.)

PEDRO — «Autoria é sempre coautoria1», escreveu Mario Biagioli (um professor de Direito e Estudos Científicos). Foi ele que escreveu, mas olhando para a frase fica claro que não foi ele que escreveu. Ou pelo menos não escreveu sozinho. Se por acaso leram o programa deste espetáculo, ou viram o cartaz, saberão (e se não sabem, digo-vos agora) que eu assino a autoria do texto. Mas lá está, não é verdade. Porque, embora seja realmente o meu nome na assinatura, são muitos os pensamentos que geram o conteúdo do espetáculo, são muitas as ideias, paridas por muitos pensadores. Por exemplo, tudo isto que acabei de dizer não fui eu que escrevi, é uma citação. De uma autora inglesa. Uma teórica feminista queer que se chama Sophie Lewis e que, no seu livro, cita o Mario Biagioli. E eu cito a citação porque é justamente de coautoria, de gestação e de parir que este espetáculo trata. Começa com um facto biográfico: há já três anos que eu e o meu marido estamos envolvidos num processo de criar uma nova vida, um processo em que deixo a minha condição identitária única de filho para lhe agregar também a de pai.

E estamos a fazê-lo… no Canadá, através de um método que se chama gestação por substituição (antes conhecido por «barriga de aluguer»), algo complexo e feito em coautoria múltipla: nós os dois, uma dadora de óvulos e uma «mãe de substituição», a gestante, a surrogate. E fazemo-lo no Canadá porque é proibido em Portugal (exceto para casais heterossexuais quando a mulher apresenta uma impossibilidade física de engravidar).

Este é o procedimento: é criado um embrião (resultado do encontro em laboratório do óvulo da dadora com o esperma de um dos futuros pais) que depois é

1 Mario Biagioli, Plagiarism, Kinship and Slavery (Theory, Culture and Society, 2014).

implantado na gestante, que vai recebendo um valor x ao longo dos meses de gravidez, valor esse que varia consoante o país e que depende de o processo ser mais comercial ou mais altruísta (que é o nosso caso). Para que tudo funcione dentro da legalidade, faz-se um contrato entre a gestante e os futuros pais, que passam a ser uma espécie de «sócios» da biologia reprodutiva desta mulher. Complicado. Ou seja, o contexto pessoal é uma montanha-russa… porque, dada a complexidade de tudo isto, vemo-nos no centro de uma controvérsia: social, política, económica, ética… E uma montanha-russa também porque se vai de um extremo ao outro das emoções. Os polos opostos mais intensos da minha vida.

Conto a história: no início, tivemos de criar os embriões… não, espera… exato: primeiro, a agência, que dá assistência a futuros pais LGBT, deu-nos acesso às páginas web onde se escolhe a dadora de óvulos, que será responsável por 50% do ADN da criança… Isto foi em novembro de 2018. Escolhemos a dadora e fomos ao Canadá para se criarem os embriões, isto ainda em 2018… 2019? 18 ou 19? 19. Não, 18. Basicamente, tivemos de nos masturbar para dentro de um frasco… voltámos para casa… (Repara em alguém na plateia e comenta. Sinal de nervosismo.)… e começámos a receber perfis de algumas mulheres que estavam interessadas em ser a nossa surrogate — a gestante de substituição — de forma altruísta, o que significa que é ela que nos escolhe. E não o contrário. Mas só em junho de 2019 é que fomos escolhidos pela… chamemos-lhe Tiffany. Ficámos super felizes, mas rapidamente ficou claro que alguma coisa não estava bem, porque ela não nos respondia. Finalmente, lá mandou uma mensagem a dizer que tinha de desistir. Porque tinha problemas com o marido… não interessa. Ficámos destruídos. Tivemos uma conversa com a agência canadiana que gere esta parte da relação com as surrogates e eles: «Não se preocupem, vamos encontrar-vos outra pessoa.» Mas a pessoa que eles encontraram… descobrimos… tinha registo criminal e… porque tinha sido apanhada com armas em casa. Foi um choque. Depois ainda descobrimos que a chefe da agência canadiana… que ela própria tinha tido problemas com a lei, e que ela… bem, na verdade já sabíamos… tínhamos lido na Internet que ela tinha sido investigada e multada por infringir a lei canadiana porque… declarava que era tudo altruísta mas depois as surrogates tinham mesmo um salário. O que é ilegal. (Fica embaraçado. Com tudo.) Complicado. Mas pronto, já estávamos metidos naquilo tudo e queríamos focar-nos no objetivo. Um mês depois fomos escolhidos outra vez, isto já no fim de 2019, pela… chamemos-lhe Crystal… que era muito querida, tinha uma família simpática e queria muito começar… e nós: «’bora!» Até que ela começou a dizer que «não sei quê», que tinha um problema com a filha, que andava nervosa… por

