Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas - excerto

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edição de Perfecto E. Cuadrado António Gonçalves Cristina Guerra

D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA

CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS

CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS 1941 – 1975

CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS


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C A R TA S D E MĂ RIO CESARINY PA R A C RU Z E I RO S E I X A S


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CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS 1941 – 1975 edição de

Perfecto E. Cuadrado António Gonçalves Cristina Guerra

D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA


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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA), 2014 RUA PASSOS MANUEL, 67-B 1150-258 LISBOA REVISÃO E FIXAÇÃO DO TEXTO: ANTÓNIO GONÇALVES, CRISTINA GUERRA 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO 2014 ISBN 978-989-856 6 - 8 3 - 6

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DEPÓSITO LEGAL 384286/14 IMPRESSÃO E ACABAMENTO EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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PREFĂ CIO Perfecto E. Cuadrado


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C O R RESPONDÊNCIA / CORRESPONDÊNCIAS CARTAS DA BARRICADA

Aviso a tempo por causa do tempo: estas cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas, que abrangem o longo período que vai de 07-08-1941 a 13-12-1975, pouco ou nada têm que ver com o género ou subgénero literário chamado «epistolografia». Itinerário ou roteiro dalgumas das estações principais duma singular viagem interior, sim; confissões do lado de lá da barricada, também; e ainda mais: mão cheia de reflexões, iluminações, relâmpagos, faíscas que nos falam do amor consumado e fugidio e dos sucessivos objectos do desejo (com ou sem nomes dos parceiros ou destinatários), da poesia, de penas (capitais) e de prestidigitações (de manual); projectos de publicações e exposições no Reino da Dinamarca e noutras terras — franças, holandas, inglaterras,… — para conquistar e onde semear os sonhos e os incêndios; quadros e estórias da história da intervenção surrealista em Portugal e dalguns dos seus protagonistas; intersecções de bildungsroman e künstlerroman, cachoeiras líricas e charcos dramáticos que nunca chegaram a lagoas e acabaram travestidos também de artefactos poéticos; cantigas de amigo e de escárnio e maldizer (em prosa, naturalmente, como anunciava Nicolau Cansado Escritor); via sacra e feira popular, Mário no desenvolver-se e no despir-se do seu eu mais profundo e mais seu em diálogo com quem foi sempre — mesmo quando passaram a espreitar-se de longe — o seu eu mais próximo, Artur Manuel do Cruzeiro Seixas (camarada e amigo; depois aquele a quem Mário «toma os olhos e as mãos e […] beija devagarinho»), os dois às vezes fundidos e até confundidos num espaço onde brincavam amor e admiração; fragmentos, enfim, do plano do tesouro da geografia afectiva de Mário Cesariny (antes «de Vasconcelos» e depois «Rossi»). 9


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Os territórios geográficos de partida e de chegada das mensagens-na-garrafa do náufrago vão da costa norte de Portugal, o coração de Lisboa-os-Sustos (também dita Elsinore ou Palagüin), Paris e arredores (a casa de Isabel Meyrelles, «Fritzy» para os íntimos; a casa de campo de Vieira da Silva e Arpad Szenes; a prisão de Fresnes), Londres (Alberto de Lacerda, e sobretudo o conhecimento de Roland Penrose e a possibilidade frustrada de alguma exposição), Afife (onde Cruzeiro Seixas descobriu as artes de um muito particular ferreiro-escultor), as áfricas que tanto haviam de marcar o ser e o perceber e o dizer do autor de Eu Falo em Chamas… O volume das cartas, o tempo que descrevem e traduzem e a variedade dos assuntos só permitem ao responsável desta modesta e muito sentida «apresentação cordial» um trabalho de aproximação parcial, em maneira de antologia pessoal e portanto muito subjectiva (mas assim devem ser todas as antologias, como uma vez o próprio Mário lembrou a Jorge de Sena). Interessa primeiro a preocupação de Mário pelo ser e o sentido da poesia e do «ofício» do poeta, interrogação mais que pergunta que o liga à estirpe dos que ao longo da Modernidade se têm preocupado com isso, de Hölderlin a Eliot ou Sartre. Na carta de 21-08-1941 Mário afirma que «ser poeta é ser criança», o que, naquela altura, confirmava já a afirmação muito posterior de que «se pode ser poeta sem ter lido Breton»: porque o Surrealismo afinal ou antes de mais é um projecto moral, ético e político, e uma maneira de ver e de viver a vida passeando os seus labirintos com o «olhar selvagem» (inocente) da criança, do bêbedo, do louco, do namorado, do forasteiro, do poeta. E liga a poesia à solidão, e fala da insuficiência e do carácter impositivo da palavra, instrumento de libertação mas também de condena (daí o seu «You are welcome to Elsinore», daí aquele «medo à palavra» que em parte explicaria o seu suicídio rimbaudiano como poeta). Veja-se, por exemplo, a carta de 21-08-1941, lugar da abertura e da profecia neste longo monólogo (ou monodiálogo, como diria 10


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Unamuno) epistolar: «Sofro. Mas outra coisa, por vezes, me atormenta e essa é a interrogação sobre mim mesmo: sofrerei eu de facto ou é uma ilusão poética criada por mim para me engrandecer? Seja realidade ou imaginação nunca me senti tão diferente e incompatível como agora. Superioridade? Talvez. Ou inferioridade? […] Que sou poeta? Mas eu odeio a poesia! Eu não a trago, facho triunfante, dentro de mim, é Ela que me arrasta e me comanda! Como eu deitaria fora esse carrasco mascarado! […] A tragédia do poeta é ter de mentir eternamente. Não é outra a sua missão, pelo menos a missão que lhe têm dado até aqui e que, creio, lhe darão sempre, pois essa é a génese da poesia. […] Humilhação perante os homens, perante si mesmo, até diante do universo pois esse ser hiper-sensível que é o poeta sente-se ofendido pela grandeza do cosmos. A coragem está em penetrar dentro de si mesmo e dizer o que encontramos e eis o que o poeta muitas vezes não sabe fazer, não PODE fazer porque o seu mundo é o mundo das imagens e não o da análise crítica serena e científica. Assim o poeta não pode fugir a si próprio. É à crítica que pertence escolher entre os casos particulares do poeta os que maior amplitude universal abrangerem. Mas pedir ao poeta que renuncie a si mesmo é como pedir ao vento que faça ouvir uma sinfonia em Ré Maior.» Sem sairmos da questão, podemos parar uns minutos nas suas considerações sobre o que poderíamos chamar «o seu atelier poético», o processo de construção do poema, conjugando inspiração e trabalho posterior de reflexão, aquilo a que O’Neill chamou «abandono vigiado». Carta de 07-09-1943: «Lembras-te daquele “Poema d’Água”? Alguns retoques e enxertos necessitou. Deitei fora o quarto ou quinto poemeto, aquele: Vais partir, pequeno barco? porque tivesse embora certos “tics” felizes o conjunto era — de forma e conteúdo — bastante mau. Acrescentei-lhe outros, de que tomarás conhecimento, com paciência e vontade, mais abaixo. Mas é inevitável o deixar fugir umas palavrinhas sobre. […] É engraçado como a coisa apareceu. Que vontade eu tive de falar dos humaníssimos as11


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pectos da Ribeira e do nosso rio e como lamentavelmente ruiu o fim em vista! Não sei como, o lápis escorregava[?] para outro fim e deitei-me a correr para aquele lado. Cônscio da partida e da falta de respeito aos tabus da voga não desejei mais que tirar o melhor partido possível, fazer o melhor que pudesse. E o segundo movimento: a reflexão, não é verdade?» E, em carta de Janeiro 53, um breve apontamento-brincadeira que parece resposta a entrevista-modelo: «Escrevo — só — à máquina porque estou sem caneta. Perguntado noutro dia por um crítico de rua sobre se estava eu escrevendo muito ou pouco, lhe respondi que não tinha caneta e me faltava tinta. Creio que ficou ofendido!» Às vezes a história do processo criativo veste-se de feuilleton, como no caso da Titânia e os familiares ausentes e presentes-futuros como Os Braços sobre a Areia ou A Cidade Queimada, um amazonas onde as águas se misturam com outras vindas dos rios e riachos da plástica envolvendo sempre Cruzeiro Seixas como confidente, parceiro e quase vítima (aquela história dos desenhos enviados por Cruzeiro Seixas, perdidos-vendidos, comprados, novamente perdidos-vendidos, e afinal recuperados para o Centro de Estudos do Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda de Famalicão!). Sigamos parte do curso fluvial: «Preparo um livro (versos) para o Contraponto, mas preparo mais que isso, como vais sabendo. Por artes e bondades de um amigo, que empresta a devida massa, vou editar eu mesmo a historinha que junto te envio, a qual lerás com a atenção devida. Claro que ficarás tão interessado, que mandarás, na volta do correio (se possível!…), seis desenhos para incluir no livro. Por razões que se te tornarão muitíssimo óbvias creio que é de fugir a uma representação (figuração) de TITÂNIA. Esta, embora presente, não deve ser representada, e se representada — o que não aconselho — só por símbolos abstractos. A coisa vai — imagina! — quase no género: para crianças (graficamente, quero dizer). Donde que, para um dos desenhos, tens que inventar um Diabo (lindíssimo, com certeza) havendo por debaixo do sobredito a devida legenda (que eu cá po12


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nho) “De vez em quando aparecia o Diabo…” […] Também: que as chamadas à sensualidade que eu amo sejam um pouco restringidas. Nada de dar-lhes o flanco — fiquemos nós com ele, que bom serviço nos faz! […] Creio que há que reforçar, antes de mais, o MITO, depois, o Encantamento, depois, o BRUXEDO» (carta de 10-04-1953). E a seguir, em carta de 14 de Maio de 1953: «Os desenhos são lindíssimos e espantosos. Se durante este tempo por distracção te nasceram outros — ou se há outros que “sobraram” da primeira apanha — não hesites: envia que deverão ter densas aplicações. Pensa-se também em reunir, num só volume, a Titânia e Os Braços Sobre a Areia; sabes porém que fiquei sem desenhos nenhuns para estes; terás tu: cópias dos desenhos feitos? 2) vontade de fazê-los de novo, ou fazer outros? 3) sem excessiva demora? Até conseguiram roubar-me o último que me deste, aquele maravilhoso barco-corpo-desejo-adeus-estrela, lembras-te bem dele? Pois foi-me palmado a propósito de eu ter acedido a expô-lo numa coisa que deu pelo nome de Exposição de Ex-Alunos da Escola António Arroio, palpita. Tenho andado a cheirar atrás dele, com documentos e tudo (incluída a súplica e o berro) — e nada! Crê-se que o actual detentor é o senhor Mário Henrique Leiria, Vivenda Maria Xavier, Carcavelos (linha de Cascais), que o foi pedir ao senhor António Domingues, fiel depositário, que lho passou juntamente com mais dois desenhos teus, que também eram meus e que também nunca mais vi! É bem feito, não é? Eu dou-me pouco a, e pouco encontro o, Senhor Mário Henrique Leiria, que é hoje pessoa respeitável, empregada na lampada, e muitíssimo esquerda. Queres escrever-lhe com bomba de relógio mandando a restituição dos relógios de bomba — os teus desenhos? Esse pequeno larápio de trazer por casa (deixaremos que) acabe a cúpula-obra dos outros, grandes, de operar na rua?!!!?» E ainda mais (carta de 04-03-1954): «Fiquei sobressaltado-muito-contente por me anunciares uma nova série para Os Braços Sobre a Areia. Não calculas a pena carnívora e diária que obsessivamente sinto por ter-se perdido a série que fizeste e que era, para 13


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mim, do mais belo e lúcido que por cá deixaste. Sirva de exemplo o único desenho que dela ainda conservo — um que me deste já em dias de partida, lembras-te? —, que acho um dos pontos mais conseguidos da tua maneira de desmascarar o infinito. […] Não vejo em mais ninguém a chave com que descobres, tapas, acrescentas — sonhas. Tornar metafísico em si um corpo físico, lineado; encher de infinito, mas num sentido convulsivo, ou melhor, revulsivo, a solidão da carne, do corpo; pôr o total no Máximo Absoluto da Sombra-e-da-Luz, e isso ser um Total Amoroso, Doente à força de esplendente Saúde, meu caro, meu caro…» Mas, para além (ou para aquém) da admiração pelo Artista, Mário escreve a Artur Manuel como seu secretário (no sentido mais antigo e mais puro do termo: o guardador de segredos, o confidente e o conselheiro privilegiado). Nesses âmbitos sucedem-se os protestos pelas cartas que não chegam ou as desculpas pelas que não acabaram de sair, o relato de encontros e desencontros, de silêncios pontuais que muito mais tarde desaguariam num mar de silêncio apenas interrompido pela comunicação através de jornais ou de amigos. Como acontece nos momentos de maior convulsão e perplexidade, a ideia do suicídio como solução às tensões entre a realidade e o desejo (na terminologia de Cernuda, poeta admirado e traduzido por Mário) passou também pela cabeça do autor de Pena Capital, e assim o comunica e anuncia ao seu amigo em carta de 03-04-1942 num tom dramático à Maiakovski ou Sá-Carneiro, mas felizmente com solução de continuidade (nos seus últimos anos Mário voltou a falar no assunto, mas confessando que não tinha coragem para o tiro de graça; ficou-lhe a devoção por Mário de Sá-Carneiro, e ficou-nos o espantoso poema que lhe dedicou): «Decidi acabar com tudo. Estou cansado de escrever porque acabo de escrever ao Z.F. a contar-lhe que vou matar-me. Talvez não creias nisto. É melhor para ti, talvez. Desculpa-me o deixar-te mais sozinho mas agora já não posso recuar. Que coisa triste, a nossa vida. Agora acabou. Os meus versos são teus também. Não venhas a minha casa 14


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até acabarem as férias. Lá só nessa altura saberão. Se quiseres falar comigo uma última vez vai a casa do Z.F. e pede-lhe a carta que lhe escrevi. Estou cansado. Adeus meu querido e infeliz amigo […] Vê se consegues ser mais herói do que eu que logo me deixei vencer. Que amargura a desta despedida definitiva. Não me resolvo a acabar! Mas tem de ser. Abraço-vos a ambos, do fundo da minha alma.» E a conversa segue em carta de 26/27-03-1950: «Meu caro está neste momento nos meus ombros o peso duma solidão tão tremenda, tão bem preparada através de 26 anos de desgraça individual, que dá vertigens. Creio que me salva do suicídio a pura e simples não existência que é, cada vez mais, não o que estava em mim, mas o que me rodeou (Os defuntos não se matam. Podem esperar. E eu, como diz o outro, que acabou em místico: Les morts, les morts sont au fond moins morts que moi…)». Como confidente, Cruzeiro Seixas passou a ser o interlocutor privilegiado de Mário nos dias pouco lembrados da sua estada na prisão de Fresnes, o encarregado de ocultar à família a situação e o depositário das queixas e dos medos provocados por essa situação: «Tu vas téléphoner chez moi, tu diras que tu as reçu une lettre de moi, que je suis très bien à Paris, que je travaille bien, embrasse tout le monde, et que je vais téléphoner un de ces jours. Inutile de te dire que, sauf toi et Vinhas, personne d’autre doit connaître mon actuel «séjour». (carta de 23-10-1964); «Cher ami, je ne veux pas t’affliger, mais il me réconforte de te savoir là, et de pouvoir te parler. Il faut être très fort pour la descente aux enfers, et je suis faible.» (carta de 27-10-1964); «Tes lettres, dont je viens de recevoir la deuxième, sont pour moi d’un grand, grand, très grand secour. Rappele-toi que, bien qu’ayant des bons amis à Paris, je me sents terriblement seul, aux bords d’une aventure vraiment dangereuse et que je fais le meilleur que je peux, et que je sais, pour surmonter le fleuve noir et arriver sain et sauf de l’autre côté» (carta de 04-II-1964). De solidão e desamor sabia e soube muito Mário e ele próprio sobre esses desertos se analisa e se interroga luminosamente ao longo desta cor15


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respondência (pode servir de exemplo a carta de 02-12-1942), e neles se destaca a presença de Carlos Eurico da Costa, situada e esclarecida no clímax das suas relações: «O Costa apareceu com um poema magistral. Infelizmente, tem de ir para Viana já na terça-feira! Tropa. Merda. Ele não quer ser “meu amante”. Pois é. Não encara tampouco, ao que bastante bem me parece, qualquer espécie de maior profundeza nas nossas relações. Óptimo. A vida continua. Eu também.» E mais: «Ao diabo o bem-estar. Desejo muito e muito a tua felicidade ou o que por ela em ti melhor entendas. Estou no Porto, à espera de poder regresar a Lisboa e de tudo, foi muito, o que se passou, melhor é vivê-lo que contá-lo, melhor é contá-lo que escrevê-lo, melhor é beijar-te a boca de olhos muito abertos e mãos fixas no espaço e dar-te assim, silêncio grande de denso, as letras do alfabeto — e que tu, por ti mesmo, escrevas as palavras que as reúnam, no chão da areia lisa que te fala de mim. Guarda depois, na ampulheta que fabricarás, que fabricaste com pedacinhos de pano e pregos[?] coloridos, a areia consultada, e, fixando o cristal, intensamente, com a lucidez luciferina e lenta que há em certos desenhos que tu fazes, vê se vês os meus olhos. Eles estão lá, à espera do seu par de um só instante no vidro. Olham-te neste momento, por detrás do papel… Seixas!… não tenhas medo… Eles queriam para ti o mundo que não têm, uma terra vermelha e não violenta, um doce azul na concha das tuas mãos… De algum modo a poesia põe as coisas no seu lugar… […] Foi extremamente belo o que entre mim e o Costa se passou na Barca. Peço-te encarecidamente que lhe escrevas no dia em que receberes esta minha. Ele está agora numa crise grande, em Viana, e precisa de ânimo e notícias tuas (na carta que recebi hoje pede-me que tas peça). Claro, não faças de médico… Escreve-lhe como se tal não te tivesse sido solicitado — dando e pedindo notícias. Sim? Creio que lhe é horroroso viver naquele mundo, depois dos dias de liberdade e amor — grandes — que teve na Barca. Passar-lhe-á a coisa, sem dúvida. Mas, entretanto, chora e está desesperado… E eu, claro, imagina como estarei…» (Carta de 1950). 16


