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António Cândido Franco (1956)
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D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA
edição de António Cândido Franco
Mário Cesariny CARTAS PARA A CASA DE PASCOAES
Vi nele a ciência dos sinais, diz Ibn Arabi numa epístola famosa. Assim pode ele dizer sobre o que primeiro leu de Teixeira de Pascoaes, o que aconteceu em 1977. Abriu a escrever sobre o autor de Duplo Passeio em 1983 e dedicou-se depois disso ao estudo das luzes que brilham neste poeta e fazem a vez dum céu cravejado de cristais. Pelo caminho encontrou Mário Cesariny, no qual reconheceu o patrono desta experiência de leitura. Deu a lume um texto corrido, A Literatura de Teixeira de Pascoaes (2000), deu uma mão para reeditar a magna antologia de Cesariny, Poesia de Teixeira de Pascoaes (2002), criptografou a sua observação num romance, Viagem a Pascoaes (2006), que Antonio Saez Delgado fez o favor de pôr em castelhano, e tem no prelo uma colectânea, Trinta Anos de Dispersos sobre Teixeira de Pascoaes (INCM). Espera agora passar do Ar ao Fogo.
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As relações de Mário Cesariny com a obra de Teixeira de Pascoaes, que abriram em força na década de 60 do século XX e se alargaram depois até ao seu desaparecimento físico já em 2006, marcaram a terceira fase do desenvolvimento do surrealismo em Portugal, a da maturidade, ajudando a reorientar a obra poética de Cesariny numa direcção inesperada, a da sátira anti-pessoana, com as duas edições do Virgem Negra.
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Conhecíamos os vários momentos públicos deste relacionamento — em que entra o trabalho de selecção de duas compilações, Aforismos e Poesia de Teixeira de Pascoaes, ambas de 1972, e a frase capital dita em 1973 no texto «Para uma Cronologia do Surrealismo Português», Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa — mas ignorávamos, e continuamos em parte a ignorar, o percurso por dentro dessa ligação, bem como desconhecíamos o convívio do autor de Pena Capital com o lugar e a casa em que Pascoaes viveu. Com a publicação do epistolário de Cesariny para os dois habitantes da casa de Pascoaes seus coetâneos, João e Maria Amélia Vasconcelos, de 1968 a 2004, ficamos enfim a conhecer elementos do relacionamento entre Mário Cesariny e a obra de Teixeira de Pascoaes e a perceber uma parcela importante da teia em que tudo aconteceu, quer dizer, do como, do quando e do através de quem se deu e processou o convívio de Cesariny com o lugar e a casa de Pascoaes.
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Casa de Pascoaes (desenho de Teixeira de Pascoaes)
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edição de
António Cândido Franco
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© SISTEMA SOLAR, LDA. (DOCUMENTA) © FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA © D. MARIA AMÉLIA TEIXEIRA DE VASCONCELOS REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO DE 2012 I SBN 978- 989- 861 8 -0 0 -9
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Pascoaes (nรฃo sรณ o Poeta: o Lugar). Mรกrio Cesariny, 1980
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AP RES EN TAÇ ÃO
As cartas dum escritor são incerteza e revelação. Incerteza porque chegam duma zona de apagamento, toldada de sombra, própria do fluxo heraclitino, onde nada se distingue; a esse fio umbilical, e ao facto de terem um único e exclusivo destinatário, se deve o caso de muitas dessas cartas nunca chegarem sequer ao conhecimento do público, perdendo-se para sempre no imenso oceano anónimo dos papéis. Revelação, porque tantas e tantas vezes esses pedaços de papel mostram melhor do que qualquer outra manifestação escrita a alma de quem os escreveu. E alma não é aqui sinónimo de arte, porque esta é máscara, quando não convenção ou norma, e aquela a irradiação duma ideia. Boa parte das cartas dum escritor são escritas longe de preocupações estéticas, que dão ao que se escreve um verniz impressivo, forte até, mas artificioso. Nessa aproximação ao espontâneo, longe de qualquer exposição pública, deve residir o magnetismo, e no mesmo passo, a fragilidade, ou pelo menos a consciência desta, com que os amantes da poesia ou da literatura abordam as cartas dum escritor. Longe da arte, longe das escolas, longe do cuidado de fazer e parecer bonito, nunca como nelas se encontra o arcano pessoal e íntimo, a estrela individual que move por dentro o escritor. E tudo isso com a impressão ou mesmo a certeza que é pouco mais do que por acaso que essas cartas chegam às mãos do leitor público, pois o destinatário inicial era apenas um. O que faz o interesse de papéis assim arrancados à privacidade é com certeza o que neles há em simultâneo de sombra e de luz, de superficialida9
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de e de profundidade, de banalidade e de densidade, de pessoal e de colectivo, tudo contraposições que aqui se cruzam para um resultado que é dos mais significativos e originais no campo da acção escrita. Dão-se a conhecer neste volume cinquenta e três missivas que Mário Cesariny escreveu para Pascoaes, lugar da freguesia de São João de Gatão, Amarante; na verdade são menos, pois umas tantas, poucas, foram escritas para Porto Covo, onde os habitantes da casa de Pascoaes vilegiaturavam. Essas cartas — divididas em dois grupos: o primeiro, mais volumoso, indo do ano de 1968 a 1982, tendo como destinatário João Vasconcelos (1925-1983); o segundo de 1983 a 2004, tendo como destinatária Maria Amélia Vasconcelos (1930) — mostram condições para exercerem e expandirem o seu campo de atracção junto do leitor colectivo, condição capital para a epistolografia dum escritor justificar a sua existência pública. Como depressa se percebe, estas cartas de Cesariny, até nas imperfeições, em primeiro lugar gráficas, são cartas privadas, cartas verdadeiras, fora de qualquer retórica literária. Percebe-se que foram escritas sem qualquer propósito de saírem a lume e que foram enviadas por correio postal sem intenções escondidas, tão-só pela necessidade vital do subscritor comunicar vida, tempo e corpo. Nesse sentido elas cumprem para o público em geral o interesse basilar duma carta de escritor: marcar com ele encontro com tudo ao léu, mostrando sem verniz, ou quase, parcela da sua escrita, cuja intenção era ficar desconhecida, salvo para o destinatário individual, e que só um acaso, maior ou menor, traz à luz da leitura colectiva. Se é neste género de escrita, pela qualidade do espontâneo, sem falsidades postiças, que melhor se topa a alma íntima dum escritor, então aqui se conhece e dá a conhecer parcela importante, se não decisiva, da escrita de Mário Cesariny. 10
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Avaliando o que agora se edita, percebe-se que nada diferenciava o combustível que movia na intimidade Mário Cesariny daquele outro que alimentava a imagem pública com que ele se dava a conhecer. Não repugna pensar que uma destas cartas pudesse fazer num livro seu — por exemplo, Alguns Mitos Maiores (1958) — a vez dum poema, tal como não custa pensar que um poema seu, desse livro, pudesse ganhar também lugar entre estas missivas. Isto, que podia ser a principal surpresa desta epistolografia, é afinal o que logo em primeiro grau se devia esperar dela. E o que se diz das cinquenta e três missivas aqui dadas a conhecer, se pode do mesmo modo adiantar, porventura com mais propriedade ainda, das dezenas que escreveu para o casal Vieira da Silva-Arpad Szenes, a que se junta Guy Weelen, essas reunidas já em livro e acessíveis ao leitor (Os Gatos Comunicantes — Correspondência entre Vieira da Silva e Mário Cesariny. 1952-1985, 2008, 200 pp.). Fala-se aqui da epistolografia dum poeta surrealista, para quem a libertação da alma, por meio de processos expressivos automáticos capazes de abrirem comportas interiores, era menos um projecto literário ou mesmo até poético do que vital. Não se tratava para ele de imitar um estilo, um modo de escrever, mesmo que tal passasse por formas produtivas de automatismo psíquico, mas de adoptar comportamentos que contribuíssem de modo decisivo para a libertação da alma e da (sua) fala. É essa talvez a diferença que distingue o surrealismo tal como o viveu um Mário Cesariny, e o surrealismo tal o encarou e praticou, de passagem, em curto período, um António Pedro. No primeiro o surrealismo não se distingue da individualidade, e está vivo no que esta manifesta, seja palavra, seja carta, seja gesto, seja traço, seja pacote, seja meia; no segundo é tópico estilístico, que só se mostra, e em trânsito, na literatura feita para os livros. À hora do 11
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jantar, ou do pacote, ou da meia, embrulha-se, esquece-se, põe-se à porta, onde se pendura o letreiro, destinado ao automatismo, é favor não incomodar. Os dois surrealismos — vital um, estético outro — não têm qualquer equivalência, até em termos de resultados. Aquele que entrega a vida por inteiro aos processos da libertação da alma, não se contentando de achados literários ou artísticos, está muito melhor posicionado para ser compensado com a percepção avançada do mundo do espírito, mesmo em termos de fala, do que aquele que à hora de deitar já nem recorda o poema da manhã que escreveu segundo os processos do automatismo surrealista. É por isso que a acção escrita de Cesariny, mesmo em sentido estritamente literário, é um continente formidável, uma selva obscura e virgem, ainda por desbravar e conhecer, que não encontra densidade igual em qualquer outro poeta do tempo. Deixa-se de lado neste juízo António Maria Lisboa, que é um Cesariny mais enxuto, menos perdulário, mais económico, que só para si pediu vinte e quatro anos e com eles por inteiro se contentou, e os poetas do anti-grupo surrealista, Carlos Eurico da Costa, revelado em 1952 com um livro magnífico, Fernando Alves dos Santos, Mário-Henrique Leiria, Pedro Oom ou Cruzeiro Seixas, todos eles partilhando com Cesariny a autoria de palavras ou de sinais que se diferenciam pela operatividade, quer dizer, pela acção criadora do espírito sobre a expressão, critério suficientemente fértil para avaliar com segurança a têmpera duma obra, surrealista ou não. Livros como Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor (1958) e Planisfério e Outros Poemas (1961) continuam ainda hoje a ser em termos verbais experiências sem prosseguimento e cuja essência se desconhece. Isto mais de meio século depois do seu surgimento. Onde os estudos sobre o lé12
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xico do primeiro? Onde a recomposição dos seus processos linguísticos? Onde o porquê dos neologismos? E onde os trabalhos sobre as fontes do segundo? Como se entende que Cesariny conhecesse, na década de cinquenta, se não antes, Arnaldo Vilanova? E por quê a pedra filosofal? Que significa o anti-mundo de Dante? Que importância têm Dante e Vilanova para o fascínio que lhe despertou uma figura como Isabel de Aragão? E que ligação entre Émile Henri, o da passagem do século XIX, e Sebastião de Portugal, outra figura que o fascinou? E por aí fora até à teoria dos espaços intersticiais na compreensão da experiência tessitura da Grafiaranha maior, Maria Helena Vieira da Silva, um dos mitos de 1958. Qualquer convite para entrar, nem que seja nas primeiras salas, no mundo destes dois livros, ou doutros como Titânia (1977) e Manual de Prestidigitação (1956), que interagem com os primeiros, é solicitação certa para visitar o que de mais ignorado existe na poesia portuguesa contemporânea. Chega dizer que a linguagem que aqui se encontra é a dum homem que se postou diante da poesia como as antigas pitonisas se posicionavam diante do futuro. O mesmo delírio, a mesma cegueira, o mesmo transe, a mesma verdade (e por esta não se entende a correlação entre a realidade e a prova mas a religação, até por via do que se chama mentira, entre o corpo e a alma). Um segmento é porém certo: ante uma experiência poética com uma tal carga de operatividade, em que o poema nasce duma operação do espírito, o único território que se manifesta é o da desocultação da força mágica do verbo primordial. Quando assim é, qualquer ocasião de contribuir para um melhor conhecimento do que esta actividade representa, para uma maior divulgação da sua mensagem, não deve ser desperdiçada. Não é apenas a literatura que está em causa, é a própria vida que se 13
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joga no lance que aqui se intromete. Um conjunto de cinquenta e três cartas inéditas do autor de Titânia, para mais inspiradas em tantos instantes pelo mesmo delírio que lhe criou os poemas, constitui ocasião privilegiada a agradecer para melhor seguir e entender as características invulgares desta acção escrita. Nos comentários às cartas, na interpretação de passos da obra, nas indagações biográficas, sobretudo relativas à gente que passa e atravessa a vida de Cesariny nestas missivas, na tábua final, que pretende ser uma síntese biográfica mais completa do que todas as que viram até hoje a luz, na bibliografia, que traz a público, com anotações e trechos antológicos, alguns textos do e sobre o surrealismo português que estavam enterrados nos jornais (sobretudo no Jornal de Letras e Artes) da década de sessenta e são hoje desconhecidos apesar do relevo de quase todos, e ainda na recolha de dois textos de Cesariny pouco mais do que inéditos, um deles capital, pode com certeza o leitor encontrar neste livro uma forma de amar — amar é conhecer, amar é alargar o que se ama — a estrada que ele começou. Daí o subtítulo que se usa na entrada deste livro e que diz respeito à intenção de aqui deixar um subsídio largo para o estudo — e estudo amador, não académico, não profissional, estudo apaixonado — sobre a obra de Cesariny no quadro do surrealismo em português. Momentos há em que estudar, quer dizer, aprender com paixão, se mostra a única forma de prosseguir, único desiderato que está à altura do que aqui nesta fala se joga. *** Mas estas cartas têm ainda um outro valor, que muito reforça a razão do seu interesse público. O seu destinatário é em última visão — daí o título que se escolheu para o livro — Pascoaes, casa e 14
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lugar donde Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos tirou nome de poeta, Teixeira de Pascoaes. O destinatário destas cartas, em sentido lato, é assim, ao contrário do que tantas vezes sucede quando se escreve uma carta, um destinatário colectivo, ou pelo menos um lugar conhecido e que para muitos se associa a uma personalidade pública, Teixeira de Pascoaes, com farto número de leitores espalhados no tempo. Estas cartas têm pois o interesse de dar a conhecer a relação de Mário Cesariny com uma parte substancial da realidade física e psíquica que se associa ao autor de Duplo Passeio, o lugar e a casa em que percorreu toda a sua longa vida de setenta e cinco anos e de que tirou nome e parte da identidade poética. Estas cartas podem assim ser encaradas como um contributo para um mais largo conhecimento da realidade, ou pelo menos de parcela íntima dela, que se associa a Teixeira de Pascoaes. Conheciam-se até aqui as afirmações, os trabalhos, as homenagens que Mário Cesariny dedicou a Teixeira de Pascoaes, remontando tudo a 1950, ano em que viu cara a cara o Poeta no cine-teatro de Amarante e em que pela primeira vez subiu à casa de Pascoaes, e acabando tudo na conversa que teve com Miguel Gonçalves Mendes, já nos anos do século XXI, 2001-2004, em que genealogiou: Pascoaes, é o meu maior; Pascoaes interessa-me muito mais que o Pessoa (Verso de Autografia, 2004). Acrescentam-se agora cinquenta e três cartas escritas para a casa de Pascoaes e em cujo vasto corpo se encontram declarações, anotações esparsas, lampejos luminosos relativos ao Poeta, alguns absolutamente inéditos, como aquele preito de fogo que se lê em carta de 1982 a João Vasconcelos, que permitem avaliar este epistolário como nova peça importante, se não essencial, pela cronologia que nela corre, da ligação entre Mário Cesariny e Teixeira de Pascoaes. 15
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Entrando em linha de conta que os grandes momentos da religação de Mário Cesariny a Teixeira de Pascoaes, todos eles públicos e conhecidos, só acontecem — edição de Aforismos (1972); prefácio da antologia Poesia de Teixeira de Pascoaes (1972); trabalho desta atravessando cerca de meia centena de livros; homenagens pictóricas de 1972 e 1979 — na década de setenta do século vinte, percebe-se então melhor como a correspondência que aqui se dá a conhecer, iniciada em Março de 1968, antes das concretizações da década seguinte, se mostra capital para o entendimento da aproximação decisiva dos dois poetas e da forma como tal aconteceu. Basta adiantar que a primeira vez que Cesariny assume publicamente a obra do Zaratustra do Marão — pasta publicada no Jornal de Letras e Artes em Junho de 1968 — o faz depois duma visita a casa de Pascoaes, como se pode adiante comprovar na segunda missiva deste volume. Mesmo em relação aos momentos maiores da década de setenta, já enumerados, conhecidos há muito, esta correspondência põe à disposição do leitor dados novos, inéditos, como sucede com a edição de Aforismos, sobre a qual se fica com ideia muito mais larga, completa mesmo, depois da leitura dalgumas destas cartas relativas a 1972. Lamenta-se só que, apesar dos esforços feitos por António Gonçalves junto do espólio de Mário Cesariny na Fundação Cupertino de Miranda, não tenha sido possível trazer à luz as respostas de João Vasconcelos a Mário Cesariny; tais cartas, se aparecessem, embora nada garanta que existam ou tenham existido, somariam valor no interesse público, relativo ao Poeta e seu lugar, ao epistolário que agora se dá a conhecer. O que estas cartas põem a nu, mau grado o monólogo, é a considerável largueza e dimensão, quando da casa de Pascoaes se fala da geração que nela viveu depois da morte do Poeta. Sabia-se 16
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da subida a Pascoaes, no tempo do autor de As Sombras, de tantos vultos notáveis, de Unamuno a Raul Brandão; desconhecia-se e desconhece-se é que essa mesma casa, na geração seguinte, a de João Vasconcelos e Maria Amélia, sobrinhos do Poeta e seus herdeiros, se tornara palco de outros tantos vultos, não menos gigantes, de Cesariny a D’Assumpção. As cartas que hoje se dão à estampa são apenas parcela miúda do vasto acervo que ficou desse convívio, onde se encontram inumeráveis e valiosos documentos (pictóricos, epistolográficos, poéticos, fotográficos), até no que ao poeta Pascoaes respeita, da autoria de D’Assumpção, de Cruzeiro Seixas, de Natália Correia, de Eugénio de Andrade, de João Pinto de Figueiredo e de alguns outros. Por se reconhecer o alto significado dos sucessos que ocorreram na casa de Pascoaes no tempo da geração que sucedeu ao Poeta, e cuja história só hoje começa a ser possível traçar, anexa-se no final deste trabalho conversa com Maria Amélia Vasconcelos, interveniente directa desses eventos e interlocutora de parte das cartas escritas por Mário Cesariny para a casa de Pascoaes. O testemunho, por se tratar dum dos últimos sobreviventes do período em causa, se não mesmo o derradeiro, é valioso, e a vários títulos: antes de mais, para se entender o caso de Mário Cesariny, de que este livro se ocupa; depois, para se perceber o que está em jogo duma forma geral quando se fala da geração que habitou a casa de Pascoaes depois da morte do Poeta, na segunda metade do século XX. E muito é, sobretudo no que diz respeito a D’Assumpção, a Cruzeiro Seixas, a Natália Correia, cujas relações com a casa de Pascoaes haverão de ter, tarde ou cedo, trabalhos como este que aqui se dá relativo a Mário Cesariny.
