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edição de Luís Amorim de Sousa
D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA
CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA ALBERTO DE LACERDA
UM SOL ESPLENDENTE NAS COISAS cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda
UM SOL ESPLENDENTE NAS COISAS cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda
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Este livro foi publicado por ocasião dos IX ENCONTROS MÁRIO CESARINY realizados na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão de 26 a 28 de Novembro de 2015
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UM SOL ESPLENDENTE NAS COISAS cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda
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Mário Cesariny, começo dos anos 50
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UM SOL ESPLENDENTE NAS COISAS cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda edição de
Luís Amorim de Sousa
D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA
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© LUÍS AMORIM DE SOUSA (HERDEIRO DE ALBERTO DE LACERDA), 2015 © FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA PRAÇA DONA MARIA II 4760-111 VILA NOVA DE FAMALICÃO © SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA), 2015 RUA PASSOS MANUEL, 67-B 1150-258 LISBOA FIXAÇÃO DO TEXTO: LUÍS AMORIM DE SOUSA REVISÃO: CRISTINA GUERRA 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO 2015 ISBN 978-989-8618-86-3
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INTRODUÇÃO
Luís Amorim de Sousa
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A primeira vez que ouvi falar em Mário Cesariny, que nessa altura ainda era de Vasconcelos, foi na antiga cidade de Lourenço Marques. O nome intrigou-me imenso. Intrigou-me ainda mais o facto de se tratar de um surrealista português. Surrealismo para mim, naquela altura, queria dizer Paris. Exclusivamente Paris. Estávamos no ano de 1957. Escrevi para Portugal, para a livraria Bertrand, a perguntar se o poeta Mário Cesariny de Vasconcelos tinha obra publicada e se me podiam enviar um livro, o que tivessem, à cobrança. O livro que me chegou foi Pena Capital. Li-o com deslumbramento e escrevi logo outra carta, desta vez à Contraponto, a pedir mais, mais livros daquele poeta. E desta vez recebi, numa edição numerada e assinada pelo editor, Luiz Pacheco, Manual de Prestidigitação. Uma festa. Li e reli os dois livros e decorei certos poemas para sempre. Um desses, «Julião os Amadores», saiu-me do princípio ao fim, a meio de uma conversa com Alberto de Lacerda. Quando dois poetas se encontram falam sempre de outros poetas. Falávamos do Cesariny que o Alberto conhecera na altura da formação do grupo surrealista português. O Alberto perguntou-me por que razão eu tinha decorado esse belíssimo poema que também tanto apreciava. «Foi só de ler, Alberto. É um poema que me ficou.» E então o Alberto fez uma pausa especial, um gesto leve com a mão, e disse apenas: «O Mário é o maior de todos nós.» Notei que disse 9
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o maior, não o melhor. Os critérios do Alberto exigiam grandes poetas. Estávamos ambos em Londres. Na Londres que tanto amávamos. O Alberto vivia em Chelsea e eu também por ali perto, numa rua em South Kensington. Passava-se isto no início da década de 60. Dois ou três anos depois o Alberto convidou-me para almoçar, em Chelsea, na sua Chelsea, para conhecer o meu poeta Cesariny. Mário Cesariny de Vasconcelos. Foi nosso anfitrião o poeta Christopher Middleton, que, com o dinheiro de um prémio que lhe fora atribuído, insistiu em abarcar com a despesa do almoço. «Ainda me sobra bastante, e hoje quero homenagear três poetas de Portugal.» Eu, de tão emocionado, mal conseguia falar. Falaram muito o Alberto, Middleton e o Mário Cesariny. Em francês, curiosamente. O inglês falado pelo Mário, que nunca foi grande coisa, era então surrealizante. Depois do almoço tirámos fotografias, passeámos junto ao Tamisa, e eu voltei à BBC, onde tinha um lugar de locutor, tal e qual como Alberto, em tempos idos. Dois ou três dias depois, por sugestão do Alberto, o poeta português Mário Cesariny «ó meu deus de Vasconcelos» aparecia nos estúdios para ser entrevistado. A ideia partiu do Alberto que o trouxe e o informou de que a entrevista ia ser paga. «Acho muito boa ideia!» disse o Mário. E veio e fez-se a entrevista e, logo a seguir, o Alberto levou-o à National Gallery, que era uma caminhada curta em linha recta, para ver as maravilhas que lá estavam. Voltaram juntos, muitas, muitas vezes. «Para mim, não é um museu, é a minha casa», dizia sempre o Alberto. Uma casa que, com igual convicção, o Mário também passou a frequentar. E a pintura era uma coisa que sempre os aproximou. 10
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Já não consigo lembrar-me da sequência disto tudo. Lembro-me que o Mário regressou a Portugal, voltou posteriormente a Londres e ali ficou a viver durante uns tempos. Foi um período de convívio entre o Mário e o Alberto muito embora interrompido pela ida do Alberto para os Estados Unidos onde esteve a leccionar a convite da Universidade do Texas. Quando o Alberto vinha a Londres durante os períodos de férias, retomavam o convívio e, no dizer do Alberto, «todas as cumplicidades» que os tinham aproximado. Conduzido pelo Alberto o Mário conheceu poetas, escritores, gente ligada ao mundo da cultura, andou pelas galerias do West End, bisbilhotou livrarias e cultivou amizades. Entre os amigos londrinos mais estimados figurava Paula Rego. Mas será erro pensar que a relação entre os dois, Alberto e Mário, se confinou à experiência de uma Londres que, durante um certo tempo, partilharam, mas que viveram tão diferentemente. Onde o Mário navegava como um nauta em mares distantes, Alberto estava possuído dos mistérios da cidade. Outros interesses os aproximavam. O prazer da descoberta, e amigos que cultivavam fora de Londres também, noutras paragens: os casais Vieira e Arpad, e Octavio e Marie Jo Paz, para citar só dois exemplos. E livros, é claro, e quadros, e Lisboa, e a poesia. Sempre, sempre, a poesia. De tudo isso há registos nas «recordações» que o Alberto foi guardando do seu amigo Mário Cesariny. Recordações que são cartas, fotografias, obras de arte, folhas volantes, recortes de jornal. E há mais. Há notas de diário que o Alberto registou nas suas idas a Lisboa onde repetidamente constatou «o desfasado, o melancólico das gentes, da atmosfera, da realidade lusitana». Sem11
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pre que estava em Lisboa, encontrava-se com o Mário. Transcrevo breves excertos de um diário. 27 de Maio 81 — Lisboa […] Hoje à tarde, Cesariny na exposição surrealista (António Maria Lisboa, Pedro Oom e Mário Henrique Leiria) que ele organizou na Biblioteca Nacional. […] 28 de Maio 81 — Lisboa Diz-me ontem Cesariny que na sua Titânia teria tentando captar esse misterioso quid de Lisboa; e que parou ou teria dado em Gil Vicente ou Jean Genet. Foi pena que não tivesse ido para os dois lados simultaneamente. 29 de Maio 81 — Lisboa À noite, Cesariny. Convida-me a casa dele. Quadros da mãe, abstractos. Uma tradução do Byron em espanhol, emoldurada. Escrita pelo punho da mãe que sabia os versos de cor (e que o Mário recita). Quadros magníficos de gente desconhecida, da Holanda, da Inglaterra, de Portugal. Uma autêntica central surrealista. […] Leio-lhe a Casa d’Yves, de Breton; lê-me a Fata Morgana quase completa. Que foi esse poema em 47 que o pôs na verdadeira via. Fala-se da gente que ele vai descobrindo pelo mundo — tomo nota de livros em que nunca ouvi falar. Diz-me que eu devia escrever sobre as experiências que tenho passado, algumas extraordinárias. […] Fala com admiração intacta sobre Pessanha. […] Falou-se de Londres. […] Mas falou-se sobretudo de outras coisas — coisas de maravilha, o México e os seus mistérios, a poesia que é o próprio mistério que encarnou no mundo, o sexo — que está no centro de próprio mistério. 12
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O que há para descobrir de Cesariny no mundo íntimo de Alberto de Lacerda excede em muito os contornos deste livro. Mas nesse mundo e sempre nos dois sentidos, resplendem admiração e amizade que o tempo nunca deixou de sustentar. Nenhum deles desejou que fosse uma amizade literária. O que a define é uma alta camaradagem marcada, muito ao contrário, pelo desejo de aventura e de magia com que Alberto e Cesariny sempre quiseram viver. Peço a Mário Cesariny que nos venha aqui contar. Oxford, Maio de 2014
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Alberto de Lacerda e Mário Cesariny, Londres, 1964.