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Presença também a assinalar será a de Eugénio de Andrade no momento do encontro e de aventuras e nocturnidades vividas juntos no Porto antes do importante pormenor na vida de Mário da edição do seu primeiro livro e da posterior ruptura entre os dois poetas que se alongou por mais de quarenta anos. E, se de afinidades electivas falamos, lembremos a que seria tutelar na vida do autor, Teixeira de Pascoaes, a quem, em carta de 22-03-1950, considera «um caso de grandeza que o faz sair desta terra para atingir sem dificuldade o “espaço finito mas ilimitado”, como ele diz»; ou a do espanhol Francisco Aranda, caminho para a descoberta e a divulgação em Portugal de Luis Buñuel e outros surrealistas próximos; ou a defesa e reivindicação da escrita de João Falco/Irene Lisboa em confronto com a de Vitorino Nemésio, autor só superado na crítica negativa de Mário por Graciliano Ramos e em geral por todos os romancistas brasileiros. Capítulo especial merecem as páginas (muitas) que têm que ver com a história do Surrealismo em Portugal, a começar pelas aventuras estremocenses de Mário e Mário Henrique Leiria (carta de 08-II-1949), e com destaque para a notícia da morte de António Maria Lisboa (carta de 24-11-1953): «O António Maria Lisboa morreu ontem — para mim ele morreu ontem, embora tenha partido a 11 deste mês — só ontem tive conhecimento da sua morte. A solidão em que ele me deixa, e tudo o que com isto se relaciona é daquele capítulo incomportável que já só em pesadelo ousa manifestar-se (eu tive realmente, a noite passada, pesadelos simbólico-medonhos e rogo às fúrias que se não repitam). Vê só esta série de brindes: morre completamente só, de corpo e espírito (ele havia-me dito, tempos atrás, que já estava do lado de lá — e, do lado de cá, sabia eu… ele não queria mais); as últimas amizades — a minha e a do Luiz Pacheco — e embora por motivos diversos — tinham cessado de fazer-lhe companhia. Por mim (só por mim) falo: o peso de morte que o Lisboa sofria, com esperança ou sem ela, como muito acontece neste género de doenças, contrapunha-se sempre, nos últimos tempos, em relação péssima com o 17


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peso de vida — este peso de quem pode ir morrendo na forma do costume — que iriam levar-lhe — que eu também levava. Confesso que fiz tudo para atenuar esse choque. Ultimamente, porém, já não conseguia apanhá-lo, e tudo era cruel — as discussões, os olhares, a chegada e partida. Há mês e meio que o não visitara. Ontem, soube do resto. A irmã dele, lídima representante das torpezas que fazem família, queimou o que ele possuía para publicar: Máquina de Guerra (um livro), «O silêncio ou os Graus da Nobreza», um ensaio, «O senhor cágado e o menino», uma história a que seguiram outras. Mas havia de ter a novel fogueira! (Estas obras estavam na mão do Luiz Pacheco mas o Lisboa pediu devolução quando saiu, contra vontade dele e minha — outra miséria, este caso! — a presente edição da Afixação Proibida.) E agora sente tu: recuso-me a colaborar na farsa género O Pranto dos Companheiros Ainda Vivos, para a qual fui solicitado a telefonema, porque não há companheiros agora, porque o Carlos Eurico passou a condigna esperança do jornalismo pátrio, com morte horrível interna, e o Risques Pereira… bom, rasgue-se a lista! Eu ia aí abraçar-te, se pudesse!» Não menos importantes são as cartas enviadas para Angola, especialmente na altura das exposições de Cruzeiro Seixas (com Alfredo Margarido a participar eventualmente nalgumas das concelebrações), com hipótese de viagem de Mário para lá e de colaborações em jornais angolanos para os que propõe e parcialmente escreve os textos de «Mensagem e Ilusão do Acontecimento Surrealista». Textos fundamentais para a (re)leitura e a (re)interpretação da referida história seriam os da carta de 08-II-1965, escritos para a homenagem a Cruzeiro Seixas e o da carta de 17-02-1970, junto com outros que acabariam por se integrar em A Intervenção Surrealista ou em As Mãos na Água a Cabeça no Mar. Já nos anos do segundo momento de intervenção mais ou menos colectiva e mais ou menos organizada (sempre mais menos do que mais) dos surrealistas portugueses — próximos já dos tempos dos cafés Royal e Gelo, da publicação colectiva Grifo e dos cadernos da série «O Surrealis18


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mo em 1958» — encontramos, na carta de 12-02-1957, um comentário com tom de humor magoado sobre a situação do Surrealismo no Portugal da época: «A propósito: acabaram os Córnios. Foi um suicídio alegre, entre duas colunas, como essas coisas, ao jantar, acabam. Mas uma grande euforia de prémios assaltou a cidade: Prémio Anarquistas (mil escudos) (os anarquistas frente ao Teatro da Trindade), Prémio Diário de Notícias (trinta mil escudos) (frente ao Marquês de Pombal), Prémio A Planície (em Moura), Prémio Medalha de Prata do Ministério dos Negócios Estrangeiros Italianos (Roma) — uma sáfara colossal. Também já há quem afirme que chegou a altura de ganhar dinheiro com o surrealismo (na metrópole). Alguns directores de jornais permanecem circunspectos mas outros reclamam colaborações obrigatoriamente tituladas crónicas surrealistas. Em se lhes dizendo que não, emendam para: crónicas dadaístas. E como continua a não estar bem, pedem a demissão, no que são logo substituídos por novos entusiastas.» Sempre se destacou em Mário o seu interesse e até a sua paixão por outras linguagens artísticas que não as da literatura ou da plástica, e especialmente a música, onde ficou ligado à memória do magistério de Lopes Graça e às vezes levava as suas mãos às teclas do piano, como na sessão famosa sobre o Surrealismo nas festas organizadas por Manuel Hermínio Monteiro na galeria da livraria Assírio & Alvim na rua Passos Manuel, onde Mário acompanhou ao piano o recital de poemas seus ditos por Fernanda Alves. Sobre a música deixou-nos Mário algumas reflexões, como as contidas na carta de 07-08-1941: «Os nossos músicos (músicos post-impressionistas) quiseram abrir a porta às descobertas do século e convidaram a Ciência a instalar-se no meio das suas partituras. […] Mas de que maneira se aproximaram os compositores ao pensamento científico? O único a considerar é Schönberg porque foi ele o único sincero, e sabe-se de que maneira ele subordinou a poesia à Ciência, isto é, como enleou a sensibilidade natural, trocando-a por uma sensibilidade lógica, 19


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matemática, a própria morte da sensibilidade. Os outros… só fizeram asneiras exceptuando Stravinski que como Novo Senhor Jesus Cristo “escreve direito por linhas tortas”! Puseram-se a examinar a máquina e o aço esquecendo que o aço oxida-se e a máquina enferruja só ficando de pé, enquanto houver homens, o próprio homem, e que uma Arte, para ser eterna só assente em princípios eternos o será. Que o músico receba a influência do século mas que não perca por isso o fundo humano de todos os séculos. É este o segundo erro dos músicos modernos. A sua música acaba com a sua época ao passo que a de Beethoven é de todas as épocas, porque trata do homem e não da máquina. […] a música (já o disse) será a religião do futuro». Ciência e música ou poesia (ou arte em geral), polémicas e confrontos tão inúteis no fundo como interessados no dia-a-dia do negócio, vias afinal diversas para conhecer, para nos conhecermos. Cesariny escreve (carta de 25-08-1941): «[…] desde que o cérebro humano obteve o dom extraordinário da dúvida, isto é, do pensamento» […] «eu processo a Ciência mas permaneço Música».

Finalmente, em alternância com os textos mais ortodoxamente epistolares (?), sucedem-se ilustrações, desenhos e fotografias, bem como textos de prosa poética (como os que na carta de 28-08-1941 parecem lembrar-nos os «frisos» ou as pinturas que recriam cenas lisboetas de Almada Negreiros) ou poemas próprios (como o muito extenso que tem como figura central a de Arnaut — Arnaldo em castelhano — de Vilanova) incorporados muitos deles com importantes mudanças a algum dos seus livros de poemas, especialmente a Pena Capital, junto com poemas de autores aos quais presta assim reconhecimento e homenagem. Este livro, enfim, deverá ocupar um lugar principal no apartado da correspondência de Mário Cesariny, de quem já têm vindo a aparecer outras entregas como a recolha de cartas entre ele e Vieira da Silva ou as 20


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enviadas para a casa de Pascoaes, e ajudar-nos-á a perfilhar melhor (e desde perspectivas pouco conhecidas ou frequentadas) a pessoa, a personagem e a obra iluminadora de Mário Cesariny, um artista e um pensador excepcional que iluminou e continua a iluminar as trevas da caverna e que em 2006 partiu do cais à procura — mais uma vez — do velo de ouro. Morreu, mas vive em todos nós e agora cobra nova vida nestas cartas à espera do acordar e do reencontro à beira «do mar de uma rosa de espuma».

Nota de edição Sinais usados na fixação do texto: [·] — Palavra ilegível (cada ponto corresponde a uma palavra); [?] — Palavra de leitura conjectural; [ ] — Nota dos editores. A grafia deste livro foi actualizada segundo o Acordo Ortográfico de 1945. Procedeu-se, também, à uniformização dos nomes próprios.

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C A R TA S D E MĂ RIO CESARINY PA R A C RU Z E I RO S E I X A S


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07-08-1941 Casa do Doutor Vasques Calafate Póvoa de Varzim Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa

Querido amigo Deves estar ultra-espantado com este papel tão «rafiné» mas eu não o estou menos com o que me tem passado. Imagina que ontem tive o prazer de ouvir tocar uma rapariga (é já uma senhora casada mas como se trata de uma verdadeira artista repugna chamar-lhe «senhora») que depois de ter interpretado e estupendamente Bach tocou no manuscrito original, que lhe foi oferecido pelo autor, uma magnífica «Pequena Tocata» do Lopes Graça, que me deixou atordoado. Fiquei também a saber, do Graça, coisas interessantíssimas e, a tal ponto, que quando o vir na rua, agarro-me à gola do casaco e já não o largo. Esta Maria da Graça (a tal senhora) é uma personalidade interessantíssima e, como calcularás, raríssima neste desgraçado jardim à b. m. p.do. Para que eu ouvisse tocou ainda duas belíssimas peças da Francine Benoit que me elucidaram acerca do seu valor, que é bastante. Mas, dizia eu, esta rapariga prometeu apresentar-me ao Lopes Graça, à Francine, enfim a todos os que realmente são músicos nesta terra, que somando eu encontro 3 e mais não vejo. 25


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A Maria da Graça gostou da parte escrita do Karnaval, o que talvez me leve a deixar ao Ex. Senhor Dom Rui Coelho a dita e o prazer imenso de ganhar alguma coisinha na Emissora Nacional tão dignamente regida pelo Senhor António Ferro. É claro que a audição de música, minha música de hoje, foi acompanhada de grandes caretas dos ouvintes e levou a minha mãe a dizer que aquilo era «la dansa de los ratones»! Em contrapartida a Maria da Graça recusou-se sorrateiramente a tocar o estudo de Chopin Tendresse, usado e beijocado por todas as orquestras bem do nosso querido país. Agora vou estudar piano para casa da tal simpática senhora. Como vês valeu bem a pena vir a Aveiro. Depois te escreverei a dizer coisas mais interessantes e desculpa este estendal de coisas que interessam a mim (a frase está mal construída e vai assim mesmo) em particular e aos outros em geral. Do teu camarada, Cesariny

21-08-1941 Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa

Amigo Recebi a tua carta que é bonita à força de poesia! Vê bem, tu contas-me a tua solidão, essa espiral horrorosa de dias sucessivos, mas como fizeste da tua confissão um poema e a poesia é beleza, eis que tudo se inverteu! Ser poeta é ser criança, quase nada! 26


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Amigo: eu de nada me esqueci, nem do bom, nem do mau e não és tu o único a sentires-te só. Eu (em casa não há condições) procurava há momentos um sítio onde escrever e busquei nos cafés no guarda-sol, etc.; sempre a mesma gente perto e longe que me deixaria morrer por uma nota de 20$ ou menos ainda… e aqui estou no salão de entrada do Casino onde passa a gente imensa que vai para cima, dançar. E eu também vivo longe e desconfiado mesmo no meio de caras conhecidas. Sofro. Mas outra coisa, por vezes, me atormenta e essa é a interrogação sobre mim mesmo: sofrerei eu de facto ou é uma ilusão poética criada por mim para me engrandecer? Seja realidade ou imaginação nunca me senti tão diferente e incompatível como agora. Superioridade? Talvez. Ou inferioridade? É igualmente provável, o certo disto tudo sou eu EU diferente EU longe e desdém, enfim uma complicação. Que sou poeta? Mas eu odeio a poesia! Eu não a trago, facho triunfante, dentro de mim, é Ela que me arrasta e me comanda! Como eu deitaria fora esse carrasco mascarado! Lá em cima começou a orquestra e entrou no hall um grupo de velhos pescadores colocados inicialmente, à porta, numa triste comparação com os que entravam. Por alguma coisa se chama esta festa «Festa do Mar»! Tenho que acabar. Mando-te umas impressões curtas mas verdadeiras, sobre o que tenho pensado e visto; tencionava mandar-tas mais tarde quando fossem mais completas mas mando-tas agora. Depois te escreverei Do teu sincero, Cesariny ——— Agora chamavam-lhe cabra! e quando passava cuspiam sempre para o lado. As pescadeiras não lhe perdoavam que já não andasse com elas, encharcadas, na apanha do argaço e não passasse a fome do costume, no In27


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verno, quando os barcos não podiam ir ao mar, e comiam o que o acaso lhes trazia, os homens sem saberem fazer mais nada do que beberricar, esperando melhor tempo e mandando os filhos ranhosos [··] choramingar pelas portas de casas ricas, na esperança de um tostão ou de um pouco de caldo. Nesses dias cinzentos a casa ficava escuríssima com a rede inútil a um canto e a filharada fazendo chiqueiro, no meio dos quartos muito porcos e trespassados pelo vento em mais de uma direcção. Não, não perdoavam os vestidos, os jantares, as noites no Casino, ali, mesmo diante da miséria donde viera e sem ligar aos antigos conhecimentos. Uma rameira! Uma cigana! e remoíam lá dentro o despeito de não se lhes ter deparado[?] também uma ocasião de fugirem, fugirem daquela vida estuporada. ——— Curioso! O velho da carroça do circo! Ele e a tabuleta HOJE! DEFINITIVAMENTE! DESPEDIDA! formam um todo inseparável integral. Quando a carroça segue, desconjuntada pintada de azul mas cheia de escoriação que deixa ver a madeira, segue ele também, lá em cima com a mesma expressão de sempre, alheado, dir-se-ia um cego indiferente. E o rectângulo nu da tabuleta projecta-se, enorme, em cima da sua figura horrorosa[?], de trapos desleixados! Lá vai ele! Os garotos, às vezes, penduram-se na parte traseira da carroça e ele então agarra no chicote, expulsa-os, e fica muito tempo a olhar para trás como se se tivesse esquecido da direcção, parado, inerte, naquela coisa azulada e óssea[?] que se arrasta, gemebunda, pelas ruas cheias de sol e de moscas. Triste, o velho da carroça do circo! ——— Hoje, a praia do peixe encheu-se de gente, uma gente negra, que parece um escarro de mineiro. Depois duma semana de espera, em que se 28


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apertava o cinto e se distribuía, de irritação, pancadaria pelos mais novos que não sabem calar o estômago, lá apareceu a traineira do Zeferino. E as casas despovoaram-se, os pescadores aos barcos para carregar o peixe, elas para a praia, onde se fazia o mercado. E até quem não tinha participação na venda rondava por ali, na esperança de algum carapau surripiado com jeito, a face aguda meio escondida pelos lenços negros. E as mais felizes, que tinham feito venda, davam muitas vezes uma mão-cheia de carapaus, pequenos como dedos de criança, mas que serviam e bem! Eles eram assim, nem bons nem maus, a fome é que os manchava, fazendo-os recolher a casa, como lobos, quando um filho trazia da pedinchice algum pedaço bom de pão, nos dias de invernia! Por isso, sentiam hoje a necessidade de se lavarem dessas culpas e então eram mais solidários, quase amáveis! Mas durava pouco! De volta da praia já se olhavam desconfiados, como se a presença de outras pessoas afectasse o pequeno pecúlio que teria de durar até quando? Até que aparecesse de novo a traineira. E recomeçavam as rixas, as questões das mulheres, a pancadaria do costume! ——— Que farsada a da orquestra e dos pares rodopiando e até a da luz que se avermelha incandescida e depois cálida, em tons de luar fictício, num azul sintético de Casino! E aquela figura de «régisseur» que vai e vem por meio dos pares, entregando os prémios, tudo «faz favor» e «obrigados» metido no smoking ruço e esforçando-se por ocultar o remendo da manga esquerda que se nota por ser de pano mais novo! Que violenta contradição no meio da balbúrdia geral! Lá vai entregar o prémio: Parabéns! E a orquestra recomeça o slow doentio enquanto ele se dirige para a enorme circunferência numerada e pela terceira ou quarta vez lhe imprime o movimento giratório que produz um som desagradável, de matraca. A sua cara pálida, de rato magro, aparece por vezes aos pares que 29


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não mostram dar por ela. Por aqui! por aqui! e vai ensinando ao groom o local onde deve levar as cadeiras solicitadas pelos assistentes. Perdão! dá-me licença? Palhaço a fingir que ignora a sua condição! De resto não está ali tudo fingindo? Os músicos fingindo divertir-se com chapeuzinhos de palha na cabeça, aos pulos e gritos, os pares fingindo não repararem na graça forçada dos músicos. Do próprio Casino, com o seu borbotar[?] interior, se ergue a farsada[?] de não ver a praia do peixe, que lhe está em frente, buraco negro imenso, imenso com o frio e a fome espreitando atrás do areal e continuar julgando que a vida é champagne beijos e slows. ——— A tragédia do poeta é ter de mentir eternamente. Não é outra a sua missão, pelo menos a missão que lhe têm dado até aqui e que, creio, lhe darão sempre, pois essa é a génese da poesia. Num poema eu digo: «O poeta é um fraco cuspindo humilhação» «E a poesia a vitrine da sua impossibilidade» Humilhação perante os homens, perante si mesmo, até diante do universo pois esse ser hipersensível que é o poeta sente-se ofendido pela grandeza do cosmos. A coragem está em penetrar dentro de si mesmo e dizer o que encontramos e eis o que o poeta muitas vezes não sabe fazer, não PODE fazer porque o seu mundo é o mundo das imagens e não o da análise crítica serena e científica. Assim o poeta não pode fugir a si próprio. É à crítica que pertence escolher entre os casos particulares do poeta os que maior amplitude universal abrangerem. Mas pedir ao poeta que renuncie a si mesmo é como pedir ao vento que faça ouvir uma sinfonia em Ré Maior. ◆

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25-08-1941 Casa do Doutor Vasques Calafate Póvoa de Varzim Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa

Federigo Enriques, num caderno da Inquérito que talvez conheças, Significado da História do Pensamento Científico, põe em evidência o erro que em todos os tempos se cometeu de dar por definitivamente verdadeiro o que constitui apenas uma aproximação da Verdade. Desde Newton, que digo, desde que o cérebro humano obteve o dom extraordinário da dúvida, isto é, do pensamento, que se vem caindo no mesmo poço e essa queda é, até certo ponto, natural e humana. Hoje já se não deve pactuar em semelhantes descrições e a História do Pensamento Científico é, de facto, um grande passo para esse fim. Mas esta maneira de apresentar este problema suscitou em mim um outro de maior ou talvez de nenhuma importância, conforme o analisador, e ele é perturbante, a saber: terão os homens algum dia a visão e a consciência do Universo e das suas leis tais como elas, de facto, são? Ou serão os mesquinhos pioneiros duma verdade sempre procurada e só parcialmente atingida, numa galopada constante, eterna, que não terá limite e no entanto nunca atingirá uma meta definitiva? Não atingirão eles, à força de aproximações, a Verdade total? Consideremos a Matemática. Mas a Matemática não era um estudo sobre matéria virgem, era uma «verificação axiomática» das leis da Natureza, tradução relativamente fácil de obter e tanto assim é que os princípios matemáticos dos primeiros pensadores estão, decorridos séculos, perfeitamente lógicos, pois que a Natureza se conservou igual neste espaço de tempo e a lógica matemática é a lógica do Cosmos, a lógica dos «habitats da Natureza» como diria Le 31