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*** Resta dizer uma palavra sobre os critérios usados na restituição pública deste epistolário, cujos espécimes originais, depositados na casa de Pascoaes, nunca foram reproduzidos até hoje na parte ou no todo, por meio tipográfico ou não; a partir deles se transcreveram e se fixaram as missivas aqui apresentadas, que esgotam, ao que se sabe, os documentos escritos existentes na casa de Pascoaes da autoria de Mário Cesariny. Procurou-se, já se disse, através de António Gonçalves, a quem se agradece, no espólio de Mário Cesariny depositado na Fundação Cupertino de Miranda, o acervo das respostas de João Vasconcelos ao seu interlocutor, mas não foi possível delas encontrar fio de rasto, ficando assim o epistolário reduzido às cartas do autor de Pena Capital. Optou-se — depois de muita hesitação e não sem mal-estar, conhecendo-se as escolhas que o poeta fez em tantos dos seus livros — por ortografia normalizada, mas acrescentou-se sempre em nota apensa a forma gráfica usada por Mário Cesariny. Em criador como ele a forma gráfica de palavra que salta a norma tem em geral motivo pessoal de acontecer, que se porá por poético, por inventivo, por engenhoso, mas não por erro. Mais individualidade tem assim a forma gráfica original, em alguns casos verdadeiros achados linguísticos, para os quais desde aqui se chama a atenção do leitor, do que as formas substitutas normalizadas, iguais em qualquer escrita. Esta mesma regra — apensar em nota numerada qualquer alteração feita ao texto original — se seguiu para questões de pontuação, raras todavia, e até para correcções feitas pelo autor no texto, cuja primeira versão, não intervencionada, é sempre restituída em anotação anexa. 18
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Com o fito de facilitar a leitura do conjunto, escolheu-se para abrir o comentário de cada missiva uma descritiva limitada ao espécime em causa, sempre com a designação de nota um: remetente, destinatário, data, selos, carimbos, outros sinais do sobrescrito, número de folhas no interior, forma como se apresentam sobrescrito e folhas (autógrafas ou dactiloscritas), outras particularidades. A sinalética usada na transcrição e na anotação é a seguinte: // — mudança de folha no documento original (para a transcrição das missivas); / — mudança de linha no documento original (na anotação relativa aos sobrescritos); [sic] — de acordo com o documento original. Um agradecimento final ao poeta António José Queirós, que me fez chegar elementos sobre Amarante que enriqueceram o comentário. António Cândido Franco
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CARTAS PARA A CASA DE PASCOAES
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Mário Cesariny e João Vasconcelos (Casa de Pascoaes, segunda metade da década de 60 do século XX)
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1. A JOÃO VASCONCELOS
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Cruzeiro Seixas, Maria Amélia Vasconcelos, Maria João, Álvaro, João, Mário Cesariny e João Vasconcelos (lugar de Pascoaes, segunda metade da década de 60 do século XX)
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Carta i1 Lx. 13-3-68 Meu Caro João2 Obrigado, mesmo, pelo chamamento! O António3 transmitiu-me a «ordem de marcha», mas não pude sintonizar4 com ele nenhum pormenor — algo entaramelado, ao telefone, e eu sem saber dizer-lhe o que aqui digo ao João: primo, uma gripinha, ponhamos, dois dias; secondo, impossibilidade de abalar antes do fim desta semana, por um ou dois compromissos difíceis de anular. O António e o seu magnífico convite de levar-me com ele no tracção às quatro rodas tiveram assim de regressar sozinhos ao Porto. Eu magico apresentar-me — mas onde? — no domingo, ou segunda. Não tenho o vosso telefone de Pas//coaes5. Aqui vai o meu: 770433, hora boa, 2 da tarde, se houver necessidade de qualquer comunicação. Gostava realmente de estar consigo, ver a sua exposição, rever as gentes de Pascoaes6. Os Pinto Figueiredo [sic]7 foram Suiçar — senão decerto era de cumprir-se o projecto de abalar tudo até aí uns dias. Talvez após o regresso, que estará para dias, creio, queiram passar e buscar-me. Não sei. Bonito era o João escrever-me um postal com o telefone da vossa casa. Concretizávamos melhor. (Quantos dias me dão vocês 25
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em Pascoaes? Assim os dias, assim a bagagem — o trabalho que anda comigo.) Um grande abraço seu para o Mário Cesariny P. S.: Enviei-lhe um telegrama para a D. Alvarez8. Terá chegado. • Carta ii1 Lx. 24-4-682 Meu Caro João Espero que já tenha recebido o Jornal de Letras e Artes3 deste mês — dei indicação para lho enviarem. Sobretudo, espero que não desgoste muito do que foi, ou me foi, possível fazer, com os elementos que trouxe para baixo4. O anjo-diabo5, creio que ficou bem, voando em página branca. A paginação dos restantes elementos6, saiu atabalhoada, para não fugir à norma geral do jornal. Mas enfim, espero que o Poeta tenha tido, ao menos, um sorriso de agrado, à janela do seu palácio raso, em S. João de Gatão7. E venho agradecer-lhe, a si e à Maria Amélia, e à Maria Amélia e a si, a maneira como receberam em vossa casa, em oito dias juntos, esta espécie já um pouco rugosa de adolescente de 45 anos — refiro-me à pouca validade social, material e moral da adolescência — e a sua forma8 inábil9 (45// anos e um pavor) de se repousar. 26
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Novos temas: dada a persistente exiguidade, enchi-me de vergonha e sugeri ao António10 que desse entrada a outro quadro meu. Foi bastante horrível, da minha parte, (ou não foi?); da parte do António, veio pronta resposta admirável. Isto tem um pouco a ver consigo, porque falei nos dois quadros que tem à sua guarda, em Pascoaes11, que o António vai querer ver, para escolher um. Está certo? E o Jaime Isidoro12, já enlouqueceu definitivamente? O Dr. Pinto de Figueiredo entregou a advogado e a demanda13 vai para diante, — Você sempre vem ao Nureiev14? Um grande abraço vosso para o Mário Cesariny. • Carta iii1 [folha volante que de seguida se transcreve] O Pacheco cretino quer que eu seja o Papa dele e está com muitas saudades do tempo em que ele julgava que eu era isso. E soluça o coitado despapado que além do mais não só mas que por vezes e então não querem lá ver isto não fica assim. E escreve artigos com o meu retrato em baixo e o retrato dele, muito digno, por cima2. E diz para o juiz, num grande élan gestual, que já não é só dele que eu não quero ser Papa. É do próprio surreal, no peito de Luiz escrito e escarrado. Depois arrota e diz que também não quero ser de alguns outros meninos-pequeninos, filhos do casal que não houve. E isto assim porquê? 27
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Por causa dos tomates. Para Papa (do género que Pacheco se propõe assumir já houve um igualzinho, dizem, no Vaticano), para Papa, é preciso tomate, do bom, do muito rugoso, e eu pobre de mim, o mais que tenho são umas3 avelãzitas. Antigamente sim, há vinte anos, carambas, diz a Luisona4. E vá de demonstrar as minhas transformações num jornal de gralhas que há no Porto5. Que fera! Assisto à demonstração: afinal é por causa de um papel que eu não quis assinar e onde os tais meninos chumaceiros fingiam de defender o senhor de Sade6. Coisa escrita em francês e inglês, com muita abundância de rolha: cinco linhas e um sétimo em português, tudo o mais em linguagem de aves. É. Falhei em tudo, como o A. de Campos. Mas tenho a dizer-vos o seguinte: quando esse papelucho inofensivo, fabricado e lançado com a maior cautela não fosse o diabo espalhar — alguns entusiastas que se propuseram assinar também, como Luís Pignatelli7, foram logo corridos pelo Virgílio8 sob a alegação de que aquilo «era só para surrealistas» (só para homens), percebes? — quando saiu aquela tomatada toda, eu e as minhas tristes avelãs, na presença pesante dos varões que a tinham fecundado, pedi um exemplar e escrevi a tinta azul, de// baixo para cima, sobre o texto impresso: este papel é uma merda. Fi-lo humildemente é certo, com as pobres avelãs arrepanhadas, mas fi-lo e tive até a tremura de mostrar o papel assim categorizado à nobre assembleia que riu, sorriu e ficou quietinha9. Ora, senhor professor, dizer que um papel é uma merda não será emitir um juízo de valor sobre aqueles que o fizeram? Eu parece-me que sim. E aqui tocamos uma escala interessante: onde Luizinho e outras barafustonas que dizem que protestam contra várias infelizes condições do meio, mas são, há muitos anos, os mais prolixos 28
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aproveitadores do que nesse meio é fedorento, e mais de não praticar10, onde estes acham uma causa a defender, por isso lhe acrescentando o adjecto [sic] «nobre», não vê muita outra gente senão um pouco de merda. E aqui é que viria a propósito citar palavras de cidadania. É realmente como cidadão que achei uma conversa de pássaro bisnau aquele papelinho e o seu propósito de dignidade, como acho uma borrada das maiores a operação portuguesa que lhe deu origem, a autêntica associação de malfeitores que promoveu a primeira e já agora única edição mundial idiota de «La Philosophie dans le boudoir», de Sade, filha maneta dum comerciante excitado11, de um prefaciador em apuros12, de um tradutor merdoso13 que despacha para o preto que eu não sei quem é14 e de um ilustrador a milhas de distância15. O facto de uma obra assim concebida ter caído sob a alçada da justiça não exerce para mim nenhum fascínio. Fascínios, guardo-os para outros juízos a que em silêncio e degredo assisto há muito. E acho, desde o início, que existe um tribunal de consciência onde editores, tradutores e prefaciadores deste género terão um dia de comparecer.// Toda a restante trampa que Pacheco expele no ataque ao meu livro «A Intervenção Surrealista»16, é subsidiária deste e doutros já antigos golpes de machismo, de marialvismo intelectual cavalarmente enganchado por detrás num sistema de quetes [sic] para o bebedolas. Está ferida a criancinha porque não foi tratada com indulgências plenárias a soma de rancores, traições e intrigalhadas com que há quinze anos em cima duma mula persegue os surrealistas17. Se me quadrasse o tal papel de Papa, ou só mesmo de Pároco, talvez pudesse sim absolver o pulha, anda cá meu menino, talvez ainda funciones. Tal como fiz e18 sou posso asseverar, tenho matéria para isso, que o «tratamento» aplicado, longe de ser de choque, foi dos mais ligeiros, quase sem comentário, constatada a 29
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miséria física e moral em que se extingue, não direi a luz da razão, mas a razão humana desta restolhada. MÁRIO CESARINY MAIO-196819 • Carta iv1 Meu Caro João2 Gostei de ter notícias suas. E obrigado pela camaradagem. Mas há algo que não vai completo, nesta minha venda de um quadro ao António3. Suponho que, em qualquer caso, o João Pascoaes recebeu carta minha, de seguida ao aparecimento do número do Letras e Artes4 que inseriu os originais do Poeta5, que me entregou para publicação. Quanto ao Pinheiro Guimarães, depois do envio de alguma massa, telefonou-me a dizer que ainda não tinha o quadro, não o vira ainda. Ora o dito é um dos dois que ficaram na sua Casa de Pascoaes, de onde que a arrumação do tema depende de ida do Pinheiro Guimarães aí, ou// de, bondade extrema e última do senhor de Pascoaes, que alguém lho leve, para escolha, ao Porto. O João atravessaria incólume este cúmulo, numa próxima passagem pela invicta cidade? O facto é que continuo arruinado e convinha enormemente um resto de entrada. Você nada me diz da sua saúde. Como vai ela? E a tribo6? O D’Assumpção7, depois de ter acedido a responder ao Inquérito do L.A.8) — mas enviou uma resposta violenta, o que é bem bom, 30
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impublicável9, o que é péssimo — tem dado bilhetes-postais-sinal de vida. Quanto aos nossos amigos Pinto de Figueiredo, estiveram agora no Algarve a recompor-se10 de uma doença chata e prolongada, da Jeanne, a que só a vinda da Margot Fonteyn e do Nureiev11 pôs termo. De mim não lhe falo: a sensação é de esvazio. Diga se tem trabalhado. Um abraço seu, e de todos vós para o Mário Cesariny — Seixas12 desaparecido num emprego tenebroso13 que lhe tira tudo e paga para baixo de pouco. Assim vai o mundo. • Carta v1 João2 Este é só uma saudação e um abraço pelo difícil transporte. Quer ficar com o outro quadro3? Quer dá-lo ao Museu de Amarante? Disponha dele e do seu Mário Cesariny •
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Carta vi1 Meu Caro João2: Só a esclarecer um equívoco que, ao que parece, causei: não lhe propus3 a compra do quadro-carmim4; ofereci-lho, ofereço-lho, se gosta dele. Se não gosta o bastante para querê-lo em casa, oferece-se ao Museu de Amarante. Era isto que lhe dizia. Não é um guacho. É uma mistura que me caiu5 nos braços: china, água das chuvas, óleo6 muito diluído7, um pó carmim, que eu já não sei o que era, arte do diabo em pós. E ainda o mais que seria! Seu Mário Cesariny Cumprimentos à senhora sua dona. Abraços aos miúdos. • Carta vii1 Lx. Agosto 62 Meu Caro João Se não estais já todos gozando as salsas ondas… … Eu pedia-lhe um bravo favor. É o caso que estamos a pensar para o próximo Letras e Artes3 uma série de páginas dedicadas à pintura que escreve e à escritura que pinta. Tal exposição deve abarcar, se for feita, feita a sério, desde os remotos chinas e egípcios até à nossa actualidade. No que se puder. 32
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Lembrei-me, em matéria lusa, dos, ou do, não lembro se há singular ou plural, quadro(s) do Raul Brandão que estão em sua casa4. Seria possível obter uma, duas fotos capazes e enviá-las o mais celeremente possível para mim? Sei muito bem // que o João não é fotógrafo, meu nem do Raul Brandão, mas não vejo outra maneira real de fazer. Claro que se faria se o João concedesse a devida autorização para reproduzir. Diz o cranho5 cantante que houvesse talvez ainda, do R. Brandão, nas caixas da correspondência, alguma carta dirigida ao senhor seu tio, onde de pintura se falasse, ou da vontade de pintar. Haveria6? Isto são favores grandes, que só a si, aguente, me atreveria a sugerir. Suspeito, no entanto, que contra o belo projecto se levantaram as ondas do mar7… Em qualquer caso, um grande abraço para si e para a Maria Amélia, do vosso Mário Cesariny • Carta viii1 Um grande abraço para todos vós do Mário Cesariny Londres, Dezembro 682 33
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• Carta ix1 Não parece Amarante? Grande Abraço escocês do vosso Mário • Carta x1 Abril, 32 Meu Bom Amigo João A Isabel Meirelles3, que tinha ficado de passar aí para trazer o quadro, foi atacada de febres Hong-Kongas em plena viagem e chegou ao Porto com 38 e muitos. Assim, só pôde abalar, ontem, em linha recta Lisboa-Porto, sem cruzar Pascoaes4. Eu ainda não me sinto suficientemente afinado para escalar a montanha onde vive o vosso abraço, e aqui estou a perguntar-lhe se não seria possível5 mandar-me o quadro pelo correio normal, devidamente acondicionado. Gostaria de evitar-lhe esta maçada, mas já não vejo como. Enviar-mo-ia directamente para a Galeria? A dita cuja é: Galeria São Mamede6, Rua da Escola Politécnica, 163, Lisboa-2.