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1 abril (1962) Albertíssimo Muito bem. Há oito dias que ando para lhe escrever. A sua bela tradução Huelsenbeck vem transformar o querer em ser. Também a sua última DN sobre pés nus em Chelsea e a tal lâmina de sol, que já doirou por aí a cabeça. Isto por cá não me vai nada fácil. Projectos mil e um, dadá incluso, mas, de momento, ainda, a sensação de pendurado no espaço sem que saiba até onde vai a corda, para cima, e onde ficarão os pés, se enfim descer. Isto digo de todos os salões interiores e de todo o exterior. O opaco. Acho que vai levar mais uns dois meses [para] ver-se onde estamos. Por agora a travessia do deserto, camelos dois anos mais velhos, um que outro oásis já fora dos sítios. Fiquei contente de saber por cá que as minhas indicações para a Paula acertaram. Sabe que tenho ido à praia? Sabor violento a sóis já diluí17
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dos. Mesmo assim já apanhei uma boa gripe. Julgava eu que era o estado do meu espírito, a confusão total. À noite a febre veio explicar tudo. Quer dizer que tenho pintado, pensado e fechado. O leal cavaleiro de oliveira, Dácio, anda a ver se faz seguir para a casa de um primázio súbito milionário um quadro meu e o troco de alguns contos. Seria a salvação para os dois meses. Entrevisto de Azevedo na Fundação. O amarelo antigo evoluiu para terra, terra de siena já muito queimada, e esta é outra hipótese-projecto: e se eles pingassem uns contos mensais para a prossecução da obra? (Vieira da Silva) Quanto à obra esta, está a tornar-se o mito do século, o que só lhe fica bem. Nem garanto que a escreva, venha a escrevê-la mesmo, fio e pavio algum dia. Também tenho mestres. Escreva-me. Grande abraço do seu Mário Cesariny
P.S. Estou a passar a limpo o meu texto a 4 vozes. Ainda o que quer para a realização londinense? ◆
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paris 26.6.64 Alberto de Lacerda: Entregue, o seu abraço. A Maria Helena chama-o para Agosto. Vemo-nos? Seu Cesariny [Acrescentado à mão:]
Mande-me o catálogo do Kandinsky. Se existe! ◆
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r. grenelle, 15 julho (1964) Meu caro Alberto de Lacerda Obrigado pela sua letra. Pela pergunta respondo: solvida, a questão de mais três meses «turísticos». A viagem de volta magnífica e, à saída de Folkstone, só faltou tocar a música e aparecer a rainha a cavalo, como nos cinemas. Reconhecemo-nos todos, quase chorámos e íamos cair nos braços uns dos outros, se o meu bilhete, desta vez de 1.ª, não me dispensasse de qualquer apresentação de passaporte a bordo. Solo francês: inteiramente acolhedor, nem me abriram a mala. Diga-me agora que os caminhos-de-ferro não têm razão quando insistem nas vantagens de uma 1.ª classe. Quanto à minha situação em Paris, parece-me que não podia ser pior. Trabalho, viste-lo — trabalho muito, sim, mas para a eternidade. De Portugal não me mandam massa e dependo duramente do meu anfitrião, Dame Isabel Meirelles, que embora não tenha ainda pensado fazê-lo, tem mais que motivo para começar a abrir devagarinho a porta, e, um dia destes, zás, preciso disto. Fiz nova diligência no meu conselheiro áulico de Lisboa, para palpação do clima localista, a meu respeito. Daqui espero notícia. Doutra via, porém, soube que se preparam várias homenagens — até à data, duas — nos jornais, galerias e ateliers de Lisboa (e arredores), o que é muito mau para mim porque traz uma tinta de caso arrumado tal ainda a não tinha cheirado antes. Quanto à Gulbenkian, ainda estamos no capítulo da epistolografia pré-monitória. 20
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Como vê, ofereci-me a responder-lhe e agora estou à espera do catálogo Kandinsky justo prémio do esforço recompensado. A Maria Helena e o Arpad convidam-me a Yèvre-le-Châtel mas como durante Julho tenho que estar de atalaia à livraria da Isabel — a cuja está a águas — irei entre 1 e 15 de Agosto, o que quer dizer que devemos ver-nos, ou até mesmo ter-nos, por lá, alguns dias. Quando pensa você chegar a Paris? Há uma cama vaga cá em casa, até ao dia 31. Quer vir uns dias antes e passear por cá? Seguiríamos juntos para Yèvre? Diga. Um abraço do seu Mário Cesariny P.S. Seguindo o seu pedido, seguem duas edições especiais exemp. únicos do poema Arnaldo de Villanova. Escolha para si aquela de que gostar mais. Dê depressa a outra à secção portuguesa (para ela limpar a boca) da BBC. ◆
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julho 64 Meu caro Alberto de Lacerda Consternado, devo retirar o meu convite, sem saber, aliás, se você ia aceitá-lo. Ele foi feito com a minha anfitriã — a Isabel — a águas e na certeza de que ela não acharia se não muitíssimo bem a sua passagem. Vem-me agora uma carta de Lisboa — Isabel continuando a águas — anunciando que se desloca, por alturas do fim do mês, uma prima qualquer, direita, à Rue de Savoie e nela requerendo asilo para dois dias. Ante tal vôo, é meu dever, e minha falta, e honra dispensá-lo, a si, da minha imaginação, nessa data. De qualquer modo: você passa, ou não, rumo a Yèvre? Seu Mário Cesariny ◆
s/d [Bilhete sem data, entregue em 52 Tite Street, Londres]
Meu caro Alberto Não sei se telefonou de manhã. Eu estive fora até à 1 hora ocupado em assuntos urgentes. 23
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Aqui lhe deixo as suas 2 libras e os votos de pronto restabelecimento. A breve Mário ◆
s/d [Bilhete sem data, entregue em 52 Tite Street, Londres. A data de 21.5.65 foi anotada por Alberto de Lacerda.]