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Dantec. Com a física, a química, a dinâmica, etc., começam as sondagens a tactear cauteloso e incerto pois que aí não se tratam certezas axiomáticas mas teoremas que, por vezes, só os séculos futuros podem demonstrar. E é assim que a caminhada nunca terá fim e Kepler desmentirá e acrescentará Newton e Einstein refundirá e alargará Kepler e assim até ao infinito. Isto interessa muito pouco aos sábios racionalistas que evitam especular sobre palavras… palavras… palavras… Mas (aqui está um pouco da contradição latente em mim) eu processo a Ciência mas permaneço Música, essa preocupação semimetafísica que não fala da Natureza mas sobre a Natureza, que não provaria os factos mas o que deles se emana e permanece revolto a remexer nos instintos primitivos, a sensibilidade poética de então que nós a despeito do disfarce trazemos connosco, apenas abafada pelas crenças[?] que vieram sobrepor-se-lhe. Tem Federigo Enriques razão, o nosso saber será sempre um reflexo. E esse reflexo tem grandes lacunas, se não repara. Durante muitos séculos se demonstrou que 2 e 2 são 5. No nosso tempo… não se quer saber quantos são!! Nota (como nós dependemos da razão!) que a posição de Auguste Comte em relação à ciência filosófica é uma resultante do raciocínio do próprio Comte, e o positivismo com a sua febre dos pesos e das medidas é uma atitude lógica, como qualquer outra… o eterno círculo vicioso! Os nossos músicos (músicos post-impressionistas) quiseram abrir a porta às descobertas do século e convidaram a Ciência a instalar-se no meio das suas partituras. Em primeiro lugar, conscientes ou não disso, não foram sinceros. Se a Ciência tivesse absorvido (porque o grande vulto aqui é a ciência e não a música; se tivesse de haver sacrifício era a poesia a sacrificada) ou melhor pactuado com a música abrir-lhe-ia o tamanho. A definição de tangente tem pouco que ver com a Nona Sinfonia e toda a ciência não con32


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segue destruir o mecanismo que leva alguns homens a exprimir, por meio de sons, as suas sensações, e, neste sentido, a música é a religião do futuro. Mas de que maneira se aproximaram os compositores ao pensamento científico? O único a considerar é Schönberg porque foi ele o único sincero, e sabe-se de que maneira ele subordinou a poesia à Ciência, isto é, como enleou a sensibilidade natural, trocando-a por uma sensibilidade lógica, matemática, a própria morte da sensibilidade. Os outros… só fizeram asneiras exceptuando Stravinski que como Novo Senhor Jesus Cristo «escreve direito por linhas tortas»! Puseram-se a examinar a máquina e o aço esquecendo que o aço oxida-se e a máquina enferruja só ficando de pé, enquanto houver homens, o próprio homem, e que uma Arte, para ser eterna só assente em princípios eternos o será. Que o músico receba a influência do século mas que não perca por isso o fundo humano de todos os séculos. É este o segundo erro dos músicos modernos. A sua música acaba com a sua época ao passo que a de Beethoven é de todas as épocas, porque trata do homem e não da máquina. De resto, como é possível fazer pensamento científico numa obra musical? Poderá alguma vez exprimir-se, só por meio de sons, o Princípio da gravitação? Foi aqui que se esbarrou, mas a queda não impediu a febre do positivismo e será de escrever Sonatas para Bicicleta, etc. etc., como se isso tivesse alguma coisa que ver com a verdade Científica. Porque de duas, uma: ou se é cientista e se manda ao diabo a música ou se é músico e se cumprimenta de longe, respeitosamente, a estátua imperturbável da Ciência. Questão de lógica? Não, questão de temperamento, de sensibilidade de coisas a que nós não saberemos, nem poderemos, nunca, fugir. Na hipótese do homem reabilitado, de uma cultura geral e duma consciência universal, património de todos, a música (já o disse) será a religião do futuro porque como diz A. Salazar tudo o que desde o homem primitivo tem passado aos humanos se grava neles por camadas. Assim não há bem evolução mas «justaposição». 33


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Amigo, termino. Tu notarás a diferença entre a carta que recebeste e a que agora recebes mas eu estou convencido que quem verdadeiramente sofre não pode aguentar muito tempo com a consciência[?] nítida do seu problema e procura outros problemas para esquecer o seu. Do teu sincero Cesariny

28-08-1941 Casa do Doutor Vasques Calafate Póvoa de Varzim Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa

Que lentement passent les heures Comme passe un enterrement Tu pleureras l’heure où tu pleures Qui passera trop vitement Comme passent toutes les heures Apollinaire, Alcools

———

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Como convulsivas minhas mãos paradas seguem redivivas por diferentes estradas! Como as deixo eu ir sem piedade! Estrelas que aos céus heis-de vir enlaçar-vos delas Deixai-as comigo o instante, só, de lhes ser o antigo anjo que não sou. Sobre o diadema que te coroei rei sem saber dar sem vender sua lei pequena Passaram anos horas diferentes gentes passaram só fiéis restaram iguais enganos. ——— Lúcifer — … Aperta-o mui bem, que nunca Satam o pôde enganar porque ele fora pousar no lugar onde pera sempre nam virá ninguém senam outros tais. 35


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Belial — Hás tu saudade de ir ver a teus pais ou, porventura, das tuas ovelhas? Abel — Ó senhor Deus! Pois tal m’aparelhas recebe meus gritos, prantos e ais nas tuas orelhas. Gil Vicente, Breve Sumário da História de Deus

04-09-1941 Póvoa de Varzim Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa (Norte)

Amigo Seixas Quando recebi a tua carta fiquei muito penalizado pois eu vou para Aveiro (casa da minha irmã) mais a família toda e dessa maneira fica em águas de bacalhau o projecto. De resto, eu daqui a 4 ou 5 dias já estou em Lisboa e depois falaremos. Do Cesariny

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22-09-1941 Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa (Norte)

Meu amigo Chocou-te a minha maneira pouco inteligente de te receber, talvez o meu silêncio. Sem dúvida eu devia ter estudado as situações, as palavras, de forma a não fazer-te chegar as lágrimas aos olhos, mas nada disso fiz. É que eu não sei escolher posição diante do que é Grande e fico como me viste [·], pequenino, como sou. E no entanto compreendi o que havia de doloroso no teu, e no meu, silêncio, para ti. Não esperava a tua visita. Disseste um dia que gostavas de te ferir e eu não acreditei. Sei agora que é verdade. Não, tu não és digno de lástima, mas de admiração. Dos destinos que o acaso forja não somos responsáveis. Somo-lo pela maneira com que o conduzimos. Mas máximas nesta ocasião são detestáveis. Quero só pedir-te para não interpretares o meu silêncio erradamente. Ele só representa quanto te admiro. Se quiseres aceitar-me tens em mim um Irmão Cesariny

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1942 «É por isto que a minha casa fica sempre longe» «Souberam ainda emudecer as estrelas e entoar comovidos as suas canções tristíssimas» «Então todas as fontes ciciaram dentro de mim e com elas a suave alegria nocturna daqueles que das sombrias melancólicas sombras mal esboçadas de todos os caminhos por achar» «Em mim não haveis de pôr louros nem sequer os espinhos porque a minha alma é uma praia por demais erma e ardente e as lágrimas do choro mais sincero nenhuma mão ainda as recolheu. Mas para mim as estrelas — quando brilham — são mais azuis azuis e castas como nos infinitos sonhos esses que a morte dá a quem na noite descansa os olhos…» (poemas esboçados a lápis pelo Cesariny em 1942 no «Grünewald» de Marcel Brion da «Plon» que minha Mãe encadernou em 1953 [Cruzeiro Seixas]) [Poema transcrito por Cruzeiro Seixas]

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03-04-1942 Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa (Norte)

Meu queridíssimo amigo Decidi acabar com tudo. Estou cansado de escrever porque acabo de escrever ao Z.F. a contar-lhe que vou matar-me. Talvez não creias nisto. É melhor para ti, talvez. Desculpa-me o deixar-te mais sozinho mas agora já não posso recuar. Que coisa triste, a nossa vida. Agora acabou. Os meus versos são teus também. Não venhas a minha casa até acabarem as férias. Lá só nessa altura saberão. Se quiseres falar comigo uma última vez vai a casa do Z.F. e pede-lhe a carta que lhe escrevi. Estou cansado. Adeus meu querido e infeliz amigo Vê se consegues ser mais herói do que eu que logo me deixei vencer. Que amargura a desta despedida definitiva. Não me resolvo a acabar! Mas tem de ser. Abraço-vos a ambos, do fundo da minha alma.

02-12-1942 Ele sabe ser cruel com uma perversidade fria e calculada a que mistura uns laivos de inocência. Sabes a quem me refiro. É nos momentos de excitação seja de que maneira provocada (bebedeira, por exemplo) que eu encontro, de resto, procuro-os, os pormenores dolorosíssimos que me inibo de explicar aqui. Para quê tanta maldade, tamanho coquettismo — e é 39


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esta a melhor palavra —, na sua maneira de agir comigo. Oh, nada de grosseiro[?] nenhuma ofensa aos princípios duma leal camaradagem. Se da sua parte alguma repugnância existe, por vezes, em privar comigo (sei que a tem como tu sabes que por vezes a sinto por ti) tudo se oculta compreensivelmente, com bondade. Gosta, apenas, de possuir assim uma alma, um entendimento, sexta-feira passada, bastante tocados — o que desenrola as finesses —, ouvi-o gabar-se a própria normalidade por uma brilhante e breve alusão a qualquer banal pormenor. Mais, vangloriava-se do meu contentamento em lhe estar próximo. Era bem nítido que me provocava, que queria saber mais, excitando-me com contradições grosseiras que me apontava, exibindo-as. Mas dessa vez não houve concessões da minha parte. Bastou o silêncio e esse já dizia demasiado. E agora ouve: eu não Devo recriminar-lhe nada, nenhum dos dois estava normal, ele deixou apenas falar o instinto de conservação. É isto que me punge. Nunca deverei uma vez ao menos fazer a minha voz gritar, a minha alma deve ser apenas uma casamata de desculpas para distribuir a toda a gente. É o meu papel ser humilhado, recusarem-se amigas, mulheres, filhos, lar. Sim, devo reconhecer-lhe boa vontade, compreensão, e de que serve se sei que no fim do seu espírito só há lástima ou curiosidade? Nunca, nunca houve para mim uma compreensão e aquela que me ofertam por nada a aceitaria sobre a monstruosidade de tal caminho não sei que deus há para recriminar, nem quero continuar, esse tom, por demais lamentativo. E tu sabes que uma fusão total de dois seres só na posse normal se consegue e dura minutos, segundos. Ver-nos recusada essa graça faz olhar o mundo com um desinteresse intuitivo, desesperado, que atinge a imbecilidade. Deixei que falassem meus sentidos. Como se comportariam? Muitas mais coisas hás-de esconder para além do que digo. É-me indiferente, como pudor, orgulho, etc. Não quero perder-te.

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Recorda-me certa crise violentíssima que mais que qualquer outro sentimento inspirava, pela certa, comiseração. A isto tive a resposta escrita: que tais coisas não faziam (a ele) «cara de rir nem de chorar». Depois disso continuei a sorrir e a apertar a mão, como é preciso. E tantas outras. E para que se cumpram os escritos deve a culpa ser minha, pois sou eu que procuro, escrevo, barafusto. Entende como quiseres (amor-próprio ferido, etc.) mas não encontro nele maior pureza ou maior miséria. Vou-o aturando porque me é necessário, necessito as suas afrontas e ódios para conhecer-me, construir-me. De contrário, o teria já esquecido. Não me classifiques como desumano ou humano, odiento ou não, nisto que digo. Isto, vejo-o confusamente, passa-se numa altura onde não se entende a lei moral comum e onde as catalogações não prestam. E agora crês que me lastimo? Pode realmente uma parte de mim chorar sangue estéril. A outra, que sou também, aceita superiormente e canaliza-me como todo, até à razão da vida. Se é consolação? Que banal a pergunta! Mas não podemos abjurar da banalidade. Responde por ti mesmo, se quiseres. De resto, para os simples, bem pode haver uma explicação rápida e reveladora. Também crês que é apenas paixão anormal? Desejo de possuir? Atormentá-lo até sentir nas minhas mãos inteiras a sua alma inteira? Eu quase o creio. Confunde-me, porém, que (ele) não seja mais que um pretexto, a corporização do mais além que em mim penso. Nunca reparaste que em quase todas as composições minhas há uma transposição do que seja humano para um plano místico distanciado disso. Que até onde possa haver só paixão erótica, pode haver e independente exaltação da poesia pura (como Deusa, como Senhor)? Acredito que, sem uma legenda ou prefácio explicativo um possível livro meu pode tornar-se como reunião de elementos místicos, apenas dirigidos ao ente todo poderoso, ao deus dos exércitos. Vou-me cansando desta crença. Peço-te que tenhas o tacto de não me falar nela. E, do lado de trás, há qualquer coisa. 41


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Posso pôr devaneio nos teus gestos? Deixar a porta apenas entreaberta para que venhas sem anunciação? Lançar-me pontes, ordenar degelos e tu sempre mais alto que a montanha? Destrinça, se és capaz, a quem isto é dirigido: a ele, ou ao Senhor? ——— A aragem branda e breve duma tarde amiga poisou-se na varanda que é tal qual uma noiva e diz-me: apesar dessa história realmente estranha há o nosso secreto entendimento os rios suavíssimos da vida o olhar daquelas que só desde ontem são mulheres e também o que és, no que te envolves, achas que nada disso vale a pena? Mas os meus ouvidos fazem-se pequenos e essa melodia tão bela, e choro, muito devagarinho e não sei que responder…

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30-08-1943 Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Querido amigo Da matriz de Caminha que muito tem para ver — aqui tens a c.d.s.d.m. Hei-de escrever-te com maior vagar e gostava que o fizesses primeiro para eu saber como «correm as coisas por Lisboa-Chiado». A morada é: M.V. (casa do Senhor Mourão) — Moledo do Minho — Minho. Um forte abraço, Mário 43


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07-09-1943 Casa do Senhor Mourão Moledo do Minho Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Querido amigo Tive o prazer de receber e no mesmo dia notícias tuas e do José Francisco. Lamento a tua doença — que obriga, talvez, a descansares o teu pulso, impossibilitando, mesmo, a escrita de linhas mais desenvolvidas que não as que permite um [·] bilhete-postal. Imensos votos de melhoras e cá fico esperando. Não podes, porém, acusar-me do terrível mal e — que queres saber? Logo nos primeiros dias da minha estada em Moledo alinhei papel e papel, escrevendo, contando impressões e tal carta não iria para melhor que Sacadura Cabral, 41-3.º dto Lisboa N mas certo estado de espírito — de quem afirmaria, se esta não fosse para ti, desnecessitando pois explicações longas — «especial», me fez metê-la na gaveta e já nem sei bem dela. Outras coisas de permeio com as habituais. E eis a razão do vasto, vasto silêncio. Se a encontrar, mando, embora não valha nada, nada a pena — desculparás as repetições mas é coisa deixada por certo mister. E é tudo. Lembras-te daquele «Poema d’Água»? Alguns retoques e enxertos necessitou. Deitei fora o quarto ou quinto poemeto, aquele: Vais partir, pequeno barco? porque tivesse embora certos «tics» felizes o conjunto era — de forma e conteúdo — bastante mau. Acrescentei-lhe outros, de que to44


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marás conhecimento, com paciência e vontade, mais abaixo. Mas é inevitável o deixar fugir umas palavrinhas sobre. Há muito tempo que eu sonhava com certa forma ideal de dar a vida. Um apontamentozinho aqui, outro acolá — guardo dois de épocas muito diferentes —, sem saber bem o que desejava. O classicismo — e aqui traio tudo o que há para dizer a respeito — atrai-me, puxa. E vá de procurar. É engraçado como a coisa apareceu. Que vontade eu tive de falar dos humaníssimos aspectos da Ribeira e do nosso rio e como lamentavelmente ruiu o fim em vista! Não sei como, o lápis escorregava[?] para outro fim e deitei-me a correr para aquele lado. Cônscio da partida e da falta de respeito aos tabus da voga não desejei mais que tirar o melhor partido possível, fazer o melhor que pudesse. E o segundo movimento: a reflexão, não é verdade? Mas tu já conheces o Poema. A sua física e metafísica. Não vou encher papel de explicação. Quero apenas mandar-te — coisas pequeninas — os que não conheces ainda. E também aquele outro que — diga-se o que se disser — é um poema que não conhecemos, e espero não chegar a isso. Igualmente, não é o que respondes? Um forte abraço do Mário

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18-09-1943 Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Amor, porque demos nós aqueles escassos beijos desapaixonados? Sim, porque quando sós permanecemos mudos e afastados? Ai! Ainda não sabia esses olhos teus vontade dos meus assim eloquentes, longínquos de qualquer verdade naquele cansaço naquela inimiga bondade de te recusar! Lembro que esperámos e a clara manhã demorou Lembro que culpamos o sonho que a noite roubou … Pela tua face minha mão desceu naquela carícia fugace em que fui todo eu… Do teu Mário Em Portalegre, cidade, do Alto Alentejo, cercada, de serras, penhascos, montes oliveiras e sobreiros… 46


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04-10-1943 R. Basílio Teles, 6-2.º dto Palhavã, Lisboa Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Querido amigo Je suis à Banco Espírito Santo où j’ai reçu — pour mon père, évidemment — cinq mille écues! C’est triste, n’est-ce pas? Promenez-vous demain, pour me voir, je suis tout à fait comme un moine, c’est incroyable! — chez Café Chiado — lorsque j’ai le jour livre à cause de la Republique. Vers cinq, six heures, je suis là. À demain, si possible! Cesariny

