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TÍTULO DO ORIGINAL: CONCERNING THE ECCENTRICITIES OF CARDINAL PIRELLI
© SISTEMA SOLAR, CRL (2020) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, ABRIL 2020 ISBN 978-989-8833-47-1 NA CAPA: INGRES (PORMENOR) REVISÃO: DIOGO FERREIRA DEPÓSITO LEGAL 000000/20 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL
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Não se evita à cabeça este advérbio — surpreendente — para qualificar a rápida ascensão social dos Firbank: ao bisavô paterno de Arthur Aunesley Ronald, iletrado e enegrecido nos trabalhos de uma mina de carvão, seguiram-se um avô empreiteiro com farta riqueza material por ter instalado carris ferroviários em todo o país, e um pai já com excelências de sir e de membro do parlamento, casado com uma lady conhecida no seu meio por coleccionar pinturas de alto valor no mercado e requintadas porcelanas que chegavam aos seus expositores por alvitre de uns quantos comerciantes de Londres. Ronald — Artie para os íntimos — (os nomes que ele sempre preferiu a Arthur e a Aunesley) nasceu em 1886 em Londres mas viveu a sua infância em The Coopers, casa com cem acres de paisagem em Chislehurst — «que parecia um Paraíso», dizia lady Firbank em cartas e nos salões que frequentava; segundo de quatro filhos e o mais débil, com uma saúde a requerer cuidados; com uma sensibilidade também, e uma delicadeza doentia que desde cedo lhe conferiram gostos diferentes dos que dominam a maior parte das infâncias masculinas e a anunciarem uma homossexualidade que seria — em tempos de morais vitorianas — com muita audácia afirmada. Teve contacto com as primeiras letras numa Mortimer Vicarage School de Chislehurst, mas sucessivos momentos de má
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saúde física aconselharam os seus pais a entregá-lo a um preceptor que o defendeu (até aos catorze anos de idade) das excessivas fadigas de uma escola pública. Depois arriscou-se a um ano de aulas numa Uppingham School, com um insucesso que o devolveu ao ensino individual. Em tempos mais adultos e de menos incómoda saúde física suportou o Trinity Hall em Cambridge, que lá o reteve até os vinte e três anos de idade e lhe deu tempo para ficar ligado a uma bem vincada fama de excentricidades e rebeldias; Ronald Firbank, entretanto repleto de uma vasta cultura vadia e avessa «às verdades» vinculadas pelo ensino oficial, fez-se a uma vida solta e até ao fim dos seus dias energicamente cumprida, sem trazer consigo nenhuma graduação académica. A este Ronald liberto de estudos e com uma vida protegida por folgados bens materiais, os médicos aconselhavam mudanças geográficas que lhe dessem a respirar climas menos atormentados pelas névoas e pelas frialdades do seu país natal; a Itália, a Espanha, o Norte de África, o Médio Oriente, Tahiti… todos lhe vieram a calhar; e foram assim, e em obediência a este conselho, consentidas ausências terapêuticas que o afastavam por largos períodos dos salões de Londres onde costumava mostrar-se com exibida inteligência e comportamentos que copiavam em tom menor e com menos subtileza os do seu ídolo Oscar Wilde. É hoje conhecido um largo anedotário que lhe colecciona os ditos e as atitudes. François Dupuigrenet-Desroussilles, que o estudou e prefaciou, destaca-lhe «as faces e as unhas pintadas, a voz ultrajantemente esganiçada», o aspecto de alguém que apenas «se alimentasse de pêssegos e champanhe», o hábito de «em plena rua cobrir os seus amigos com flores», no teatro «o gosto de não assistir
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ao espectáculo metido na poltrona, mas com os pés no ar e a cabeça quase ao nível do chão.» Tudo isto ele orquestrava com sábia e atenta premeditação dos limites do excesso, promovendo um eficaz culto de mistério, um exibicionismo que sabia, pelo contrário, construir uma elaborada máscara de protecção. Em 1907, num país cheio de arrogância anglicana, decidiu converter-se ao catolicismo. A pompa do Vaticano e a sua religião de báculos e púrpuras, cheia de ornamentados rituais e símbolos, convinham-lhe ao gosto pelo espectáculo e à forma vistosa como gostaria de relacionar-se com Deus. Numa das suas viagens à Itália tudo fez para ser aceite entre os jovens da guarda nobile do papa; mas a sua entrevista de admissão «assustou» os seleccionadores: Ronald tinha ênfases, tons e gestos com um género de exuberância que punha de pé atrás os que tutelavam o bom nome e a tranquilidade dos corredores do Vaticano. Foi um golpe difícil de suportar. A Igreja de