«Calendário Perpétuo»

Page 1





calendário perpétuo



d o c u m e n ta fu ndaç ã o c armona e costa


calendário perpétuo


Cabrita JoĂŁo Pinharanda



« Ce n’est pas le doute, c’est la certitude qui rend fou. » Nietzsche, Ecce Homo


01.01

não é necessário sobrepores vida e arte — a arte e a vida disso se encarregarão.



02.01

um encontro de artistas ĂŠ, em si mesmo, um acontecimento subversivo.



03.01

a pintura nĂŁo ocupa lugar. a escultura ĂŠ um vazio, o desenho, um corpo subtil. a imagem em movimento irrompe do movimento dos teus olhos.



04.01

a notĂ­cia da morte de um artista ĂŠ o primeiro sinal da sua perenidade.



05.01

o mundo nĂŁo existe fora do que a arte dele faz.



06.01

pintar um céu é ver um céu — o mesmo para as palavras que descrevem o inferno.



07.01

todos os textos sĂŁo obras visuais.



08.01

tocamos com os olhos, em silĂŞncio.



09.01

uma obra de arte não cumpre um destino decorativo: rasga e quebra e incendeia; não cobre, não harmoniza, não disfarça.



10.01

as ruĂ­nas sĂŁo os testemunhos do futuro no presente.



11.01

o presente é uma impossibilidade que só a arte torna possível — porque a arte é sempre presente (como a política).



12.01

o futuro fica sempre para trĂĄs. quem trabalha para o futuro nĂŁo conquista o presente.



13.01

as mĂŁos servem para pensar a matĂŠria.



14.01

entre o sexo, a arte e a morte não há escolha possível.



15.01

todos os diĂĄlogos sĂŁo monĂłlogos sobrepostos.



16.01

não há grandes artistas e artistas menores. há artistas: uns desaparecerão, os outros também.



17.01

a arquitectura nĂŁo ĂŠ o suporte nem o abrigo das obras de arte. a arte tem de se fazer contra a arquitectura, contra o urbanismo, contra a literatura.



18.01

não há disciplinas artísticas, nem regras, há técnicas; e há uma disciplina de trabalho, que é individual e sem concessões.



19.01

o texto pode ser escultura e a escultura, música — tal é a regra para estabelecer a correspondência das artes.



20.01

toma a paisagem como um corpo, com os seus mĂşltiplos sinais.



21.01

não vale a pena gabares as tuas obras. o tempo as cobrirá de pó. basta saberes e afirmares que és artista. o tempo pode muito contra as coisas, mas pode pouco contra a tua vontade.



22.01

virá um arqueólogo que, sem entender o contexto das obras de arte do nosso tempo, tentará entender a sua razão para além da história.



23.01

um gesto largo limparรก o espaรงo; um gesto pesado abaterรก as paredes; um gesto firme desenharรก o horizonte.



24.01

o silêncio é um reino absoluto que rapidamente se torna insuportável.



25.01

os objectos representados passam a ser da mesma natureza que as suas imagens.



26.01

ritualizar cada momento do quotidiano evitará a tua distracção para com a vida.



27.01

a arte redime o sagrado que tens por perdido.



28.01

um banquete (aldeão ou artístico, juvenil ou familiar, proletário ou burguês) é sempre um tratado de filosofia.



29.01

a surpresa nasce do que se conhece, como o acaso nasce do que se espera.



30.01

os amigos não são para a vida, a vida é que é para os amigos — única plataforma de encontro e cisma.



31.01

há quem se encontre e quem se perca; quem partilhe e quem roube; quem guarde e quem dê; quem se esconda e quem se exiba — nenhuma obra tem que ver com nenhuma moral.





28.12

a morte, o amor, a vida, a arte sĂŁo oximoros.



29.12

não há centro nem periferia, não há alto nem baixo; há uma fogueira que tudo devora em redor iluminando as coisas e assombrando quem a vê.



30.12

se tiveres o trilho, dispensa o mapa.



31.12

deixo aos outros o desejo ou a missĂŁo de decorarem ou de esquecerem estas minhas palavras.