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Um abraço meu e da Maria Amélia para o, muito grato [Mário Cesariny]7 • Carta xi1 Lx. 5 de Agosto2 Meu Caro João Pois aí vai tudo de abalada, sábado e domingo, cumprindo-se a divina promessa de voltar. Ontem à noite, quarta-feira, falei para os vossos amigos da boite e eles marcaram um apartamento para a Jeanne e para o João Pinto de Figueiredo3, que ficaram francamente agradados com a ideia de ver-vos e praiar por aí o fim de semana. Outra coisa: eu penso levar um amigo na caravana. Ainda o podereis abrigar? Além do Cruzeiro Seixas, claro? E agora há uma coisa que eu nem sei como dizer, que decerto pertence às coisas que não se dizem, que danam a vida às pessoas, se se não diz, mas que, dizendo-se, falam temas delicados, a roçar pela intimidade mais íntima. Complicação!// Digo, não digo, tenho de dizer! E tenho de não dizer! Que coisa. Talvez metendo por um breve intróito, muito de pedir segredo. Começo: sabereis que nos magníficos dias que passei em Pascoaes4, convosco e com o Cruzeiro Seixas, passei as noites sem poder dormir? O Artur Manuel é dotado de uma aparelhagem sinfónica, vulgo o ressonar, que deveria poder ombrear sem medo, 35
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e até ganhar o concurso, com as trombetas do dia do juízo5, e a mim o mais ligeiro zéfiro me impede de dormir. Vêem6 a situação? No último sábado, em vossa casa, repetiu-se o desespero. Contei não sei quantos carneiros, alguns milhares seriam, mas os bichos, em vez de ajudar, pareciam ter aderido ao concerto7, e, quanto mais carneiro no quarto, mais juízo no final! Está dito! (E, eu, pálido, de tanta indiscrição!) (Mas, não teria de ser?) Assim, o que se requeria era isolar-nos, sem que o Artur Manuel desse muito pelo pálido da operação.// Esta será talvez facilitada pelo facto de ir outra pessoa amiga, e amigo meu, que fique no meu quarto enquanto o Artur Manuel ocupará outro sítio. Que haja. Em vossa casa, digo. Se não há, tem de estudar-se tudo outra vez do princípio. E conte com a sua tela de 70 cm de largo. Já está em armazém. Esperamos sair de Lisboa ao fim da manhã de sábado, decerto para almoçar pelo caminho. E desculpe esta carta descosida. Outra, seria melhor. Muito melhor. Um grande abraço meu, e para a Maria Amélia, do Mário Cesariny •
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Carta xii1 Caro João2 Primeiro, um grande abraço, depois, o grande abraço. Também para lhe dizer, vos dizer, que no próximo sábado, às 8 e 25, apareço na televisão falando ou mostrando poesia e pintura3. Como é momento inédito, não deve repetir-se nos próximos séculos, gostava que visse. A minha ideia era aparecer com a máscara de Ceilão que está no verso deste postal4. Estaria mais certo comigo e com todos. Mas o Museu Britânico não empresta e a T.V. não pode. Pena, não é? Quando nos veremos de novo? — Tem trabalhado? Seu, Mário Cesariny • Carta xiii1 Lx. 6 de Junho2 Meu muito caro João Nem calcula como lhe agradeço a sua lembrança, primeiro por ser lembrança, segundo por se tratar dos dois deliciosos bolinhos de S. Gonçalo3, recebidos hoje. Mereço-os, pois, como deve saber, não passo dum penado pela lei por ter tido a veleidade de usá-los, não direi já na forma do costume, correspondente aos originais modelos, ou em chupas-chupas para as bocas e regalo dos palatos, mas na 37
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mais impessoal, abstracta, das formas, a forma escrita4. Pública. Não teve importância, não é?, foi só uma pena de dois meses de cadeia, remível a dinheiro, com certeza5, mas ainda agora não sinto a certeza que tal arroto de papão tenha caído6 bem na ingenuidade santa e minha de ter escrito e mandado publicar coisa essa. Influenciado, talvez, por alguém que me disse, era na prima juventude, que todas as palavras em português é isso que aspiram a dizer. (Caralho). Deve de ser verdade, vista a ausência de verdadeira filosofia, de verdadeira ciência, de verdadeira metodologia intelectual e química que assiste ao português desde os 2 anos da nacionalidade. Não penso que por isso estejamos a perder ou em desvantagem com as Franças, as Espanhas, as Inglaterras alemãs e mesmo as Holandas. Até talvez seja ganho, sejamos precursores de um futuro paradiso7 terráqueo8. (Duvido). Mas aquilo que é, deve ter o seu nome, não me dá razão? Que pensar de pessoas que neguem o nome que têm, ou o único que têm? Depois, há a fonética. Sabe de palavra (em qualquer língua) de estrutura sonora mai// mais límpida9 e impositiva? Não sabe. Nem eu, porque a não há. E não se pode dizer! (Escrever). Só se pode fazer. Ainda vamos nas Tentações de Antão!! Assim peço e requeiro ao meu amigo João que não fique por este ano unicamente a formosa lembrança que teve. Que haja por bem repeti-la, todos os anos, pelo Gonçalinho. Mais, ainda mais! Que deixe à sua descendência igual encargo, mesmo, ou sobretudo, depois da minha morte. Dirigido, então, à Sociedade de Escritores, ou de Geografia que nessa altura, esperemos, já deve haver. Ou para os Centros de Buscas Atómicas Portuguesas. Mas sempre, sempre, em meu nome, ou para o nome do meu mais próximo parente vivo10. Vale? Seu muito grato Mário Cesariny 38
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• Carta xiv1 1 Janeiro 71 Meu Caro João Muito obrigado pela sua carta. Claro que quero estar consigo na sua exposição2. Sei que os Pinto de Figueiredo também vão. Eu sigo na caravana da Natália3, que está combinada chegar ao Porto um dia antes da vernissage. Dia oito, portanto. Não poderei voltar do Norte depois do dia 10 — requerido não só pelas coisas da minha mostra4, que nasce a 12, como por umas coisas que parece// haverá na televisão. Pago muito ao meu deus desconhecido que seja pelo melhor… Se o João puder e quiser vir para baixo connosco5 seria perfeito. Poderá? Quererá? Seria bonito vir. Seu, Mário Vasconcelos Diga ao António6, sim, que espero agradecer-lhe de viva voz o poema que acaba de enviar-me7. E combinar com ele algunas cosas importantes y hablar. Como estão essas estradas? É possível andar? Meus cumprimentos à Maria Amélia, e votos de um grande ano 71 para todos vós. Mário 39
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• Carta xv1 Caro João2 Diz que afinal é sábado, 13, por causa dos astronautas; e da Lua. Dou últimos preparos no livro de «cartas»3! Quando acha que é de irromper por aí? Abraços, Mário • Carta xvi1 Meu Caro João2 Desejo muito que as suas melhoras se tenham acentuado e esteja definitivamente livre do maligno. Também quero dizer-lhe que meti enfim mãos na obra que já estava a ficar velha, de arrastada: o meu projecto, que o João aprovou, de publicar uma pequena colheita de Aforismos do Poeta e senhor seu tio3. Pequena: explico-me: não posso ou não quero e não sei, ou não estou, numa recolha exaustiva4. Para isso, parece-me, há a própria obra do Poeta5. Será antes, ao mesmo tempo que uma singela homenagem, uma revelação, até certo ponto revelação, como podem surgir-nos penedos preciosos desengastados da montanha6. 40
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Por feliz sucesso, o dr. João Pinto de Figueiredo tem e emprestou-me Os Poetas Lusíadas7 e estou em apostar que mais livros saltarão do lume. Até aqui, e além de Os Poetas Lusíadas, vi o S. Jerónimo, o S. Paulo, a conferência sobre António Carneiro, três livros seus, aliás8. A tempo serão devolvidos. A minha ideia é fazer uma publicação como a que Cruzeiro Seixas e eu há pouco editámos9 (de reimpressão de manifestos surrealistas)10. Tem este livro, não é verdade? Quando vem até Lisboa? Abraços para todos do seu Mário Cesariny Lx. Março • Carta xvii1 Caro João2 Só um bilhete: a dizer que fico radiante de saber que a saúde3 já lhe vai bem. E a pedir (por desgraça ou graça a única publicação que de seu tio tive dada, autografada e dedicada: Ao meu caro confrade… Perdia-a, perderam-ma, nas andanças do 60 por cento a menos de tudo): é a conferência sobre Guerra Junqueiro que ele fez aí no Cine-Teatro de Amarante4. 41
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Vou parar a recolha5. Vi O Bailado, o Verbo Escuro, Os Poetas Lusíadas, a conferência sobre o António Carneiro, // o S. Paulo, o S. Jerónimo e a Trovoada, o Homem Universal 6. Chega! Mas não quero fechar sem ver ainda o Guerra Junqueiro7. Como faríamos? A homenagem há-de acrescentar-se com um desenho meu e outro do Cruzeiro Seixas — os editores… Além de um seu, evidentemente8. Este «evidentemente» sai9 para que nem por momentos fabrique lógicas de não fazer. Não há nada mais feio do que não fazer, seja lá o que for10. Num mundo assim!! 33 + 18 é o formato da publicação. Seu Cesariny P.S. — Voltarei a escrever. E você? • Carta xviii1 Meu Caro João2 Envio-lhe as primeiras impressões3. Espero que o dr. Joaquim, na sua horizontal do cemitério de Gatão, já tenha começado a gostar4. Como lerá, na prova da banda da capa, requer-se a assinatura do João em três exemplares. E mais ainda a sua viva pessoa, no Surgimento do livro5. Assim, não vai6 para o Alentejo ou Algeiria7 sem deixar avisado. Sim? Seu Cesariny 42
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• Carta xix1 Caro João2 Falei hoje com Professor Jorge3 e segurei o atelier4. Ele faria um desconto de duzentos escudos mensais, mas para deixar o edifício tal qual estava: instalações sanitárias um tudo-nada árabes, como viu. Preferi, e espero que me deite razão, deixar a renda tal a propunha ele, em troca de benefícios nas ditas acima: aposição de um banheiro e de uma sanita5 estilo europa [sic] livre. Aproveita-se ainda para um lavatório mais desafogado. Se depois pusermos um esquentador e um piano — é já ao nível de palácio.// Diga em todo o caso se lhe parece bem assim, pois já dei o seu nome e prometi fiador. Penso que devíamos passar a pagar já este mês e receber a chave, pois o atelier tem sido copiosamente disputado — por grupos yé-yés. Espero que tenham encontrado um tempo bom para vocês. Aqui em Lisboa, hoje, chove e troveja que nem pelas profundas. Eu prefiro. Na cidade, é bem melhor assim. Um abraço seu, da Maria// Amélia, e dos miúdos6, para o vosso Cesariny7 •
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Carta xx1 Lx. 182 Meu Caro João A tipografia diz que entrega o livro3 esta semana e o lançamento está marcado para próxima terça-feira, 25, às 18.30, na Galeria4. É claro que você, vocês, não podem faltar. Quanto ao atelier, as melhorações vão em pleno curso, e seria bom que o João pudesse dar cá um salto, porque o homem quer escritura — o que já sucedeu com a minha oficina5 e é norma da casa — e fiador — idem —. Se6 eu soubesse o seu telefone aí, comunicava; assim, resta-me indicar-lhe o// 770433, meu, para podermos combinar, marcar, qualquer coisa. Ainda não se pagou renda alguma — obrigado pelo seu cuidado — mas, não crendo que escapemos dela, este mês, está, parece-me, o tugúrio assegurado, visto que… Mas em breve falaremos. Dê, pois, notícia; telefónica, ou escrita; ou pintada. Grande abraço Mário Cumprimentos a todos. •
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Carta xxi1 Meu Caro João2 Continuação de férias excelentes, para si e para todos os seus, são os votos deste lisboeta impenitente, meio surdo de calor. Como tenciono sair para Inglaterra ou Holanda3, venho dizer-lhe que deixo as suas chaves do atelier na Rua4 dos Cavaleiros, ao cuidado do gentil senhorio snr. GustavoYerjl5, isto para o caso do João entretanto passar em Lisboa e eu não estar. Um grande abraço Mário • Carta xxii1 [dactiloscrito policopiado de 30 Abril de 1974] Saudando2 e comemorando a extinção do famigerado Regime Fascista; saudando e comemorando a concreta abolição da Censura, iniciada pelo vitorioso Movimento das Forças Armadas do povo Português e decretada pela Junta de Salvação Nacional, a Galeria S. Mamede, Mário Cesariny, Lima de Freitas, Cruzeiro Seixas, Urbano Tavares Rodrigues, estes pela comissão promotora em organização3, convidam os artistas plásticos para uma Exposição, a realizar no mais curto espaço de tempo naquela Galeria e determinada às características seguintes: Mostra de obras de exposição difícil ou problemática durante a vigência do regime destituído 4 em 25 de Abril. 45
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Dentro deste critério, a Exposição procurará abrigar sobretudo obras feitas anteriormente ao 25 de Abril de 1974, buscando-se nisso libertar do particularismo, trazendo à luz da liberdade pública: 1.5 Desenhos ou pinturas ou quaisquer outras formas plásticas que jazam nos ateliers, acauteladas das forças de repressão agora extintas; desenhos ou pinturas ou quaisquer outras formas plásticas que hajam sofrido a perseguição do regime fascista (casos João Abel Manta ou, mais longínquos mas não menos vivos, os da Exposição Geral de Artes plásticas, de 19486, na Sociedade Nacional de Belas Artes, quando e onde os pintores surrealistas se negaram a acatar uma censura prévia instituída pela polícia fascista capitaneada7 por um «crítico de arte», tendo, esses surrealistas, retirado da Exposição; quando e onde muitos outros artistas viram mutilada a sua participação e retirada por aquela polícia a obra ou obras enviadas). (Lembramos igualmente as obras oferecidas há dois anos por artistas plásticos para uma Exposição em favor dos prisioneiros da PIDE, exposição que não pôde efectuar-se, tendo as obras sido vendidas particularmente). // 2. Embora sobretudo regida por este critério, a Exposição abrigará também, com o maior regozijo, obras feitas durante ou após o 25 de Abril, desde que não reflictam qualquer espírito de «encomenda», sendo obra acontecida em natural resposta emocional ao acontecimento histórico que vivemos. 3. A Exposição, que é sem júri8, não se deterá nem acolherá especialmente os e nos «nomes feitos», podendo os artistas mais jovens e, entre esses, mesmo aqueles cuja vocação não foi ainda experimentada em mostras públicas, participar no certame. 4. Sendo uma exposição sem júri a que se pretende promover, a sua única limitação será a do espaço permitido pelas dimensões da Galeria e a da observação do critério que a informa. 46
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5. Os artistas participantes deverão entregar na Galeria S. Mamede, Rua da Escola Politécnica, n.º 165, em Lisboa, as respectivas obras, até 30 de Maio próximo9. Lisboa 30 de Abril de 1974 Mande algo! Mário • Carta xxiii1 Meu Caro João Junho 772 Alguém me disse por cá que o João voltou a ter desgraças com a figadeira3. É verdade? Gostava deveras que não passasse de boato, mau boato, e que tudo apesar de tudo lhe corra como deve correr nesta terra de lapas e piteiras. Quero dizer-lhe uma coisa: há semanas fui procurado pelo cineasta António Lopes Ribeiro4 (!), o do «Camões» e de outras pulhíssimas chatices a fingir cinema, nacional ou da Patagónia Sul com incidências para os Pólos5. Não-Magnéticos. Parece que se trata de fazer um filme — documentário? — fantasia? — demi-demi? —// sobre o Poeta seu tio, ideia que vejo maravilhosa, absoluta!, onde eu, parece, forneceria o texto? a ideia de? não ficou esclarecido6. 47
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De certo, que o meu nome foi indicado ao dito cineasta pela nossa amiga Natália7. Disso em diante8, passo a não saber, de seguro, nada, a não ser que há ou haverá um concurso, presente à Secretaria de Estado da Cultura9, para a efectivação desse filme (e doutro sobre o Alexandre Herculano), e que o dito António Lopes Ribeiro telefonou para a minha casa, várias vezes, a hora a que eu não estava. Ora agora: o que eu queria dizer-lhe a si, e à Maria Amélia, e a quem mais for10 preciso é que:// se encaro com a maior alegria participar na feitura dum filme sobre (ou sob…) o nosso grande Pascoaes, o caso é que ver um António Lopes Ribeiro a encabeçar tal tarefa dá-me uma grande dor11 do lado esquerdo do peito, e não garanto que essa dor não evolua para paralisia geral do que eu pudesse fazer. Por outro lado, e sempre o mesmo lado, parece que os rapazes dos Centros e dos Institutos de Cinema que há agora não estão interessados no Concurso. Imagine! Uma rapaziada que anda há anos a gastar milhares e milhares de contos a realizar borradas celulósicas12 a que chamam de cinema português13! Assim, temos (como quase sempre): de um lado, os progressistas parvos14. Do outro, o espertalhão. // Na desgraça, estou de lado. Acho que não vou querer colaborar com o Ribeiro, mesmo ao preço de poder fazer-se uma fita sobre o Pascoaes. Compreende e aceita isto, não é verdade? Arranjem outro! (Ribeiro). E outro (Cesariny). Os dois, não dá; era indecente que desse! Com desgosto, sincero desgosto, resolvo e lho digo, a si, João15. Do16 In Memoriam Pascoaes sou colaborador17. Apaixonado. E atrevo-me a esperar que não me esqueçam, de todo, quando se realizarem18 as comemorações pascoaeseanas, aí em Amarante. 48