01-12-1943 Viseu Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto Lisboa N

— Versos de António Botto Música da Torre do Bugio —

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Querido Amigo Apetece, no costumeiro remanso desta mil vezes adormecida casa, comunicar contigo. Impressões — mas quais Ideias — mas quantas ∞? Da «amizade que eu te tinha» é pouco swing e consequentemente de mau gosto falar. Que há-de ser? Diz-me o António Pedro — por três noites ocupado a estragar, com o peso do corpo e ideias afins, as cadeiras dum magro circo: Miss Ofélia! Contorsionista! Bigodes e Jagodes! Cães amestrados! — que: Não há gente mais tenebrosa do que os músicos… Será? Mas… mais que ele, Senhor, é tal possível? Por aí passa e expande o bandulho que é uma graça. Justifico (?) agora certo quadro seu: foi o Monte de S. Tecla que lhe estourou das mãos… e com que desgrenhado — soturno — tremeluzir! De resto, um conversador de truz, puxa a sardinha que é um consolo. Como ele — poucos. E o bluff, então? Caro amigo, com infinita honte te confesso que dos livros aportados a Moledo e de origem lisboeta nenhum foi lido até ao fim e todos sem atenção. Maurice Denis, A. Lhote, [·], muito bem, bemtíssimo, mas em verdade — e talvez porque disposição de espírito? — não me quadra. Eu quereria — e eis que um livro como Le Cubisme me teria interessado o quádruplo — coisa não de crítica circunstancial, notazinhas aimables et bichanistes sur çà et çà et là… porque Seixinhas, lembra-te que aos manos[?] é permitido divertimento igual mas a quem ainda aflige a armação, como apresentar os decorativos? De manière que está-se à voir puis que je m’enfiche. Tiens! Experimentei depois a Angústia — do G. Ramos — e devo dizer-te que me desiludiu o homem e isto depois de ter lido as Vidas Secas. Estes romances brasileiros de intenção psicológica não valem um chavo. A eles — e a tantos outros, no momento — quadra-lhes a visão larga, social, do mundo. E só depois, mas como em breves e cuidadosas notas, aqui e além, elucidativos apontamentos de alma. Democracia, nivelamento, não é assim? Pelo menos no caso de G. Ramos. Aqui está um escritor que vence a tarefa quando trata com rochedos, planícies secas, al48


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mas só germens, brutas, sem individualismos. A seca vem e todos partem. Chega a abundância e todos tornam. Aquele destino comum — e tão comum que nos bastam os escassos personagens do romance para nos dar todo o Brasil bárbaro e naquelas condições — tem a sua grandeza e seu interesse estético. E eis o mesmo escritor aflitamente agarrado à dita Escola de Viena, dando-nos um quadro morto, angustioso, sim, mas de informe. Queres saber o que lembra? Pois um écran onde tudo, já estampado, se oferta aos olhos. Processo: três ou quatro dados característicos do herói, heroína, etc. Desenvolvimento. E numa enfadonha justificação, incessantes memórias, voltas ao passado, para matar, para amar, para maldizer. Diante do inesperado aqueles pretensos heróis não vivem não agem: sofrem imagens do seu próprio passado, param, e, só depois da justificação, esboçam seus vagarosos movimentos. Formalismos de escrita. Passaram muitas horas desde o fim das tristes linhas que vens de ler. Delas pode recolher-se aquilo «de um romantismo de actor para o de autor». É coisa bem importante e calha às maravilhas para fixar certo tipo de escritores em abundância nos Brasis. O mau é a epidemia ameaçando grassar por igual, no nosso estreito, estreito mundo de Letras. Mas — te juro — não vai longe e cá luta-se por coisa melhor. Esperemos. Bom amigo — e aí vem o momento de intimidade que pediste e ao qual tenho fugido nem sei porquê, certa apatia que poderias chamar bom senso, a impossibilitar-me as lamentações — poucos meses tenho passado tão conflituosos em mim mesmo, uma agitação surda que não estoura e deixo roer ignorante dos significados que certamente tem. E cansaço, talvez. Anseio pelo momento de poder olhar-me com maior serenidade para distinguir melhor e colher alguns resultados menos confusos. Assim chego — na minha norma de vida — a um fim moral, apesar de tudo. Crêem os católicos ser impossível não haver prémio que doure os inúmeros sofrimentos do homem. Criaram uma ética tendenciosa, uma estética particular, mas refugiavam-se no sonho e nada acrescentavam ao mundo. Eu creio por igual nos 49


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frutos da dor e procuro — nisto me afasto — concretizar, antes de mais nada. O belo, a minha noção do belo, às vezes, ajuda-me. Há sempre possibilidades para continuar. Que eu, neste momento, não veja como, nada me ajude e deambule pelas ruas como um nicho vazio, pouco importa. Mas poderei aguentar com calma tanto oco? Ou tralha em demasia? Quando estou, por qualquer motivo, impossibilitado de trabalhar, todo o meu arsenal de convicções se derruba; e que moral ou norma como salvação e alegria? Outros problemas me preocupam também. A vida que enceto este Inverno, brusca mudança tão pouco para o meu feitio. Meço, desmeço e fico na mesma. É como ir de olhos fechados e ouvir e palpar e ter todos os sentidos lassos. Nunca experimentaste isto? Razões de amor ou simples simpatia, natural convívio, necessário convívio com outros e outros, como isto mexe comigo e me deixa ignorante! E que fazer? Nem tudo é só simpatia, nem tudo é só sensualismo ou estreita amizade tenho medo que não compreendas isto. Mas falta-me a vontade de explicar. Dizendo melhor, não sou capaz disso. Por Deus, não me creias apaixonado por alguém. Tudo o que disse aqui é tão só comigo, dos pés à cabeça, não sai do próprio corpo e pouco vê do ambiente. Que tolices para um psicanalista! Não é certo? E desculpa a epístola. Quero uma carta tua mas das grandes — daquelas que eu nunca recebi podendo pois compor-lhes o tamanho a gosto — com qualquer coisa dentro embora pouco decifrável como usas. E adeus. Cesariny P.S. — Que achaste das poesias? Diz qualquer coisa, caramba! ——— Repetições de frases e acontecimentos. Um frouxo fio condutor. E eis a obra. Certo é não se lhes apanharem contradições nem descontinuidades mas disso mesmo advém um risco de baba mole, sem asperezas. 50


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Assim me parece a Angústia. Tentativa de fugir a um romantismo de personagem para um romantismo de autor. E depois, — depois, eu tive ocasião de ler agora Carne da Minha Carne, O Drama de João Barois, A Vida Inteira, algumas tragédias gregas, livros, enfim, que são já «Biblioteca das Famílias» mas nos dão e constantemente admiráveis lições. Ai um classicismo, um classicismo para tudo ponham-lhe embora neos que também são precisos! E o Henry James, a Jane Austen o Gide John dos Passos e o Mann e o Huxley o Steinbeck, tantas outras maneiras que o brasileiro, à sombra da banana, esquece? Nós, ao menos, somos mais sérios, vamos procurando, embora com poucas esperanças. Mas batalha-se, ao menos. Há romances felizes, lá nos Brasis? Pois há. Mas é como diz o Cascais: há horas felizes, há horas felizes, a alguém tem de sair! Mas — no caso — sai uma ou duas vezes, e às vezes não sai nenhuma. Quem não quer arreia! Meu bicho a noite vai muito adiantada e termino. Um forte abraço para ti e para Zé, se o encontrares Mário

21-08-1944 Hotel do Facho Foz do Arelho, Portugal Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Querido Amigo Venho falar-te um pouco da João Falco. É, antes de mais nada, o mais extraordinário caso de sensibilidade da poesia portuguesa. Só o An51


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tónio Botto se lhe pode comparar e mesmo assim fica a perder com o paralelo. Talvez eu não devesse ter dito: caso de sensibilidade da poesia portuguesa mas sim das letras portuguesas… De resto ela mesma fala na sua «prosa versejada» e diz-nos: «Sim, tens razão concordei Não são versos que faço embora assim o julgue às vezes.» A João Falco não interessa, segundo me parece, a forma nem o estilo. Escreve e é tudo. No entanto eu vejo nela a autêntica e tão rebuscada poesia pura, sem disfarces nem enfeites e essa maneira é tão sincera como perigosa. Pois o que salva o pintor, o músico, o poeta não é ainda e sempre a forma? Se ele ficasse a sós com o seu caso sem possibilidade de traduzi-lo de qualquer maneira, de «deformá-lo» para poder trazê-lo aos outros, de, sejamos verdadeiros, de — enfeitá-lo —, o que seria dele? Porque a ânsia bem natural e humana que se preocupa com a maneira de falar é, no caso dum poeta desalentado, o que o faz vibrar e desejar mais vida ainda. Isto não subtende falsidade ou farsa mas a tal fraqueza de criar de que nos fala o douto Gaspar Simões no Pântano. Ora, é isto mesmo que nenhuma atenção merece à João Falco. Fala sem ligar meia ao estilo, à forma, à beleza, a nada. Nela nem sequer o esforço para dizer tudo. Se saiu bem, se não saiu, melhor. É um abandono terrível e indiferente, um alheamento cansado de tudo e de todos. Nos seus versos, nenhum subterfúgio ou expediente, nenhuma técnica que justifique a palavra «arte». Há mesmo um excesso de sensibilidade que sufocou qualquer veleidade na maneira de fazer e de traduzir. É por isto que tanto são versos como prosa. Por exemplo: «Tu, minha longínqua amiga, tão fiel e tão idealista, quantas vezes me tens afirmado com paixão que o sentimento religioso, todo feito de re52


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colhimento e contemplação, é a vibração mais pura e mais íntima do teu espírito?» Isto é um extracto de um dos seus versos que não tem, como vês, nada de ritmicamente lírico. Não é, portanto, no que respeita à técnica de fazer que considero a João Falco um espírito poético dos maiores, mas sim no que trata da sua sensibilidade tão grande, que abafou tudo o que lhe podia ser contrário. Tal abandono, tecnicamente perigoso, eleva-a por vezes a um estado emotivo tão grande que assombra. Tens aqui um exemplo: Mudei de vestido E agora que já estou sentada olho para os pés. Não mudei de meias. Deixá-lo! Fico com estas. Mas haverá quem não repare em tão pouco… Quem não tenha medo de estragar meias de seda animal Quem, em sua casa ande como na rua… Poupar! Conservar! Este cuidado… Esta canseira… Não mudei de meias? Que me importa! 53


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Temos de concordar que ela é uma sensibilidade excepcional, sem ter a arte de ser poeta. O que é uma grande coisa. Mas arrisca-se, dessa maneira, a que vejam nos seus versos prosa, o que lhe é, creio, absolutamente indiferente… Ora aqui temos, diante de mim, o pólo oposto da J. Falco. O Senhor Doutor Vitorino Nemésio. Tal Bicho, ainda que Harmonioso como indubitavelmente é, não vence nem convence coisa nenhuma. Senão veja-se isto: enfim é melhor não dar exemplos porque seria uma crueldade arrancar qualquer bocado à atmosfera absolutamente impressionista do livro. Mas nele o amor da forma é tal que se perde, e nós ficamos quase invariavelmente desconhecendo do que se trata. E o curioso, é que quanto menos se percebe mais se gosta… É possível que Vitorino Nemésio tenha alguma coisa para dizer e tem-no com certeza. Mas o que tem está absolutamente engasgado pela bagagem inverosímil (se bem que muito expressiva e cheirosa de maresias, como é moda) e inútil que arranjou. Deixemos que cada poeta tenha a sua maneira própria. Mas depois que se sujeitem à crítica e o Vitorino Nemésio no seu livro B. Harm. é um autêntico poeta de bugigangas muito subtis e aristocráticas. Paciência… Mas falemos de assuntos menos «importantes». Eu tenho-me aborrecido bastante porque isto aqui é tão triste que magoa. Ainda por cima está sempre um vento terrível e friíssimo, de tal maneira que, quando se quer observar e «sentir» esta imensa tristeza vem um frio medonho que nos mete em casa para todo o dia. Isto é um areal imenso e vazio que tem por única variante os postes telegráficos plantados à beira da estrada que nos parecem fatalidades mas eu estou a fazer coisas bonitas… 54


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Vou passar-te duas coisas que aqui fiz: ai a tristeza de partir sozinho sabendo de antemão que todas as chegadas são motivo de novos chamamentos… outros destinos fingem ir também e as rodas no caminho: cantam uma cantiga acre de saudades saudade dum eco subtil esvaído… espasmódico… alegria de quem fez das nuvens lenços a acenar porque não tinha mais nada E lá longe o alvo é só uma promessa de velhas sensações tão conhecidas! o desengano a resignação humana de quem anda agarrado a qualquer esperança nunca satisfeita nunca revelada e sempre viva.

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E, apesar de tudo esperança? Verdadeira, afinal a mentira de todas as coisas… Aqui vai um outro que é (pasma!) rimado: Logo que o Ocidente sobre o mar deixou de ser uma chaga escaldante alucinada caiu, longínqua e distante como quem desconhece tanta tristeza caiu perversamente uma noite fria e estrelada depois dos enganos que o dia tinha visto depois dos passos vãos cansados depois do choro dos esfomeados gemendo em qualquer barracão depois do imenso funeral d’espranças dos afogados que andam lá no mar cumprindo a praga do seu destino depois do pobre menino esborrachado que desenhou o corpo na rua 56


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e deixou um imenso vazio na cadeira onde, à mesa, se sentava dos homens perdidos nas florestas e das virgens despedaçadas as dos seios rasgados, e olhos vítreos de que andam cheias as estradas, depois do temporal que levou vidas para nunca mais depois do vento gemendo nas frinchas e a dor nos corpos sem abrigo depois do pedinte apedrejado o da inocência cem vezes manchada caiu fria e diferente como se não soubesse uma calma e belíssima noite estrelada… Do outro lado da Terra mãos exaustas como as nossas já pegam o fardo pesado da nossa oferta nocturna Assim suplício a meias não custa tanto Mas inda bem. Que venha o sono narcotizar as ansiedades de quem nunca se cumpriu que venha a paz 57


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uma paz qualquer suavizar nosso destino E desça desta maldita e fria noite estrelada alguma coisa da sua indiferença que faça esquecer a enormidade do que nunca fomos e isto que somos. Que dizes? Cesariny ——— Se foi escrito que da água mais imunda nascesse, alvíssima, a flor mais pura que nos charcos estagnados doentios se fosse reflectir a luz das estrelas e que germinasse em miséria a maior grandeza Porque não hei-de erguer límpido o meu canto Parta ele donde partir venha ele donde vier? 58


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——— Inverno Única coisa verdadeira: o vento o vento e o areal deserto a luz envilecida da taberna a adormecer gritos lá ao longe… E os barcos na praia quietos esperando verdadeiro também um xaile negro bailando ao vento a espedaçar a brancura de tudo como revolta (O que é aquela ansiedade que lá vai a navegar?) E sempre sempre mesmo na esperança, a conversa tristíssima das ondas… A Barra de Aveiro 59


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08-09-1946 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N Av. Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Amigo Segundo todas as previsões é amanhã, quinta-feira, às 22 horas, que se realiza na R. Marcos Portugal (próximo da Escola Politécnica), no Grupo Dramático Lisboense, o nosso «sarau». Se quiseres aparecer não esperes por convite; procura qualquer de nós, a essa hora, lá no teatro. Um abraço do Cesariny

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26-08-1948 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa Avenida Sacadura Cabral, 41-3.º dto. Lisboa N

Querido Amigo Recebi a tua carta de ontem e agradeço-te as démarches feitas para meu encontro. Infelizmente, nem sequer vi o postal que me enviaste — deve estar já mergulhado nas montanhas de papel que afligem o atelier — e portanto faltei. Acresce que estou — finalmente! (entende este finalmente de todas as maneiras especiosas, se fazes favor) empregado aí numa Caixa de Previdência onde há SEMPRE serões e portanto as minhas noites, excepto sábado e uma ou outra noite em que me esquivo o snr. compreende tenho um cunhado à morte, etc. etc. e tal — são de fogo fresco. Mas uma vez que no sábado à noite também estás livre poderíamos talvez tentar o tête-à-deux nessa ocasião. Se não houver notícia em contrário lá me tens (no atelier) a partir das dez e meia. É bom não imaginares muitas coisas mas também seria chato não imaginares algumas. Um abraço do teu Mário Cesariny

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28-04-1949 Querido Amigo Esperando que recebas esta a tempo, informo-te que telefonando eu ao fotógrafo que sabes, me foi pedido que adiasses a sessão para a outra semana, por motivos de doenças do pessoal e férias do patrão. Marcou-me outra data, a saber: quarta, 4 do mês que vem, à mesma hora e com o mesmo cerimonial. Esperando encontrar-te ainda antes dessa data, abraça-te o amigo Cesariny

08-11-1949 «Colégio Estremocense» R. de S. Pedro Estremoz Av. Sacadura Cabral 41-3.º dto. Lisboa N

Caro amigo Seixas: Um grande abraço. Eu e o Mário Henrique fizemos um pequeno manifesto Anti — António Pedro — Grupo de Lisboa, com razões concretas e de certa responsabilidade. Contamos com a tua pessoa para a assinatura da coisa, que brevemente explicaremos melhor, sendo a pressa de hoje motivada por já estar na tipografia o manifesto em questão sendo 62


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preciso dinheiro que será de 20$00 por cabeça, se todos os de aí mandarem, mais, se houver falhas. Envio-te este porque não tenho a certeza de que o Fernando ou o Lisboa, a quem também se escreveu, consigam pôr-se em contacto contigo rapidamente. Outras novidades — poucas. Devo voltar dia 20 e ando a recuperar gorduras pois a situação ex-em-questão não se arranja. O Costa passou cá o fim da semana que findou. Palestra, tinturas. Quer-me levar para Viana do Castelo (!). Abraços e saudades do CESARINY

Não deixes de enviar a coisa na volta do correio. O «manifesto» estará pronto na próxima 5.ª feira e temos de pagá-lo. Espero que não consideres como «abuso de confiança» o dispor do teu nome. A confiança que eu tenho em ti é grande, melancólica e absoluta… — YNIRASEC.