Roma não quis saber de mim, vou portanto troçar dela. (A consequência mais evidente deste estado de espírito virá a ser o livro Das Excentricidades do Cardeal Pirelli.) Em 1911, quando se sentiu acima de tudo escritor, o seu catolicismo de essência pagã, a vigorosa atracção que as grandes estrelas «decadentes» desses dias — Aubrey Beardsley e Oscar Wilde — exerciam na sua forma de sonhar a literatura, modelaram o tom que mais evidente se tornaria nos textos a que deu a forma de romance. E foi durante os anos da Primeira Guerra Mundial, com as suas viagens ao estrangeiro interrompidas, com a vida intelectual de Londres perturbada, que se recolheu à tranquilidade de Oxford e escreveu ou esboçou até estados mais
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e menos avançados as ficções que viriam a transformar-se em obras literárias consumadas. Uma primeira incursão literária, a que chamou Odette d’Autrevernes, já existia desde 1905 mas só viria a ser publicada postumamente. Este período de «recolhimento» em Oxford deu-lhe Vainglory (1915), Inclinations (1916), Caprice (1917), Valmouth (1919) o seu romance mais autobiográfico (que se converteu num musical londrino em 1958), fê-lo chegar à primeira forma de The Flower Beneath the Foot (que só seria publicado em 1923), e a Prancing Nigger (na sua maior parte com diálogos escritos no inglês torturado dos negros de Tahiti, só em livro a partir de 1924). Concerning the Eccentricities of Cardinal Pirelli é póstumo (1926), bem como The Artificial Princess (1934) que foi, na sua adaptação radiofónica de 1964, um grande êxito de Edith Evans. Ronald Firbank tem hoje na literatura inglesa um nome em boa parte firmado por admirações expressas de E.M. Forster, Ivy Compton-Burnett ou Evelyn Waugh; e por exercer no leitor uma sedução perversa quando se movimenta com tanta eficiência num mundo luxuoso onde reina o tédio e uma sofisticada fadiga de viver. Firbank é, segundo Jean Gattégno, um escritor «de subentendidos que sugerem a homossexualidade e, de uma forma mais geral, comportamentos sexuais com desvio, como o gosto pela flagelação à maneira de Swinburne.» Acrescentemos que a sua literatura cheia de meninos de coro, freiras lésbicas, padres travestidos, santos de canonização duvidosa, não dispensa uma forte lucidez sobre as técnicas da escrita. É exímio a urdir intrigas onde uma desconcertante visão
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da vida faz o seu caminho entre diálogos de frases interrompidas e voluntariamente frívolas, com mudanças de destinatário tão inesperadas como as que se conhecem das conversas captadas no tumulto de reuniões onde impera e desespera uma grande confusão de vozes. (São disto bom exemplo vários capítulos deste livro, com qualquer coisa que decalca em tom mais baixo a lição das comédias de Oscar Wilde.) Seguimo-lo assim, num ritmo sincopado e com rupturas de fio condutor que ele atribuía ao seu forte amor pelo jazz. Este romance póstumo, por muitos considerado a obra de Firbank mais lograda e retido na gaveta porque esbarrava, ao que parece, numa falta de coragem (sua ou do seu editor) para o entregar ao público, é um carnaval de risos cruéis e melancólicos encenado por um católico «ressabiado» que inventa a Clemenza de uma Andaluzia a fazer lembrar-nos a de Sevilha, Granada, Córdoba… com nomes de personagens que oscilam entre as que nos são familiares em Espanha e Portugal, mas também outros que escapam a esta mais cerrada identificação geográfica. Nesta ficção que faz o seu jogo numa indeterminada Espanha sulista e com um catolicismo enfeitado por saudades pagãs, vamos confrontar-nos com uma Igreja tresvariada nos seus oficiantes e nos seus fiéis, e espreitar por um buraco de fechadura reconhecíveis verdades mas que foram aqui, num tempo que enchia a literatura com rajadas anticlericais, como que deformadas por um implacável espelho de feira. Ronald Firbank viveu até ao dia 21 de Maio de 1926. Numa das suas viagens a Roma, com quarenta anos de idade corroídos pelo abuso de alcoóis e nuvens de cannabis, não supor-