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Ver-nos-emos19?! Um grande grande abraço seu e da Maria Amélia para o Mário Cesariny • Carta xxiv1 Meu Caro João Lx. Setembro 78 Acabo de ver2 o filme que o Dórdio Guimarães3 fez sobre o Pascoaes. Sinto que estamos todos de parabéns4, porque é um filme de muito nível, em relação ao que a prata da casa tem feito por aí. Para o «meu Pascoaes», porém, o filme5 tem um defeito, ou melhor, dois, já digo: primeiro, não deveria ter sido feito a cores. (De um modo geral, o cinema a cores6 não consegue ser7 pintura e dá cabo do cinema, um; «a cor» do Pascoaes é a dos extremos do espectro8: a luz — o branco alvinitente —; e o preto, o negro — a treva. E nenhum intermediário entre estes — o intermediário da cor; se se soubesse ou pudesse ou quisesse9 fazer isto, o mesmo filme, o que o Dórdio10 fez, seria o mesmo e inteiramente outro, para o muito melhor, creio). Para o apontar do segundo defeito, você e vocês haverão de desculpar-me a rudeza: aquela apoteose11 francamente bonita à inglesa por quem Pascoaes se apaixonou12, haveria de ser mais modesta e menos apoteose. A meu ver, Pascoaes apaixo// nou-se pela dita senhora inglesa como se apaixonou pelas nuvens, pelas árvores 49
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— menos, talvez, do que pelos deuses e demónios —, pelas pedras, pela noite. Muito mais por isto do que por Eleonore. E se Eleanora — a do Edgar Poe13 — podia e talvez devia aparecer — mas não mais que uma pedra, um roble, uma estrela — seria em figura de maga, de bruxa14, de lenha incendiada15. Assim, fica uma espécie de tentativa de «reabilitar» o Pascoaes ante certo «mal estar» e certas reticências… As senhoras gostam, a família também (já lhe pedi espaço para a minha rudeza…) e tudo acaba em bem nas cabeças em perigo de resvalo por abismos do irrecuperavelório16. Do Fernando Pessoa, conhece-se o comportamento sexual: teve ele o cuidado de pôr isso em escrito. Pôs17 que, se tivesse algum, seria homossexual18. Do Pascoaes, nada se pode escrever, ou filmar, mas, pensando por cálculo de probabilidades, e segundo ouvi dizer — não sei se alguma vez lho disseram a si — há bastas mais hipóteses// de histórias com um antigo caseiro19. Invenções, como temos de dizer agora, porque a noite, nisso também é generosa, e a morte dos poetas, não o é menos, nisso também. Quanto à chamada à mãe (no final do filme) isso sim está certo: a parca que nos pare e nos deixa sós, queixa-se o poeta. Tive o privilégio20 de conhecê-la, quando estive em Pascoaes (em 1950?) (não posso confirmar agora)21 e a imagem do filme, embora com muito longe, resulta certa. A Mãe o Amor, o Filho a Morte — os Grandes Esponsais do Minuto Terráqueo22. E já agora conto-lhe esta história, que me foi revelada por um amigo meu23 que teve como professora uma senhora que conheceu bem a senhora inglesa e que lhe contou isto: aquela inglesa (como todas as inglesas; e ingleses, também24) teve durante muitos anos incómodas dores nos ossos e nervos conjuntivos. Pois bem: quando teve a notícia da morte do Poeta, o abalo foi tal que deu 50
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em cura: passaram-lhe as dores, foram-se, para sem// pre! Deixou de sofrer das mesmas25. Não é curioso isto? Em todo o caso, bem mais próximo dum poder Terrível, Tentacular, — o Poeta! — Pascoaes! — do que o lindo exterior daquela barca de Primavera no rio, entre verdes e rosas. Acabo. O Cruzeiro Seixas publicou há pouco uma prosa grosseiríssitentando indispor27 todo o mundo contra mim — inclusive vocês. Coisa muito rasca, género porteira de prédio demolido há muito e que vem cantar28 a «história» ao passeante desprevenido (e provavelmente à procura de quarto para alugar); não lhe dei resposta. Tudo muito sujo. Fique onde está. ma26
Abraça-o o seu Cesariny • Carta xxv1 Oito Outubro 70 e 8 Meu Caro João: Devo esclarecer-lhe o equívoco meu, de, na carta que lhe escrevi recentemente, misturar a célebre inglesa2 com um caso de estado de choque (levando a uma cura), provocado pela notícia da morte de Teixeira de Pascoaes, nas pernas duma senhora. Efectivamente, não se trata da célebre inglesa, mas sim da tradutora francesa do Regresso ao Paraíso (Suzanne Jeusse, creio)3. 51
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Com esta e não outra se passou o que lhe contei: — após o choque emocional, que parece ter sido tremendo, para ela, da notícia do falecimento do Poeta seu tio, a senhora passou a andar bem, livre de dores4, digamos ósseas, incómodas que a afligiram durante bastos anos. // Falando recentemente com o meu amigo Francisco Baptista Russo5, que foi aluno de francês da S. Jeusse, dissipei a desmemória com que lembrava; pelo que corrijo: pois foi a dita Susana6, professora de francês do dito amigo meu, Baptista, Francisco, quem a este contou a curiosa ocorrência. Quanto ao demais, igual. Só uma alínea outra: se você, João, como sorte de resposta à drogaria colórica em que o cinema feito sobre o seu tio (e o cinema, duma maneira geral, caiu)7, não me começa, ou recomeça, a pintar ao entre o preto e o branco, despedindo todos os intermédios graus da escala, faço-o eu. Já que, há mais ou menos seis8 anos, dando-me o desgosto da cor9, fiz uma série noir-blanc. Pareceu-me // e parece-me ainda, que o trabalho mais desvelado do pintor é fazer com que as cores10 não pareçam o que realmente são (tintas, drogaria). Todo o quadro que não pareça uma drogaria é já, só por isso, uma obra-prima. O snr. Pereira Coutinho11 não gostou dessa minha série (tinta-da-china negra sobre a alvura do cartão cetinado e algumas gradações, decerto, mas imberbes). Deve ter pensado que menos vendável, menos drogaria. Estou disposto a continuar, essa série12, agora a acrílico13. (Continuo a não querer o óleo, matéria sobremodo pró-capitalista — de tempo e de dinheiro, duas categorias da morte)14. (Um quadro eterno! Diga-me se haverá propósito mais fútil — e mais horrendo?). O acrílico15, // dizia, material que promete deteriorar-se mais naturalmente. Mas gostava de ter alguma companhia. A sua. 52
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Lembremos: «a luz (é cada vez) mais clara a treva (cada vez) mais negra»16 Abraça-o o Cesariny (E porque não, se houvesse, fazermos depois uma exposição de homenagem a Teixeira de Pascoaes?!!!) Um abraço para a Maria Amélia e a todos vós. • Carta xxvi1 Meu Caro João2 É isto que vê.3 Eu estarei no Porto para a inauguração e, em princípio, algum dia mais. Se entretanto o tempo não estiver de enxovalho, era talvez altura de passar dois diínhas convosco4 em Pascoaes. Não? Eu chego na terça à tarde, em asa de aço, com regresso já garantido também de avião. Parece que me albergo chez Isidoro5 os um ou dois dias que estarei no Porto. Sexta e sábado seriam portanto os dias de passearmos (sentados) os olhos (abertos) a Marános6. Mas talvez já seja de fugir do Porto na tarde de quinta-feira. Não sei bem. Para acertar isto, talvez eu telefonar-lhe do Porto. Até lá grande abraço, para si e todos vós, do Mário Cesariny 53
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• Carta xxvii1 31 de Outubro2 Querido João Será que passa este3 sem nos vermos? Como está e estão vocês todos? Na Biblioteca, tive, por intermédio da Rosa Maria4, notícia de que estiveram inquietos pelo Alvarinho5. Desejo, muito, que se tenha recomposto o moço e tudo tenha voltado à boa saúde. Aqui em Lisboa está o Outono que não tínhamos há talvez 10 anos. Que bom. Mas sobreveio o frio, desde ontem. O nocturno, que de dia um sol velho mas de braço comprido põe-nos tépidos. Quantas estações ainda nos será dado ver6? O João: tem pintado? Não pintado? Vivido? Esta (última alínea) a mais importante decerto7. Os quadros do Raul Brandão8 foram entregues impecáveis? Gostou de ver o retrato do seu tio posto9 a limpo de cor10, como ele é? Foi, realmente, uma aventura tocar-lhe! Envio-lhe em correio separado o catálogo da Exposição que organizei na Biblioteca Nacional em Maio último11. Tenho uma certa vaidade na capa: é minha e julgo que saiu bem12. No interior, alguns documentos importantes, mas também muitas // gralhas a sujar os textos. Enfim… Também quero dizer-lhe o seguinte: O Carlos Rocha Pinto13, um jovem e bom pintor e bom amigo «resolveu» fazer uma exposição minha em Viseu, numa galeria que ali montou e tem em actividade. Este «resolveu», cifrado a asteriscos, quer dizer muitas coisas que a mim sensibilizam e, entre essas, a que aconteceu, ou come54
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çou a acontecer ontem: o transporte das obras, parte delas, pelo próprio Rocha Pinto, com cuidados e esmeros infinitos, de embalagem, entre cartonados e cobertores… Mais duas viagens serão ainda precisas… Ora eu não esqueci a sua ideia, já reiterada várias vezes, ideia-hipótese de uma exposição minha em Amarante… E pergunto: não pensa que seria agora uma oportunidade de fazê-la, levando a Amarante a exposição de Viseu? Em princípio, esta abre a 2 de Dezembro próximo, para ali estar todo o mês. Na vossa terra, a expo estaria pois em Janeiro14. Que acha do possível e do disponível? // Estou a falar-lhe nisto sem nisto ter falado ainda ao Carlos. Veio-me agora a ideia. Eu gostava. Bien sur15 que estas exposições, fruta de amor, pouco terão de fundo ou fim comercial. Não importa. Melhor assim. É actividade de amigos, festa para nós e para quem mais quiser. Os quadros que vão são todos do atelier, os mais escondidos, os que mais quero comigo, ou «meus», se alguém tem realmente algo só seu. Isto quis também o Rocha Pinto, e isso me alegrou. Portanto o João diga-me qualquer coisa. Se vê interesse e viabilidade eu comunicarei ao Rocha Pinto, na próxima descida a Lisboa para carrear mais quadros. Como vai a Bertrand16? (Quero dizer: a publicação da obra de seu tio?) Não sei se já lhe disse que venho descobrindo algumas coisas «novas»(!). Por exemplo: que o Pascoaes e o Pessoa são o mesmo poeta, sem tirar nem pôr. Os mesmos olhos, a mesma existência17, o mesmo espaço-tempo. Só que, enquanto um se faz, ou se perfaz, o outro se desfaz, se // desaparece. Noutro aspecto-o-mesmo-aspecto quase18 pode dizer-se, a propósito deles, o dito anedótico que diziam de (oh, não me lembra agora o nome do grande pintor francês a quem, reconhecendo-se-lhe a grandeza, chamavam Madame Picasso, por 55
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mais terno, menos mata-brasas19mas igualmente importante). Bom, o que me acode dizer-lhe por agora é que o Pessoa é20 uma espécie de Madame Pascoaes21. Até, raramente, acidentalmente, mas acontecido, na forma: há três versos antigos22, das primeiras obras do Pascoaes, que se este lhe tem acrescentado (e esmerado) outro, davam uma quadra tal e qual o Pessoa (bem antes, claro, de haver Pessoa)23. Que acha? Eu já achei. Um grande abraço seu e para todos vós do Mário • Carta xxviii1 Lx. 18 de Nov.2 Meu Caro João Ainda bem que me dá boas notícias do Alvarinho3. Eu soube há já vários meses mas, das vezes que tentei telefonar, só faltou aparecerem na linha as Honduras e Pequim. À vossa casa não se chegava, ou chegaria e dava o sinal de linha interrompida, sempre a falar. O que não é de crer. Enfim, espero que tudo evolua para o melhor do melhor, cura absoluta, claro. E espero sobretudo que em toda essa andança — perdoe4 esta minha opinião — ele seja poupado ao Terror de saber a gravidade — se gravidade existe — do caso5. Agradeço-lhe imenso a sua carta e os excelentes ofícios a que se deitou para a minha exposição aí6. Quanto ao catálogo, decerto 56
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não poderá ser o que se quer ou eu quero, mas sim o que poderá ser. Talvez possamos combiná-lo nos dias da Exposição em Viseu7, se o João me der o grande gosto8 de lá aparecer — o João e todos os seus que possam e queiram. A de Viseu (parece-me) nem catálogo terá. Ou terá? Pois não sei9. A Exposição aí em Amarante, gostaria de «reforçá-la» com algumas coisas mais que eu faria ir daqui de Lisboa. E gostaria também que me deixasse expor aí três ou quatro coisas minhas que são suas. Entre elas e sem dúvida as duas-e-só-uma homenagens ao Pascoaes — o Pascoaes diurno e o nocturno10. O João terá acabado por atinar o que não atino eu, ainda hoje? Se11 devem ser expostas (emolduradas) unidas, ou em separado? // Um outro quadro meu (talvez dos anos 50; ou 60) que tem seu e que não posso nomear, que não tem nome, o pobre, mas que me lembra de ver na vossa saleta de estar, também devia sair a bailado. Gosto muito desse12. Sabe qual é? Enfim, enquanto Viseu talvez eu possa dar um saltinho a vossa casa, se o Rocha Pinto13 me arranja motor. A entrever14, entretanto, a maneira de fazer chegar a Amarante os quadros que irão de cá, Lisboa, para aí, e que estão no moldureiro — que em qualquer caso os não dá antes do fim deste mês, ou depois. Ainda não lhe disse que a Exposição ou Exposições é, são de quadros do atelier, entre os que não se venderam e os que eu não quis15 e não quero vender a menos que me dessem uma casa na praia, ilha no Pacífico, e três secretárias do ruivo ao azul. E, assim, são de datas sortidas e salteadas as pinturas essas, menos, talvez, as/umas16 deste ano, que17 são as que estão no moldureiro18 e só sairão à luz daqui para aí. Alguns outros quadros do atelier nunca foram expostos. Talvez os melhores!
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Grande abraço do seu Mário Cesariny Em breve lhe trarei outras notícias. Mário • Carta xxix1 João2: Eis o texto do senhor seu tio que eu gostaria fosse o texto para o meu catálogo3. E que saísse em gravura (para qual gravura lhe entregarei o meu manuscrito. Este é fotocópia). Acha bem? (Poderá ser um pouco reduzida, a gravura). E este4 o «dado biográfico»5 também para o catálogo6. Grande abraço Mário • Carta xxx1 Meu Caro João2 Em primeiro lugar, um bem obrigado pelo vosso acolhimento, sempre magnífico! Aqui lhe envio o texto do Vancrevel3 (que aliás se chama Van Krevellen, mas adoptou pseudónimo, de poeta e de escritor) algo 58
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«encurtado» para as necessidades do caber. É importante que depois do título se ponha o termo «excerto», ou «excertos», por não vir todo o texto original4. Também que não dê à tipografia, para a gravura, a fotocópia que está no esquema do catálogo, mas sim a folha que eu passei à mão, em safra da poética do senhor seu tio5. E ainda e já agora: o Dado Biográfico, em letra mínima, para caber todo numa só página, mas o texto do Laurens Vancrevel, em letra maior do que a do d.b., visto que pode e talvez deva estender-se6 pela última página, que faz capa. É tudo? Ainda não. Parece-me que, para a face da capa, será melhor inscrever só Cesariny, tirar o Mário, como aliás se tem feito várias vezes aqui (Lisboa) (e noutros lados). Dá mais hipóteses gráficas, creio, e cheira menos ao bel-canto italiano…7 Também lhe envio fotocópia de um texto meu publicado numa revista francesa8 — só a primeira página, onde, de corrida, tento situar Pascoaes9. (A tradução-versão francesa não é sempre muito explícita. Enfim…)10 Grande abraço para todos vocês Mário Dez. 81 Se, par hasard11, o texto do Vancrevel coubesse todo inteiro, pois também não seria mau. Seria o óptimo. Mas isso não deveria ser feito em detrimento da leitura do texto, quero dizer, obrigando a um tipo de letra excessivamente pequeno12. •
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Carta xxxi1 Meu caro João2 É uma vergonha isto ir aqui a lápis mas estou no atelier, sem caneta, e aproveitei uma secagem (provavelmente de solidão). Espero que não seja esta carta, ainda, a última, a ocupá-lo com temas da minha exposição3. É que, lembrei-me, como o catálogo projectado será relativamente barato para o Museu — quase só o preço da capa de um catálogo — lembrei-me, digo, que seria bonito fazer uma cor4 e imprimir a sépia as citações do seu tio. Que acha? Outra coisa a mesma coisa: dentro de uma semana mais ou menos5 tenho aqui prontos (emoldurados) dez quadros para a exposição — quadros que gostaria de juntar aos que vão de Viseu6. // Como há-de ser isso? Por outros assuntos, o Eugénio de Andrade telefonou-me e agora sabe e diz que quer ir à inauguração. Sugere que esta seja num sábado e (talvez) não é má ideia. Mas que sábado deve ser? O primeiro do mês talvez não. É dia de festa7 na Polónia e, por acaso ou não, a rádio dá o 1.º concerto para piano, do Chopin. Assim nós tivéssemos um Chopin! Acontecesse o que nos acontecesse8, ao menos um Chopin já ninguém nos tirava! Um grande abraço seu, e da Maria Amélia, para o Mário Cesariny Gostei muito dos seus últimos guachos! Parece-me que abrem novo caminho por configuração; e confirmação.