Alberto: Bom dia boa noite. Preciso: a) Do seu poema «Não Morres Cabeça de Porco» ou outro de raiva igual ou par da sua. Esclareço lealmente que é para ser incluído na revista, em preparação portuguesa, Abjecção. b) Do texto budista zen do americano que você me leu com muito humor (zunia eu com três dentes a menos). Será, ou não será, incluído. É capaz de ser forte demais para estudantes. c) Das fotografias de Yèvre. d) De si. Não demore tanto a aparecer. Seu Mário ◆
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Na vizinhança de Tite Street, Chelsea
londres, 28 maio 65 Meu caro Alberto de Lacerda Você fez bem em transmitir-me o pedido ou sugestão do seu amigo, coisa natural e normal, e estou-lhe grato por tê-lo feito. O sítio onde estávamos, você viu, não era dos mais propícios e chegado agora a casa estou a escrever-lhe esta carta, que é não a tentativa de motivar a minha atitude como um papel branco onde estou a ver se entendo e se me entendo. Dou-lhe já o meu estado de espírito, estou cheio de raiva, sou o cão em cima da árvore, e nunca supus que pudesse ser tão alto, tão sozinho e tão triste (a árvore). Eu assinei não sei quantas dezenas, se não foram centenas, de papéis iguais ou pares desses que o seu amigo sugere que se assine. 25
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Nunca me recusei nisso, mesmo sabendo que coisas tais não levam a coisa nenhuma, mesmo rindo a matar desses cordéis assinados que sempre ficam bem na árvore de natal da polícia — mais um ramo a juntar às outras flores — e só agitam quem já anda agitado. Assinei nos alegres tempos do M.U.D., assinei mais tarde, acho que assinei sempre. Também recolhi assinaturas, levei negas e adesões — lembro-me de uma «nega» da nossa comum amiga Maria da Graça, que já deitava assinaturas pelo canto dos olhos, e desatou aos gritos na Academia dos Amadores de Música, e eu dei-lhe razão e lembro-me [que] da última vez que assinei (por sinal foi preciso assinar duas vezes, pois não sei que preciosos, que teriam razão, também, acharam à última hora que seria perigosa a primeira redacção) era justamente uma petição a Sua Excelência o Presidente da República, que voltava de África, a cuja qual petição intercedia (tentava) por um pequeno número de escritores e jornalistas angolanos, não sei quantos, que tinham sido condenados a quatorze anos de cadeia. E assinei porque sim, porque é impossível não assinar, porque não se pode não assinar. É feio. A isto estamos reduzidos. Eles lá permanecem na cadeia e nós permanecemos aqui decerto porque o Presidente da República entendeu que aquelas assinaturas tinham a importância que tinham. Mas distingo entre a inutilidade destes protestos e a utilidade pessoal de fazê-los. Sente-se a pessoa mais limpa, parece que é entre papel e caneta, já que não há verdadeiro contacto entre caneta e país, se ficou mais limpo por uns tempos. Mas há que denunciar um dia, a gritos, esta ilusão: o limpar-se um de caneta em país onde a polícia impera. (Válido para todas as formas de papel: pintado, romanceado, recheado do que quiserem.) Mas cinjamo-nos ao terreno devido. 26
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Desta feita eu não posso assinar. E não sei durante quanto tempo esta minha menoridade civil vai durar. Suponho que vai durar sempre. (Sempre até.) Tenho contra mim uma polícia que, de mãos dadas com a ausência de lei que grassa no país — lei que defende os direitos do cidadão na cidade e nos montes —, me vai chamar um figo um dia estes. Tenho contra mim uma polícia que informa processos para um tribunal que julga sem provas, sem queixas, sem testemunhas, atido unicamente ao parecer da polícia. Se não sabia, fica a saber. Chama-se o organismo Tribunal de Execução de Penas e é uma invenção do Mussolini. Funciona dentro da Cadeia Penitenciária de Lisboa, para poupar alguma gasolina ao Estado. Alguma? Estou em crer que o melhor do nosso povo — neste sentido de uma juventude mais revolta, mais incapaz de sofrer a canga, mais bela, mais brava, e por isso mesmo mais perto de todos os gestos que levam à desobediência militar ou civil — Desculpe. Vou repetir: neste sentido de homens realmente jovens que não se furtaram ao dever primeiro de partir com um tijolo a cabeça do patrão, de foder onde virem um buraco bonito — cara ou coroa — de roubar o que devia ser dado e é vendido podre, de enfim, passear, passear e passear, quando a ordem do dia é trabalha e trabalha e trabalha porque amanhã tens mais que trabalhar. (Claro que também falo por mim, não incurso em roubos, por enquanto). É IMPLACAVELMENTE EXTERMINADA NO DITO TRIBUNAL, tão eficiente nisso como os campos de extermínio de que
deriva. Considere, se quiser, uma brincadeira de mau gosto o que vou dizer-lhe: a PIDE é uma polícia que preocupa e mutila a camada intelectual, ou mais consciente, também mais alimentada, do país. 27
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Quantos milhares? Dez mil? Cem mil pessoas? Talvez. O Tribunal de Execução de Penas tem Portugal preso pelo pescoço do Norte ao Sul do país. É a expressão última sinistra do que já se passa nos tribunais cíveis. E você sabe (ou não sabe?): uma ideia, ou até mesmo uma revolução pode calar-se, adiar-se, pôr-se na gaveta, esperar o amanhã, a condição mais boa, afiar, aparar (creio mesmo que neste capítulo é tudo o que se tem feito em Portugal: afiar, aparar). Agora o amor que uma pessoa tem por homens ou por mulheres, não se pode calar, não se pode aparar nem afiar, não é para isso que dá. Não parece ser possível esperar pela legislação escandinava ou suíça para começar a ter tesão a dois. Acho que já lhe disse que assinei por aqueles escritores e jornalistas presos em Angola. (Mas assinaria de melhor grado quaisquer outros presos. De um modo geral, não vejo nada que a profissão de escritor e, com maior motivo, a de jornalista, sejam as que saiam limpas deste caldeirão. Estão cosidas até à quinta casa!) E que é bastante e séria a minha raiva de ver-me com cautelas e mesuras, que nunca tive, e agora devo ter. Só um ingénuo, muito, proporia que a nossa polícia dita judiciária não tem ligação à Pide. Será também ingenuidade, quem sabe, assumir cautelas numa altura em que naturalmente já não há ai que lhe valha. Ou uma última chance, tive várias, de fazer herói. Tenho antipatia geral pela chamada Sociedade Portuguesa de Escritores. Tal a tenho visto obrar é um organismo pernicioso, reac28
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cionário e conservador. Ocupa-a o triunfo da literatura muito mais que o renovo da sociedade. Ou faz por acreditar que a vitória da literatura implica o segundo, o que é ainda pior. Mas você vai crer com certeza que lamento que as pessoas do Manuel da Fonseca, Alexandre Pinheiro Torres e do Augusto Abelaira tenham ido parar à choça. Também não são os primeiros — nem serão os últimos. Eu já estive preso umas vezes em condições decerto menos honrosas — (1) por causa do meu sexo, coisa ilegal, por enquanto. E sempre me perguntei à entrada e à saída, como é possível que haja gente no mundo capaz de achar um sexo coisa ilegal! Se quiser leia a carta ao seu amigo. Não lha deixe, porém. Desculpe, corrijo: leia esta carta ao seu amigo e guarde-a no seu cofre londrino. Abraço do seu Cesariny (1) Parece. P.S. Continuo a precisar das fotografias Yèvre. Nota: O tema desta carta é uma petição contra a descriminalização da homossexualidade masculina na Inglaterra, que só ocorreu em 1967. ◆
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Em Howland Street moraram Rimbaud e Verlaine
agosto, 19 (1964) Caro Recebida a sua carta com todas as suas boas novas catalogais, fotográficas e de cantares de amigo. Não lhe ripostei há mais tempo porque, para o efeito muito desejado, isto é: o nosso encontro por uns dias aqui, era nulo. Você não passa antes do dia 15, soube-o há pouco, eu, desapareço para Espanha, de 12 a fim do mês. Assim, talvez no seu regresso, ou no meu, ou, finalmente, em nova visita às Londres, depois de Setembro. Outro abraço do seu Mário Cesariny 30
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fevereiro 66 Alberto Que ideia foi essa de escrever-me para Lisboa? Você não tem a minha morada aqui? 46 -A Walton Street. Gostei de receber notícias suas, mesmo atrasadas pelo tempo do reenvio para Londres. Junto a lista dos meus preferidos do seu Palácio. Espero que fale em breve.