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tou as complicações de uma pneumonia e morreu num quarto de hotel. Sozinho, separado da sua família, tomaram-no por anglicano e enterraram-no num cemitério protestante inglês onde teve por pouco tempo a companhia tumular de Shelley e Keats; este equívoco, que ultrajava a sua inquestionável «fé» religiosa, levou a sua família a obter desde a Inglaterra o consentimento para lhe ser dado um novo túmulo entre os católicos do cemitério de San Lorenzo. Meses depois, o seu editor Grant Richards tirou da gaveta o desde há muito retido Das Excentricidades do Cardeal Pirelli, e publicou-o. Como iria a Censura inglesa reagir? Em 1915, o romance de D.H. Lawrence The Rainbow tinha sido considerado obsceno e anti-patriótico, com exemplares retirados do mercado e queimados, mas acabava de ser devolvido às livrarias do país. Este amaciamento dos censores encorajava; além do mais, na Inglaterra anglicana não era muito grave um escritor satirizar a igreja de um país fiel ao Vaticano, ainda por cima com evidências politicamente incómodas de um arrependimento, o de ter cedido Gibraltar à Inglaterra. O cardeal Pirelli não foi molestado na divulgação das suas excentricidades. Ronald Firbank, um mestre em naughtiness que a crítica teria sempre a tentação de torturar como um insecto (disse-o E.M. Forster), de o apelidar pejorativamente de barroco ou rococó, de o ligar a um catolicismo pagão que parecia amoral e imoral, de escritor menor… — «poeta de um riso enlouquecido», preferiu chamar-lhe Edmond Wilson — recusou-se ao programa de moldar comportamentos, tão comum nos romances mais proeminentes da sua época — Huxley, Lawrence, Morgan, Shaw… — e
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contentou-se em construir a comédia de costumes solta e mundana que a sua ligeireza amava e privilegiava. Um biógrafo seu incluiu-o entre os escritores com vocação para serem «póstumos». A sua evidência fortaleceu-se, de facto, com as edições que começaram a surgir depois da sua morte; depois de uma pausa… a que ele bem definiu numa página de Vainglory: Houve uma pausa — só a que bastava para um anjo com o seu voo lento passar. A.F.
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Dentro de uma capa de seda com lavrados de ouro que o cingia, olhou à sua volta. A sociedade estava ali em peso. Era um baptismo — mas não de uma criança. Muito poucas vezes ele tinha visto tanta gente brilhante ao pé da pia baptismal. Se (em vez daquilo) estivesse em causa um herdeiro dos hectares DunEden, a cerimónia não arrastaria uma tão distinta afluência. Monsenhor Silex fez um dedo deslizar desde a testa ao queixo, desde uma orelha à outra. Continuasse a condessa DunEden a ter leviandades como aquela, e não havia dúvidas de que iriam custar ao cardeal a perda do chapéu. — Que o meu coração seja acalmado pelas fontes que brotam. Na galeria do coro, uma voz jovem de menino evocava o Céu. — O seu chapéu! — exclamou em voz alta monsenhor Silex, deitando um olhar que mal pestanejava à imemorial fonte de mármore Macæl negro, que já tinha feito gritar um incontável número de pálidos bebés. Tinham sido ali baptizados santos e reis, reais infantas e meigos poetas com famosos nomes que punham os corações a vibrar. Monsenhor Silex fez no peito um sinal da cruz. Tinha de se concentrar para não perder nada do que à sua volta acontecia.
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Tinha de dar corpo a um pormenorizado relatório. O pontífice aguardava na longínqua Itália precisões. Debaixo do baldaquino oficial, ou seja, da Grande Xaymaca1, sua eminência estava sentada no trono, comida pelos olhos de uma dúzia de mulheres de grandes senhores — os Altamissal, os Villarasa (aliás, os olhares aprovadores dos manda-chuvas quase eclipsavam os das suas mulheres) — e de Catarina, condessa de Constantine, a mais falada beleza do reino que parecia um selvagem membro de Astarté com um barrete de toreador amarrotado, tão redondo como uma coifa de atleta e com pompons de seda pendurados, que tinha ao seu lado uma corpulenta e melancólica duquesa com ar muitíssimo impositivo, a abanar ao de leve e cheia de solicitude um objecto que a todos despertava o maior interesse. Com a cabeça maliciosamente inclinada, os belos braços a adivinharem-se através de sombrias rendas, a duquesa aconchegava dentro de uma reentrância do vestido um cão-polícia com uma semana de idade. — Cachorrinho querido da mamã! — arrulhou, enquanto a imperiosa criatura passava a língua pelo seu esplêndido e receoso queixo. O largo rosto pálido de monsenhor Silex escureceu até à evidência de uma reprovação. E se aquilo fosse, ao cabo e ao resto — inquietante dúvida — um fruto das entranhas de Sua Graça? Deus seja louvado! Ele era ignorante no que tocava aos esquemas da natureza, mas lera um dia num velho livro da estante do coro que uma 1 Xaymaca é o nome indígena que deu, por distorção, origem a Jamaica. A comparação de um baldaquino a uma xaymaca tem por certo a ver com a sua espalhafatosa exuberância visual. (N. do T.)