isso, atrasámos duas vezes a transferência do embrião, o que acabou por ser um atraso fatal porque se deu a pandemia. E as clínicas fecharam durante imenso tempo. E só no verão é que a transferência acabou por acontecer, em agosto de 2020. Ela ligou-nos por FaceTime durante o procedimento… e vimos mesmo no monitor o embrião a ser colocado e ela… sentiu-se imediatamente grávida! E nós um bocado naquela… Mas a verdade é que ficou mesmo grávida! Aí já nos atrevemos a sonhar. Uma semana, duas semanas… 12 semanas, 16 semanas. E às 20 semanas… recebo uma chamada da tal mulher da agência, chamemos-lhe Rachel: «Hi, it’s Rachel.» «Hi, Rachel, how are you?» «Fine! But listen: there’s no easy way to say this: there’s no heartbeat.» … Congelei… fiquei sem falar. Imenso tempo. Estava a tentar perceber o que ela me estava a dizer. E disse: «But… how?» E ela: «Crystal just had a scan and there’s no heartbeat.» E eu: «But she sent us photos.» Não conseguia… não sei… Só pensava: «Enganaram-se. Enganaram-se, não pode ser! Algum erro com a ecografia.» E aí ela diz… vai haver uma autópsia e… eu… aquela palavra, autópsia, ficou assim a ecoar na minha cabeça… parecia que ia perder os sentidos. E disse: «How’s Crystal?» E ela: «She’s in a pretty terrible way…» E eu: «Tenho de ligar já ao meu marido.» Estávamos em países diferentes. Liguei mas ele estava a dar uma aula. E eu mandei uma mensagem: «Podes sair da aula?» E ele pergunta: «É grave?» E eu disse: «Sim.»

Eu estava no exterior de um hospital que estava em colapso total por causa do vírus. E aquela situação… era um espelho estranho. Havia uma vida que tinha acabado de desaparecer, uma pessoa que tinha morrido na ala de cuidados intensivos onde eu tinha estado a filmar… levada pelo vírus. E havia uma pequena vida… hm… criada por nós, que tinha acabado de desaparecer antes de a sua vida ter realmente começado, levada… sabe-se lá pelo quê… Nunca me vou esquecer disso. Vou lembrar-me até ao fim da minha vida.

O meu marido ligou, falámos brevemente. Ele pareceu-me muito… composto. Consolou-me, até. Acho que não chorou. Ou pelo menos não o senti a chorar. E voltou para a aula e eu voltei para o hotel. Liguei à minha mãe e ao meu pai. Eles estavam juntos, sentados no sofá: «Olá filho. / Olá. / Está tudo bem? / Está.» Mas depois disse: «Olha, eu tenho más notícias, perdemos o bebé.»

E a minha mãe… desatou imediatamente a chorar… porque para ela era… uma recordação do que lhe tinha acontecido… exatamente a mesma coisa. E desatou a chorar, por mim e por ela. (Suspira. Ou respira fundo, não dá para perceber.)

E depois… luto. É a palavra. (O marido, FENITCHKA, aproxima-se, dá-lhe um beijo e pergunta: «Estás a falar sozinho?»)