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Palácio 24 25 35 46 48 56 62 63 67
75 83 109 112 126 132 136
Nota: A numeração das páginas corresponde à 1.ª edição de Palácio (Delfos, Lisboa, 1961) . As páginas 126 e 132 correspondem aos poemas Opus 2, N.4 e Terreiro do Paço — Novembro, que em cada um dos casos começam na página anterior.
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set. 1966 Meu caro Alberto A sua carta deu-me mais alegria do que supõe. Escreva à vontade, o que quiser, relacionado, claro, com a saída do livro que eu faço sair no Letras e Artes. Curioso se agregasse alguma coisa do interesse que o movimento, defunto ou não, sempre foi suscitando por aí. Nada de grave, decerto, mas ir dizendo se a propósito vier. Tive o gosto de encontrar o nome do nosso amigo C. Middleton num boletim saído o ano passado, sinal de uma associação em França para o estudo general do movimento Dadá. Quanto ao meu poema, nu excitando pessoas, que eu envio-lhe um dia destes. Pormenor: Não vi a Paula nem sei onde se encontra. Fala-me na Ericeira. Mas a Ericeira, você sabe, é longe. Abraça-o e espera notícias O seu Mário ◆
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Christopher Middleton e Alberto de Lacerda, Londres, 1958-59
lx. 22 dez 1966 Meu querido Londrino Gosto muito do seu poema, forma, ou mais força que forma, embora forma também, ou sobretudo — isto, assim, nunca mais acaba e a caneta é nova e é péssima. O que eu queria dizer é que este poema é muito parecido consigo, espécie de relação nove-dez de si com o mundo ou dele com a poesia. Se é uma série mande mais, se não é série, mande outros. Para lhe descrever o meu estado de espírito de há meses teria de ir procurar algumas formas espanholas, mas antes do século de oiro, do terror, do frio, e da solidão. Soledad. 34
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Habito um deserto que teve o hábito da convivência. Os mais puros, tão pobres e tão feridos que lutam por não desperdiçar o mais pequeno sopro. Não são maus: estamos isto. Arranjei um gato — aliás uma gata, a natureza começa a responder e deixou de dar gatos, gera felinos, esta encontrei-a eu num grupo de mais quatro irmãs num andar altíssimo, da Baixa. Contando com a mãe aí tem cinco elementos água, de que veio uma comigo, por falta de varão. Acredite que tive pena dela, não de mim, de ser gata. Em homenagem ao cinquentenário, ao imenso homem dos merzbild, a mim, a si, a eles, e a não sei que mais, pus-lhe o nome de Anna Blume. Fiz também a morada e pus o total ao pescoço, correia de cão, gravada de fuzileiro. Pormenor: é completamente simétrica, quanto aos desenhos do pêlo, e, por baixo, indescritível maravilha, tem a barriga de um ocre quente e claro impossível de obter (de qualquer outro modo). Os saltos indescritíveis atrás de uma bola que não há, e em casa dizem que ela é o Eusébio. Dê aí um abraço a toda a gente pelo que os Comuns acabam de aprovar. Aqui a imprensa fez os comentários mais atrozes. Tenha força em chamar pelo seu amigo londrino. Decerto que não estou aí mas se há coisa mais certa do que o certo é: não estou cá. Para estar é preciso chegar e não vejo onde ou quem, se fosse mais para o sul, mas francamente muito mais para o sul, não é verdade? Que este ano que entra o abrace como eu o abraçaria num regresso novo na estação de Vitória. Mário ◆
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Para o Alberto, este retrato da Anna Blume, e o miau, admirador maior, do fotógrafo Mário
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janeiro 1967 Caro Alberto Recebi tudo. Assinalo atrasado porque estou metido numa exposição a abrir na Bucholz (ponha mais uns 2, ou 3 hs, eu não sei) que era para ser também com o Cruzeiro Seixas, que é o que tinha graça. Somente os incríveis da Gulbenkian não o autorizaram a expor, agora, e lá vou eu sozinho para os ventos débeis. Assim tem sido montar, desmontar, tornar a montar, voltar a partir (vidros), refazer catálogo, vida, etc. A gerente da galeria, que há anos não parece dar acordo de coisa nenhuma, acordou desesperada e prontificou-se a dar as coisas do Seixas como da colecção da casa, telefonaria a dizer tudo o que fosse preciso, e sobretudo a dizer mal. Já foi bonito. A ver vamos se consigo o tal texto até ao fim do mês. Os meus gauleses mais próximos andam em viagens pelas Europas e isso não facilita o assunto. Em todo o caso, estas coisas são demoradas por tradição. Para si um veemente obrigado pela encomenda. Vou acabar à Vieira da Silva: o meu lado esquerdo está com gripe, a gata fugiu para a escada e eu não sei escrever. É tão grave escrever. Não é? Seu Mário Cesariny ◆
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19.2.1967 Alberto Tive notícias suas pela Menez, que o viu em Paris, e você sem dizer nada! Mas isto é uma carta de negócios, na ideia de fazer-lhe no bolso umas libras suplementares, a saber: Pessoa amiga de pessoas amigas deve ou tem de ir a Londres na próxima semana em viagem profissional. Arquitecto, depois segue para a Suíça e não sei que mais. A parte que lhe interessa, se lhe interessar, é que necessita de um guia para dois ou três dias — cinco dias é o que conta estar aí — dado que não conhece, não fala, ou fala por sinais, e deve arranjar quartinho, preferia não ir hotel, comidinha, ir aos sítios onde tem de ir e até a alguns outros onde não tem de ir mas já agora que bom se você indicasse. Percebe-me? Alguém disse logo ao lado que você é que era ideal e que eu, como amigo seu, poderia talvez falar-lhe escrito. Para dar ares disse logo que você estava em Paris, depois lembrando-me que o Alberto faria librinhas, fi-lo regressar a Londres declarando porém preços habituais dos guias aí (saber colhido do Dácio em conversa a tempo). Disse: dia e noite, parece que 10 pounds. Até às 6 da tarde, parece que 600 mélreis. Tudo visto, penso que você podia ser simpático com o arquitecto e funcionar como lhe aprouver, mais ou menos dentro disso. Se é outra a sua tabela, aplique, depois de avisar. Acho que se segue o pormenor: mal a criatura tenha certo o dia da chegada aí, na próxima semana, ele envia, ou envio eu, telegrama a avisar. Seu, o trabalho de ir sonhando um quarto para ele, de forma a que se torne realidade quando chegasse. Está tudo? 38
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Darei a sua morada e telefone. É mau? Não vejo outro processo para comunicarem. Leva também a morada da Casa de Portugal, para que arranjem, caso você não esteja ou não esteja para isso. Como encontrou Paris? Diz-me que René Char. Numa leitura recente dei aqui o Nick Totton do vosso Nothing Doing in London* (na galeria onde me encontro exposto). (Bastante exposto.) Seixas expõe-me a seguir. Abraços do seu Cesariny ◆
* Nothing Doing in London, revista lançada pelo poeta inglês Anthony Barnett, em Novembro de 1966. Alberto de Lacerda e António Sena colaboraram no número inicial. (N. de L.A.S.)