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• Carta xxxii1 Amigo e Mestre João Lx. 30-122 Graças pela sua carta. Uma coisa que me preocupa é que não terei as coisas emolduradas no prazo previsto. E assim o mais prudente é darmos uma margem e encararmos a abertura da Expô [sic] para o terceiro sábado de Janeiro, isto é, a 16. Acha que pode fazer-se? Podendo, levar-se-ia até 16 de Fev., para durar um mês — se o Museu acha bem e a duração de 1 mês é praxe admitida. Com o que lhe desejo, e vos desejo a todos, um Ano // Novo capaz de adiar os vaticínios terríficos do Nostradamus — que, fui confirmar, marca o mais terribilis para 1983. — Sonhemos3 12 meses, portanto. E cá fico à espera de sinal celeste do Presidente da Câmara que me anuncia! Mário •
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Carta xxxiii1 Caro: João2: É de um grande poeta e grande amigo, o peruano amigo meu Emilio3 Adolfo Westphalen4, que veio estacar a Lisboa, à Embaixada do Peru. Poderia tirar-se a copiógrafo, esta folha com o texto dele, e meter-se no catálogo5. Que diz? Mário • Carta xxxiv1 Querido João 11-1-82 Espero: a) que seja esta a última carta a aborrecê-lo com coisas da minha Exposição. b) que já tenha recebido o texto espanhol do Emilio Adolfo Westphalen2 e ainda seja possível imprimi-lo no catálogo. c) que já tenha recebido as provas que lhe devolvi, revistas e emendadas e com algumas sugestões. Seguiram em correio registado. d) poder ir aí dia 21, uma quinta-feira, para também dar um jeito na arrumação da Exposição. 62
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e) Que o município de Amarante possa albergar num hotel o amigo que me leva de automóvel e você já conhece, o Orlando Rocha Pinto3. f ) Que faça enviar convite ao Eugénio de Andrade4, Rua Duque de Palmela, 111, 2.º, Porto. Idem para o Francisco Pereira Coutinho, Galeria S. Mamede, Rua da Escola Politécnica, 163, 1200 Lisboa. Idem para o Francisco Relógio5, Trav. da Amoreira, 14 r/c, (Pampulha) Lisboa. Idem para o dr. João Palma-Ferreira6, Director da Biblioteca Nacional, Campo Grande, 83, 1751 Lisboa codex. Idem para o Ex.mo Snr. Dr. Lucas Pires7, Ilustre Ministro da Cultura e da Coordenação Científica8, Secretaria de Estado da Cultura, Avenida da República9, 1000 Lisboa. Idem para D. Emilio Adolfo Westphalen, ministro conselheiro da Embaixada do Peru, Av. da República, 56, 3.º 1000 Lisboa //. Idem para Hermínio Monteiro10, Manuela11 e Manuel Rosa12 R. de S. Bernardo, 21, 3.º Esq. 1000 Lisboa. Idem para Otelo Azinhais13. Jornal Diário de Notícias Av. da Liberdade, 266 — 1200 Lisboa. Idem para José Luís Porfírio14 no mesmo jornal. Idem para Dr. João Soares15 «Perspectivas & Realidades» Rua Ruben A. Leitão, 4, 2.º Esq. 1200 Lisboa. Idem para Galeria S. Francisco16 R. Ivens, 40, 1200 Lisboa. Idem para Carlos Rocha Pinto17 Galeria 22 Largo da Misericórdia — 3500 Viseu. 63
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Se não fazem convites, mandem o catálogo. Para os jornais e para o Emílio Adolfo Westphalen, mandem convite e catálogo. Agora: Acho que podíamos, você e eu, «organizar» uma grande fogueira votiva, ao poeta Teixeira de Pascoaes18. Isto dito assim de repente não faz grande sentido. O que eu gostava e sugiro é o seguinte: que se fizesse todos os anos, pode começar-se agora, uma boa fogueira que acenderíamos (à noite, claro está), entre íntimos, à memória de Teixeira de Pascoaes. À (na) sua presença, aí, e entre nós19, digo. Se, desta primeira vez, estivermos só os dois (eu e você) já não seria mau20. Mas julgo que estará mais gente… // Local onde acender: o mais próprio seria perto dele, no cemitério21, a aquecer-lhe os ossos. Mas também pode ser noutro local, alto, na montanha. Quer aderir? Faz este ano 30 anos que o poeta baixou22. Mas não é por isso. A minha proposta é que se faça um fogo, todos anos, e nós à volta, enquanto cá estivermos e houver lenha23. Que diz?* Se é sim, vá preparando a lenha. Eu, no domingo seguinte à abertura da exposição, ou, o mais tardar, segunda feira, devo vir para baixo. Far-se-ia então sábado à noite, ou domingo. Far-se-ia então no sábado, noite de magos e bruxas? Grande abraço Mário * Julgo que o mais adequado seria o solstício de inverno24. Mas, este ano, far-se-ia agora.
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• Carta xxxv1 Lisboa, 21 Janeiro 82 Querido João Tenho de delegar em si o que de resto já está de certo modo delegado há muito, mas desta vez com mais encomenda e maçada: representar-me, quero dizer, se faz esse2 favor, na inauguração da Expo. minha Amarante 82. Um dente infernal, o chamado canino que resta, está a dar-me dores intoleráveis e não me atrevo a lançar-me com ele aos balanços-buracos da estrada. Bastam-me os do autocarro aqui em Lisboa! O olho3 esquerdo também4 botou opinião. Enfim, se a Exposição está um mês, talvez ainda possa surgir, eu, mas já com o canino pela mão. Agora: os quadros que são «memorização do México»5 e estão na minha monografia-pinturas todos menos um (o que é um pássaro-no-ar com em baixo graus-degraus de pirâmide) talvez devessem estar juntos. Idem em relação aos quadros «artesanais» (os que têm moldura também pintada por mim). Mas isto é só uma ideia. Vão uns livros que talvez não fosse mau // pôr numa mesinha, para quem quiser.
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Enviou convite ao Maurício6? Ele anda há muito a dizer que quer ver coisas minhas. Dê-lhe um telefonema. E pranto no infortúnio. Envie-me catálogos (bastantes). Queria-os para mim mas também para mandar para alguns jornais, e para amigos d’aquém e d’além terras. A velada de fogo ao Pascoaes7 parece-me que terá de ser8 um pouco mais organizada. Vamos estudar a feitura de uma pequena comissão para9. Que acha? (O que me acode para já é convidar o corpo de bombeiros voluntários de Amarante.)10 O meu quadro que tem o aforismo de Pascoaes sobre a luz e a treva é para oferecer ao Museu de Amarante11. Aí ficará bem. E talvez não fique mal saber-se aí, que, em Viseu, só estiveram à venda, do conjunto da Exposição, 3 pequenos quadros; que vão a exposição coisas que nunca foram expostas e coisas que não quero vender; e algumas, sim, que foram expostas e voltaram para casa. Poucas. Mil abraços Mário E um muito obrigado por tudo o que tem feito por mim. •
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Carta xxxvi1 Querido João Lx. 3-2-82 Outro dia escreverei com mais vagar. Esta aqui é só para enviar, como sugeriu, «a conta» do D. Henrique2. Não tenho coragem para enviar também a da «Mundial Turismo», onde tive de pagar novas passagens. Penso que, tudo somado, foram bem amáveis o Município e os Munícipes de Amarante na minha Exposição. O João sobretudo, evidentissimamente. E a Maria Amélia. E o Varinho e o João e a Leonoreta! Acho que escreverei também ao vosso Presidente3, a agradecer-lhe a medalha e o livro. Para si e para vocês, um grande grande abraço grato do vosso Mário P.S.: Um abraço para os vossos criados4 •
Carta xxxvii1 Lx. 14 de Junho2 Querido Amigo João Agradeço deveras a sua carta. As fotografias estão magníficas, (melhores que os quadros!) (vou passar a expor só fotografias de 67
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quadros meus, tiradas por si!) O cheque3 também vem muito bom, mas passado em nome de Maria Cesariny de Vasconcelos, a qual ainda pode ser uma prima minha que tenho na Póvoa de Varzim4, que é a Maria Clara Calafate. Como ela também é Cesariny e, por casamento, também é Vasconcelos, estou com muito medo5 de ir ao Banco com o cheque — sou capaz de ficar sem ele6! Que faço? Tento? (Não. Aqui junto o devolvo. Tenha paciência! Que passem outro melhor). Ando às voltas com uma tábua (de escrever) que vem dos anos primeiros do século e quer ir até hoje7. Será, se fica, uma reedição mais circunstanciada da tábua cronológica (que tanto se parecem com as necrológicas? Mas em terra de doidos sombrios, e porcos, melhor fazermos nós o próprio funeral, não só para que não nos caguem tanto em cima, antes e depois, como para que nos misturem menos à sujidade alheia, morta) — desculpe, retomo —: a tábua que publiquei no livro «A Intervenção Surrealista», agora em refacção [sic] talvez aumentada8. E é ainda o seguinte: quer dizer-me em que ano o João conheceu o Manuel D’Assumpção e se iniciou o vosso convívio? No catálogo da Exposição organizada pelo Dr. Pinto de Figueiredo, Galeria Ottolini, há extracto de cartas do Manuel para si (1962) e uma para o dito Figueiredo em que o D’Assumpção diz: «cheguei a Pascoaes com o nosso (?) amigo.» etc., e é datada 24-4-62. Portanto, será 62, ou antes, e já agora pergunto-lhe onde e como9. Ainda que à força só de quatro linhas na tábua, terei de ignorar a tese proposta pelo dr. Pinto de Figueiredo, onde diz que o D’Assumpção foi surrealista de 1946 a até só quando entra na fase // abstracta. Este parecer, que eu não esperava encontrar em casa de um homem tão realmente sabedor como o Pinto Figueiredo [sic], é ainda e uma vez mais o triunfo da Escola do Dr. França 68
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(José Augusto)10 y sus muchachos, para os quais a pintura surrealista é à Dalí ou então não há para ninguém. Isto em 1982. Verdade que o João P.F. acrescenta que o D’Assumpção era deísta11 e que os deístas não podem ser surrealistas (vice-versa); por mim, e muitos foram os nossos encontros (no magnífico ex-Café Royal12, em casa do Mário-Henrique Leiria13, e depois no café Gelo14, estes mais escassos) nunca dei por que ele fosse deísta; e, se era, fazia ele muito bem; mas, então, nasce que tão deísta seria na fase figurativa, a que o P.F. chama surrealista, como na abstracta a que chama deísta. Quem nos acode? Se não o empece de mais, diga-me então, p.f., o do nosso início do vosso convívio. Foi a Exposição de 58 no Porto15? (Então ele já conhecia bem o António, Pinheiro Guimarães, não é certo?) Então o Hermínio Monteiro16 apareceu-vos aí?17 (Já falámos disto, creio). (Há-de, e havemos, de voltar). Pela sua vejo que não baixa tão cedo à capital do lixo. Quer algum aceno18 meu para o projecto da Livraria Guimarães? Alguma palavra sua? Continua de pé o projecto de uma antologia Pascoaes na Assírio & Alvim19. Abraça tudo e todos o vosso Mário A Henriette20 envia cumprimentos e saudades.
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Mário Cesariny e Maria Amélia Vasconcelos (Casa de Pascoaes, primeira metade da primeira década do século XXI)
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2. A MARIA AMÉLIA VASCONCELOS
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Carta xxxviii1 Minha Querida Amiga Maria Amélia Julho 832 Agradeço-lhe muito a sua carta, tanto quanto sei como é difícil escrever ou sequer falar depois do que aconteceu3 e do como aconteceu4 — e eu suponho, apenas —: não estava aí com vocês e com o João. Ainda que o desejasse, e muito — não seria capaz de estar! Com os «meus mortos» queridos tive sempre uma certa sorte (se pode chamar-se-lhe assim). A minha mãe, a Snrª. Dona Maria de las Mercedes Cesariny Escalona de Vasconcelos5 (gosto de chamar-lhe assim, agora) morreu quase sem dar por isso. Mesmo assim (eu tinha saído) ela esperou pela Henriette, que fora6 dar umas breves voltas por perto, esperou7 pela Henriette, para poder sentir-lhe a mão entre as suas. E foi-se8. E dos dois ou três amigos muito queridos9, estava longe, ou não o soube logo. Já depois do Ângelo César10 me ter dito, num encontro casual aqui em Lisboa, que já não havia esperança possível — e a Maria Amélia disse-mo também, como pôde11, pelo telefone — pensei em escrever ao João12. Mas como é que se escreve para alguém assim: sabe o que queria que ele ouvisse de mim? Pois, e por ser verdade13, que eu tinha visto o vosso Tio, // o Pascoaes, na Av. Almi73
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rante Reis, em Lisboa, aí pelas 11 horas da noite, a andar pela rua, no sentido de quem segue para a Baixa14. Eu ia de táxi15, a caminho dum cinema qualquer estúpido, de meia-noite. Não parei, não podia fazê-lo, mas fiquei com a certeza que era ele16. Só o chapéu17 é que não condizia… Isto quis18 eu escrever ao João. Digo-lhe agora, mas por seu intermédio, seu, de Maria Amélia. Parece que afinal anda por cá tudo19. E por «lá» também! Sabê-lo-emos20? Era o amor dele por vocês, e pela Casa, que não o deixava ir embora. A Casa do21 Pascoaes. Sentem-se forças que estão para além do visível22. Ou aquém; ou o que o valha. Claro que adiro plenamente à ideia da exposição23. E gostava de poder sugerir que na sala de jantar grande vocês colocassem, bem ao lado dos quadros D’Assumpção, um bom quadro do João. Eu tenho comigo, no atelier, um belíssimo óleo, que ali ficou do Tempo em que fomos companheiros ali24. Gostava // que fosse esse25 o quadro. De qualquer modo, seja esse ou não seja, há que levá-lo à Exposição. Também já me telefonaram para um número do jornal aí dedicado ao João Pascoaes. Claro que quero; mas continuo, eu, a depender muito das pedras de sol ou da lua, dessas que caiam26 do céu. Está mais nelas do que na minha mão… Na mão, o tentar reunir, decifrar, os estilhaços27. Em Agosto que vem, devo ir para não sei bem onde é, mas é pelos lados de Vila Real28. A ser isso, eu passaria aí uma tarde para falar com a Maria Amélia destes assuntos, e ver-vos a todos. Mas a questão será: estão vocês aí em Agosto? Por mim, acho que não, que deviam procurar espairecer, praiar. Isto não pára29, não pode parar, não vai mesmo parar, na Terra chã lá de baixo, de S. João de Gatão. 74
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E assim pedia-lhe que me dissesse, mesmo em postal breve, como é com vocês este30 Agosto. Ou, se vão para baixo, como poderíamos encontrar-nos em possível paragem vossa aqui. Grande, grande abraço do seu Mário Cesariny • Carta xxxix1 Julho 832 Querida Maria Amélia Pascoaes Hoje mesmo, data em que a recebo, respondo à sua carta amiga. Parece-me sobretudo que não deve subordinar em nada as suas hipóteses de descanso em Vila Moura com as minhas de abraçar-vos e estar com vocês aí no próximo Agosto. Há realmente a ideia, e até já há o plano, de uma incursão ao Norte3, na segunda quinzena desse mês, mas pode acabar por não fazer-se, ou eu não me sentir com ânimo de fazê-lo. Assim, a Maria Amélia faça o seu calendário sem outra preocupação que a de tentar distrair-se um pouco, e a de dever fazê-lo, e, por favor, faça-se o contrário do que propõe: seja a Maria Amélia a informar-me, quatro palavrinhas bilhete postal, do seu calendário, e do mais não se aflija. Se não nos for4 possível ver-vos em Agosto, pois será em Setembro.