E depois a sensação de: «Será que alguma vez lá chegaremos?»

Já em 2021 fomos escolhidos por outra surrogate, chamemos-lhe Jackie… que era maravilhosa, mas que ainda estava grávida, através do mesmo processo, e pensámos… «Não podemos esperar tanto tempo!» Mas ela era tão incrível que acabámos por dizer sim. Só que em março ela teve um parto complicado e teve de desistir também. E nós tivemos de continuar à procura… Até que… há uns meses… encontrámos a Katya. (Respira fundo. Sorri, até. Os restantes atores estão agora a montar o cenário. PAI, o irmão, aproxima-se, traz um cão ao colo. E Pedro, o TIO, já não está a falar para o público mas sim para o seu irmão, que lhe vai fazendo algumas perguntas.)

A Katya vive cá, o que é ótimo, porque está próxima de nós, mas tem passaporte canadiano, o que é fundamental, porque permite que façamos tudo dentro da legalidade. É uma miúda incrível, espertíssima, tem idade para ser minha filha… e… pronto… há oito semanas inundou-nos o WhatsApp com montes de fotografias de um teste de gravidez positivo. Ou seja… daqui a umas 30 semanas estamos todos a viajar para Toronto, onde vai nascer o nosso bebé. E estamos outra vez muito esperançosos! (Emociona-se.) Porque a coisa que eu mais quero é agarrar esse bebé recém-nascido. Cuidar desse bebé a partir dos cinco segundos de idade. E olhar nos olhos do bebé e ver-nos neste bebé. (Apercebe-se do que disse.)

Claro que tudo o que disse, obviamente, também poderia ser possível através da adoção. Poderia. Se decidíssemos adotar eu ficaria tão apaixonado por essa criança como por aquela que estamos a criar cientificamente. Para mim é mais uma sensação de… como… é algo que o mundo nos está a permitir fazer neste momento. (Vai-se embrulhando nos próprios pensamentos.) É uma coisa especial: sentir essa ligação… ver a continuação genética… não de uma forma narcisista! Por exemplo: eu olho para o meu sobrinho e é espantoso ver que ele tem… exatamente o teu desembaraço… e depois a parecença física… eu sei que acabei de dizer que não é relevante…

(O irmão pergunta-lhe: «Mas porque é que queres tanto ter uma relação biológica com uma criança?») Não sei, é difícil. Porque é que quero ter uma ligação biológica com uma criança? Porque de certa forma é uma experiência que… biliões de pessoas tiveram ao longo dos séculos… porque é que eu deveria ser privado dessa experiência? Eu sei: porque devia estar mais consciente dos meus atos e das suas consequências do que as gerações anteriores… Mas… enfim… eu nunca disse que estava a fazer isto para assinalar a minha virtude… nem nunca disse que estava aqui para assinalar a minha virtude…

A 1 T O

A casa dopa i

ATO 1 — A CASA DO PAI

Cena 1.1

TIO — (Olhando finalmente para o cenário, citando Turguéniev.) «Não se podia dizer que o lugar fosse pitoresco.» O meu irmão vive nesta casa desde que se casou com a Mariya. Sempre muito tranquilos: quase nunca se separavam, liam juntos, tocavam piano a quatro mãos, tiveram um filho. Que aqui cresceu. Mas há dois anos a Mariya morreu e o meu irmão suportou dificilmente esse golpe. E preparava-se para partir para o estrangeiro, para se distrair… mas começou o outro ano e pronto1, já não dava. Foi ficando… embranquecido, roliço e um bocadinho corcunda. Está à espera do filho que recebera, como ele próprio em tempos, o grau de licenciado.

PAI — E que traz uma amiga…

TIO — Sim, traz uma amiga. Que se chama…?

PAI — Olha, esqueci-me.

TIO — (Toca o telemóvel.) Sinto um ligeiro aperto no coração. (Vendo o telemóvel.) É a Katya. (Conversa com KATYA pelo FaceTime. Ouve-se a voz de KATYA. O PAI sai.) Alô!