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lx. 20-2-67 Meu Caro Alberto Creio que tenho de pedir-lhe desculpa desta minha tentativa de fornecer-lhe algumas libritas suplementares. De resto, se leu bem a minha carta em que lhe falava nisso, terá entendido como eu desloquei a questão para aí, ao cheirar-me a coisas outras que, parece, os dias passados vieram confirmar. O arquitecto em questão não mais deu sinal e eu não cheguei a dar a sua morada. Não sei se partiu, se ainda cá está, mas sei que é pessoa que não faz muita ideia certa seja do que for. Concluo assim que a criatura queria um guia grátis e muitos amigos e talvez também alguns amantes tudo grátis, e eu à porta dele a implorar-lhe que aceitasse ser tudo assim grátis. Passemos. A Maria Helena escreveu-me uma carta inter-gatos maravilhosa. Como a achou, os achou, você? O René Char? Saiu há pouco um livro assim-assim do José Pierre sobre surrealismo (pintura). Lá se reeditou todas as asneiras, sobre Portugal e portugueses, que o Zezito França e o seu dele Rolls, deve ter propalado pela dita França. Conhece o tom: «quando eu me desinteressei do surrealismo — fala o francinhas — acabou o surrealismo em Portugal». As criaturas que vagam em estado de beatas pelos boulevards recolhem aquilo e o resultado fica sumamente gaulês — sem universal, agora. Que fazer? Provavelmente, nada. Que coisa esquisita! Para fazer a tempo o meu artigo sobre o Breton precisava de gente que não tive a tempo. Não dê outra interpretação: ele continua a ser para mim o maior poeta do século: o que fez, o que disse, 41
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o que quis, o que publicou, o que falhou — grande em toda a medida. Beijos, grandes, e amplexos, à sua Londres. E seus, do Mário Cesariny ◆
s/d [Anotação de Alberto de Lacerda:]
Recebida em Agosto 67 Caro Alberto Meu caro Este é só para dizer que penso muito em Londres e bastante em si e que o Joan contramestre do gigolo* levou para aí anteontem uma Cidade Queimada (esta) que é sua. Diz o Joan que o Alberto tem o telefone mas à cautela ponho aqui o dele com o nome por extenso Joan Ponsa FLA 3122 e tudo. É óbvio que o apanhei na Avenida a tomar o refresco. Quando um dia destes passando em Piccadilly for à tabacaria da esquina Leicester S., ou quase, mande-me uma revista muito bonita. Adeus saudades Mário * Referência ao filme de Enrique Ponsa Lo Más Sublime (1926). (N. de L.A.S.)
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lx. 7 dez (1971) Caro O grande abraço a Londres (a si). Recebeu o meu livro de capa hórrida? (espero que sim). Mas esta é uma carta à pressa que nunca fará sombra à que veio sua do México. Ai. Como não e pode não ter ido ao México? Em suma: o meu grande amigo e senhor (senhor da Galeria S. Mamede, e meu, por reflexo disso, entenda-se) Francisco Pereira 43
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Coutinho vai a Londres (tenciona estar aí terça-feira, próxima) para assuntos sobremodo correlativos. Quererá e poderá o Alberto tomá-lo um pouco sobre a sua preciosíssima e potentÍssima asa londrina? Pintura, etc. Bacon — mas e o Schwitters? E o Rauschenberg? E o Gorky?!!!!!!!!!! — sobretudo, creio, pois julgo que o Pereira Coutinho anda a pensar atrever-se a fazer na S. Mamede uma boa exposição desse pintor — quer acompanhar? (Não sei exacto em quê mas a sua mesma companhia já será um estímulo.) E dê sinal de notícia! Está a chegar o Natal! Seu Mário _______ Darei ao Francisco P. Coutinho o seu telefone em casa. Está bem? Seu Mário ◆
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s/d [Cartão acompanhando o envio do livro 19 projectos de prémio Aldonso Ortigão seguidos de POEMAS DE LONDRES]
A capa é muito feia. Por isso lhe envio este desenho para tapar! Faça uma crónica, sim? Eu não digo já sobre o livro — esgotava a edição e você a paciência — mas talvez o livro, você, Londres, nós — os poemas. «S.A.» é Shafffesttttburyyy Av., que ainda hoje não sei como grafar… E aquele coffee-tea-sandwiches-house muito pequenina e pobretana que há diante, logo a seguir a Leicester Square. Ainda existe? Seu Mário
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[Dedicatória:]
A Alberto de Lacerda O Poeta Ao amigo Lembrança do Mário Cesariny Lx.71 ◆
lx. maio 72 Querido Poeta Você é uma pessoa admirável e terrível! Entra-lhe o borbotão do vulcão, escreve, a pobres seres desprevenidos e com a solidão já organizada, três mil linhas incendiárias, revolta mais ou menos tudo,… e depois fica mais três anos sem dar uma linha, retrós que fosse. E agora obriga-me a escrever esta carta, obrigação toda minha, mas reflexo seu… É que o que eu lhe disse numa anterior carta sobre a exposição do Arpad, ou antes, sobre a dele pintura, enfim à mão dos olhos de quem a teve nesta exposição, foram palavras tontas, apressadas pela pressa da sua pergunta, e imperdoavelmente desmazeladas, 46
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por mim. Numa palavra: a própria baboseira. Rasgue isso. Por favor. Imediatamente. O Arpad é um grande pintor. E, à medida e maneira com que vai profundando a sua procura poética, manual-visual, maior vai sendo, atingindo o único, o genial e o reiterado. As últimas coisas dele são a forma da forma, a luz da luz, a sabedoria toda de um homem que viveu sempre mais além e, pois, quanto mais vive, mais descobre, para longe, para sempre, para nunca. Já nem deve ter conta o que a Vieira lhe deve, e ainda bem que não terminei ainda o trabalho que tenho sobre ela (sob ela, é mais perto). Não deixarei de referir-me a isso. Há um momento admirável em ambos em que quase os vemos fazer amor, um no outro, com tintas. Depois apartam-se, teria de ser, e o que o Arpad prossegue é realmente tão grande que não podemos deixar de chorar quando enfim se mostra depois de tanto silêncio, talvez não apenas voluntário. Era isto que eu tinha de dizer depois daquela tolice sobre os Parises e anexos. Tenho um catálogo para si, dedicado pelo Arpad. Envio-lho, ou o Alberto vai passar por aqui? A exposição já fechou, como eu temia. Sucede-lhe outra coisa bem bonita, qual seja a obra dos Delauney feita em Portugal. E, junto dela, a dos artistas que com eles aqui privaram: Souza-Cardoso, Almada, Viana; é claro que só o Souza-Cardoso está em desuníssono glorioso. Enfim, que o Alberto diga do que lhe perguntei: será para sair traduzida ou não a minha «novela curta». E com desenhos ou sem? Seu Mário 48
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lisboa 25 março (1973) Meu caro Alberto Há oito dias que lhe enviei o que é para a sua revista*, que me tem em suspensão. Espero que me diga que recebeu. Junto aqui duas fotos com desenhos do Cruzeiro Seixas. A história é esta: estes desenhos — e mais cinco que não vão na foto — pertencem à novela. Devem sair com o extracto-excerto-resumo — esses dois, como sairão os sete, na hora em que a novelazinha for publicada inteira. Moral do artefacto: Se há papel para isso e se inclui no tipo da publicação que o Alberto quer, seria bem curioso!, sim?, estampar os dois desenhos. O Octavio Paz — ponho que é ele, que é o director de — tem-me feito enviar diversos números de uma coisa bem impressa, bem escrita e bem colaborada, de nome Plural. Sabe o que é? Pois sendo tudo isso, tudo bem, nada ou pouco é do que eu quereria esperar de um querer como o do Paz. Fará grande serviço em terra, mas visto de fora, vem mais provinciano que asteca. E eu preferia * Maio — Revista Internacional de Poesia, dirigida por Alberto de Lacerda. (N. de L.A.S.)