16-11-1949 Colégio Estremocense Estremoz Director: Dr. João Falcato Licenciado em Letras

Querido amigo Recebemos a tua carta e respectivo desenho que achamos lindo e até talvez de fazer em barro ou madeira. O Mário Henrique faz de um sarrafozito um objecto de superstição[?] notável, que depois se averiguou ser 63


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uma encarnação do Père Ubu. Escultura. Tempos depois fomos a um «monte», a convite de um dos rapazes do 5.º ano, convenientemente guitarrista e doido, e algo contagiado pela nossa actuação, que tem sido eficiente no sentido da anarquização, em bloco e individual, no colégio e no internato, que se transformou num autêntico caldeirão de revolta a explosão diária contra a autoridade, o matriarcado, a Eficiência Escolar, etc., fervendo os chamados desvios sexuais, ó encosto, ó enrabamento simbólico, ó beijos na cara, é o que às escuras bem se supõe que se irá fazendo, ó introdução de putas no quintal. Por contradição lógica, foi o Mário Henrique que leu aos rapazes uns trechos do magnífico Sade. Compreendes, decerto, a minha posição… barris de pólvora nos pés, na cabeça, à direita e à esquerda, e como quero ficar aqui até ao fim deste mês, guardo para mais tarde a solene escandaleira. Os rapazes gramam-na à parva porque ouvimos sempre o seu deles natural instinto de revolta e já perceberam que, no capítulo do banzé, do faz-barulho e da maluqueira, excedemos de longe as possibilidades deles. Sirva de exemplo o concerto de pífaro dado na manhã (7 horas da manhã; 2 pífaros) do meu primeiro dia aqui, concerto que os deixou transtornados (o Falcato e a Directora não ficaram menos assustados). Uma noite destas, quando o barulho nas camaratas era de canhão, eu e o Leiria mascarámo-nos de personagem horrível e corremos pelos corredores. Resultado: a coisa foi-lhes tão inaudita que ficaram estafados, apagaram a luz e não se ouviu mais pio. E etc. Mas vinha o passeio ao tal «monte» a propósito de se ter descoberto, com a ajuda de um outro, que é empregado numa livraria e treme constantemente (é nervoso) da cabeça aos pés, uns troncos de figueira que nos deram uma figuração mágica, muito forte, rude e expressiva, que pusemos a funcionar em conjunto, e a que acrescentámos a escultura-objecto do Leiria. O resultado é convincente e serve bem uma exposição. 64


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Tenho feito, sozinho e com o Leiria, boa porção de tinturas, que devem ser expostas assim que eu aí chegar, na livraria Portugália (por exemplo) ou no atelier da Fritzy, sendo porém a livraria melhor local. Por estar a coisa pensada entre mim e o Leiria, e por ter havido nítido afastamento entre nós e os Lisboa, Oom, Fernando, Henrique, resultado de cartas trocadas a propósito da Declaração tentada, a exposição é das tinturas aqui feitas 20-25, desenhos a tinta-da-china, 2 poemas, um meu e outro do Leiria, e o tal grupo escultórico, mas tínhamos gosto e empenho em que, em caso de teres desenhos novos ou objectos ou o que for, exponhas também connosco. Da questão com o Lisboa e outros não vale a pena falar. Não se tratando de uma divergência absoluta (ou clara) chega no entanto para mandar à merda, o que escrupulosamente fizemos. Às 13.20 horas A borbulha: a cozinheira, a ajudante, a rapariga nova que deve ser criada, etc., + o Joaquim e a Isabel, que servem à mesa, vão ser denunciados por nós às entidades competentes por, várias vezes já, mas hoje indecentemente, se abotoarem, ou com o dinheiro das compras, ou com muita carne no bandulho, porque a rapaziada andou mal servida e hoje, dia 16 (no qual dia me encontro de tripa estragada graças, principalmente, à horrorosa beberagem a que chamam, aqui, pequeno-almoço), ficaram dois sem comer e todos em revolução. Grandiosas inimizades nos esperam. Abraços, e até ao fim do mês Cesariny

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1950 Querido amigo meu Ao diabo o bem-estar. Desejo muito e muito a tua felicidade ou o que por ela em ti melhor entendas. Estou no Porto, à espera de poder regressar a Lisboa e de tudo, foi muito, o que se passou, melhor é vivê-lo que contá-lo, melhor é contá-lo que escrevê-lo, melhor é beijar-te a boca de olhos muito abertos e mãos fixas no espaço e dar-te assim, silêncio grande de denso, as letras do alfabeto — e que tu, por ti mesmo, escrevas as palavras que as reúnam, no chão da areia lisa que te fala de mim. Guarda depois, na ampulheta que fabricarás, que fabricaste com pedacinhos de pano e pregos[?] coloridos, a areia consultada, e, fixando o cristal, intensamente, com a lucidez luciferina e lenta que há em certos desenhos que tu fazes, vê se vês os meus olhos. Eles estão lá, à espera do seu par de um só instante no vidro. Olham-te neste momento, por detrás do papel… Seixas!… não tenhas medo… Eles queriam para ti o mundo que não têm, uma terra vermelha e não violenta, um doce azul na concha das tuas mãos… De algum modo a poesia põe as coisas no seu lugar… Calmei agora uma série de coisas violentas demais para serem escritas — são iluminações… Adiante. Foi extremamente belo o que entre mim e o Costa se passou na Barca. Peço-te encarecidamente que lhe escrevas no dia em que receberes esta minha. Ele está agora numa crise grande, em Viana, e precisa de ânimo e notícias tuas (na carta que recebi hoje pede-me que tas peça). Claro, não faças de médico… Escreve-lhe como se tal não te tivesse sido solicitado — dando e pedindo notícias. Sim? Creio que lhe é horroroso viver naquele mundo, depois dos dias de liberdade e amor — grandes — que teve na Barca. Passar-lhe-á a coisa, sem dúvida. Mas, entretanto, chora e está desesperado… E eu, claro, imagina como estarei… Procura, se puderes, o Eugénio e pergunta-lhe como vai a «edição» do meu poema. (O bandido é realmente meu amigo e eu redobrei de ami66


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zade em relação a ele — o Norte é a terra dos milagres, sabes?) Os «rapazes» cá no Porto iam morrendo de prazer e susto, ontem à noite, altura em que me deu para recitá-lo… Tive depois de repeti-lo a uns outros, que esperavam eléctrico e me meteram num café… Um êxito. A falta que me fizeste, e que cá fizeste, não a sonhas tu… Paciência. Escreve-me também e dá-me notícias, sim? Para casa do Eduardo: Casa das Acácias, Circunvalação, Matosinhos Se escreveres amanhã, recebo no domingo. Do que te toma os olhos e as mãos e te beija devagarinho Cesariny Estou de barbas crescidas — pêra e bigode. Promessa feita ao Carlos… Verás como estou impressionante. As Áfricas. Quando sair de cá, mando um postal. Até logo.

22-03-1950 Ao cuidado do Snr. Dr. Eduardo de Oliveira Barca do Lago, Gemeses Esposende Avenida Sacadura Cabral, 16 (ex-41) 3.º dto. Lisboa N

Esposende, 22-03-50 Querido Amigo, não te tenho escrito por não ter bem presente o novo número da tua porta. Vou pôr 16 e seja o que o demo quiser. Tenho 67


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escrito ao Mário Henrique e ao Lisboa por vias da conferência que se vai repetir no Porto, no próximo dia 30, nos Fenianos. Praza aos deuses e aos pénis que a coisa não se atrapalhe e o Lisboa chegue a tempo e horas (calcula tu que também não tenho a morada dele e é por intermédio do Mário Henrique que escrevi para aí ontem noticiando a coisa!). Peço-te o grande favor de te pores também em campo e dizeres ao Lisboa que deve estar no Porto o mais tardar na próxima quarta à noite — chega lá às 9 horas, parte do Rossio ao meio-dia e poucos — com a conferência e os poemas dele e do Mário Henrique, que estão aí. Trata disso, sim? Eu lá o irei esperar. Querido amigo há imenso que contar mas estou um pouco esgotado de tanta escrita já feita e guardo outra ocasião para contactarmos. Acho que devias vir também até ao Porto para tratares comigo seja da Exposição colectiva que as gentes novas da cidade a gritos querem que se faça, nos Fenianos, também, seja de uma exposição individual tua, de desenhos. Por milagres que ainda não percebi muito bem, no Porto, vende-se mesmo, havendo neófitos como alguns que conheço lá — digo poucos mas alguns — que fazem 10, 15, 20 contos por exposição (óleos). Deve-te parecer mentira mas é absolutamente verdade. Trata pois de vir até cá cima. Reúnam-se em concílio e vejam se podem vir dois ou três — proponho tu, o Mário Henrique e o Lisboa — trazendo já trastes para a Exposição colectiva e o mais que entenderem. Também estamos convidados para publicar textos e desenhos numa revista de gente nova e antipartido que há no Porto. Creio bem que não faríamos mal se mudássemos com armas e bagagens dessa horizontalíssima cidade para a cidade do Porto: verticalismo, agitação, gente interessada e ainda nada informada. Convence os papás e põe-te a andar cá para cima. Procura o Lisboa. Mexe-te. Desarranca. Porque eu espero-te. Querido (!) Fica sabendo que entretanto parto amanhã para Viana. O Costa tem um plano: abrigar-me em casa dele até domingo. Eu tenho outro: trazê-lo para a Barca na sexta-feira e passarmos um fim-de-semana não só numa lindíssima terra e numa casa não menos linda mas, ainda, o que é o mais 68


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mais lindo, completamente sós. Ainda não te disse, nem to direi agora largamente: mas houve cenas cruciais entre a minha pessoa e a pessoa do meu anfitrião. Confesso generosamente que, quando vim, estava um pouco disposto — um pouco mentalmente disposto — a pagar um pouco com a minha carne (oh) o desenrascanço que se me oferecia. Mas, desde a minha chegada, na quinta, 15, até domingo à noite, desenrolou-se em mim um processo pelo qual ficou completamente claro que era absolutamente impossível qualquer contacto mais coiso com ele. A grande crucialidade atingiu-me quando o senhor basto excitado por cima e por baixo se abraçou a um bloco de gelo que dava pelo nome de Cesariny. No dia seguinte eu propus a minha pura e simples volta a Lisboa, compreendendo eu que era um pouco culpado da coisa e não querendo ir para a Barca na situação que se me propunha. Depois contarei melhor. Foi aqui que o senhor se revelou inteligente e encantador, parando a manobra e, ó delícia das delícias, deixando-me completamente só na Barca, onde me encontro; creio que ele se esforça por ficar apenas meu amigo e creio que conseguirá. E sendo assim ele tem faculdades e encanto suficientes para que eu passe a encará-lo como um amigo, e dos raros. Muita coisa tenho feito e ainda mais tenho visto. Domingo último estivemos, com o Eugénio e outros talvez menos poetas mas basto mais virilmente bonitos, em casa do Teixeira de Pascoaes, no Marão. Almoçámos e jantámos lá e no intervalo [·] ouvimos uma notável conferência dele, feita no teatro de Amarante, na tarde do mesmo dia. Pormenor indispensável: os bombeiros de Amarante são lindíssimos. Quanto ao Pascoaes, é um caso de grandeza que o faz sair desta terra para atingir sem dificuldade o «espaço finito mas ilimitado», como ele diz. Vou terminar. Esta noite tenho rendez-vous, lá em casa, com o mais lindo moço do Minho. Ele está na coisa. Eu propus, claro, um jogo de cartas. Oh! — como deves calcular as vindas do Eugénio à Barca, e outras, prepararam imenso os caminhos. 69


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Querido amigo espero-te cá em cima. Eu devo ficar na Barca até ao fim do mês. Depois disso, vou para Viana 10 dias, a convite do Costa. Depois voltarei ao Porto e poucos dias depois regressarei. Mas se vocês os 3 vierem, modifica-se a vosso gosto o programa. Um abraço do teu Cesariny Dá um abraço à Fritzy e diz-lhe que escrevo agora de Viana.

26/27-03-1950 Casa das Acácias Circunvalação, Matosinhos Av. Sacadura Cabral, 16-3.º dto. Lisboa N

Barca do Lago, 26-27 Querido amigo Paira sobre o silêncio do Mário Henrique e do Lisboa, agravada pela real necessidade do meu pedido de resposta breve — a grande urgência, dizia eu — sobre Aquilo de Quinta-Feira à noite, nos «Fenianos», dia 30 — atrevi-me a falar em telegramas! — uma nuvem de langorosa cor verde chamada a inconsistência lúgubre, ou, em linguagem colectiva, inconsciência mais barata. Se a coisa é preguiça pessoal — temos dito. Se é não recebimento de cartas — lúgubres correios! Se é falta de quatro mil e tal 70


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para um telegramito — coitadinho — merda. Se é falta de interesse pela coisa — caca. Em qualquer caso, isto é, no último caso, evoca-me (e não: invoca-me) a questão de não se deixar um sujeito (no caso eu mas pode ser qualquer) na difícil situação de anunciar, ou deixar anunciar, uma conferência e um António Maria Lisboa, mexer cordéis e provocar esperas para ficar tudo numa bolinha de sabão sacana, de leve cheiro a desastre e solene enfiação da parte do sujeito (Cândido). A suposta nudeza de linguagem não está sendo senão bastante mitificada. Também a tua carta é olimpicamente omissa na questão da conferência. Ámen. … Meu caro está neste momento nos meus ombros o peso duma solidão tão tremenda, tão bem preparada através de 26 anos de desgraça individual, que dá vertigens. Creio que me salva do suicídio a pura e simples não existência que é, cada vez mais, não o que estava em mim, mas o que me rodeou (Os defuntos não se matam. Podem esperar. E eu, como diz o outro, que acabou em místico: Les morts, les morts sont au fond moins morts que moi…) Dá isto uma dor muito viva, toda ela feita de um longo, persistente, sacana, cortejo de desilusões. A última, fui buscá-la de bicicleta, a Viana do Castelo… A próxima, meu caro, há-de encontrar — um cadáver. Como vês, encontrei a saúde do espírito… Conserva o Tony — come chocolates, pequena, come chocolates… —, porque qualquer veneno serve, do mais charro ao mais subtil. Eu se puder, se encontrar vida própria, ficarei no Porto — não é sem um certo movimento de asco que torno presente a vida que em Lisboa temos, ou tenho, feito, e as gentes que por aí se encontram. Não espero encontrar melhor, cá em cima, é bem verdade. Mas os meus movimentos serão outros. Faz o que entenderes às hipóteses da tua vinda. Confirmo a minha carta anterior e acrescento apenas que, se vieres, será evidentemente para 71


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estarmos juntos. A partir de 4.ª feira estou no Porto e noticiarei se houver mudança de residência ou localidade. Se até amanhã não tiver notícia do Lisboa, sobre a conferência, suspenderei a mesma. Aceita um abraço do Cesariny A única coisa que me é difícil suportar, nessa às vezes bonita história das tuas relações com o Tony, e não posso suportar por ser apenas miseravelinho, é essa exigência com que ele te pretende, única e exclusivamente, sob o encanto e o peso da sua dele vida. Esse animalzinho que sabe — porque o sabe, não sei eu — que tem a vida, desculpa o termo, estragada, há-de ser tudo e mais alguma coisa no sentido de estragar eficientemente aquilo que ele não atinge e que, feitas as contas, é o melhor de ti. Lembra-me de passagem a velha História das relações criatura-criador, sendo que o primeiro personagem — senão, não era 1.º personagem — há-de escarrar na cara do segundo, o que é filósofo-biológico, e sendo que o segundo há-de daná-lo e achar noutro «parceiro» a nova danação. Filosofias… Diz-me em duas palavras esta questão: é porco e indigno o que o Tony deseja. Mas porca, indigna e fraca é a matéria. Ámen. ◆

08-04-1950 Num café de Esposende, ao pé do Carlos, 8-4-50

Muito querido amigo meu Desejo-te saúde já que disposição é o que pode haver e não se pode provar por carta. O Costa está comigo na Barca desde quinta-feira última 72


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e tanto ele como eu temos desejado muito a tua presença por sabermos que adorarias estar aqui levando connosco a vida grande que por cá fazemos. Imagina (para exemplo): hoje, depois de um magno passeio no rio, de parceria com uns jovens vizinhos doidos que têm um barco a motor, regressamos ao lar, e depois do competente banho de sol no jardim da casa, almoçamos (no jardim…) de: sopa de [·], SALMÃO francês — um mimo — com mimoso vinho verde e salada, segue arroz (acepipado pelo Costa) e carne assada. Rojões, presença de molho branco. Segue fruta, café, queijos, biscoitos e bolinhos. A garrafeira. Segue uma soneca à sombra e ao sol enquanto não chega a hora de comer outra vez. Às cinco, surge a mulherzinha que trata da louça e faz sopas, aproveitando-se o dedo que dela serve para nos tirar fotografias. Após o que vinda a Esposende (paisagem lindíssima) os dois montados na bicicleta (única) que temos, legada pelo Eduardo, revezando-nos na pedalada. Medo da Guarda. Chegada sem incidentes. Amanhã, porque o Eduardo pediu que estivéssemos fora de casa o domingo pascoalino, a fim de impedir habilmente a presença do padre lá na casa — manobra de uma habilidade que é já tradição por se repetir todos os anos — vamos para a Póvoa de Varzim, onde tenho os ramos mais loucos da minha já bastante louca família, e espero que nos dêem guarida — nisto a caridade cristã e a alguma amizade. Se a caridade não pegar comeremos por fora… Bem. O Costa apareceu com um poema magistral. Infelizmente, tem de ir para Viana já na terça-feira! Tropa. Merda. Ele não quer ser «meu amante». Pois é. Não encara tampouco, ao que bastante bem me parece, qualquer espécie de maior profundeza nas nossas relações. Óptimo. A vida continua. Eu também. Os teus desenhos fizeram grande intriga, expostos como estiveram na sala de conferências dos «Fenianos», quando lá estivemos. A conferência resultou, quanto a mim. Eu e o Eugénio pusemos meio Porto ou de 73


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cabelos em pé ou de pernas para o ar, «actuando» nas ruas ou às mesas de café, não esquecendo nunca a correria que fizemos depois da conferência, na Av. dos Aliados, onde rompemos aos saltos diluvianos e nos beijámos (fiquei de sangue na boca. Sangue meu). Grandiosa adesão da juventude aos chamados suspeitos caminhos no amor. Superficial, claro. Sopa fria ao Pedro Homem de Melo, a quem mais ou menos aterrámos, na Livraria Portugália. Ele, que é um anjo de matéria intelectualmente virgem, perguntou o que era o surrealismo! Espadanadas loiras do Eugénio. Abismos sodomitas, da minha parte. Depois, perguntei-lhe como tinha sido «aquilo da Amália»… (Tu sabes: entre a meia claridade daquele tão triste dia…) Entretanto, também estava o Alberto de Serpa, que apesar de ser um boi de silêncio, puxou o Eugénio de banda e foi também perguntando: o que era, o que era, o que era? (o surrealismo). Quanto à «companhia» do Lisboa, é o que vês: não houve. Acho que ele é e procura mesmo ser uma simpatia. O resto já o sabes tu. Vou acabar implorando de borco que escrevas — de maneira a que a carta chegue aqui na quarta-feira, ou antes. Na quinta, devo seguir para a Póvoa, para 2 ou três dias de loucura católica. Se encontrares a Fritzy, dá-lhe um abraço meu. E recebe outro, do tamanho do mundo, deste que te deseja Cesariny

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07-03-1953 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa Palácio do Governador Luanda, Angola

Lisboa, Março-53 Meu caro; muito e muito Querido Amigo; queridíssimo Companheiro; etc. etc.; etc. Estou um monumento de remorsos e já mordo no braço por ainda não ter conseguido fazer-te chegar notícias. Mas há lá explicação que se acredite para uma coisa destas! Só passado e vivido, dia a dia, por cá. Saberás que já perdi várias cartas para ti, perdidas pela razão que não há em não ter dez tostões, ou ter de repente vinte tão preciosos, os hediondos, que nunca sobeja nada para o que era preciso. Este negócio de urgências vai-se apertando tanto que tomba tudo num grande-mar-morto — o mar com que nos brindam porque dissemos que não? Não há nem haverá, claro que sabes isso, algo que se pareça com falta de resposta. Para ti, então!!! Há é vida adiada — um negócio de bruxas! Saberás que subi, por adaptações múltiplas, à vagabundagem escolhida-forçada, e estou num ponto magno da magnífica aura. Um pouco mais adiante — e desapareço. * 75


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Claro que havia coisas-marcas[?]-acontecimentos para te passar. Mas ó meu querido Seixas: eu já os escrevi três vezes — em três cartas — que afinal não seguiram! Vamos agora combinar uma coisa: esta tem de ir assim mesmo, vaga, [·], disforme. Tu, daí, acusas recepção: respondes. E então, com paciência e esmero, vamos começar.

c o m

b i n a d o?