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jovem tinha dado à luz pela narina um tordo-visqueiro. Não podia negar-se que o facto causara na época enorme escândalo e a Santa Inquisição, como consequência, até tinha condenado à fogueira a impudica devassa. — Devem ser desta maneira tratadas — murmurou, lançando à assembleia um olhar nada indulgente. A presença da senhora San Seymour surpreendeu-o; por hábito tão reservada e devota! E a senhora La Urench também, tão descarada a gorgolejar para o pai de quatro patas! — Não, não, meu travesso adorado! Não, não, agora não!… Aguenta um pouco até teres o osso! Palavras que faziam escorrer saliva quente da boca daquele pai com expectativas. Com o rabo excitado e o sexo visível (o que inspirava uma fingida e delicada confusão à infanta Eulalia Irene), o pai acachapou-se, pousando um pensativo olhar no focinho do seu filho. Ah, o alegre delírio da primeira paternidade! Encantador orgulho! Haverá uma maçonaria que une desde primitivos tempos os que logram estabelecer na terra os laços vitais de uma reivindicação familiar? Até o modesto sacristão, em sentido ao pé da pia baptismal, sentia-se numa grande medida com mais valor do que aquele imprestável chefe militar de uma casa nobre, que ainda há pouco fazia nas montanhas vizinhas um tratamento com leite de burra — sem nenhum resultado! Mas o cardeal levantou-se, amparado pelo prior da cartuxa, para efectuar a Imersão1. Nas igrejas ortodoxas pratica-se o baptismo com total imersão na pia baptismal. Mas isso não é prática habitual numa igreja católica. (N. do T.) 1
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A sua rara elegância, mostrada embora com os restos de um bom aspecto físico, fazia-o mais cortejado e perseguido por mulheres do que um matador. — E assim limpo e purificado, vou chamar-te Crack! — disse ele, dirigindo-se ao fardo que a duquesa mantinha cativo. Com o rabo metido entre as pernas, «sem saber onde se havia de meter», com as orelhas espetadas, a língua pendente… — Mascote da mamã! — Oh, tenha cuidado, minha querida, ou ele ainda lhe tira todo o ruge! — O quê! — Receio que lhe tenha estragado o rosado das faces — disse a condessa de Constantine a reprimir um riso. A duquesa afrouxou as garras. Toda aquela gente ia vê-la assim, desvantajosamente atingida! — Nas duas? — perguntou com angústia e já desinteressada do réu, que lhe saltou do peito com um claro e desportivo latido. Que êxtase, que liberdade! — Misericordia! — exclamou monsenhor Silex, a olhar aterrorizado para uma pata leviana que se alçava contra a placa funerária da finada duquesa de Charona — uma mulher que no seu tempo de vida doara aos pobres mais de trinta milhões de pesetas! Ave Maria purissima! E que provocadores rosnidos, e que misterioso ritual acompanhava aquele reconhecimento de pai e filho! Não haveria ninguém que impedisse os seus incestuosos folguedos?
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Um agitado monsenhor Silex pediu forças aos historiados vitrais que uma luz ambarina iluminava por cima da sua cabeça como um irradiante missal. Ao alto, no rasto das Onze Mil Virgens estava Eva de Santa Eufrásia, a do Egipto, uma santa imatura, uma desajeitada menina de escola sem experiência nenhuma no que tocava a orações, destituída da energia e da astúcia de que a incomparável Santa Teresa naturalmente dispunha. Sim; era difícil encontrar indícios de uma qualquer interferência divina entre aquele pai e aquele filho; Eufrásia (a do Egipto), que já antes e com tanta frequência falhara… Monsenhor Silex teve um ligeiro sobressalto quando um menino do coro, no estrado sob a cúpula, deixou cair uma pequena cuspidela branca. Querido cachopo, como se isso chegasse para as suas relações se quebrarem! — As coisas devem seguir o seu «natural» caminho — concluiu, acompanhando com o olhar as palhaçadas esotéricas do par que ali confraternizava. Lá fora, ao ar livre e no pavimento de lápis-lazúli, já eles resplandeciam, soltavam abafados ganidos como se estivessem possessos. — Não querem ver que ainda rasgam as cuecas do meu marido! — lamentava-se a duquesa. — Ai as pernas do duque! Pobre Decima! A infanta deixou-se cair suavemente de joelhos. — Ficar mais forte… de burras… — articulavam os seus nobres lábios.