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oh muito mais chegar a receber, ter recebido, a carta em que você falou, dele-sua, ou sua-e-dele, para mim, que a mim não chegou. Serão os seus artigos implacáveis que a dormem e embalam abrigada no tempo, fugida aos grandes espaços? E desta vez peço que acuse as recepções. Não é a América, um pouco, um país com correios delirantes, um pouco? Conta o Myller*. Seu Mário Rua Basílio Teles, 6-2.º-Dto. Lisboa 1
Nota: Único número da revista Maio, 1973, publicado com o apoio da Universidade de Boston. Letras da capa de Jorge Guillén.
* Henry Miller. (N. de L.A.S.)
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lisboa — 20 Meu caro Alberto Aqui tenho as suas duas cartas destruindo um silêncio longo alto e esquipático. Ainda bem! Mas não atribua ao Poe. Atribua ao Estrangulador (que deve estar a passar o I Centenário, nascimento ou morte, ou ambas as coisas estas). O Estrangulador de Boston (ou não era de Boston?) é simplesmente o Estrangulador de Toda a Parte, mas assumido, o que o torna simpático. A este respeito ou arredores, você devia escrever, pôr-se em contacto, indirecto, com o Franklin Rosemont, que vive em Chicago e há tempo publicou um papel comemorando o I (Cinquentenário?) do Incêndio da grande Cidade. A propósito ainda, a sua revista também vai ter gente possível, ou só notabilidades como nós? Eu tenho alguns holandeses, um que outro inglês e dois americanos (norte), surrealistas, ou que isso nos imaginam. Para já, ou sobretudo, o Laurens Vancrevel, que tem um belo poema em volta de Galileu, e o cujo esperei dois anos para poder ler, em tradução francesa, porque o holandês moderno, e o antigo não conheço, é para mim interno e duro como um disco. Diga-me em todo o caso se gostaria de pôr-se em contacto com o Rosemont. Eles (tem mulher com nome lindo, Penélope, diga depois se corresponde) são completamente doidos, têm um grupo, e levaram para a América o surrealismo jovem. Ler-lhes as cartas (duas) é estar com os istas franceses da bela época, só não sei o que isso de sementes transplantadas, ainda que para um continente realmente novo, de aquém do tempo… 51
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olhe, pare isto, não vai bem. Há também o Arnost Budík com um livro admirável, um longo poema que canta aos latidos tchecoeslovacos a tragédia de Praga. Publicou-o em Bruxelas, para onde fugiu depois do Maio praguês, com mulher, também. (Curioso, este apego dos surrealistas às mulheres, não acha? O Breton tem imensas culpas nisso. Dos grandes, segue-se sempre melhor o pior exemplo.) Quando escrever ao Budík, vou dizer-lhe que lhe envie a si um exemplar do poema. Cujo se chama A Mi-Chemin d’Ici à Là, edição Bruxelas (em francês). Quanto ao livro de poemas de Franklin Rosemont — que me desenjoou de muita actual poesia francesa, e inglesa, peça-lhe. Chama-se The Morning of a Machine Gun. Morada provável: 3.714 North Racine Avenue Chicago Illinois 60613. Espero que dê, ou não dê, explosão (ele detesta revistas literárias. Mas quem não detesta?) Quanto à minha colaboração, a mais possível parece-me seria a publicação da Titânia, novela curta, fantasmagórica e exemplar. Somente, está suposta — desde 1953 ou 6 — para sair com desenhos do Cruzeiro Seixas. Diga pois: com eles ou sem? Se pode sair com seria com. E como é? — na original ou traduzido? Os Arpades só chegam dia 23. A exposição é simplesmente deslumbrante. Prefiro o Arpad de antes da Maria Helena. Talvez pela surpresa, por nunca ter visto. Realmente extraordinário. Mas que grande pintor! Depois, adoçou, ficou mais perto de uma coisa que ninguém sabe ao certo o que seja mas a quem tudo chama escola de Paris. Quando os vir, entregarei os seus abraços imensos. E por agora fecho, que já vai carregada. Num destes domingos próximos responda ao que é pergunta, tá? Seu Cesariny 52
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[Continuação da carta à mão:]
E o Octavio Paz, que ficou de me mandar e nunca mandou as deles traduções espanholas do Pessoa? Gostaria imenso deste impossível: que você encontrasse por aí remetível, edição inglesa, americana é igual, Do Assassinato Considerado Como Uma das Belas-Artes, do T. De Quincey. Saiu aqui uma tradução que suspeito de medonha horrorosa: que, me parece, embrulha tudo para só desembrulhar no sítio errado. Corrijo embrulha, só! Donde que precisava disso em escrita inglesa. Acha que pode ser? Târá, meite!* Mário Cesariny CLARAMENTE:
Para ver a pintura do Arpad, há que vir a Lisboa. Esta retrospectiva, já itinerante em França, é a primeira exposição do Arpad! Se não a viu em França, venha depressa! Não sei datas, mas certo estará aberta até ao fim do mês, e para lá disso. Coutinho não faz a exposição Arpad; e quando o Guy me chamou, estava a exposição montada. * Fórmula protocolar dos antigos actuais soberanos do Nepalme. [Târá, meite = Tata, mate (correspondente a ’té logo, pá) (N. de L.A.S.)].