Seguem, na mesma data, os livrinhos seguintes: (devem ir por barco) Ossóptico, António Maria Lisboa Erro Próprio “ “ “ Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, M.C. Vasconcelos Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, M.C. Vasconcelos Isso Ontem Único, António Maria Lisboa (Acusa a recepção) Com a perda total dos teus desenhos fiquei com Os Braços Sobre a Areia em pantanas. Será possível pensar numa substituição, ou segunda desenhação dos daquela série? Sai proximamente A Afixação Proibida. Estimaríamos que houvesse massas para incluir uma ou duas reproduções de trabalho teu. MAS NÃO HÁ — OU HÁ? Recebi as tuas duas cartas. Abraça-te de toda a maneira e feitio o teu muito Mário Cesariny 76


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Já fizeste a exposição em que me falaste? Manda para cá Documentos. ——— Amostra de carta escrita e não enviada: Lisboa, Janeiro 53 Meu muito Seixas Claro que saberás um dia, quanto mais não seja no além, que não caíste em saco rasgado, muito pelo contrário, com essa de estares longe e teres escrito uma carta em cinco meses. Também deve ficar horrivelmente claro que não te ter eu já escrito se não deve às baixas ou altas desta terra sinistramente bela. Também tratei, na medida do meu impossível, do caso Moniz Pereira, que me parece sem remédio, e do qual já se sabem coisas como ter o senhorito raspado o teu nome dos teus desenhos e tê-los muito belamente vendido como dele, a pessoas como o senhor Pedro da Silveira, crítico pepineiro, Eduardo Malta, sumidade estabelecida, etc. Quando o teu pai veio ter comigo para tratar da coisa, ainda eu não sabia estes pormenores galantes do fado estético português. Sabes como eu também fiquei a ver navios e com a edição dos Braços Sobre a Areia completamente em pantanas. Penso pensava pensei pedir-te novos desenhos para essa coisa mas é tudo difícil a estas distâncias e fico-me sem coragens para insistir. Faz segundo os teus estabelecidos, se é que os tens. Agora não me perguntes sobre os vómitos a que vamos chegando todos, uns porque sim e os restantes porque não, e não me amandes adjectivos relativos a nomes de por aqui: de momento, tomo pílulas género acalmar o sistema neurovegetativo que ontem (dia em que comecei esta carta) estava de assassinato em massa. Bem. Suponho que queres ouvir novidades das criaturas. Pois aí é que está: não estou capaz de tanto. Lamento muito mas é assim mesmo. 77


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Mas garanto que assim que estiver em estado disso, quer dizer, num daqueles momentos embaladores em que a simpatia humana faz os milagres por si própria, vai ser um chorrilho de novidades……………! Não sinto nada do que me dizes de África, e lamento — devo cingir-me aos anúncios que vejo da Sabena — muito bons muito bons — e a um que outro negrume sem estilo nem convicção. Mas folgo em ver-te instalado no damasco do Teixeira Gomes e na intimidade do Gaspar Simões. Excitadíssimo com a tua próxima em Leopoldville, fico a pensar como os teus desenhos estariam a propósito — ou a despropósito? — cá, também. O arranque que te fizeste é coisa que faz falta a cada um de nós, por aqui a arrastar a pifieza que sabes — cautela com a cor que a distância empresta a certas cidades e natalidades. Eu não desejo África — mas seria um bem… Escrevo — só — à máquina porque estou sem caneta. Perguntado noutro dia por um crítico de rua sobre se estava eu escrevendo muito ou pouco, lhe respondi que não tinha caneta e me faltava tinta. Creio que ficou ofendido! Por hoje é tudo. Afinal não é tudo. Está a sair um outro livro do Lisboa, ISSO ONTEM ÚNICO, que te enviarei com o ERRO PRÓPRIO e o OSSÓPTICO. Mandarei também uma estranha espécie de brincadeira minha, chamada LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS. Qualquer outra coisa saída lá te irá dar. O Lisboa está melhor — isto é: afinal ainda não morreu — o Carlos Eurico está no DIÁRIO DE LISBOA, na redacção, e está impossível, ou quase, o Risques Pereira e o Pedro Oom — este raramente o vejo — é que ainda mantêm aquele tom de vida-esperança-desespero que foi o processo de encontro que nos deram. Eu agora escrevo como criança e para crianças — dá-me lá uma ideia. O próximo número da ÁRVORE deve trazer um poema meu que te dará, se ele aí chegar, vê lá se sim, o fundamento de tudo o que já não digo, nem mesmo para ti, meu muito querido rapaz.

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10-04-1953 R. Basílio Teles, 6, 2.º dto. Lisboa, Portugal Palácio do Governador Luanda, Angola

Lx. 10-04-53 Caríssimo Seixas Aqui não vai ainda o texto que pedes. Saberás que está num mau francês. Algum é propositado, o outro, não, é mesmo de eu não saber. Enfim, talvez tenha graça como está e tudo. Afinal, os livros prometidos no agora seguem. Não tenho havido com que metê-los para aí. Foi muito bom estar contigo, na carta que recebi. Venha mais, mesmo que seja pior. Agora, uma novidade para ambos: saberás que devido a certezas e enganos — principalmente enganos — o que eu edito começa a vender-se mesmo. O Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos praticamente desapareceu num mês. Bem se adivinhava que é também pelo preço do custo, e certa matéria mais de agrado de certo público. O Discurso também se vai vendendo, mais lentamente embora. O Pacheco já vai em 2.as edições (com o Louvor), que vai mandar para o Brasil, e não sei que mais. Ora de tudo isto eu não percebo quasissimamente nada, nem de resto era justo exigir ao Pacheco (ou era?) percentagens definidas, contratos e barbudas. Louco foi ele em editar-me e editar o António Maria Lisboa, e se a loucura pegou também é chato ir agora falar em dinheiros de Razão. Estás mesmo a perceber? 79


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Isso não impede, porém, que eu tenha planos esquisitos. Preparo um livro (versos) para o Contraponto, mas preparo mais que isso, como vais sabendo. Por artes e bondades de um amigo, que empresta a devida massa, vou editar eu mesmo a historinha que junto te envio, a qual lerás com a atenção devida. Claro que ficarás tão interessado, que mandarás, na volta do correio (se possível!…), seis desenhos para incluir no livro. Por razões que se te tornarão muitíssimo óbvias creio que é de fugir a uma representação (figuração) de TITÂNIA. Esta, embora presente, não deve ser representada, e se representada — o que não aconselho — só por símbolos abstractos. A coisa vai — imagina! — quase no género: para crianças (graficamente, quero dizer). Donde que, para um dos desenhos, tens que inventar um Diabo (lindíssimo, com certeza) havendo por debaixo do sobredito a devida legenda (que eu cá ponho) «De vez em quando aparecia o Diabo…» Digo-te isto como exemplo para o género de publicação que isto vai ter. Também: que as chamadas à sensualidade que eu amo sejam um pouco restringidas. Nada de dar-lhes o flanco — fiquemos nós com ele, que bom serviço nos faz! Assim: isto é de toda a pressa e toda a brida. Pensa-se na utilíssima probabilidade de ter o livro pronto para a «Feira do Dito», em 5 de Maio, o que depende de ti, em primeiro lugar. Claro que penso fazer uns dinheiros. As «Titânias» do sítio vão estar interessadas. Pensa bem nisso: que vasto, vasto público! Ainda não tenho orçamento, não posso ainda fixar exemplares para ti, mas claro que eles te são devidos. Risquei a verde partes que me parecem bem para «ilustrar». Escolherás essas, ou outras, manda o que gomitares. Creio que há que reforçar, antes de mais, o MITO, depois, o Encantamento, depois, o BRUXEDO. Está um sol muito lindo, etc. e tal, mas eu não tenho nada com isso. Tive pena de que não tivesses pena do meu penar, mas talvez esteja certo — pelo menos, seja o costume. 80


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O Pacheco diz que há em Luanda os livros e a revista do Contraponto (que só uma das livrarias dessa nova capital do espírito[?] os não possui). Faz portanto a devida agitação de frascos. Nunca mais vi o António. Que é feito dele? O Lisboa manda-te um abraço. E eu muitos mais Mário

14-05-1953 Lx. 14 Maio 53 Meu caro Seixas Os desenhos são lindíssimos e espantosos. Se durante este tempo por distracção te nasceram outros — ou se há outros que «sobraram» da primeira apanha — não hesites: envia que deverão ter densas aplicações. Pensa-se também em reunir, num só volume, a Titânia e Os Braços Sobre a Areia; sabes porém que fiquei sem desenhos nenhuns para estes; terás tu: cópias dos desenhos feitos? 2) vontade de fazê-los de novo, ou fazer outros? 3) sem excessiva demora? Até conseguiram roubar-me o último que me deste, aquele maravilhoso barco-corpo-desejo-adeus-estrela, lembras-te bem dele? Pois foi-me palmado a propósito de eu ter acedido a expô-lo numa coisa que deu pelo nome de Exposição de Ex-Alunos da Escola António Arroio, palpita. Tenho andado a cheirar atrás dele, com documentos e tudo (incluída a súplica e o berro) — e nada! Crê-se que o actual detentor é o senhor Mário Henrique Leiria, Vivenda Maria Xavier, Carcavelos (linha de Cascais), que o foi pedir ao senhor António Domingues, fiel depositário, que 81


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lho passou juntamente com mais dois desenhos teus, que também eram meus e que também nunca mais vi! É bem feito, não é? Eu dou-me pouco a, e pouco encontro o, Senhor Mário Henrique Leiria, que é hoje pessoa respeitável, empregada na lampada[?], e muitíssimo esquerda. Queres escrever-lhe com bomba de relógio mandando a restituição dos relógios de bomba — os teus desenhos? Esse pequeno larápio de trazer por casa (deixaremos que) acabe a cúpula-obra dos outros, grandes, de operar na rua?!!!? Bem. A Titânia já não vai a tempo da Feira. Não infecta. Poderá estar pronta no fim do mês. Caso desenhos para Os B. S. a Areia possam vir a aparecer até ao fim do mês, vai-se ao projecto de publicação conjunta, bastante de aconselhar. Caso não pusermos[?], segue a Titânia sozinha. Não estranhes se de repente os meus queridíssimos assuntos contigo tenham de passar-se, por procuração minha, para o nosso comum amigo Luiz Pacheco — na Inspecção dos Espectáculos, Palácio Foz, Lisboa. Por coisas e loisas disto de portugueses e de apetites, eu posso ter de deixar de escrever-te directamente. Caso isso aconteça, nada temas! E tem sempre a certeza que, engatado, ou a engatar, eu estou cá, e sempre na Obra Alquímica da Transmutação da Areia em Substância Suma e Perturbadora. Já recebeste os livros? Regista para cá a chegada deles. Aqui segue o texto que pretendes. Há quem o ache uma caca e há quem o ache um astro. Conseguir achar qualquer coisa por ali, eis o que mais me admira. Que achas tu? Procura um preto e revê com ele o francês em que isso vai, que à parte os propositados jeux-de-mots, pelos quais me responsabilizo, não garanto coisa nenhuma! Para agora não há mais nada, a não ser o abraço de sempre do teu Mário Cesariny 82


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24-11-1953 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N (Por especial favor:) Palácio do Governador Luanda, Angola

Lx, 24 Nov. 53 Querido amigo Seixas O António Maria Lisboa morreu ontem — para mim ele morreu ontem, embora tenha partido a 11 deste mês — só ontem tive conhecimento da sua morte. A solidão em que ele me deixa, e tudo o que com isto se relaciona é daquele capítulo incomportável que já só em pesadelo ousa manifestar-se (eu tive realmente, a noite passada, pesadelos simbólico-medonhos e rogo às fúrias que se não repitam). Vê só esta série de brindes: morre completamente só, de corpo e espírito (ele havia-me dito, tempos atrás, que já estava do lado de lá — e, do lado de cá, sabia eu… ele não queria mais); as últimas amizades — a minha e a do Luiz Pacheco — e embora por motivos diversos — tinham cessado de fazer-lhe companhia. Por mim (só por mim) falo: o peso de morte que o Lisboa sofria, com esperança ou sem ela, como muito acontece neste género de doenças, contrapunha-se sempre, nos últimos tempos, em relação péssima com o peso de vida — este peso de quem pode ir morrendo na forma do costume — que iriam levar-lhe — que eu também levava. Confesso que fiz tudo para atenuar esse choque. Ultimamente, porém, já não conseguia 83


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apanhá-lo, e tudo era cruel — as discussões, os olhares, a chegada e partida. Há mês e meio que o não visitara. Ontem, soube do resto. A irmã dele, lídima representante das torpezas que fazem família, queimou o que ele possuía para publicar: Máquina de Guerra (um livro), «O silêncio ou os Graus da Nobreza», um ensaio, «O senhor cágado e o menino», uma história a que seguiram outras. Mas havia de ter a novel fogueira! (Estas obras estavam na mão do Luiz Pacheco mas o Lisboa pediu devolução quando saiu, contra vontade dele e minha — outra miséria, este caso! — a presente edição da Afixação Proibida.) E agora sente tu: recuso-me a colaborar na farsa género O Pranto dos Companheiros Ainda Vivos, para a qual fui solicitado a telefonema, porque não há companheiros agora, porque o Carlos Eurico passou a condigna esperança do jornalismo pátrio, com morte horrível interna, e o Risques Pereira… bom, rasgue-se a lista! Eu ia aí abraçar-te, se pudesse! A minha prima Helena Calafate, chegada hoje de Áfricas — julgo que a conheces — é a dos aviões — deu-me notícias tuas: que tinhas exposto com efervescências aí em Luanda. Mais disse: que as pessoas do em geral não teriam percebido mas se tinham interessado e, até, suspeitado. Acho que fizeram muito bem. Isso lembrou-me o teu pedido para o catálogo… Eu escrevi uma prosa, sim, creio que sim. Mas fui depois submetido a provas várias, de vário movimento, que me impossibilitaram muita coisa e entre elas essa. Compridas contas! Também o dinheiro reservado para a Titânia deveu desaparecer na forragem dos dias e o meu corte de relações com o Pacheco, que andou a brincar aos chefes — saberás disso por intermédio da Afixação Proibida? Ele enviou-te algum exemplar com «Apêndice» e tudo? — não favorece, nem apetece, próximas edições por aquela via. 84


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Parece que esta carta não tem sorte nenhuma: toda ela entrerespira catástrofe. Outra seria pior… Eu tenho feito poemas, claro está. Se tanto não fosse demais, pediria que me enviasses, uma vez por outra, pela minha prima Helena, ou por outros correios, sinais de vida tua: um desenho, um cardo, um Raposo [··] provocante — como vês, eu sei histórias de embalar os bailes… Diz-me se tens A Afixação Proibida. Se a não tiveres, a minha prima poderá levar-te isso, numa próxima viagem. E se já a tiveres, escreve à mesma: diz o que entenderes desse lótus rodeado de caca por todos os lados (A Af. Proibida). Abraça-te muito o teu Mário Cesariny

Dezembro 1953 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N, Portugal Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola

Lisboa Dez. 53 — Querido Amigo — Radiante por ter notícias tuas de tantas qualidades — o trabalho e as tristezas, a solidão e o sonho, a velocidade-louca-imobilidade-magnífica. Cada dente arrancado à boca deste planeta soma milhares de mortes próprias e alheias. E não esquecendo nunca os que estão na Indochina e nas vielas-monstro de todas as cidades chega-se — pode chegar-se — à constatação de certo número vá85


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rio de compensações aliás não referidas ao problema: ser feliz, ser infeliz — questão bastante imunda, se me permitem. Eu vejo que o importante é arrancar-lhe o dente — actividade sobremodo divina. Fora — fora — com o tal desconforto de trazer por casa, porque então lá vêm eles, cheios da nossa rua, os da Indochina, os da Coreia, os-mesmos-de-aqui-ao-lado, and no one. Vais concordar comigo? E se tu me falasses nos — se há — nos tais que são felizes? Ai, que engraçado! Escrevias-me uma carta cómica. Declaro uma afinal constatada inapetência para ser feliz. Perdão, perdão: eu não quero ser feliz. Entende-se? E tu como eu. E como tu o Pedro Oom, que reencontrei. E como nós o Lisboa. Eis a pedra de toque. Os outros antigos companheiros não passaram outra fronteira senão essa: o Henrique Risques Pereira quer ser feliz! Imagina! — Vê-se-lhe no casaco. O Carlos Eurico da Costa quer ser feliz! Também que por isso mesmo já andou por psiquiatras e mamou electrochoque. É o preço, é o preço! Eis o que impõe à minha consideração, apesar dos dislates, o Luiz Pacheco. Eis aí outro louco também não ocupado com as felicidades… Céus! — Meus caros! — Há coisas a fazer, tarefas misteriosas a cumprir, o vento ameaça partir sem me beijar na boca. E quanto à do planeta, quando houverem saltado os trinta e dois que lhe cabem, podes estar mui certo: nós lhe daremos uma dentadura nova, postos a um e um e como até já agora os protésicos fazem: enterrados na carne — mas não a esmo, esses. Um envolvente abraço pela tua Exposição-Roda-Dentada-Carne-de-Camélia. Soube-me muito bem. Deixa os outros falar, é óptimo que falem. E aceito encantado o convite teu para escrever nos jornais daí. Há mais gente encantada que também vai escrever. Mas eu preciso que mandes recortes bastantes para uma avaliação do que é de dizer e do como é lá isso. Espero portanto a chegada com jornais. Há febres[?] e hipóteses. O Pedro Oom quer ir para aí trabalhar e expor. Pensa-se muito a sério na constituição do Grupo Surrealista de Luanda. Mais tarde será de Hong86


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-Kong ou do Tibete. Pensa mais uma vez que essa tua Exposição — o teu trabalho — é para nós de uma importância fundamental. Não te atrevas a não dar significado a isto-isso. Pela minha prima, não sei agora quando, seguirá um exemplar da Afixada Proibida, e talvez mais coisas. Deves procurá-la no Hotel, quando lá for o avião, o que deve dar-se para o mês que vem. Acho a todos os títulos sublime que seja o Estado o teu maior comprador. Pois tu não estás a ver? Mais um ano e seis meses e todos os particulares quererão obter essas obrigações. Se não tens tinta, espreme-te. Ora essa! A colónia cultural daí não quereria uma página mensal cozinhada cá? E não pagam? Pagam? Não pagam. Mas se pagassem? Ora aí é que está. Particularmente, até poderia acontecer — ou, não? — eu instalar-me, depois de uns prestígios à força de caneta, numa dessas redacções. Ora, eu iria a correr. Diz algo sobre isto! Mas não toques no assunto a ninguém, por ora. Mandarás 50 mil reis para a obtenção das 2 fotografias (parte 1 e parte 2) da nossa Exposição de 49. Se não puderes mandar de momento essa massa, espera pelo milagre. Há mais a dizer mas fica para a outra. Mil abraços, Cesariny

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06-02-1954 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa, Portugal Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola