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Um grande grande abraço para si e para o João, e para todos os filhos, e filhas, e tudo do seu Cesariny • Carta xl1 Minha Querida Maria Amélia Idos de Março, 19842 A sua carta. Eu vou fazer 61 anos de um corpo3 que logo de nascença saiu desgraçado (desprovido da graça, divina ou natural, da saúde) e que, com o exercício de vida de uns, digamos, quarenta anos seguidos, que lhe dei e lhe deram, é o seu-dele, e o meu, espanto-espantoso que ainda ande por aqui4. Quanto ao espírito… quero dizer-lhe que se não fossem as desgraças do corpo, dos nervos do corpo — avaria formal mal tomo algo, bebida ou comida, fora de casa5 — há muito, mas há muito, que o meu espírito6 tinha posto a andar daqui para fora — de Portugal, da Espanha, do Ocidente — o meu corpo7. Em direcção a algo mais civilizado8. As terras árabes, acredito9. Ou qualquer ilha ainda, de bom mar e areias. E nic, nec, não mais, nem turas nem literaturas, nem pintos nem pinturas. Nada. Acreditará10 que esta minha coisa11 já vem dos anos 50? E foi um bocadinho distendida, esticada, pelos anos 60, quando pude ir respirar para Londres, aliás magnamente subsidiado por amigos e Fundações12. (As Fundações, cá, não subsidiam para o que a todos seria o mais barato — uma furna qualquer à beira-mar; tem de se ir 76
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para Paris, ou Londres, ou para a Macaca). (Mas presos, sempre, pelo bico, pelo terror da fatalidade do regresso). Dos anos 70, já vamos passando bastante. Reparou? — Deixei de escrever, poesia, que é a única escrita possível ao homem, qualquer outra é refun-fun-fun, tira a vírgula, mete o pedal13. A única escrita que a mim me é possível14 fora15 da asneirada imbecil, rústica, calamitosa. Acentuei-me para a pintura, que ao menos é um gesto mais largo // a caber no quadrado que ninguém sabe o que é16. Agora, a Maria Amélia, fala-me no João. Não precisava falar, eu todos os dias o vejo, tenho à cabeceira, sempre, um «isqueiro» bem especial que ele me ofereceu — uma «coisa» feita com restos de peça de automóvel17. Mas, Maria Amélia, falei-lhe das tripas e dos tendões internos; do espírito evaporado18 — a última vez que o tentei a sério, ao meu espírito — o meu duplo — comecei a deitar electricidade pelos cabelos e o fumo parece que ia pelos ouvidos19. A geringonça, sei-o agora, era a da mais alta potência. Seria mesmo a potestade! E achou melhor despedir-se e despedir-me. By, by! — Mas ainda não lhe falei — bem preferia não falar-lhe! — de como ando repleto de mortos20! De mortos21 por todos os lados! Mortos, mortos, mortos! MORTOS! E é sempre preciso botar discurso22! Aqui o sumo Morto23 que V. Ex.cias vêem24. Ai! Mortos tacteantes, geniais ou não, pazadas25 deles cortados ao meio, só o princípio, às vezes quase a metade; tão raramente! Recebi agora o catálogo da, reza o catálogo, «Primeira Exposição Póstuma da obra de Mário Botas»26. Assim mesmo, «I Póstuma»! Quando será a segunda? E os gatos pingados são da melhor apanha! (Nunca a Maria Amélia conseguirá reunir tais notáveis para a comemoração da morte27 do João). Veja só: Eugénio de Andrade, António Osório, Almeida Faria, Vasco Graça Moura, Teresa Rita28 Lopes29. O Eugénio conseguiu esquecer-se por um mo77
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mento (9 versos) da poesia sufi30 // com que ele anda a ajudar toda a gente, há 30 anos, a ir melhor31 ao rabo a toda a gente. O António Osório safou-se para os lados da anacreôntica. Deve ter ficado satisfeito, quando acabou. Nada mal, hein? O Vasco Graça Moura enche 5 páginas, 24 estrofes (cito o final da última: «alma» (aqui, devia ter uma vírgula, mas, para ser mais natural, não pôs) em que barca / pirilampa32 te vais? De que veemência? / agora é muito tarde e nada sabes.» /), um poema muito extenso33 — deve ser o 1.º morto que ele34 apanha… O da Teresa Rita Lopes diz assim: Até logo, Márinho35… — O Almeida Faria, um36 sacana, finge, ou julga, que escreveu um diário, para contar uma randonnée ao Recife, com o «Alexandre» (deve ser o O’Neill) e o Cardoso Pires. «Durante esta vinda ao Brasil andei sempre com medo que algo lhe acontecesse na minha ausência.» Etc. (acontecesse ao Mário Botas)37. O João é coisa, homem, bem mais importante do que o Mário Botas38. Se se guardasse silêncio? No verdadeiro sentido de guardar? Má proposta, acredito. Seu Mário Cesariny Enfim, mais positivo, se quiser e o quiser: publique a apresentação que fiz do João na exposição dele aqui em Lisboa, na Galeria S. Francisco. E se o fizer, publique-o não datado39 (não me lembra se está ou não datado, esse texto. Tenho o catálogo em casa, mas não sei onde, agora) e sem referência à S. Francisco (se é que o texto a tem)40.
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• Carta xli1 Paris, Maio 842 Maria Amélia Agrada-me enviar-lhe esta capela3, de Paris para Amarante. Apesar de algo incivil, como me conhece, nunca me esqueço de si nem dos seus. Foi bonita a exposição do João4? Mil abraços Cesariny P.S.: Parece que vou aparecer por aí com umas máquinas de filmar5. • Carta xlii1 Lx., 29 Junho2 Muito Querida Amiga Maria Amélia Procurei hoje, sem encontrar, papel tarjado a negro, para poder escrever-lhe. Talvez melhor assim, já que poderia parecer e parecer-vos algo pretensioso vestir um luto que realmente não me cabe exteriorizar. Substituo-o por estas lágrimas que choro en79
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quanto lhe escrevo e que felizmente a Maria Amélia não verá — melhor assim. Parece-me que nem a morte do João3 me atingiu tanto, e a Maria Amélia sabe bem quanto eu lhe queria e como o admirava. Mas é golpe a dobrado, sobre a mesma dor, e agora a de um moço de vinte e poucos anos4. Pobre Alvarinho! Lembro-me dele5, menino, com uma força de beleza, pura, que nenhum poema pode dar! E lembro-me dele, já assustado pelo mal6, em tratamentos — tormentos! Uma vez, só uma vez que não esqueço, e já depois de desaparecido o pai7, olhámo-nos nos olhos, em silêncio. Eu estava à vossa mesa, com o João, a Maria Amélia, a Leonor, o Emilio Westphalen8, a Sílvia Westphalen9 e a Manuela10 — lembra-se? — e o Alvarinho sentado por momentos no cadeirão da lareira. Foi uma espécie de comunicação terrível, que me pôs a tremer por muito tempo! Imagino, puro imaginar, o que terá sido para si essa espécie de comunicação, sentida durante anos! Porque ninguém acreditava muito, não é verdade? — nem ele!10 — na sua definitiva salvação. E, já se sabe, de pouco — de nada! — servem as consolações de // dizer que é para isso que vimos e nos vamos. Quando nos tiram, nos arrancam, um braço, é mesmo esse braço que se nos vai do corpo. E a Maria Amélia, em tão pouco tempo, quase perdeu dois! Não ninguém nos prepara para tais transes. Não é ansiar11 pelas velhas civilizações, que nasciam e viviam com a morte ao lado, à mostra, às mesas onde sentavam as suas múmias, e até talvez lhes falassem — poder falar12 aos nossos mortos! Mas é ver que nos escondem tanto, tanto13, a morte, a nossa e a dos outros, que tão obrigatoriamente a varrem do nosso dia-a-dia, quase como imagem, ou ideia, indecente — indecorosa14 — que quando ela aparece ficamos tolhidos de horror. Ainda não lemos bastante o seu tio Teixeira de Pascoaes15! Ou lemos e não o ligamos muito ao próprio corpo. 80
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Desculpe estas palavras desatinadas. Creio que não é preciso dizer-lho — a Maria Amélia sabe-o bem —, mas sou eu que sinto a necessidade de dizê-lo! — de dizê-lo, a si — que tem ainda, e sempre terá consigo, os seus16 outros três filhos, vivam ou não em Pascoaes. Da última vez que aí passei, fiquei espantado com a semelhança que o Joãozinho17 agora tem com o pai! É a // cara dele! Um grande abraço aos dois! E além disto18? Não queria falar-lhe agora nisso19, mas o que acontece é estar há já tempo programada uma passagem de dois ou três dias em Pascoaes para o filme que estão a fazer comigo para a TV portuguesa (creio já lhe ter falado nisso). A Maria Elisa e o Artur Albarran disseram-me há pouco que só têm equipa disponível entre os dias 9 e 13 de Julho e que será entre esses dias que se poderia ir aí20. Sinto perfeitamente o abstruso de falar-lhe nisto neste momento, mas, por outro lado, é ou parece a única hipótese plausível de eu estar convosco dois ou três dias, embora deva ficar no Hotel de Amarante, como a Maria Elisa, o Albarran e a respectiva equipa TV. E, noutro lado ainda, penso poderia ser — oxalá fosse! — benéfica essa intromissão de gente (eu) que ainda esperneia (ou fazem espernear) e que de todo não quer desistir de ter por companhia, neste filme, a vossa casa, o escritório do Pascoaes, o atelier do João. E que quer ir consigo (eu) estar um pouco com o João no lá onde ele está, perto do Poeta21. Seu, vosso, sempre e muito, Cesariny, Mário •
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Carta xliii1 25-1-862 Pois Maria Amélia foi um gosto que devia repetir-se — ouvi-la! — e agora que já tem o meu telefone espero que o faça mais vezes. A Exposição da obra do D’Assumpção na Gulbenkian3 fez-me cair4 numa agitação, que parecia um rapaz! Ou um velho? Enchi o meu catálogo de notas, vi na Praça dos Restauradores 2 arco-íris 2, um sobre o outro (nunca tinha visto isso nem sabia que podia existir), escrevi-lhe, a si, Maria Amélia, uma carta que ficou por terminar, escrevi, e acabei, uma outra carta, para a Elisa Worm5, que não enviei, escrevi à Vieira da Silva6 uma carta (que enviei)7, notificando que, depois dela, o D’Assumpção é o maior pintor português; que mais? Comecei um artigo demonstrando, por paradoxo, a inutilidade total da Fundação Gulbenkian8, e nem paradoxo teria, às verdades tipo «se a F.G. fosse de alguma utilidade para os artistas plásticos portugueses é9 óbvio que o Manuel D’Assumpção não se teria suicidado», etc., artigo que também pus10 de lado. E ainda não acalmei… nem acabei. Agora, é só para dizer-lhe, confirmar, ou confirmar-me no que lhe disse pelo telefone quando pediu a minha opinião11. Acho que sim, que deve vender coisas do D’Assumpção, e não por espírito de ganhuça, mas, primeiro: porque é bom para o pintor e para a pintura que as suas obras circulem, criem12 ondas de interesses13 — os sublimes e os sórdidos — ponham gente aos pulos e aos pinotes, arruínem matrimónios e gerem noi-// vados, suscitem ao menos mais um suicídio (moral ou físico) de amor. E neste «primeiro» ainda: evitar o mais possível vender à Fundação Gulbenkian, não só por ser Instituto promotor, pelo menos no campo das artes 82
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e das letras, de Calamidade Pública14 — as centenas de, com licença, pintores de merda, e de críticos idem, que ela tem pró-gerado nos seus serviços, de merda, com licença outra vez, como porque o Museu é sempre o arrumo e a mumificação definitiva, mesmo quando o é, Museu, a sério, quanto15 mais no caso da Gulbenkian! Ou então vender-lhes uma coisa, uma só coisa, uma, mais nenhuma, e das mais pequeninas — preferência rabisco sobre tampa de caixa de fósforos — e caríssimo. (Seja mais chantagista que o Papa e obrigue-os primeiro, e por exemplo, a tratar a sério das condições de segurança do escritório do seu tio Pascoaes!)16 Há pouco, alguém comprou a alguém um desses rabiscos sobre caixa de fósforos por oitenta contos e achou barato. Claro que eles, os pássaros Gulbenkians17, vão espernejar e querer mais e melhor duma vezada só. Nada merecem, penso, sinto, e juro! E está na sua mão, Maria Amélia, fazer-lhes o adequado manguito. Seria lindo que o fizesse! Vender, antes a particulares, gente18 que poderá19 dar curso novo e vário ao que tem estado fechado e circunscrito a duas ou três20 casas — uma delas a vossa. Segundo —: porque, (quis o Destino:) vocês, do D’Assumpção, e observada a carência geral, têm «de mais». // Espalhai, espalhai, semeai! (Não, escusado será dizê-lo, para o ponto zero de ficar sem nada. NÃO É ISSO O QUE DIGO!!!) Abraço grande do seu Cesariny Quando é que vem a Lisboa?
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Reitero também o que lhe disse sobre o retrato que o D’Assumpção fez de mim21. E dá-me muita alegria que a Maria Amélia tenha condescendido em deixá-lo em minha casa uns tempos. Mais gentes o verão — e, pela primeira vez, nos verão, a mim e a ele, em Lisboa. Eu assinarei o indispensável documento de empréstimo. E julgo que seria de aproveitar o facto do retrato ainda estar na Gulbenkian com as outras coisas — para22 que a própria Gulbenkian mo venha pôr em casa. Não acha? Vai ser um reboliço! Mário • Carta xliv1 Maria Amélia2: Embora estranhe, é só para pedir-lhe — perguntar-lhe uma coisa: que idade tinha o João quando vocês casaram3? E em que ano foram vocês para essa Casa4? Mil abraços Mário Cesariny •
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Carta xlv1 Lx. Set.2 Minha Boa Amiga, Maria Amélia Foi bom vê-la! E rever, uma vez mais, a Casa. Estão belas, ambas! Falta levar a mesma beleza, ao Escritório3! — Oremos!… Venho pedir-lhe um favor. Era minha intenção dispensá-la de tal trabalho, pois era coisa de pouca demora e não fosse ser um domingo talvez eu em meia-hora4 pudesse prover a tudo. Mas a profusão de gentes, na caravana de amigos; o não poderem fazer-se fotocópias ao domingo — supunha, ou suponho —; e a minha tendência fatal para a distracção — o pior! — agiram negativamente. Mas não sendo também trabalho de muita monta (e se este5 meu «parecer» não é ainda também6 distractivo…) vinha pedir-lhe pudesse e quisesse fazer o seguinte: Indicar-me, mais fácil que por carta, o ano, o editor, o prefaciador ou prefaciadores das traduções feitas da obra de Pascoaes antes de aparecerem as primeiras traduções do // Thelen (— a 1.ª das quais, creio, é a tradução holandesa do São Paulo7, em 19318). Tenho a resenha feita pelo Alfredo Margarido no livro sobre «Pascoaes» na editora «Arcádia»9, mas omite nome dos editores, tradutores e prefaciadores10, e a edição do Prado Coelho11 também é quanto a isso, bastante omissa. Teríamos assim de fazer: fotocópias das capas e prefácios e registo do ano da edição12 — e o nome do tradutor, que sempre virá impresso nas primeiras páginas (quando não é ele o tradutor, não?) de: 1920 — Tradução espanhola de «Terra Proibida» (1920, segundo o Alfredo Margarido). 85
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1930 — Tradução francesa de «Cantos Indecisos». 1931 — ” ” do «Regresso ao Paraíso», da Suzanne Jeusse. 1935 — ” espanhola do São Paulo.13 Acho que não expliquei muito bem, mas reforço: são fotocópias registando: o título, o ano, o nome do editor, do tradutor e do prefaciador, além dos próprios prefácios. Será possível fazer-se sem que tenha eu de aí ir fazê-lo? A Maria Amélia já sabe das minhas dificuldades de deslocar-me sem «séquito», pequeno ou grande. Não fora14 isso // e bastantes vezes mais nos veríamos. Vou escrever à Maria José a dar-lhe um abraço de preces para que não esmoreça e para que o seu livro de memórias15 atinja, com ímpeto e gosto16, o Ano 2030. (A década saiu ao acaso. A de 50 melhor ainda seria). As fotocópias pedidas ajudariam bastante o «artigo» que iniVou pôr esta carta no correio, e no fim desta semana telefono a saber coisas. Está bem? E dir-me-á dos gestos desta operação. — Muito obrigado, também, pelas caneiras peúgas. — Os meus dois quadros — aqueles que o João diz serem imagem de uma igreja que eu nunca vi e que está no pino de um monte, nas vossas redondezas — são mesmo muito bonitos. O «Filósofo-Animal-de-Zaratustra» também18. ciei17.