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lisboa 4 maio 74 Meu querido Alberto Você tem razão em ter-se sentido comigo pelo meu silêncio «Plural»; mas há algo de culpa também sua: da última carta que recebi dos seus Palácios você dizia-me que ia mudar de morada; recorda-se? Como escrever a alguém que muda de morada eis a questão. Depois, quando recebi Maio, fiquei aguardando, para lhe escrever, a saída do terceiro — (e último) — caderno papel-mata-borrão-cor-de-rosa, que entretanto se nega como grilo em papel-manteiga, estando já há quatro meses em tipografia. Desta vez é uma pequena série de cartas, que me escreveram, em 1947-48, os então surrealistas do grupo (as que eu lhes escrevi a eles decerto lhes limparam qualquer coisa, e já não há, salvo a que eu não entreguei, só li, e a que me escreveu o Brauner respondendo). Fica sem ser de propósito, a pequena história de portugal surrealista, logo seguida da história surrealista de portugal prometida há anos. Salvam-se, como arquitectura, duas cartas a que eu com muita graça, perdoe a imodéstia, chamo de extratextos — uma do António, Maria Lisboa, outra do Seixas, com um desenho tão bom que ainda hoje não consigo ler a carta, só sei ler o desenho. Esperava, digo, a saída disso para lhe enviar e comunicar, juntamente com os mata-borrões anteriores. Parece que está finalmente por dias. Oxalá. O seu número Plural comigo foi para mim a coisa mais linda do ano! Por sermos nós, ser eu, você, o Octavio Paz, tanta coisa be55
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líssima fartos e hartos, de tanta coisa sonhada. Para píncaro, sou traduzido por Cervantes! Quem senão o Alberto podia encontrar assim? E se há palavras, na sua apresentação, que talvez me excedam, pois fiquem por compensa das miríades de outras que por aqui em Lisboa me sucedem. O seu Maio é uma boa ideia e uma boa revista mas imagine, palpite, adivinhe que, não sei como, se me meteu na cabeça que você ia fazer traduzir, para inglês, o meu texto. Que pena que tortura e que arrelia. De qualquer modo é a primeira tentativa de primeira edição, mesmo em extracto, de algo pronto — mas sempre remexido, acrescentado, tirado outra vez, posto de novo, e mais e menos um horror. Você teve palavras lindas para aquilo: trata-se no entanto de uma intentona: como fazer perpassar as gentes que, e ainda bem, ainda falam ou falariam, e vivem ou viveriam, em Gil Vicente e Mendes Pinto. Este povo! Abandonado ao mar já antes das Descobertas, e transformado há séculos em submarino estanque, inaudível. Submarino escravo. Pois apareceu à luz e abriu as vigias desde o 25 de Abril! Você pede-me que cante, e eu bem gostava; pois não posso ou não sei ou presto, ainda que infinitamente acredite. Olhe eu andei um pouco por toda a parte e fiz fotografias. Mandar-lhe-ei algumas assim que tiver. E mando-lhe aqui papel de proposta de exposição na Galeria S. Mamede (acabo de enviar também ao Jasmim).* Agite por aí por onde achar que sim. Mil abraços Mário *Maias para o 25 de Abril — Galeria S. Mamede — Junho 1974. (N. de L.A.S.)
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lx. agosto, 2 — 1974 Meu Caro Alberto Os poemas da carta de Yèvre eram lindos, foram um gosto, mas, ao contrário do que você diz, a carta, propriamente lendo, não tinha qualquer carinho, não dizia nada, não vejo qualquer linha nem de si, nem a contar da Maria Helena nem do Arpad. Nada. AQUI AS GALERIAS ESTÃO TODAS FECHADAS. É O VERÃO. RECOMEÇOU A FOME QUE JÁ HAVIA. PREPAREMO-NOS COM O MAIOR DOS GOSTOS, POIS DESTA VEZ SERÁ POR CAUSA, PELA CAUSA DA LIBERDADE, OU LIBERTAÇÃO.
Não posso pois valer-lhe. Da Paula não sei nada. Nunca soube, de resto. É uma mulher muito estranha, para mim. Em todos estes anos de idas e vindas nunca deu a mais ligeira zéfira, para mim, desejo que aparecesse, fosse, viesse, nada, zero, morte. E ela deve-me algumas coisas: o amor, esse, sim, demonstrado, pela pintura dela e correlativas consequências, que, julgo, a ela valeram, foram-lhe agradáveis, quero dizer. A Paula tem agora aqui uma exposição numa galeria nova, boa, bonita, sem ostentação nem fumigar (miséria). Não vendeu nada. No Poetry International de Roterdão, 74, estive agora, muitas vezes — uma semana — com o Octavio Paz e a mulher. Maravilhosos, ambos. Falámos imenso de si. Veio à baila a carta que vocês me escreveram, desde a América, e eu nunca recebi. Se ainda a tem 57
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entre os seus papéis, seja bonzinho, dispense-ma, não já para mim, viria fora de época, mas para um volume de cartas que tenho na tipografia e vou fazer sair. Há pressa. Eu já perdi a carta que o Octavio escreveu para mim quando deixou a Índia e o diplomático. Terei de perder essa também? Abraço do seu Mário ◆
(outubro 1975) Meu Caro Alberto Ainda me lembro: escrevi-lhe uma carta maldesesperada, para Londres, e você respondeu com uma carta maldura, para aqui. Há que continuar. Imagine suponha precipite que a partir do final deste mês estou nos U.S.A., vulgo Chicago e Nova Iorque, por 15 dias? Acho que já lhe tinha falado nos meus amigos surrealistas-sindicalistas-doidos-loiros-como-milho-suponho que habitam Chicago. Pois há uma grande Exp. Internacional Surrealista, uma estupenda participação portuguesa — não é fácil modéstia: fui eu que organizei — e ainda filmes daqui e tudo e é que eu vou lá convidado paga a Gulbenkian e comigo a Graça Lobo que vai dizer poemas orientais. Como era de supor gostava de vê-lo. Mas como? Tenho muito medo de vir a encontrar o camarada Jorze, de Sena. A você, que 59
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sabe: como é que se faz na América para não se apanhar com aquelas evidências? Em Nova Iorque, terei de ir viver para a R.42? E será bem certo que ele não aparece ali? Em Chicago, lojarei chez les amis, Rosemont, de nome, tome já a morada: 2257 North Janssen Avenue, Chicago, Illinois 60614. Em Nova Iorque há-de meter hotel, veremos qual (arranjado aqui, que é do contrato da viagem, 14 dias 14 para ser barato). Em Cambridge, Mass. há algum jovem surrealista que deambule com poemas na sua aula? Mande-o para Chicago onde, segundo o Franklin Rosemont e não apenas, o Picasso depôs a estátua mais horrorosa do mundo. Aqui, e apesar do fogo, geralmente de artifício, continua a não se poder nada. Como já tenho o hábito, vai-se andando para os lados. E aí? Há universo? Ah. Se lhe apetecer qualquer coisa para aqui, até ao fim do mês, não demore. Pois só lhe digo mais isto: no extinto V Governo Provisório, o Helder de Macedo, lembra-se, ia ser nomeado Director Geral dos Espectáculos. Beba, beba depressa qualquer coisa — por si e por mim, que eu faz-me mal. Seu Mário ◆
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lx., 26 abril 76 Meu caro Alberto Imagine, pesponha, reinvente! —: serei Chicago, de 1 ao 7; de Maio; do 7 até aí no 15 estarei no México, cidade do; e do 15 (+ ou –) estarei em Nova Iorque para talvez uma semana. Tendo eu duas moradas para si, e supondo a de Bay State Road a mais bonita, escrevo-lhe agora para aí (enviei-lhe há uma semana 1 livro para a outra morada, a Scott Street). Ora o que eu queria era encontrá-lo (muito, pouco, conforme as suas possibilidades horárias); e como tenho o feeling de que v. não vai a Chicago ver «A Grande Exposição Universal Dos (Nossos) Frenéticos Enganos», pois queria ter morada correcta e telefone seu, para quando Graça Lobo and I subíssemos a Nova Iorque. Isso conseguir-se-ia se você tivesse a bondade de enviá-los (telefone e morada actual) para mim, nos próximos primeiros oito dias c/o Franklin Rosemont, ou, talvez mais seguro, já para o México c/o Joan Ponsa. Muito gostaria de encontrar Octavio, Paz, mas suponho-o aí, ao pé de si, em Harvard. Em todo o caso, e isso pedir-lhe-ia agora a si, seria bonito que eu pudesse falar, em México, ao meu Cervantes, o que traduziu os textos e poemas meus que você teve o génio de plasmar na Plural. E isso talvez pudesse indicar-me o Paz, por pergunta sua, aí posta. Peço-lhe muito que me escreva, ao menos para o México. Com a sua morada certa, Bay ou Scott, lhe perguntaria então, e ainda!, conselho para um poiso não caro em Nova Iorque. (Des62
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culpe confirmar-lhe ainda uma vez o que você me disse um dia — que todo o mundo aqui age como se tivesse acções na indústria hoteleira mundial.) A breve, em todo o caso! Seu Mário P.S. Em todo o caso, também: A galeria em Chicago é: a Gallery Black Swan 500 North La Salle Street (entrance at 148 Illinois) e há dois filmes portugueses e 1 deles comigo, não quer? Abertura em 1 de Maio.