JoĂŁo Pinharanda Paris, Maio de 2018 / Outubro de 2020


Posfáci o

Em Maio de 2018 escrevi, para uma vasta exposição comissariada por Pedro Cabrita Reis na Associação 289, em Faro, oitenta textos onde utilizei de forma sistemática a fórmula do aforismo. Uma solução que sempre me interessou (de alguns dos Antigos a Pascal, Nietzsche, de Kraus a Wilde, Cioran ou Almada) e que, muitas vezes, se intromete em alguns dos meus escritos. A capacidade de síntese que comportam, o modo como possibilitam o uso de oximoros ou como neles se pode sugerir uma voz profética teve como pretexto temático a Arte, procurando nela caminhos para pensar na Vida, na Política, no Amor, no Sexo, na Morte… No final desses textos iniciais (tantos quantos os artistas reunidos em Faro e que foram publicados em


poster anexo ao catálogo) dei por incompleta a minha tarefa. A dupla necessidade de criar uma meta e de me impor um limite, dando assim sentido ao processo de trabalho que se iria seguir, levou-me a estabelecer que escreveria um aforismo para cada dia do ano — obteria assim um calendário. E foi seguindo as experiências dos dias, colhendo as suas alegrias e desgostos, reflectindo sobre o mundo que corria junto a mim, que os escrevi. Mas, reforçando a ideia de que uma sentença não deve ser gasta pela usura do tempo, pensei imediatamente em aplicá-los aos dias de um calendário sem marcação de ano, reunindo o fim e o princípio, permitindo um eterno retorno — em criar um calendário perpétuo. As frases apresentam-se pela sua ordem de realização, sem relação entre si, embora algumas parecendo corolário de outras, quase se repetindo outras vezes e, outras ainda, contradizendo-se entre si. Esta pluralidade não deve causar incómodo: a verdade de um


aforismo existe e termina na sua própria enunciação sem necessitar de justificação nem suscitar continuidade. Foi, porém, na bela continuidade de uma amizade, que também se deseja perpétua, que Cabrita colocou um desenho seu ao lado de cada um desses aforismos, um desenho feito no mesmo espírito de síntese e de velocidade, de abstracção e de súbitas chamadas ao real. João Pinharanda Paris, Outubro de 2020

agradecimento Mais do que os agradecimentos de sempre, querem os autores sublinhar o profundo reconhecimento à Fundação Vítor e Graça Carmona e Costa e à sua Presidente, Maria da Graça Carmona e Costa, que tornou possível completar este projecto patrocinando a edição da presente obra e a exposição que a acompanhou.



suite calendário perpétuo uma breve descrição

a razão de ser os 366 desenhos que constituem esta suite calendário perpétuo foram por mim realizados com o específico propósito de acompanhar os textos de joão pinharanda agrupados sob uma designação similar, e que aqui também se publicam. este encontro de vontades nasceu num qualquer momento durante o ano de 2019.


o tempo e o lugar estes desenhos foram feitos no sul, no meu atelier da casa queimada, perto de tavira, em três dias, entre as 16h de domingo 03.05 e as 23h de terça-feira 05.05. pelo meio, como habitualmente, passeios pelo campo e um ou dois mergulhos no mar. cada desenho, além de ter o meu selo branco no canto inferior direito, está assinado, datado, numerado e carimbado a vermelho no verso. os materiais para fazer os 366 desenhos usei papel de aguarela da fabriano, feito em itália,


disponível em blocos de 20 folhas, tendo cada uma as dimensões 14,8 × 10,5 cm e com uma gramagem de 300 gr/m². a tinta-da-china utilizada foi a do último dos frascos que trouxera de tóquio, quando aí estive no outono de 1993 com a patrícia garrido, por ocasião da exposição western lines: contemporary art from portugal, realizada no hara museum arc, desenhado por arata isozaki em 1988, localizado em shibukawa.

cabrita lisboa, quinta-feira, 29.10.2020



desenhos © pedro cabrita reis textos © joão pinharanda © fundação carmona e costa, 2020 R. Soeiro Pereira Gomes, 1 1600-207 Lisboa © sistema solar crl (chancela documenta) rua passos manuel, 67 B 1150-258 lisboa 1.ª edição, novembro de 2020 isbn 978-989-9006-56-0 fotografia: joão ferrand revisão: helena roldão depósito legal: 476494/20 impressão e acabamento: gráfica maiadouro sa rua padre luís campos, 586 4470-324 maia portugal





Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.