Lx-Fev. 6-54 Caríssimo Só hoje recebi os jornais prometidos. Curioso. Muito curioso. Pouco mais ou menos de fugir. Mas eu vou «depor», que a solidão é densa e o exercício algum bem me fará... Vou mandar o seguinte: Rubrica geral: «Mensagem e Ilusão no Acontecimento Surrealista» — do que resultam desde já três artigos, dedicados: I — Ao Ex.mo Senhor Furtado Mendonça II — Ao Ex.mo Senhor A. Bobela da Motta III — Ao Ex.mo Senhor António do Norte Antes do envio, que prometo saboroso e digno, vais ter que ver, e dizer-me, rapidamente, da viabilidade da coisa, isto é: se se comprometem a publicar Todos os artigos da rubrica, e não um sem os outros. Isto é importante, como também que saiam em estilo impecavelmente chouriço, Todos num só dia (nos vários jornais), ou um por dia ou semana (se saem num só jornal, e consoante a periodicidade habitual das páginas de espírito). Estas são as condições que ponho para a publicação aí. Estes artigos são únicos, exemplares, e nunca, de nenhum modo, continuáveis — a não ser que se dê o caso, pouco de prever, de me ser requerida uma colaboração paga. Recebi a tua bela carta e a encomenda de via primática, mas ainda não é hoje que te falo de ti como está a ser preciso, por uma conversa, um mano-a-mano real e verdadeiro, como o que há no Céu… Só te digo que 88


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também creio, quanto mais não seja por necessidade, que nos reuniremos, que temos de encontrar-nos sem questões de cidades, tempos, selos de correios. Que deves fazer os impossíveis do costume para expores na África do Sul, e em papel puríssimo de branco, o qual espero mandar-te, quando o puder ter, pela prima minha. Leopoldville ou a Cidade do Cabo podem estar muitíssimo mais perto dos Parises que esta Lisboa (capital do Porto). Sabes isso, decerto. Trata de arranjar férias e ires até lá. A família que aperte o cinto dos costumes! Enfim, que o surrealismo também já não está coisa que, inteiro, me abranja sempre, mas discordo de um ponto por ti referido — me parece evidente que não é mais difícil ser surrealista do que ser Artur do Cruzeiro Seixas — ou Mário Cesariny — a inversa é que é verdadeira… Acabo pedindo que respondas depressa aos meus «quesitos» — funcionarei de acordo com o que apurares. Outro abraço do teu Cesariny

25-02-1954 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa, Portugal C.P. 1301 Luanda, Angola

Meu caro: para não estar a atrasar mais, mando já o primeiro da série, que é também o mais duro, como o Senhor Bobela não esperava. Segue-se: 89


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II — Ao Exmo. Senhor António do Norte; III — Ao Exmo. Senhor F. Furtado Mendonça: IV — Ao Exmo. A. do Cruzeiro Seixas (que és tu). Todos eles estão feitos, e nas medidas requeridas, a passagem à máquina porém é que necessita, quanto aos últimos três, de mais dois dias. Espero mandar tudo na sexta-feira próxima. Entretanto mete já o do Bobela, se não nunca mais lá chegamos. Claro que assegurarás ao Senhor Furtado de Mendonça que a parte que lhe compete é, digamos, a de maior camaradagem acontecida, e que acontece assim por ter acontecido, isto é: não houve não há favores. Acho aconselhável anunciar-se, no fim de cada artigo, o que imediatamente se segue. Quanto às vidinhas, meu caro, faz como quiseres. Se quiseres, mete tudo na gaveta, que eu cá fico a pensar e a recear o mesmo… Desculpa ser tão breve. Prometo falar-te mais, sobre os desenhos e tudo. Também quero propor-te uma exposição em Lisboa, na Galeria de Março. Que dizes? Mil abraços Mário P.S. — Segue também a 2.ª Parte do Bolo!

mensagem e ilusão no acontecimento surrealista I — Ao Exmo. Senhor A. Bobela da Motta Pode-se ser surrealista sem se ter lido Breton. Pode-se ler Breton e não se ser surrealista. Pode-se não se ser surrealista e prestar-se com isso excelente 90


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serviço a todos e ao surrealismo em especial. Isto diz-se, porém, das tarefas do conhecimento, que não das do saber, e eu não sei se ainda anda muito clara, nas consciências, a diversidade que assiste a estas duas operações do espírito. Para mim, pelo menos, permanece evidente que as tarefas do conhecimento (poético, na ocorrência) são únicas, pessoais, intransmissíveis, enquanto que as do saber, deduzidas daquelas, podem já ascender a leis e valorizações que são filosofia, interpretação crítica — e aqui é que é impossível ser-se ou não se ser determinada coisa (bem determinada) sem se saber o que essa coisa é. Isto, para as tarefas do saber, onde é, será, por sempre, detestado saber mal ou torcido, desde que se saiba. Pois piores do que esses tantos «que já sabem tudo» — e é difícil, difícil, piorar dali… — são os que acham, os que entendem, os que «muito obrigado», e que, apesar disso, que decerto por isso mesmo, falam como quem sabe, se não como quem conhece. Não têm estes, nem pela aparência, o tom e os modos dos que vão saber, antes se evidenciam recém-vindos da fonte, palpam a barriga: «Ena, o que eu bebi!» — Pois não é o conteúdo, é o continente que querem servir-nos! Que modelo, ante estes, o socrático «sei que não sei nada»… Mas convenhamos: a alguma demissão crítica que frente ao surrealismo paradoxalmente se manifesta, não vem, mais especialmente, dos que estão de passagem e de passagem quereriam olhar. Ela é produto maior de certa ocultação de luzes que os manes da nossa última cultura «nossa» fizeram a respeito de um movimento poético que em toda a Europa detinha a vanguarda, e esplendorosamente se afirmou, desde os fins da Primeira Guerra Mundial até fins da Segunda. Nem a chamada «Presença», na voz teorizante de Gaspar Simões, nem a escola dita Neo-Realista — moralizante, colectivista, salvadora do mundo a expensas da literatura — puderam voltar-se sobre si mesmas e apresentar uma crítica feita a tempo e horas, quando alguns estraga-festas, entre os quais assinei, pasmaram do lapso e acidentalmente se encontraram no acontecimento surrealista (quer isto dizer que não foi de propósito), em 1947. 91


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Mas eu entendo que se não fale muito, que se não fale pouco, que se não fale nada. O pouco bonito é quando, supostamente vindos do saber, e bem determinados rumo ao infinito, surgem os que misturam nomes e famílias, os distraídos há séculos mal contados, os que conspectam didácticas tão desumanas como as que se desprendem de quem escreve que o surrealismo nasceu com a peça Les mamelles de Tirésias, ou que A. Breton se passou para a Arte Abstracta, ou que Dufi esteve no Dadaísmo, ou que o Fauvismo veio do surrealismo. Já pouco importa a presença do erro, o que já importa é a sua natureza, o impulso de que decorre. Fica-se no distractivo de averiguar se é a sério ou brincado quem se afirma assim. Que brinca, não tem dúvida, mas eu desejo uma outra pergunta: não estará a sério, nele mesmo, o que aos outros aparece muito brincado? Seria de vilões não admitirmos que sim, que é a sério que brinca. Então decidiremos pela presença de uma informação defeituosa. Diremos: «O senhor é a sério, o seu saber é que não.» E seremos didácticos: «Olhe que há aí uns livros…» (Seguir-se-á um exemplo de haver livros.) E em cada uma das obras aconselhadas encontrará o nosso crítico um formal, ainda que indirecto, desmentido à ligeireza do afirmado — o que, aliás, não autoriza a esperarmos uma mudança de signo na direcção da sua crítica. Aqui é que bate a chuva. Pois não parece ser provincianismo ou desinformação este saber assim — é um haver-se escolhido sem real possibilidade de escolha, é deliberação anteriormente tomada, é um ter que escolher como ao Diabo aprouve, que os tempos estão difíceis e mais difíceis seriam se um não estivesse dono de lançar, de fraca maneira embora, um voto de louvor e quatro de censura ao que corre mundo e bate à porta. Ora a esta opinião, que de resto tem a coragem de expor-se, eu apenas seria capaz de pedir uma forte (porque séria vista de fora) e necessária (porque expressa vista por dentro) oposição à mensagem como às ilusões do acontecimento surrealista.

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Também não levará perto antepor Surrealismo e Arte Abstracta, dados um e outra como opostos complementares — mas surge, aqui, um solo de discussão mais fértil. Há poucos dias, numa revista bastante universitária agora saída, aferia-se esta pretensa oposição em termos de Surrealismo contra Neo-Realismo, ou vice-versa, quando estas expressões não apresentam o eixo de força comum que as geometrizaria em igualdades contrárias. Se falamos de Pintura Surrealista e de Pintura Abstracta, temos de colocá-las nas suas perspectivas históricas, onde Arte Abstracta surge como um refinamento do processo artístico, enquanto o Surrealismo é muito deliberada interrupção dos liames da técnica para uma recolocação do universo do humano. «Nós reduziremos a Arte à sua expressão mais simples, que é o Amor», A. Breton, em Poisson Soluble; «Declaro que as futuras técnicas surrealistas não me interessam», A. Breton, 1.º Manifesto do Surrealismo, 1924. A diferença do propósito e da necessidade vem já quase inteiro no intelectismo que, entre 1904 e 1906, nos deu, com o «Esquematismo», um especial reforço da proposição de Cézanne: «Tratar a natureza com a esfera, o cilindro e o cone» (Carta a E. Bernard). Todos os agitados movimentos artísticos subsequentes, o cubismo, o expressionismo abstracto, o suprematismo, o raionismo, o construtivismo, e, por fim, a Arte Abstracta, partem deste género de intelecção. O Abstraccionismo respira aquele «grande quadrado sem ângulos nem lados» de que falou Lao Tsé, mas fundadamente permanece um caminho de Arte, bem deduzido dela. Outro tanto é indevido dizer-se do surrealismo, embora a Pintura surrealista possa deter entre mãos todo um arsenal estético adequado. De certo: um ponto de contacto capaz de confundir desprevenidos é a aparente quebra de compromisso com a «realidade» que tanto abstractos como surrealistas trabalham. Mas é que todo o último meio século XIX, todo o primeiro meio século XX, conspiraram contra a pobre «realidade»: Picasso em Paris, Kandinski em Munich, Kirchner em Dresden (desco93


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berta da arte negra), Chirico em Florença, Malevich em Moscovo, Picabia que em Nova Iorque, os futuristas em Milão… E a poesia precedeu a acção: Baudelaire, Nerval, Lautréamont…… Até perante este novo género de possível confusão continua a ser útil subscrever o aviso inserido nos convites para a exposição internacional surrealista de Amesterdão, do seguinte teor: «O surrealismo não é uma escola literária ou artística. É um estado de espírito. Na nossa época, só a imaginação pode dar ao homem ameaçado o sentimento da sua liberdade. E à pergunta que tantas vezes fazeis perante os seus quadros e objectos, «Que representa esta forma?», os surrealistas respondem: «Quem a fez.» Mário Cesariny de Vasconcelos

mensagem e ilusão no acontecimento surrealista ——— II — Ao Exmo. Senhor António do Norte «O Belo é a Verdade e a Verdade é o Belo.» Eis aqui uma fórmula com que castigar todo o excesso no Espírito… Não impede, porém, látegos muito à parte, que o Belo de cada um não seja a Verdade de todos, nem que Uma Verdade não decorra de outras, por sua vez colectadas de outras mais, até que o Sistema rebente ou se fixe em saberes. É histórico o Tapume com que se termina, nas várias etapas da Filosofia, toda a inquirição feita à Essência do Belo, da Verdade, do Bem. E quando se diz que o belo é a verdade e a verdade é o belo, mais não se vai que a iludir o propósito, unindo duas incógnitas sem resolver o quesito. Do mesmo modo elegante se poderá dizer: a morte é a vida e a vida é a morte, sem que o an94


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tagonismo dos dois termos, quando antagonismo há, perca a sua eficácia. Idem para: a Arte é a Natureza e a Natureza é a Arte… Se se disser, porém: a Natureza Imita a Obra de Arte, ou, A Obra de Arte Imita a Natureza, temos uma equação, haveremos incógnita. Mundo de pensamento é mundo de relação. No princípio era a Trina… Mas não me parece que este tipo de criticismo possa algum dia desvendar muito ou pouco os segredos da Arte, e, com maior motivo, os da expressão surrealista. Não porque o seu sistema de inquirição esteja, em si mesmo, defeituoso, mas porque é inútil aplicá-lo a um objecto com o qual não mantém afinidade. É aparelho de escuta deslocado ali, e então decide falar em «formas disparatadas» — coisa que o homem de ciência nunca diria — como se as formas todas dependessem do apetite de quem olha e não possuíssem a sua própria interna razão de ser formas. Pois que será, afinal, uma forma disparatada? Nada que se perceba se não se perceber que apareceu um filósofo que honestamente busca adaptar os dados de um espectáculo ao seu (dele) conceito de espaço, tempo, e termo. Não se disse: não gosto. Disse-se: não entendo. Mas «a coisa a entender» estaria no objecto proposto? Estava? Não estava? Eu digo que não estava. Pois por muito aliciantes que sejam os exercícios da sofística, por muito alto que tenham conduzido o espírito humano — e o seu maior interesse reside, para mim, no carácter puramente gratuito, não utilitário, da sua especulação, sempre avisadamente provisória, mesmo ao atingir o monumental —, por muito aliciantes que se nos apresentem certos pináculos do nacionalismo (da Filosofia, e como tal) há quem não creia, nem viva, no universo (lógico ou ilógico) em que ele se move; há quem não viva no mundo do Princípio de Identidade, chave geométrica de todo o pensamento dedutivo e de todo o cartesianismo, antigo ou moderno. Dizia Lautréamont: «Há quem se espante de ver um burro a comer um figo. Pois bem: eu já vi um figo comer um burro.» O homem de boa fé, o inquiridor realmente preparado, não discute a verdade inverosímil 95


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— acode a comprová-la, como S. Tomás quando lhe disseram: Corre, Tomás, que vai ali um burro a voar! Tomás correu, o filósofo não, o filósofo disse: isso é um disparate! — o filósofo sabe que os burros não voam! Mas será possível viver assim longe do Logos dos Filosófos sem por isso se cair na mais escrava ignorância? Ah, receio que sim, e desde há muito tempo… Leiamos na Tábua de Esmeralda, onde Hermes Trimegista signa a Operação do Sol: «O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima, para realizar o milagre de uma só coisa.» Itálico de obrigação, porque é naquele como que se cifra a mais antiga expressão escrita do pensamento analógico, eminentemente estranho ao funcionamento do que até Hegel se entendeu por Filosofia. Ao A não pode ser B (ao A é igual a A) sobrepõem-se os modos do conhecimento poético, sensível-inteligível, inteligível-sensível, cadinho de fusão dos universos de categorias —, encontro apaixonado de um perpetuamente transformante «milagre de uma só coisa». Assim em Gomes Leal, por exemplo: Bela, dizia eu, ágil como um jaguar ……………………………………. Bela, dizia eu, fria como o luar Sobre o dorso luzente e excepcional de um peixe! Bela, dizia eu, como um sepulcro antigo… Assim na poética surrealista, em que a própria alavanca da fusão dos contrários intenta desaparecer: É meio-dia é meia-noite… (Paul Éluard)

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E esta alquimia tem realização grande nos desenhos magníficos de Cruzeiro Seixas, como já a teve na obra de Max Ernst, Duchamp, Dalí — o 1.º Dalí… — Miró, etc. Avisam alguns que a «novidade» da coisa está prestes a extinguir-se. Respondamos com Heraclito: A Água é uma Chama Molhada. Creio ouvir perguntar que ideal de Beleza se persegue na terra surrealista, e se o Belo é para sempre ou para transmutação. A este último ouvir, ligado como vem aos assuntos da Arte, prefiro aconselhar o útil livrinho de António Pedro da Costa Introdução a Uma História de Arte, do qual não segue citação particularizada — é pena — para não alongar por demais estas notas. Quanto ao Belo Surrealista, será mais uma fórmula a juntar a tantas se não estivermos nela doutra maneira. «O fundamento de toda a experiência tem de estar fora da experiência» (A Afixação Proibida, Manifesto Colectivo dos Surrealistas Portugueses, Ed. Contraponto, 1953), e ou o homem respira inteiramente «as variadíssimas expressões da vida que, momento a momento, estão desmentindo os (nossos) mais consagrados princípios e leis», ou será escolástico distribuidor de sistemas de arrasto, bons para quem os emite, suponhamos ainda. E se pode dizer-se que aquele «determinado ponto do espírito em que o real e o irreal, o passado e o futuro, o alto e o baixo deixam de ser apercebidos contraditoriamente», não é uma invenção do surrealismo, porque existe dispor em toda a lucidez, de Flamel a Baudelaire, de Rimbaud a Novalis; há que dizer também que só através dos surrealistas ele se impôs à consciência moderna como aparelho e forma de um conhecimento poético capaz de ombrear com as mais «úteis» afirmações do homem. Pode bem ser que o surrealismo deixe, um dia, de ser surrealista. Mas… «A Beleza será explosiva-fixa, erótica-velada, solene-circunstancial, ou perecerá!» (A. Breton, L’Amour Fou). Mário Cesariny de Vasconcelos 97


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04-03-1954 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N, Portugal C.P. n.º 1301 Luanda, Angola

Lisboa, 4-3-54 Meu caro Seixas Pus no correio (aéreo) fará amanhã 8 dias, as duas primeiras partes do meu discurso às tropas luandinas — que bonito que isto fica assim! —; espero que tenhas recebido e não lhes encontres inconvenientes de maior. Caso contrário, não tens mais que dizer para cá. Fiquei sobressaltado-muito-contente por me anunciares uma nova série para Os Braços Sobre a Areia. Não calculas a pena carnívora e diária que obsessivamente sinto por ter-se perdido a série que fizeste e que era, para mim, do mais belo e lúcido que por cá deixaste. Sirva de exemplo o único desenho que dela ainda conservo — um que me deste já em dias de partida, lembras-te? —, que acho um dos pontos mais conseguidos da tua maneira de desmascarar o infinito. É desenho que tem deixado em pasmo e catalepsia as algumas pessoas a quem o tenho mostrado, como o Calvet da Costa, que está no Porto a estudar, mas passou por aí no outro dia, e ia morrendo do tropeção que teve ao entrar com os olhos naquela infinitude. E eu lembro muito bem — estou muito bem lembrado — que os restantes da série tinham a mesma qualidade desvairante a que eu pobremente chamo um poder de tornar metafísicos elementos quase-exclusivamente sensuais. Ora esta é grande 98


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proeza, meu caro Seixas, e é única. Não vejo em mais ninguém a chave com que descobres, tapas, acrescentas — sonhas. Tornar metafísico em si um corpo físico, lineado; encher de infinito, mas num sentido convulsivo, ou melhor, revulsivo, a solidão da carne, do corpo; pôr o total no Máximo Absoluto da Sombra-e-da-Luz, e isso ser um Total Amoroso, Doente à força de esplendente Saúde, meu caro, meu caro… Bem pedes uma crítica aos teus desenhos de agora… Eu, de viva voz, tinha com que dizer. Escrevendo, não atino, e tenho medos. Só posso dizer-te que me pareces mal servido a papel pardo. Creio que tens uma maneira superior de desenhar à pena em papel, repito-te, puríssimo de branco… Se o não encontras aí, manda-o ir… mas não por mim que tenho tão nenhumas massas que só isto de pôr em correio aéreo deixa a perder de vista um Carlos V. Os Braços Sobre a Areia estão tais quais os levaste. Opera sem rebuço! Há probabilidades editoriais extra-Pacheco, o que a mais tempo e horas te direi. Espero carta tua anunciando recepções e sentidos. Depois dela farei seguir os dois artigos que faltam. Quanto a poemas desenhados para pôr em montras gostosas, meu filho, meu filho, ajuda-te que Deus te ajudará! Mil Abraços Mário P.S. — A minha prima vai estar dois meses sem pôr aí o pé. A pretexto de uma operação num ouvido, vai pular e skiar à Áustria, Alemanha, Noruega, Suécia, Dinamarcas, Romas…

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Provérbios Adequados: O seu — a seu dono… Fia-te na Virgem e não corras… Ao Menino e à Hospedeira põe Nossa Senhora a Mão na Cabeceira etc.