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— Meu querido, coragem — murmurou ela num tom amável quando se levantou. Mas a duquesa tinha-se posto a recato, ao que parecia para dar alguma ordem à devastação do corado das faces; e foi da escuridão de um confessionário adjacente que chamou à ordem o Crack: — Já aqui, Crack! E o eco subiu às traves hispano-mouriscas: — Crack, Crack, Crack, Crack…
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Da calle de la Pasión, por baixo do miradouro do muro do jardim com azulejos azuis, chegava o som melancólico de uma seguidilla. Havia um crepúsculo propício ao galanteio, à moleza, ao consentimento; já muitos tinham sido apanhados pela garra de uma noite como aquela. «Era a lua…» A fazer um passeio de claustro, a suportar o peso de um cheiro a flores que o sol tinha enlanguescido, o cardeal não podia deixar de sentir as perniciosas influências que por ali andavam. Os sinos das instituições colegiais da Encarnación e da Imaculada Concepción confirmavam em conjunto o angelus, dando-lhe tons meio casamenteiros, suficientes para criar vagos anseios, súbitas crises de lágrimas entre as jovens patrícias lá internadas. — Filhas de boas famílias… educadas em conventos — suspirou o cardeal. Na Imaculada Concepción, que a rainha tinha uma vez apelidado com ironia de «escola para galdérias», a jovem infanta Maria de la Paz devia estar a sentir-se ralada por pensar com inveja na sua mamã e na corte, na carnificina lilás da arena, e também irritada com um frouxo cativeiro como aquele que a deleitosa e prazenteira duquesa de Sarmento ali chefiava para niñas travessas, raparigas com comportamentos helénicos que tinham dado por mais de uma vez à boa abadessa motivo para correr riscos de indigestão.
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— Moralidade. Firmeza! Porque sem temperança e equilíbrio… O cardeal parou. Mas nada disto lhe era sugerido pelas enrubescidas camélias na luz baixa e inconstante, pelos suaves jasmineiros nocturnos; nem mesmo pela figura de um Eros de jardim que sobressaía radiante na penumbra. — Porque se não houver em nós equilíbrio… — murmurou o cardeal, sentindo-se com o espírito perturbado, a fascinar-se com os indecisos matizes que o já terminado crepúsculo punha nas voluptuosas nádegas do Cupido. Uma vez, durante uma crise de tempestuoso humor, a sua amante tinha partido contra elas as barbas de baleia do leque. — Pudessem todas as ligações tão facilmente quebrar-se! — disse Sua Eminência, a formatar a frase com um tom de prece; e a matutar na assustadora constância de um certo tipo de ligações, prosseguiu com o lento e ocioso passeio. — Sim, como é que podem sacudir-se mulheres envolventes como Luna Sainz, com aqueles lacrimosos e insensatos «meus»? O «meu» Salvador, o «meu» amante, o «meu» guarda-sol… e até a «minha» virtude… A pobre querida! O cardeal sorriu-se. Numa ocasião ou noutra, talvez não fosse avesso ao favor de um dos seus olhares. «Uma curta visita numa noite como esta.» Don Alvaro Narciso Hernando Pirelli, cardeal-arcebispo de Clemenza, voltou a sorrir-se. Na escuridão, no meio de altos matagais de loureiros e mirtos floridos… Porque, ao cabo e ao resto, Deus a abençoe,
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A papisa Joana – segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J.-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas – O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco O caso Kurílov, Irène Némirowsky A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson Nova Safo – tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura Gaspar da Noite – fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal O rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel
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Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano, a idade e o carácter do poema, Ernest Renan Derborence, Charles Ferdinand Ramuz O farol de amor, Rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière A minha vida, Isadora Duncan Rakhil, Isabelle Eberhardt Fuga sem fim, Joseph Roth O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans Tufão, Joseph Conrad Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud Eu, Antonin Artaud A morte difícil, René Crevel A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn As portas do paraíso, Jerzy Andrzejewski Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán Caustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry Balkis (A lenda num café), Gérard de Nerval Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud Riso vermelho – fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev Nossa Senhora dos ratos, Rachilde
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