Abraço grande do seu Mário Cesariny
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P.S.: Como não tenho a morada da Maria José no Porto e não sei onde ela está neste momento, deixo a carta para ela ao seu cuidado. Desculpa-me? Mário • Carta xlvi1 Lx. Já Outubro 912 Minha Querida Amiga Maria Amélia Recebi hoje, terça-feira, as fotocópias pedidas. Muito obrigado pela atenção e trabalheira despendida. Mas tive o desgosto de não receber, entre elas, fotocópias da edição, primeira edição, espanhola, do São Paulo3, de 1935, com prefácio de D. Miguel de Unamuno. Será possível que o Pascoaes não conservasse, na sua biblioteca, um exemplar dessa edição? (O prof. Jacinto do Prado Coelho4 não insere esse5 texto entre os que publica, na edição da Bertrand, dedicados ao Poeta6. Também ele7, já nessa altura, não teria encontrado aí esse exemplar? Ele é importante, por ser o que desencadeia, através do Thelen8, todas as mais traduções (excepção feita às traduções francesas, da Suzanne Jeusse9). Eu estou a escrever-lhe à pressa, com malas aviadas para ir até Espanha. Se no escritório realmente não existe esse10, que é o que me parece, escreverei de Madrid para Mallorca, onde existe e insiste um bom amigo meu e também largo admirador do Pascoaes 87
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— e das coisas do Thelen — o Prof. Doctor Perfecto11 E. Cuadrado Fernandez. Talvez tenha, ele12, um exemplar em casa, ou saiba por onde poderá existir, Mallorca ou Minorca. Caso isso também13 soçobre14, pedirei a amigos em Madrid que vão mirando por alfarrabistas e afins — já que de milagres — e Santos — é mais fértil Espanha. Um abraço muito grato — e também cumprimentos da Henriette — do seu Mário Cesariny • Carta xlvii1 5 Outubro 912 Querida Amiga Maria Amélia Saúde, sua, e de todos os seus. Escrevo-lhe de Sevilha, para não, ou tentando não, atrasar mais o que já leva vinte anos de atraso. Como lhe disse pelo telefone, falei ao José Manuel Pereira dos Santos3 no caso dos livros de Pascoaes4. Ele, como sempre, em tudo o que se refere ao nosso grande Poeta, interessou-se vivamente pelo assunto e disse-me que ia procurar quem de direito e de facto. Mas só mesmo em cima da minha partida para Espanha pôde comunicar comigo e, assim, o que há ou haverá transmito agora: 88
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A Maria Amélia escreverá uma carta dirigida ao Ex.mo (Excelentíssimo, claro) Prof. Dr. Antero Ferreira5, Presidente do Instituto Português do Património Cultural e, deixando de momento quaisquer outros problemas ou questões, por-lhe-á o assunto da necessidade da conservação dos livros, e respectivo necessário expurgo, sem o qual expurgo todos eles6 entrarão em fase adiantada de destruição7. Não sei se as melhores palavras serão estas8 // mas é este o assunto e a exposição a fazer ao dito Professor. Parece que essa carta, sua, é necessária para pôr em andamento o processo de. Vamos, pois, acreditar, que ele9 será iniciado, gizado e realizado, com o José Manuel a dar à corda, e até o Presidente, estou convicto, se necessário for10. Oxalá, a ver vamos, Oremus, Zeus11 lhes pague, etc. E ponho esta, já aqui, no Correio de Sevilha, ou em Granada para onde sigo, porque a esta hora a que escrevo — quatro da tarde — está toda a Espanha a dormir a sesta, e, naturalmente, os Correios também. Um abraço, seu, para o seu Mário Cesariny — Um abraço da Henriette, também. •
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Carta xlviii1 Lx. 11-1-91 Minha Boa Amiga Depois da sua amável chamada, pensei que não seria deslocado a Maria Amélia escrever ao José Manuel, Pereira dos Santos2, dizendo-lhe da carta que a si lhe escrevi, desde Madrid3, se quiser, e que a Maria Amélia já se dirigira ao tal senhor do Património4. Em todo o caso uma atenção para com o José Manuel, e eu não tenho nenhum indício de vir a encontrá-lo proximamente. Outro abraço seu do Mário Cesariny • Carta xlix1 Lx. Dez. 912 Querida Maria Amélia, Minha Boa Amiga Ia-me esquecendo de lhe agradecer o envio dos dois artigos do Unamuno sobre o Poeta3. Muito e muito obrigado. Não tendo o valor do «prefácio»4 em que todo o mundo falava — sobretudo o Thelen5 — nem estando muito à altura do próprio Pascoaes — nem do Unamuno — são em todo o caso um documento a guardar. Alegrou-me muito vê-la — pelo telefone… — num estado de espírito mais animoso quanto à multidão de encargos que o Velho da Montanha6 lhe vai trazendo, desde que o João foi embora. E também eu fico à espera, e aos saltos e aos pinotes, dos prometidos camarários pedreiros para início de lindezas e limpezas7 que há tan90
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to se fazem esperar. E concordo em absoluto com a Maria Amélia no que me diz deixar de tratar o escritório do Poeta como se fosse um jazigo8. Aquela cama, como tem estado, e outras coisas mais, fazem mal aos olhos9. Mantendo, como é óbvia necessidade natural, em tudo e tudo o que o escritório é, nada // impede, antes incita, a que possa ser visto, e visitado, como um aposento vivo, com flores frescas nas jarras e um bom e puxado bem encerado chão10. O Poeta, lá no Canto Etéreo desde onde irradia, rirá de contente11. O José Manuel12 telefonou-me a desejar-me Boas Festas, e eu, em lembrança tão natalícia e festiva, não tive coragem de entremeter de novo — «o caso do escritório» — que já parece ganhar foros de título de livro de Conan Doyle — se é assim que se escreve o nome do senhor13. Tampouco dei notícia da Boa Nova da Ascensão dos pedreiros14. Para a próxima direi. E diga-me a Maria Amélia, por favor, quando melhor lhe calhar e vier a propósito, se tais Anjos do Céu já lhe entraram em casa ou ainda vão a caminho… Entretanto, o abraço de sempre do seu, muito, Mário Cesariny • Carta l1 Lx. Junho2 Querida Maria Amélia Aqui vão «provas» da vossa visita ao meu atelier, aquando do lançamento do Livro da Maria José3. 91
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Como, com estes4 calores hórridos que já chegaram, suponho a Zé aí em Amarante, peço-lhe que reparta com ela5 as fotografias. Se estalar guerra pela posse mútua de alguma, diga, que eu tenho os negativos e posso repetir. O abraço muito grande, sempre, do vosso Mário Cesariny • Carta li1 Querida Maria Amélia2 Fui à caixa das bonecas e encontrei mais estas fotografias3. São vossas! Grande abraço do vosso Mário Cesariny • Carta lii1 Lx. 4 de Novembro, 042 Querida Maria Amélia Aqui vão umas fotos da nossa querida Henriette3. São colhidas numa primeira incursão no desalinho em que vivem os meus e 92
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nossos momentos fotográficos. Creio mesmo que tenho uma fotografia da Maria Amélia, mãe e filha, tirada em minha casa…4 Aqui vão, no entanto, algumas fotos da minha muito querida Henriette que ainda hoje me faz uma falta, uma dor irreparável5. Mas isto é a vida, não é assim? A vida!6 Um grande grande abraço para si e que envolva todos os seus, Mário Cesariny • Carta liii1 1. O leque espanhol foi lá posto por mim, para ele, no Verão… Mil abraços Mário 2. Eu, e uma miúda de 17 anos… Oh! Mário
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Desenho de Teixeira de Pascoaes (s/d)
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3. NOTAS E COMENTĂ RIOS
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Com sobrescrito. No verso tem a indicação do destinatário (letra autógrafa): Ex. Snr./ João Teixeira de Vasconcelos/ Casa de Pascoais [sic] / Pascoais […]/ Amarante. No reverso, o seguinte: Mário Cesariny/ R. Basílio Teles, 6-2º Dto./ Lisboa-1. No verso tem ainda selo dum escudo (Bento de Goes, 1562-1962). Carta e envelope autógrafos (duas páginas). É a primeira missiva conhecida de Mário Cesariny para a casa de Pascoaes; ainda assim, como se tira da leitura da carta (v. nota 6), não se trata de conhecimento acabado de acontecer. Na entrevista que fiz a Mário Cesariny (26 de Dezembro de 1997) — dei-a a conhecer no livro Teixeira de Pascoaes nas Palavras do Surrealismo em Português — confrontei-o com a questão do momento em que chegara a Pascoaes, deixando de lado a primeira e excepcional visita em Março de 1950, feita pela mão de Eduardo de Oliveira, autor de Monólogo e velho amigo-admirador de Teixeira de Pascoaes; ele não soube ou não quis precisar uma data, a não ser a de 1950, desculpando-se com a névoa, o perdido horizonte em que isso sucedera. Conheço fotografia, hoje pública (in De Mário Cesariny para Artur Manuel do Cruzeiro Seixas, 2009, p. 11), de Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas em Pascoaes, porventura de Maio de 1967, momento em que os dois expuseram em conjunto na portuense Galeria Divulgação. O destinatário, como das trinta e seis seguintes: João de Lencastre e Menezes Teixeira de Vasconcelos, que assinou João Vasconcelos (como pintor); nasceu na casa de Pascoaes a 23 de Setembro de 1925 e na mesma casa faleceu a 8 de Junho de 1983. Foram seus pais, João Pereira Teixeira de Vasconcelos (14-5-1882—18-3-1964), que viveu parte da juventude em Angola e Moçambique e publicou depois com prefácio de Raul Brandão Memórias dum Caçador de Elefantes (1924) e África Vivida (1957, pref. Augusto Casimiro e nota de Ilídio Sardoeira), e Maria do Carmo
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Sotto-Mayor de Lencastre e Menezes Teixeira de Vasconcelos (13-9-1891 — 9-6-1990). À morte do tio, Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos (2-11-1877 — 14-12-1952), que assinou Teixeira de Pascoaes, herdou João Vasconcelos a casa de Pascoaes, em São João de Gatão, freguesia de Amarante. Casou de seguida, em Março de 1953, com Maria Amélia Abrantes de Sampaio e Castro Teixeira de Vasconcelos, com quem passou a viver na casa de Pascoaes a partir de 1954. Aí viveu toda a sua vida e aí se formaram e cresceram os seus quatro filhos, Maria João Castro Teixeira de Vasconcelos (21-12-1955), João Castro Teixeira de Vasconcelos (8-4-1957), Álvaro Castro Teixeira de Vasconcelos (1-9-1958 — 27-6-1984) e Leonor Castro e Meneses Teixeira de Vasconcelos (27-3-1965). Como pintor expôs com regularidade entre 1964 e 1983. Registo as seguintes exposições: Galeria Dominguez Alvarez (Porto, 1964 e 1968), Galeria Divulgação (Porto, 1965), Galeria Ottolini (Lisboa, 1972 e 1973), Galeria São Francisco (Lisboa, 1979 e 1980), Galeria São Mamede (Lisboa, 1982) e Junta do Turismo da Costa do Estoril (Estoril, 1983), esta já depois do falecimento, apenas aos cinquenta e sete anos, com uma maleita no pâncreas (v. carta XXXVIII). Um ano depois, em Maio-Junho de 1984, a Galeria Gilde, Guimarães, pela mão amiga de Luís Teixeira da Mota, com o entusiasmo de Maurício Macedo, organizou-lhe uma retrospectiva. À mesma galeria chegaria dois anos depois Cruzeiro Seixas, aí vendo editado, ao que sei, o primeiro livro de poemas, com letras e título magníficos de tão crus e sem cera, Eu Falo em Chamas. António Pinheiro Guimarães (1922-2000), poeta, tradutor, memorialista. A estreia como poeta é de 1944, Início; traduziu Baudelaire (O Spleen de Paris, 1963); editou muito — plaquetes, folhetos, pagelas, sempre em edições de autor; em 1982 antologiou poesia, Poesia Escolhida, com estudo introdutório de António Salgado Júnior, da primeira Faculdade de Letras do Porto. Como memorialista deixou dois livros, Fraude/1 (1981) e Fraude/2 (1982), o primeiro sobre a infância e a adolescência e o segundo, precioso para reconstituição da teia de relações da vida cultural do Porto nas décadas de cinquenta e sessenta, sobre a vida adulta. Foi próximo, íntimo mesmo, do pintor surrealista Manuel D’Assumpção (v. carta IV, nota 7) e dessa ligação maior fala no livro dois de memórias. D’Assumpção fez-lhe o ex-libris (que está hoje na casa de Pascoaes). Tem consigna, fay ce que
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vouldras, dedicatória, 1º ex-libris abstracto do mundo, do poeta António Pinheiro Guimarães, e data de 1959. A mesma proximidade para João Vasconcelos, sobre o qual escreveu no mesmo lugar, nomeando-o João de Menezes. Relata aí como o conheceu: A amizade com o João de Menezes veio por intermédio de Manuel d’Assumpção quando este ensinava gravura na Academia Dominguez Alvarez, e quando tudo ainda corria bem entre aquele pintor e o «marchand» Tiago Leitão. (p. 77) Pelo relato ficamos a saber que os problemas de saúde de João Vasconcelos começaram por volta da primeira metade da década de sessenta. Mas adoeceu daí a pouco tempo, e, no próprio dia em que se inaugurou uma exposição dele, entrou para uma Casa de Saúde do Porto, isto com grandes cuidados e ansiedades do poeta [A. Pinheiro Guimarães] que se tinha tornado grande amigo deste. O Manuel D’Assumpção bombardeia com cartas, e de todas as maneiras se informa da saúde do pintor Menezes. Este último é operado com grande êxito, mas fica sempre com alguns padecimentos inevitáveis, dada a natureza melindrosa e susceptível do órgão atingido: o pâncreas. (pp. 77-8). Ao livro dois de Fraude regressarei sempre que as letras das cartas peçam e nem sempre por causa de João Vasconcelos. No catálogo da exposição da Galeria Ottolini (1972) de João Vasconcelos foi ainda António Pinheiro Guimarães que escreveu a prosa de apresentação. Afirma: O Marão está quase sempre presente. É como um fantasma na paleta do artista. Uma presença. Uma enorme esperança. Um espantoso delírio. De resto já escrevera sobre a pintura de Vasconcelos no catálogo da exposição da Galeria Divulgação (1965), Porto. O Livro de Andrónico (1962), do autor de Fraude, tem parte titulada «Em Pascoaes», com seis poemas: «A Águia», «O Milhafre», «O Marão», «Onde?», «A Saudade» e «Alvarez». Na inquirição pergunta: Onde pulsa o coração imenso do homem do universo?/ Do homem penitente? Do homem Napoleão/ Do homem São Paulo? No mesmo ano publica Amizade, plaquete onde fala de D’Assumpção e João de Pascoaes, para logo no ano seguinte dedicar Paloma, livro, assim: À Memória do Poeta Teixeira de Pascoaes, Heróico Soldado da Paz! No curto espaço de dois anos, 1962-63, temos a seguinte agitação compósita no imaginário do poeta: Águia, Marão, Saudade, Alvarez, D’Assumpção, Teixeira de Pascoaes e João Vasconcelos. Permito-me ver nesse ponto o momento alto e intenso da sua presença na casa de Pascoaes,
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se não mesmo o início do seu convívio fundo com o lugar e as gentes que lá estavam (João Vasconcelos, Maria Amélia e filhos então nascidos). Manteve até 2000, ano do seu falecimento, mesmo depois do desaparecimento de João Vasconcelos, em 1983, relações de proximidade com a casa de Pascoaes. O único original de Picasso que há na casa, creio que de 1962, foi oferta generosa sua, o que muito diz do carinho que ele tinha pelo lugar de Pascoaes. António Pinheiro Guimarães colaborou, com um poema, «Sibila» numa das publicações do surrealismo em português, Pirâmide (nº 2, Junho, 1959, p. 29). Diz assim: Um grito surgiu na noite da Grécia Antiga / Não era um deus que gritava, era Ela. / Límpida como a água das fontes. / Pura como a terra. / O grito da Sibila / (O grito da mãe terra? Ou o grito / das mães da terra? Ou o grito / da tua ou da minha mãe?) / O deus nunca grita, faz gritar. No número colaboram Máximo Lisboa, Herberto Helder, José Carlos Gonzalez, Sena Camacho, Virgílio Martinho («A propósito do movimento 57»), Carlos Loures, Saldanha da Gama, Manuel de Castro, António José Forte, Ernesto Sampaio («Carta ao Diário Popular»), José Sebag, Luiz Pacheco («A Pirâmide & a Crítica»); tem ainda duas colaborações plásticas, Amadeo de Souza-Cardoso (Farol Bretão — Estudo) e D’Assumpção (Génesis). Apareceram três números (Fevereiro de 1959; Junho de 1959 e Dezembro de 1960). O texto de abertura, no primeiro número, é de Mário Cesariny Vasconcelos («Mensagem e Ilusão do Acontecimento Surrealista», pp. 1-2). Ignoro o que levou os organizadores, Carlos Loures e Máximo Lisboa, ao nome Pirâmide, mas sei que um dos versos finais do Discurso sobre o real quotidiano (1952), de Cesariny, afirma peremptório e vertical, sim meu amor a pirâmide existe. O verso — ou versos, porque todo o final do poema vai por aí, glosados de resto por Máximo Lisboa na nota de abertura do terceiro número de Pirâmide — está no «Poema podendo servir de Posfácio», dedicado (na primeira edição do Discurso) a Eduardo de Oliveira (filho do médico Vasco de Oliveira, amigo grande e histórico da família Teixeira de Vasconcelos de Amarante), a mão que levou Mário Cesariny, pela primeira vez, em 1950, à casa de Pascoaes. «Sibila», além do poema, foi outrossim pintura de D’Assumpção oferecida ao poeta do Livro de Andrónico. Assim o lemos no livro dois de Fraude: O Manuel pintou alguns quadros durante mês e meio que esteve no Porto,
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entre eles, um que oferece ao poeta [A. Pinheiro Guimarães]. Trata-se de «A Sibila», muitas vezes mostrado ao público. O dia em que o pintor entrega o quadro ao poeta, nasce a segunda filha deste. (p. 56) No final de 1967, António Pinheiro Guimarães publicou Manual do Libertino. O Jornal de Letras e Artes, fundado em 1961, anotou o livro (com as iniciais A.L.) no mês de Março de 1968, momento em que Cesariny escreve a João Vasconcelos a missiva que comentamos. Diz assim: Em edição de autor e cuidado aspecto gráfico, António Pinheiro Guimarães, volta de novo à poesia. Há quem escreva versos para descobrir-se, há quem os escreva para poder inventar-se. Neste pequeno livro, a «libertinagem» é sobretudo sinónimo de libertação, como realidade de conquista de um espaço que faltava, tanto na afirmação de um comportamento, como na deslocação geográfica e seus títulos de glória: Córdova, Paris, Florença, Veneza, Viena. Parceiros das vinte noites de prazer: Gauguin, Botticelli, Miguel Ângelo, Giotto, Mozart, com todas as suas visões… E a glorificação da mulher-companheira, aquela cujas mãos, nenhuma jóia do mundo poderia embelezar. Nenhuma, reitera o poeta. Com este livro, e parafraseando Fernando Pessoa, poderíamos dizer que António Pinheiro Guimarães, se não evolui, viaja… Uma viagem realizada no espírito. (in Jornal de Letras e Artes, ano VII, n.º 259, Março de 1968, p. 18). Mário Cesariny, no mesmo número do jornal, então mais magazine mensal, publica um largo e generoso texto, «Hans Arp — Poeta», depois recolhido em As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1.ª ed., ed. autor, 1972, pp. 101-105; foi retomado depois na segunda edição do livro, 1985, p. 135 e p. 139). No mesmo número, na rubrica «Crítica de poesia» (p. 18), Mário Cesariny publicou uma tradução, «O Optophone», de Kurt Schwitters e Raul Hausmann (retomado também nas duas edições de As Mãos na Água a Cabeça no Mar, pp. 106-107 e pp. 140-141; aos dois, Schwitters e Hausmann, se referiu na nota de entrada do seu Rimbaud, edição de 1972). Mário Cesariny assinou ainda na mesma publicação (v. carta IV, nota 8) recensões com as iniciais L.A. (que correspondem, por inversão, às que assinam a nota ao Manual do Libertino). António Pinheiro Guimarães foi ainda coleccionador de arte e nesta qualidade se ligou no Porto à Galeria Dominguez Alvarez, antes Academia, pertença ambas de Jaime Isidoro (que na Fraude-2 surge com o nome de Tiago Leitão), onde encontrou D’Assumpção, João Vasconcelos, Mário Cesariny e
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4. CONVERSA COM MARIA AMÉLIA VASCONCELOS
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Conversa na Casa de Pascoaes em 19 de Abril, 2011.