KATYA — Alô.

TIO — Alô. Não te vejo. Estás sem vídeo.

1 No romance de Turguéniev, esta passagem refere-se ao ano de 1848 (ano de revoluções em França, em que os russos estavam proibidos de partir para o estrangeiro).

KATYA — Podemos falar?

TIO — Sim. Mas estás sem vídeo. Não te vejo.

KATYA — Espera. Deixa-me mudar de sítio.

(Ela aparece em cena. Estão agora frente a frente.)

TIO — Ah, muito melhor.

KATYA — Que fazes?

TIO — Hey, my love. Nada, estava só aqui a falar com… o meu irmão.

KATYA — (Meio nervosa.) Estás muito ocupado?

TIO — Não, não.

KATYA — Onde é que anda o teu marido?

TIO — (Olhando em volta.) Esse sim, anda ocupado.

KATYA — Mas está tudo bem?

TIO Estamos bem, hoje chega o meu sobrinho… Vem de férias da universidade. A casa está num alvoroço… não imaginas.

KATYA — Ah, estás em casa do teu irmão?

TIO (Sentando-se num sofá, acabado de colocar naquele sítio.) Sim.

KATYA — Posso ir aí ter? Vou aí ter.

TIO Não. Quer dizer: então? Porquê? Está tudo bem?

KATYA — (Sem convicção.) Sim… Não.

TIO Então? (Ela hesita.) Katosha, então? O que se passa? Querida, não me assustes!

KATYA — (Convicta.) Posso ir aí ter ou não?!

TIO — Katosha, aconteceu alguma coisa? Aconteceu alguma coisa com o bebé?

KATYA — Não! Acho que não.

TIO — Achas que não? Não disseste que tinhas sentido… aaa… uns movimentos?

KATYA — Sim, há três dias. Está tudo bem. Está tudo bem! Calma! Não é isso…

TIO — (Perdendo um pouco a paciência.) Mas é o quê, então?

KATYA — Calma, eu preciso mesmo de ter uma conversa convosco. Vou aí ter.

TIO — Não, amor, nós hoje não podemos. Temos aqui uma reunião de família e…

KATYA — (Perdendo também a paciência.) Desculpa, não estás a perceber! Têm de poder.

TIO — Diz.

KATYA — Eu não quero fazer isto. (Pausa.) Não consigo!

TIO Hã? Como assim?

KATYA — (Calma.) Desculpa. Eu pensava que era capaz, mas não sou. É demasiado para mim.

TIO Não, espera… tem lá calma…

KATYA — Eu estou calma. Mas não sou capaz. É só isso. Não sou! Aliás: isto foi a pior coisa que eu podia ter feito! A pior decisão!

TIO — Não, tu não podes estar a falar a sério…

KATYA — E esta semana ainda… eu… quero…

TIO — Hã?! Tu queres… Mas tu tens noção…? (Procura desesperadamente o marido.)

KATYA — Vou falar com a médica, ok? E já falei com a advogada e, claro, vocês não têm o direito de me impedir de parar com isto. Como bem sabes, não têm o direito. Está tudo no contrato, seja como for. Nem tenho de me justificar. Desculpa! Acredita, eu sei que não era isto que querias ouvir.

TIO — Não estou a acreditar, não…

KATYA — Mas era melhor ir aí ter…

TIO — Olha lá, mas tu tens noção, miúda?! Achas que já não passámos o suficiente?

KATYA — (Escalando.) Isto não é sobre ti, caralho! Não é sobre ti! Nem é sobre o teu mundinho de viadinhos neoliberais! (Sai.)

TIO — Katya! (Fica lívido. Pausa. Longa. Depois, voltando a Turguéniev.) Onde é que eu ia? «Não se podia dizer que o lugar fosse pitoresco…» (ANNA entra. O cenário da casa do PAI fica finalmente montado. Ainda Turguéniev.) «Ergue-se o verão, que vai cobrando o que lhe é devido: secura e desolação. Estamos num impasse, são necessárias transformações…»

Cena 1.2

(Blackout rápido. Luz: ARKASHA e a CAMARADA estão já no centro de cena. Sós. ARKASHA traz um trolley de viagem. A CAMARADA carrega uma mochila quadrada às costas. Pausa.)