02-05-1954 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N, Portugal C.P. n.º 1301 Luanda, Angola

Caríssimo Diz que já lá tens o requerido papel, em forma de poucas folhas, seguidas pelo Carlos Eurico — que casa para a semana — móveis e decorações em puro estilo Areeiro, do artista-decorador Paulo-Guilherme — veja só — mas eu, que estou trabalhando na Feira — Agência Geral do Ultramar — calcula — ando com mais dinheiros, e vou meter, por barco, umas resmazitas. E já te explico que os desenhos que o Carlos Eurico decerto requereu são para pôr, pregados com alfinete saloio, na anca da Muito Esposa — A Magda — pelo que sugiro mandes — não mais que um! — e esse, inteiramente de acordo com a visão mais mística-erótica de dois adolescentes na cama. Disse? Outro será para pôr no corredor, à entrada — o chamado Ól — e, aí, entrego tudo à tua imaginação. 100


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Recomendo-te certa pressa e muitíssimo Amor com a nova operação para Os Braços Sobre a Areia, pois vai haver, outra vez, publicações, que é o Agora ou Nunca. Para o mês que vem sairá o 1.º nené duma família dita «Cadernos Anti-Líricos[?] Portugueses» que eu oriento e faço com o Goulart Nogueira, amante cínico e cavalheiro de toda a violência, entre as quais, esta. Pertence a uma colecção de nome «O Crocodilo Que Voa», nome que requer um desenho teu — pequeno, de pôr na capa. Queres fazer? Quanto ao texto dos Braços, está tais quais, e a não ser que insistas em carta próxima, não vejo a necessidade de reenvio. Perdeste-o, meu amor, perdeste-o? Da artigada para aí, acho que não convém exagerar. É natural o protesto contra o estrangeiro-sábio. Assim, guarda isso no armário das batatas, que vão gostar imenso. Da tua exposição na Galeria de Março — na próxima época lírica —, tu é que sabes. Comigo, é assim: vou lá marcar a data, pôr e tirar as obras, e entregar umas letras para o catálogo. Claro que seremos ambos muito cumprimentados. Diz-me o Mário Henrique — ora palpita — que lhe mandaram, do Rio de Janeiro, o papelinho — programa da tua exposição aí. Como o mundo é português, não é verdade? E acabo. Uma carta tua vai-me fazer muito arranjo, principalmente se deres o sim e o não — efectivados — para os próximos festejos locais. Mil abraços Mário — Ah — que falta te fazes por cá!

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01-11-1954 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N, Portugal Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola Por avião

nov. 54 — Querido Amigo Não julgues que isto é relativo ao António… Este Poema-[·]-Reivenção-Fim é para (de) Todos os Antónios Azuis-Poetas que se quiseram… Cá anotei que deixaste de desenhar para correres o Limpopo… Fazes tu muito bem, porque apesar disso tenho uma encomenda a pedir (de joelhos!): o retrato — O RETRATO COMO TU SERÁS CAPAZ DE FAZER — do António Maria Lisboa. Se não queres fazer o retrato (psicológico, claro) fazes uma Homenagem a… e mandas, sim? É o caso que está tudo mais ou menos em vias de publicar Lisboas, e eu — e tu, compreende — temos especial direito-agrado-certo-dever — de publicar O Lisboa. Não queres que conte contigo? Manda isso, e diz se gostaste do Poema… Mil abraços do sempre Mário

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28-11-1954 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola

Lx. 28 Nov. 54 Meu caro: Acabo de saber que, não sei como, tiveste exposição na última de pintura da Bienal de Veneza. Congratulações! Caso comunicado por um colega-redactor de um jornal onde estou trabalhando. Palpita. O senhor é tenente de dois desenhos teus vendidos (os dois!), por noites de aflição, pelo Moniz, por cinquenta paus. (Os dois.) Estou averiguando se pertencem à saudosa série que fizeste para Os Braços Sobre a Areia. Se pertencem, gravo-os imediatamente! Esta dos teus desenhos — que andam a conhecer vastas circulações nesta metrópole linda — está a chegar à histórico-marítima… Bem pensado, deverias gratificar o Moniz — com quem estou trabalhando também, palpita-te, na decoração pintórica duma casa de fado a abrir em breve — plão!… — devias mandar-lhe um totem de gratificação pela exemplar propaganda que afinal te fez. Até os neo-realistas detêm, avaros, célebres exemplares da célebre venda-extorção-caridade operação Moniz-Seixas. Uma delícia. Ainda bem que gostaste mesmo do poema. Olha: deixa lá, não te rales com isso da partida do teu primo António. Então para que serve o poema? Magros, gordos, altos, todos saloios. Vê-se. Ah, nós estamos FARTOS. Ou não estamos? — Estaremos. Agarra umas férias e vem cá depressa, antes que eu morra. Está certo? 103


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Espero os teus Lisboas com glutonaria. A foto-grupo também tem de esperar! «Padres, mestres, doutores, enganais-vos entregando-me à justiça; eu nunca fui esta gente; não tenho o senso moral, sou uma besta, enganais-vos; eu sou da raça que canta nos suplícios; eu nunca fui cristão…» Artur Rimbaud

Mil abraços Mário ——— Fim do mês de Nov. — recebidos os teus desenhos — São lindíssimos! É para mim, agora, uma felicidade imensa ter-te a ti e ao Lisboa, os dois como um, pela calada das noites, aos pés da minha cabeceira, em presença e quietude. Fizeste-me lembrar como o Lisboa era belo, por dentro e por fora. Mas estava eu esquecido? Meu caro: muitas [·] morais, muitos cães, várias [··] interiores e vigilan-esterno-cleido-mastoidaicas — não te ter ao ouvido, para falarmos tudo! — impedem-me de ter o necessário e arrumado sentido com que se escreve para dar notícias. Assim, farei o melhor: o melhor que ora está no calo dos meus dedos: mando papel «couché» e aparos, que não sei se acertam com a tua fome. Se não acertam, diz, que mando outros. Para dar algum sinal, publicarei outro poema-folheto no solstício de Inverno (vulgo Natal). Os poemas do Fernando, que são notáveis, vão fazer-te esperar, assim como a fotografia. Uma e outros dependem de vários casos de trânsito, e sinto um pedaço dizer que tu não estás mais longe desse novel autor do que eu, por estas ruas. Idem para o primo António, que não vejo nem sei como é de ver-se. Se é teu desejo, tentarei visitá-lo e restabelecer ligações — minhas com ele, nossas contigo, do Diabo com todos. 104


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Repito o que já vai no outro papelinho: quando virás até cá? Ou melhor: quando é que vens, que voltas? Visito o Mário Henrique. Apesar do cheiro a gasolina — o mito da velocidade! — é o único que ainda vai mantendo as dez experiências. DESENHA MUITO — e manda. Trabalha! Trabalha! Trabalha! Ainda não desisti de coisa nenhuma, sabes? Um abraço do Mário P.S. — Aparos e papel — por barco

27-01-1955 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola

Janeiro 55 Queridíssimo Amigo Não porque haja algo especial a dizer (a não ser dizer tudo) (duma só vez?) (como era?), mas porque sim. Bom-dia. Tens razão assinalando aos 105


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teus últimos desenhos uma nova (provável) direcção. Mas é impossível pôr em palavras concretas (portuguesas!) o que se passa. Tu é que (não) sabes… Vamos para a frente. Talvez te mande no fim do mês um número da revista Medium que te deve interessar particularmente. Ali, o mistério não é transfísico, como nos teus desenhos. Este transfísico teu, acho que deves mirá-lo atentamente… Um passo para a direita, e surges metafísico (esplendoroso!). Um passo à esquerda, e arriscas o particular da tua situação no cosmos — saberás qual é — à insistência em certos dados que atingem o obsceno. É certo que os dados são esses. Somente, é preciso ganhar. Bem se vê que não queres — quem quererá, na categoria onde corremos? — abandonar os signos. (E ainda que um dia o quiseres, não querias.) A revolução estaria, se assim «te vieres», em permitires que esses signos olhem para ti. (Ui que medo! Mas aguenta.) Talvez seja verdade — juro que também não tenho a certeza — que a «paisagem de costas», que tens revolucionado, está a tornar-se-te de algum modo sabida. (Cómoda.) E o novo sentido, em que falas, pode bem ser esses: «eles» querem olhar-nos! Marchar contra nós. (É facto que eles estão excessivamente «nossos aliados», nesta «nossa» paisagem. Falta a outra pedra, para antes da síntese total; o outro sentido inverso da revelação.) Será isto? Porque há o que é olhado e há o que olha (o quem olha, não interessa, tu sabes). Penso que em vez de escrever, é a vez do ser escrito (para ti como para mim). Responde a isto. Mil abraços do teu Mário P.S. — O Pacheco pensa seriamente em publicar uma série de cartas, entre as quais as que eu tu e o Carlos Eurico assinámos para o Gaspar Simões, em 1952. Lembras-te dessa? Diz-me se estás interessado em manter a tua assinatura nesse semidocumento. Em esclarecimento, adito que o Carlos Eurico não está. Retirou o nome. 106


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P.S.2 — Deixa lá isso. — P.S.3 — Nunca me mandaste cópia da tua peça teatral… Gostava bem de ter isso. P.S.4 — Não ligues demasiado ao que te digo sobre direcções, novas ou velhas, na tua pintura. É toda tão delicada qualquer questão que se invente a propósito dela! Falar-te é que eu queria… ——— Meu filho: junto esta à outra que já estava. Alvoraçado com a notícia de que vai haver trabalhos teus (desenhos-pintura, quer-se dizer). Pensei rasgar as duas linhas escritas que sobre eles também vão. É indecente tentar determinar seja o que for, estando de fora, e ainda que seja muito por amor. Chego à convicção de que os corpos, os sólidos, os translúcidos, os gasosos (masculinos, femininos, e míticos) têm grandes e inabordáveis direcções intrínsecas, que é ridículo tentar ceramizar, deter, vampirizar, até… Se bem que nisto de vampirismo, a actividade é larga, também vai para longe. Estou a falar em barcos. De forma que há certos objectos que permitem uma certa companhia. Achas? Objectos lindíssimos porque é lindíssimo o encontro que fazem. Para além disso, chapéu, madres infelizes, histórias impossíveis, rapazes nunca ditos, esperança, maceração. E o Diabo, claro, esse simpático agente. Bem sei que estás em África. Nem sei eu doutra coisa. (Permito certa dureza, que faz bem.) Eu, estou na Europa. Boa tarde. Que pena não haver outro para ir para a Oceania! Falas a sério em voltar a Lisboa? Eu julgo que poderias, se quisesses, interessar-te em seres encaixado na Agência Geral do Ultramar. (Vê só: por simpática amizade do chefe da Secção de Propaganda da dita Agência, o senhor poeta Daniel Filipe meteu-me o ano passado, com o Moniz Pereira, no Pavilhão da Agência, na Feira Popular. Choveram contos de reis. Seca107


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ram, mas choveram. E tu conheces a minha inabilidade…) Tu, daí, requererias o interesse e a simpatia pelo caso do senhor teu primo Governador-Geral. A simpatia e o interesse deveriam ser endereçados ao Dr. Banha da Silva, Agente Geral e aliás competentíssimo. Daqui, eu falava com o Daniel Filipe. E talvez fosses metido na Agência, com ordenado fixo e outras coisas mais. É tempo de pores de alguma maneira a render isso de teres ido a África. Creio que este ano haverá de novo Feira (Pavilhão). Mas há sempre trabalhos. A Agência pensa numa exposição monstro[?] em Lourenço Marques. Irias. Etc. Claro: o Snr. Capitão Silva Carvalho deve interessar-se. Trata do assunto com cautela. Olha: é admirável o teu amor pela fotografia que ainda não te mandei — porque ainda a não tenho. Sem querer desiludir ninguém, parece-me que ainda não é este mês que lhe porás a mão. As tuas cartas são coisas muito lindas. Não disse antes, para não estragar. Eu é que não tenho caneta que me valha fora dos arranques de verso a verso — a moderna tourada-mercado-heliporto. Para findar, declaro que estou pessoa honestíssima, com artigos [·] (bem, aqui é que falta um pouco: Verlaine e Rimbaud) no Diário Popular, e um trabalho diário num inacreditável que me entrega 800$00 em troca de três horas de jornalismo baratíssimo-diário. Se este ano houver Pavilhão, como se espera, mandarei um Packard aí buscar-te. D’accord? Ah! Os aparos seguem velozmente. No meio duma grande multidão de cadáveres, e cadáver ele mesmo, abraça-te calorosamente o tu amigo Mário P.S. — Ainda não vi o António. Questão de horários. 108


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01-03-1955 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa N Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola

Encontrei este poeta e lembrei-me de ti. Já me tinha lembrado de mim e do Eduardo Oliveira. Lembras-te desse poeta? Depois, lembrei-me da Fritzy, que está em Itália, moribunda, a tirar um curso de cerâmica. É preciso que lhe escrevas imediatamente (eu dou a morada). Ela publicou outro livro de versos, bastante decente, é facto. 109


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Meu caro Meu caro 1 de Março 1955 Recebi a tua nova carta. A verdade é que estou incapaz de palavras. (Não notas o arrumo da folha, a colocação do poeta? Pois é isso!... Quem me dera saber desenhar!) Sinto-te, é tudo. Olha para cima. Escreve-me muito. Escreve-me tudo. Talvez servisses de fole: eu rebentava, e dizia. Vamos experimentar? Não mandei os aparos. Não mandei coisa nenhuma. Anda para cima, ou olha a fotografia-farol: que te parece? Em livro, recomendo-te bastante a «Ana Kadar», de Miguel Fheldi, na Ed. Minerva (tradução portuguesa). Vais gostar. Perdoa a brevidade, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Escreve sempre Mário É triste mandar-te só isto, depois de tanto. Lembro-me do António: não deve poder escrever-te, se não, escrevia. Eu, hoje, estou assim — ontem — do perfeitamente. Tu, que ainda? Eu, que já? ◆

03-03-1955 R. Basílio Teles, 6-2.º dto. Lisboa Caixa Postal n.º 1301 Luanda, Angola

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Ă?NDICE


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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nota de edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS

Póvoa de Varzim, 07-08-1941 (para Lisboa) . . . . . . . . . . Póvoa de Varzim, 21-08-1941 (para Lisboa). . . . . . . . . . . Póvoa de Varzim, 25-08-1941 (para Lisboa). . . . . . . . . . . Póvoa de Varzim, 28-08-1941 (para Lisboa) . . . . . . . . . . Póvoa de Varzim, 04-09-1941 (para Lisboa) . . . . . . . . . . Lisboa, 22-09-1941 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1942 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 03-04-1942 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 02-12-1942 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Moledo do Minho, 30-08-1943 (para Lisboa) . . . . . . . . Moledo do Minho, 07-09-1943 (para Lisboa) . . . . . . . . 18-09-1943 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 04-10-1943 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Viseu, 01-12-1943 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foz do Arelho, 21-08-1944 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . Lisboa, 08-09-1946 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 26-08-1948 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28-04-1949 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Estremoz, 08-11-1949 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . Estremoz, 16-11-1949 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Matosinhos, 1950. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315

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Esposende, 22-03-1950 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . Matosinhos, 26/27-03-1950 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . Esposende, 08-04-1950 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 07-03-1953 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 10-04-1953 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 14-05-1953 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 24-11-1953 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, Dezembro 1953 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 06-02-1954 (para Luanda). . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 25-02-1954 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 04-03-1954 (para Luanda). . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 02-05-1954 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 01-11-1954 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 28-11-1954 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 27-01-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 01-03-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 03-03-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 03-04-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 20-04-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 04-06-1955 (para Luanda). . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 22-06-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 17-08-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 09-11-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 27-12-1955 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 17-02-1956 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 23-06-1956 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 01-07-1956 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 31-10-1956 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 12-02-1957 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 03-09-1957 (para Luanda). . . . . . . . . . . . . . . . . . 316

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Lisboa, 22-10-1957 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, data desconhecida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, data desconhecida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 21-05-1958 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 27-06-1958 (para Luanda). . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 20-07-1959 (para Luanda). . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 28-09-1959 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 04-12-1959 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 01-04-1960 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 13-07-1960 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 07-09-1960 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 30-09-1960 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 12-03-1963 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 14-03-1963 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 24-03-1963 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 08-05-1963 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 14-01-1964 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 08-04-1964 (para Luanda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 28-07-1964 (para Afife). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 04-08-1964 (para Afife) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 10-08-1964 (para Afife) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 31-08-1964 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 08-09-1964 (para Afife) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fresnes, 23/27-10-1964 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . Fresnes, 04-11-1964 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . . Londres, 28-11-1964 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . Dezembro 1964 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Londres, 04-12-1964 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . Londres, 09-12-1964 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 17-12-1964 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317

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Londres, 20-12-1964 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 192 Londres, 22-01-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 Londres, 07-02-1965 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . 196 Londres, 16-02-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 Londres, 06-03-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 202 Londres, 08-03-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 204 Londres, 15-03-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 Londres, 28-03-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 Londres, 06-04-1965 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . 212 Londres, 12-04-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 214 Londres, data desconhecida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 Londres, 17-04-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 Londres, 23-04-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 218 Londres, 17-05-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 221 Londres, 29-07-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 223 Londres, 02-08-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 224 16-08-1965 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 Londres, 22-08-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Londres, 27-08-1965 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230 Lagos, 30-09-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232 Londres, 12-10-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 234 Londres, 20-10-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 236 Londres, 28-10-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 238 Londres, 08-11-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 Londres, 17-11-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 Londres, 26-11-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 Londres, 27-11-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 250 Londres, 13-12-1965 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 Londres, 25-01-1966 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 Londres, 08-02-1966 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . 254 318


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Londres, 11-02-1966 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . Amarante, Março 1968 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . Amarante, 23-03-1968 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 07-04-1968 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Londres, 13-09-1968 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 14-02-1970 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 21-02-1970 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 24-02-1970 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 27-02-1970 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 03-03-1970 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paris, 04-03-1970 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Haia, 11-08-1972 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Haia, 11-08-1972 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Madrid, 1973 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Madrid, 01-05-1973 (para Lisboa). . . . . . . . . . . . . . . . . . Amesterdão, 1974 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amesterdão, 1974 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Bruges, 17-07-1975 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 26-07-1975 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 02-08-1975 (para Lisboa) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 09-08-1975 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lisboa, 13-12-1975 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sem data . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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edição de Perfecto E. Cuadrado António Gonçalves Cristina Guerra

D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA

CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS

CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS 1941 – 1975

CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS


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