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Conheceu Teixeira de Pascoaes? Conheci, sim, no Verão de 1951. Em Outubro desse ano, deu-me assinado e dedicado um livro, As Sombras. A data que está no livro é Outubro, 1951, São João do Tâmega. É o único livro que tem São João do Tâmega, em vez de São João de Gatão, pois Pascoaes soube que eu gostava muito de ir tomar banho ao rio Tâmega e amavelmente pôs São João do Tâmega. Conheci Teixeira de Pascoaes nesse Verão. Depois, em Agosto de 1952, ofereceu-me Santo Agostinho e em Setembro do mesmo ano São Jerónimo e a Trovoada. Morria três meses depois, a 14 de Dezembro. Quem o apresentou a Teixeira de Pascoaes? O sobrinho António, filho de João Teixeira de Vasconcelos, autor de Memórias dum Caçador de Elefantes (1924) e África Vivida (1957). Aquele que viria a ser depois meu marido, João Vasconcelos, irmão do António, estava então a estudar no Porto, engenharia técnica. Quando conheceu João Vasconcelos, seu esposo? O João, além de estudar no Porto engenharia técnica, fazia ginástica no Sport Clube do Porto e vinha muito pouco a Amarante. Só vim a conhecer o João no Verão de 1951. Quando se deu o casamento com o João? Em 16 de Março de 1953. 289
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Quando veio viver para a casa de Pascoaes? Em Abril de 1954. Viveu sempre na casa de Pascoaes? Sempre; desde que vim. Como e quando conheceu D’Assumpção? Julgo que D’Assumpção veio a Amarante ver a pintura de Souza-Cardoso, grande admirador que era dele, ao Museu de Amarante. Falou com Victor Sardoeira, director do Museu, e manifestou interesse em vir a Pascoaes. O Victor telefonou para João Vasconcelos e combinou-se a vinda. Não consigo precisar a data, mas deve ter sido no final da década de cinquenta. Os miúdos já eram todos nascidos, menos a Leonor. Por que razão manifestou D’Assumpção interesse em visitar Pascoaes? Conhecia, ainda que mal, a poesia de Teixeira de Pascoaes. Foi com certeza por isso que, estando em Amarante, sentiu curiosidade de visitar a sua casa. Quando se estreitaram os laços de D’Assumpção com a casa de Pascoaes? Logo. O João gostou muito dele e o D’Assumpção ficou encantado com a casa e passou a vir às temporadas. As estadas eram longas? Muito longas; podiam durar meses até. Vinha com a segunda mulher, Antonieta, e a filha de ambos, a Isabelinha, e depois com a terceira, a Elisa Worms, que era bailarina, e o filho de ambos, Daniel. Trazia imensos amigos do Porto ou de Lisboa. Lembro-me do escultor e pintor José Vieira e do ceramista Victor Tomás Mo290
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reira de Azevedo. O José Vieira chegou a fazer um busto do D’Assumpção, que cá ficou e está ao pé da sua pintura. Que fazia D’Assumpção em Pascoaes? Pintava, pintava ao som da música de Tomaso Albinoni e com um copo de leite ao lado. Tirando a pintura, a que dedicava a maior parte do tempo, lia e passeava a pé. Mas o que ele gostava mesmo de fazer era de pintar. Pintava com muito pormenor e gostava de trabalhar aqui em casa. Chegou a fazer esmaltes, cerâmica e escultura. Pouca, mas fez. Ainda hoje aí está tudo. Como era a relação de João Vasconcelos e D’Assumpção? Nunca se separaram; o João e o D’Assumpção tinham um entendimento certo, perfeito mesmo. Houve de início grande incentivo da parte do D’Assumpção para o João começar a pintar a sério. Pode dizer-se que a pintura do João na maturidade nasceu da amizade com o D’Assumpção. Chegou mesmo a ter aulas de desenho e pintura na Galeria Alvarez, de Jaime Isidoro, no Porto, com o D’Assumpção. Há cartas de D’Assumpção na casa de Pascoaes? Imensas. Talvez mais de cem. Todas dirigidas ao João, com excepção de duas ou três, que me foram dirigidas a mim. Lembra-se de D’Assumpção se pronunciar sobre o trabalho de Teixeira de Pascoaes, escrito e pintado? Havia cerca de cem aguarelas, desenhos e guachos de Teixeira de Pascoaes que estavam encaixotados e que ele não deve ter conhecido. Agora sobre as dez ou vinte obras que estão e sempre estiveram expostas no quarto e no escritório, pronunciou-se quase 291
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decerto. Com espanto e com adesão. Pode haver até referências ao assunto nas cartas que ele escreveu ao João Vasconcelos. Quanto à escrita, é necessário lembrar que D’Assumpção veio cá por causa de Teixeira de Pascoaes. Já o conhecia como escritor e alguma coisa dele lera. Não sei bem o quê. Gostara com certeza, pois, passando em Amarante, quis visitar a casa do Poeta. Em 1962, numa das suas estadas, fez mesmo um retrato de Teixeira de Pascoaes, que dedicou ao meu marido. Mas o D’Assumpção não era de ler muito. Passava os dias a pintar. Mário Cesariny sobre o caso escreveu: «Se bebia, era um terror, saltava sobre o mundo histericamente, selvaticamente, com razão e sem ela.» Era horrível. Um dia o João teve de lhe dar uma casa autónoma, aqui em Pascoaes, porque a situação estava a tornar-se insuportável para as crianças. Quando vinha com os amigos, ainda pior. O Cruzeiro Seixas diz que foi nessa altura que ele se lembrou de pôr os móveis todos na rua porque não queria seres de quatro patas em casa. D’Assumpção não pintava de noite? Pintar, pintar, era sempre de dia. Ele gostava muito daquilo. Transfigurava-se com os pincéis na mão. E sempre com a música de Albinoni e o copo de leite. Quanto tempo demorava D’Assumpção a pintar um quadro? Ui, muito. Era cuidadoso em extremo; muito atento, muito estudioso do mais pequeno pormenor. Preferia passar fome, a não ter bons pincéis, boas tintas, boas telas e muito tempo para se dedicar a cada quadro.
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Ouvi que D’Assumpção deixou a casa de Pascoaes para se suicidar. Foi assim? É verdade. Andava a tratar-se com o Prof. Fernandes Fonseca, psiquiatra, nosso amigo do Porto, que muito se interessou pela poesia de Teixeira de Pascoaes. Ele acautelava o João para as tendências suicidas do D’Assumpção e aconselhava-o a passar regularmente pelo quarto dele, para se certificar da sua presença. O João, por seu lado, acreditava que o D’Assumpção nunca se suicidaria em Pascoaes. Assim aconteceu. No ano de 1969, o D’Assumpção passou o Inverno e parte da Primavera aqui, na casa de Pascoaes, no seu quarto, que ainda hoje, tantos e tantos anos depois, chamamos o quarto do D’Assumpção. Era para nós uma pessoa de família. O João considerava-o um irmão e ele o mesmo. Saiu daqui, foi para Lisboa e passados poucos dias, na manhã em que o homem pisou a Lua, suicidou-se. Depois de deixar Pascoaes esteve apenas dois ou três dias em Lisboa, antes de se suicidar, em casa do sogro. Quis respeitar o João, a família, as quatro crianças, pois nessa altura a Leonor já era nascida. Como se passou tudo? Quando ele se suicidou nós estávamos em Porto Covo, no Alentejo. Não havia telefones naquela época. O único que existia estava na estação dos correios. Veio um funcionário dizer-nos que tínhamos uma chamada de Lisboa. O João não estava em casa e sou eu que vou ao posto atender. Era o sogro do D’Assumpção a informar que o D’Assumpção se suicidara horas antes. Fui eu, pouco depois, que dei a notícia ao João. Mas antes de eu lhe dizer o que sucedera, o João olhou para mim e disse-me — Já sei o que me vens dizer. — Meteu-se quase de imediato no carro e foi a Lisboa, ao funeral. 293
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Falou há pouco de Jaime Isidoro. Como o conheceu? Por iniciativa do D’Assumpção, o João frequentava a Galeria Alvarez, onde tinha aulas. O Jaime Isidoro era o dono da galeria e as relações dos dois começaram desse modo. Tudo isso deve ter acontecido por volta do início da década de sessenta. Depois disso também ele veio aqui muitas vezes. A primeira exposição que o João fez, em 1964, foi na galeria do Jaime Isidoro e ainda lá voltou em 1968. Quando se deu o caso do quadro do António Maria Lisboa, que meteu tribunal e levou o Pinto de Figueiredo e o D’Assumpção a cortarem relações com o Jaime Isidoro, o João ficou do lado do Pinto de Figueiredo. As relações com o Jaime Isidoro acabaram. O António Pinheiro de Guimarães, que conheceu bem as razões deste processo judicial, também ficou do lado de João Pinto de Figueiredo. O António Pinheiro Guimarães também frequentou a casa de Pascoaes? Muito. O António veio à casa de Pascoaes no final da década de cinquenta, talvez em 1958-59, mais ou menos na mesma altura do D’Assumpção. O João e ele tornaram-se logo grandes amigos. Era uma figura muito especial e amiga, Amigo grande, com maiúscula! Regressando a Jaime Isidoro. Terá sido por meio dele que Mário Cesariny conheceu João Vasconcelos? Julgo que não, mas na verdade não me lembro. Pode ter acontecido que o Mário tenha conhecido o João na Galeria Alvarez, do Jaime Isidoro. Como este vinha muito na altura a Pascoaes — todos os fins-de-semana estava aí com a família e o Natal era cá que o passava — será que trouxe o Mário? Não me lembro, mas julgo que não. Agora, a primeira vez que o Mário veio cá, ainda Teixei294
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ra de Pascoaes vivia. Quem o trouxe foi o Eduardo de Oliveira, grande amigo da família. Mas o Mário não chegou a falar com o Pascoaes, que se ausentara nesse momento. Qual a mais antiga lembrança que tem de Mário Cesariny? Aqui em Pascoaes. Não posso é precisar a data. Os meus filhos eram pequenos, mas creio que todos nascidos. A Leonor nasceu em 1965 e devia ser bebé. Talvez tenha sido então em 1966 ou em 1967. Depois disso veio sempre, às temporadas, como o D’Assumpção. O Mário chegou antes ou depois D’Assumpção? Depois. Aí não tenho nenhuma dúvida. O D’Assumpção foi o primeiro a chegar. Não terá sido então D’Assumpção que trouxe Mário Cesariny a Pascoaes? O D’Assumpção fugia um tanto do Mário. Respeitava-o mas preferia manter alguma distância. Não era pois fácil o Mário e o D’Assumpção virem por aí os dois de Lisboa ou do Porto para Amarante. O Mário não era o José Vieira, com quem o D’Assumpção apareceu aí tantas vezes. E quem diz o José Vieira diz tantos outros amigos com quem o D’Assumpção aparecia. Porquê essa distância entre D’Assumpção e Mário Cesariny? Olhe, quando não gostava duma pessoa, o Mário podia ser arrasador. Sabia? O D’Assumpção preferia guardar por isso alguma distância. E isto, não obstante admirar muito o Mário. E a admiração era mútua, pois Mário Cesariny avaliou D’Assumpção como o pintor que estava para a pintura do seu tempo como António Maria Lisboa estava para a poesia. E em carta que lhe escreveu a si 295
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afirmou que o D’Assumpção era o segundo maior pintor português, logo a seguir a Maria Helena Vieira da Silva. E prova da admiração do D’Assumpção pelo Mário é o retrato que dele fez e que está aqui em casa. As estadas de Mário Cesariny em Pascoaes eram tão grandes como as de D’ Assumpção? Mais pequenas. Ficava às temporadas, mas não mais duma ou duas semanas de cada vez. Trazia família ou amigos com ele, como acontecia com o D’Assumpção? A primeira vez que o Cruzeiro Seixas veio aqui a casa, chegou com ele. A Leonor, a minha filha mais nova, já era nascida. Pode ter sido em 1967. Depois disso o Cruzeiro veio muitas vezes e tornou-se grande amigo nosso. Todos gostamos muito dele. Mais tarde, o Mário passou também a vir acompanhado pela irmã Henriette. E os Pinto de Figueiredo, o João e a Jeanne, também vinham às vezes com ele. Como e quando conheceu João Pinto de Figueiredo? Talvez pela mesma época e através das mesmas pessoas que trouxeram cá o Mário Cesariny. Há cartas de João Pinto de Figueiredo na casa de Pascoaes? Muitas. E do Cruzeiro Seixas também. Até há da Natália Correia, que só cá veio depois da revolução dos Cravos, mas se tornou logo muito nossa amiga. Que fazia Mário Cesariny nas suas estadas na casa de Pascoaes? Passeava, conversava, lia e escrevia. Pintar como o D’Assumpção, não. Não me lembro sequer de o ver pintar. Escrever, sim. Foi aqui, 296
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no quarto onde costumava ficar, que era o mesmo do D’Assumpção, que ele terminou o livro sobre Vieira da Silva. Foi trabalho que lhe demorou vários anos a escrever. Há carta dele, dizendo isso. Conheço; está nos Gatos Comunicantes, em carta escrita a Guy Weelen (p. 108). Lembra-se de Mário Cesariny falar de Teixeira de Pascoaes? Lembro bem. O Mário falava muito dele. Era o poeta que ele mais admirava. Até o punha à frente do Fernando Pessoa. Na penúltima vez que cá esteve, em 2002, com a Manuela Correia e a Henriette, trouxe-me um quadro dele, que tem nas costas a seguinte inscrição: «o anjo de Teixeira de Pascoaes». É um acrílico inspirado nos guachos de Teixeira de Pascoaes. Há mais pintura de Cesariny na casa de Pascoaes? Ai, há. Muita coisa. Espere aí. Uma dúzia pelo menos de quadros. De qualquer modo, muito menos do que aqueles que cá estão do D’Assumpção. Um dia fomos jantar a casa do Mário. No fim do jantar chamou o João e disse-lhe: — tenho aqui uma surpresa. — Era o quadro duplo de homenagem a Teixeira de Pascoaes. Antes disso, em 1974, no dia de anos do Alvarinho, em Porto Covo, o Mário ofereceu-lhe um guacho. Está ali, na parede. Mário Cesariny e Teixeira de Pascoaes? Precisam um do outro; o Mário precisa do Pascoaes mas o Pascoaes também precisa do Mário. Estão bem um com o outro.
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Apresentação, por António Cândido Franco . . . . . . . . . . . . .
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CARTAS PARA A CASA DE PASCOAES I. A João Vasconcelos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 II. A Maria Amélia Vasconcelos. . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 III. Notas e Comentários. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 ANEXOS 1. Dois Textos de Mário Cesariny sobre João Vasconcelos 2. Tábua Biográfica de Mário Cesariny . . . . . . . . . . . . . . 3. Uma Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Conversa com Maria Amélia Vasconcelos . . . . . . . . . .
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António Cândido Franco (1956)
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D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA
edição de António Cândido Franco
Mário Cesariny CARTAS PARA A CASA DE PASCOAES
Vi nele a ciência dos sinais, diz Ibn Arabi numa epístola famosa. Assim pode ele dizer sobre o que primeiro leu de Teixeira de Pascoaes, o que aconteceu em 1977. Abriu a escrever sobre o autor de Duplo Passeio em 1983 e dedicou-se depois disso ao estudo das luzes que brilham neste poeta e fazem a vez dum céu cravejado de cristais. Pelo caminho encontrou Mário Cesariny, no qual reconheceu o patrono desta experiência de leitura. Deu a lume um texto corrido, A Literatura de Teixeira de Pascoaes (2000), deu uma mão para reeditar a magna antologia de Cesariny, Poesia de Teixeira de Pascoaes (2002), criptografou a sua observação num romance, Viagem a Pascoaes (2006), que Antonio Saez Delgado fez o favor de pôr em castelhano, e tem no prelo uma colectânea, Trinta Anos de Dispersos sobre Teixeira de Pascoaes (INCM). Espera agora passar do Ar ao Fogo.
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As relações de Mário Cesariny com a obra de Teixeira de Pascoaes, que abriram em força na década de 60 do século XX e se alargaram depois até ao seu desaparecimento físico já em 2006, marcaram a terceira fase do desenvolvimento do surrealismo em Portugal, a da maturidade, ajudando a reorientar a obra poética de Cesariny numa direcção inesperada, a da sátira anti-pessoana, com as duas edições do Virgem Negra.
Mário Cesariny CARTAS PARA A CASA DE PASCOAES
Conhecíamos os vários momentos públicos deste relacionamento — em que entra o trabalho de selecção de duas compilações, Aforismos e Poesia de Teixeira de Pascoaes, ambas de 1972, e a frase capital dita em 1973 no texto «Para uma Cronologia do Surrealismo Português», Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa — mas ignorávamos, e continuamos em parte a ignorar, o percurso por dentro dessa ligação, bem como desconhecíamos o convívio do autor de Pena Capital com o lugar e a casa em que Pascoaes viveu. Com a publicação do epistolário de Cesariny para os dois habitantes da casa de Pascoaes seus coetâneos, João e Maria Amélia Vasconcelos, de 1968 a 2004, ficamos enfim a conhecer elementos do relacionamento entre Mário Cesariny e a obra de Teixeira de Pascoaes e a perceber uma parcela importante da teia em que tudo aconteceu, quer dizer, do como, do quando e do através de quem se deu e processou o convívio de Cesariny com o lugar e a casa de Pascoaes.