ARKASHA — Está um dia lindo… para dar cabo disto tudo. Passa-me o «martelo».

(Os «velhos» entram em cena e surpreendem os «novos». Há música. Pete Seeger — «If I Had a Hammer». ARKASHA claramente não esperava, nem lhe apetecia particularmente, esta receção.)

ARKASHA — Está um dia lindo…

PAI — (Abraçando-o.) Até o tempo parece que está a ajudar! Meu querido filho.

ARKASHA — Pai.

PAI — Arkasha, deixa-me olhar para ti! Tu estás… diferente! (Como que fazendo de «pai na ficção».) Estás… mais magro? Vocês já comeram? Não é este tipo de coisa que é suposto um pai dizer a um filho num momento destes? Estás… pálido? (Os outros comentam.) O quê?!

ARKASHA — Não, estou… morta! Dos estudos.

PAI — Não, estás… teatral! É isso!

ARKASHA — (Para TIO.) Tio! (Para ANNA, arrebatado pela situação.) A si, não a conheço!

ANNA — Conheeeece! Só que não se lembra.

ARKASHA — (Abraçando TIO.) O teu marido, onde é que se meteu?

TIO — Aaaaa, onde é que ele foi?

ANNA — Ah, ainda agora aqui estava…

PAI — Foi ao vinho! Olha ele! (Ele aparece. Abraçam-se. Brindam.)

ARKASHA — (Para o PAI.) Então: trouxe a minha amiga, de que te falei. A minha camarada.

PAI A camarada! Claro que sim! Deixe-me olhar para si! (Abraça-a.) Isto não é bem olhar…

1 — A casa do

ARKASHA — Por favor, tratem-na como se fosse da família! (A CAMARADA olha-o com reprovação, ele corrige-se.) Como se fosse… uma de nós, digo. (A CAMARADA continua a não gostar.) Enfim, tratem a minha camarada com… camaradagem.

PAI — Claro que sim: tratar a «camarada» com «camaradagem»… Há pizzas na pizzaria? (Os velhos riem. São lá coisas deles, que só eles percebem e acham graça.)

ARKASHA Ouçam: a nossa amizade é MUITO importante para mim. (O PAI está distraído com a ideia de que alguém tem «uma camarada».) Estás a ouvir, pai? Estou a dizer que não te sei dizer o que a amizade dela significa para mim.

TIO Estás a dizer que não sabes dizer… (Para o PAI.) Tinhas razão / ele veio muito mudado…

ANNA Também se formou? (Pausa. A CAMARADA não responde.)

ARKASHA No próximo ano. Está a tirar medicina. (Agarrando a CAMARADA pela mão.) A minha amiga é a pessoa mais brilhante, mais fascinante que eu já conheci.

PAI Claro! Um brilho brilhante, um fascínio fascinante, é claro que já é da família…!

ARKASHA Ahó! Não, quais famílias! É uma amiga, uma camarada! Não é, minha amiga?

CAMARADA — É, minha amiga.

PAI — (Vai perguntando: «Mas são um casal?») E não se quer sentar, «camarada» do meu filho?

CAMARADA — Estou bem de pé.

PAI Erm… Ah! (Mudando.) Então não te lembras da Anna? Da Anuska?

ANNA Ele já não se leeeeembra!

ARKASHA Não, era isso que estava a dizer…

PAI A Anuska era amiga da mãe! A mãe dela, na verdade, é que era muito amiga da mãe. Que descansem as duas em paz, e que Nossa Senhora as guarde. Estou a brincar. Ou não estou? Ai… vou descompensar… Não, não vou. Pronto, resumindo: a Anna… (Agora sim, o velho descompensa… os outros amparam-no.)

ANNA (Beija ARKASHA.) Pronto… depois da morte da minha mãe andei a remexer nuns armários, numas coisas desusadas, e encontrei um maço de cartas que elas trocaram em tempos e…

PAI (Recompondo-se.) Coisas antigas… do tempo do nosso namoro. (Para TIO, que lhe diz: «Pronto! Mas não chores!») Não estou a chorar!!

ANNA Até achei que poderias não querer ler.

PAI — Achas?! Tens de ler, Arkasha, são giríssimas. Imagina só, cartas. Escritas, filho, mesmo! Com tinta! (ARKASHA tenta interessar-se.)

FENITCHKA — Eu achei-as um bocado ingénue, por acaso.

TIO — Ah sim! Muito aquele estilo da Mariya, assim muito… (Faz um gesto, indicando que as cartas são muito airy-fairy para o seu gosto.)

PAI — Não são nada! Não ligues a estas bichas do demónio!

TIO — Muito advérbio de modo: loucamente, mormente, dolentemente…

FENITCHKA Só faltam mesmo as folhas secas no meio das páginas…

TIO Desculpem estragar o momento nostálgico «mãe há só uma».

FENITCHKA Até porque mãe pode não haver nenhuma! (TIO suspira. Muito alto. O marido pergunta-lhe com os olhos: «O que é que se passa?»)

PAI — (Para ARKASHA.) Amanhã lês. E de manhã damos um passeio, quero mostrar-vos tudo!

Pedro Penim — Encenador, ator e dramaturgo nascido em Lisboa a 5 de julho de 1975. O seu trabalho estende-se também à programação, às conferências, à tradução e ao ensino e já foi apresentado em diversos festivais e temporadas por todo o território português, bem como em diversos países da Europa, América do Sul, Ásia e do Médio Oriente. • É licenciado em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema e tem um mestrado em Gestão Cultural pelo ISCTE. • Fundou em 1995 o coletivo Teatro Praga, companhia emblemática da criação teatral portuguesa contemporânea, com a qual estreou mais de cinquenta espetáculos, tendo sido agraciado com diversos prémios. • Em 2013 fundou o espaço cultural Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, projeto essencial na capital, que acolhe criações de novos artistas, à margem do convencional. • O seu trabalho como encenador, em nome individual, parte habitualmente de aspetos biográficos e tenta complexificar diversos eixos do jogo entre a realidade e a ficção e hibridizar elementos factuais e teatrais. Como dramaturgo assinou diversos textos representados em português, inglês, francês, italiano e hebraico, destacando-se as peças Doing It, Before, Tear Gas, Israel, Eurovision, a peça para rádio As Obras no Escuro, Pais & Filhos, Casa Portuguesa e A Farsa de Inês Pereira. A sua peça Before serviu de guião ao filme Past Perfect, de Jorge Jácome, integrado na seleção oficial da Berlinale 2019, e foi recipiente de diversos prémios internacionais de cinema. • Fora do Teatro Praga, trabalhou em diversos projetos internacionais de artistas e companhias como Tg. Stan — Bélgica (Point Blank, 1998-2001), Tim Etchells / Ant Hampton — Reino Unido (The Quiet Volume, 2012), Forced Entertainment — Reino Unido (Quizoola!, 2014-2019) e Lola Arias — Argentina (Mis Documentos, 2020). • Em 2021 foi nomeado diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, cargo que ocupa desde novembro desse ano.

© Teatro Praga / Sistema Solar (chancela ed._________ ), 2024

Textos © Pedro Penim

1.ª edição, maio de 2024

500 exemplares

ISBN 978-989-568-153-2

Conceção gráfica

Horácio Frutuoso

Revisão

Catarina Homem Marques

Impressão e acabamento

Europress

Rua João Saraiva, 10 A 1700-249 Lisboa, Portugal

Depósito legal

000000/24

Esta publicação recebeu o apoio da República Portuguesa – Cultura | DGARTES –Direção-Geral das Artes

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.