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ciudad de mexico, 13 de maio 76 Meu querido Poeta Alberto, digo Deixo hoje o México para estacionar em Nova Iorque penso que menos de uma semana. O dinheiro já não é muito, nunca foi, e não sei se haverá possibilidades de ir vê-lo a Boston (não apenas pelo dinheiro: também 63
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porque, veja que desgraça tão grande depois do prémio de desgraças que foi o paraíso — paraíso, digo bem — que há na minha vida — embora não saiba bem onde esteja ele, esse paraíso — também porque, dizia, não me sinto hábil para viajar sozinho, ainda que seja só de um distrito para o outro, e não posso jurar agora mesmo que a minha aliás excelente companhia de trânsitos — a Graça Lobo — possa ou queira fazer o percurso para Boston). De todos os modos, como dizem estes que aqui vivem, fiquei bem triste e impressionado pelo que os Paz me disseram a seu respeito: lá meteu você outra vez a pata na poça e está ou tem estado seriamente doente, talvez com aqueles aparatos dos hospitais bons, aqueles que nos custam e a bolsa e a vida. Octavio disse-me que o próximo número de Plural apresentará poemas seus, de Alberto o grande — como na dedicatória do Arpad! — e que o tradutor será ele próprio, Paz. E Maria José, banhada em remorsos, comunicou-me que encontrou o bilhete que vocês três me escreveram e era para ser mandado para Portugal. Não mandou e já perdeu outra vez. Esta noite, depois de ter jantado com eles e com um distintíssimo escritor, Ponce de Leon, e Esposa, o qual escritor apresentava ainda um abcesso nos dentes absolutamente notável, com saída vista rodando-angular, para o exterior, o que fez o Paz perguntar como se dizia aquilo em português e eu disse «abcesso», como em português, mas também «petulância», como em toda a parte, o que agradou em cheio no próprio Ponce — fui pra a caminha e imagine que sonhei consigo imenso tempo, julgo: eu estava ao telefone de não sei para quem e você apareceu na linha! Era uma misturada; eu perguntava muitas vezes ansiosas «você está doente?» e o que 64
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você respondia era bom, era a sua voz com palavras suas bem audíveis, só que não faziam lógica, não era realmente resposta, mas a resposta era essa, estar a falar comigo por aquela linha. Ai, que linha seria? A que nos cose a todos, a que nos liga, a ambos, a dois só, como andança e andança, ou andassem no andar? Devia ser esta. E como acho importante termo-nos encontrado, ainda que só por via bucal, em sonhos, aqui estou a comunicar alegrias. Espero, desejo muito, que você se livre em brevíssimo dessa estranha mania da jamba; sei que há sempre uma jamba muito atenta a quem anda; a minha localiza-se no estômago e sub-ripas, digo tripa, a o as os quais me iam matando, falo de verdade, com uma infecção quase fatal depois de um projecto falhado de ver romper o Sol sobre a Pirâmide dele em Teotihuacan. Caminhei toda a noite, com outro amigo também doido, para poder fazer isso; perdemo-nos a meio, mas mesmo sem essa perda de horário não poderia ter sido pois há três ou quatro anos os brancos, que não sabem o que fazem (como o outro), puseram grades sobre o precipício e só se pode entrar depois das oito horas da manhã, já com o sol alto (ilegível). (Invisível.) Em contrapartida, os brancos (que aliás aqui não há, eles bem pensam-querem que o são, civilizados como Europa, não é?) os brancos Iluminam de variegadas cores, À NOITE, a Pirâmide do Sol. Que lhe parece? Fica lindo para o terrorista, quero dizer turista, e inverte, como é tão necessário, o significado e a presença DE TUDO. Com a Pirâmide da Lua, não sei que lhe fazem, provavelmente nada, não será precisa. Querido Alberto, é para mim uma alegria imensa estar aqui a falar consigo talvez mais perto do que possa fazê-lo em Nova Iorque! 65
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Mas não desistamos, tenho muitas moradas e telefones, vejamos se acontece. Abraça-o muito e sempre o seu Cesariny P.S.: Esta vai daqui, México, o que não impeça que nos US tente comunicar. (não sei agora para que hotel vou) Mário [Escrito por Joan Ponsa:]
Querido Alberto: Sin saber de ti sigo tus pasos, espero que te mejores y te deseo grandes exitos. De Mexico lo que se te ofresca. Abrazos. Joan Ponsa.
Octavio e Marie Jo Paz e Alberto de Lacerda, Cambridge, Massachusetts
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lx. outubro 78 Meu Querido Alberto de Lacerda Obrigado pelo seu último envio e coisas impressas. Envio-lhe aqui umas a propor continuação de intercâmbios de que serei decerto o mais beneficiado! Para mim, o que acho de mais importante no seu trabalho é a introdução em língua americana, norte, do António Maria e da Irene, Lisboas ambos, e ambos grandes poetas. Eu perdi os livros de poemas da Irene Lisboa, que andaram muito comigo há rores de anos. Para ter outra vez, terei de ir à Biblioteca ali do Campo Grande. Pode imaginar-se uma coisa destas, aí em Mass? —————————— Envio-lhe ainda dois papéis «Bureau Surrealista»; que não existe, como sabe. Um, é um esclarecimento que eu não podia deixar de fazer, tal a quantidade de trampa em que troianos e gregos a todos querem mergulhados. E… enfim, dá o que o 25 de Abril foi: uma fotografia a que até os direitos de autor foram negados. O outro é algo melhor e não é meu. Felizmente: parece que nascem projectos de companhia! Se vir o Octavio Paz, dê-lhe lembranças, muitas, minhas. E que lhe enviei há pouco, para México, um poema meu vertido em espanhol pelo André Coyné, que foi, em Lima, o grande compa67
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nheiro de César Moro e que está agora em Túnis, sem ninguém saber porquê. Nem ele, provavelmente. Você, como tem andado? Tem andado? Ah, vi hoje em TV um filme sobre Vieira e Arpad, Szenes e Helena, que é das poucas coisas boas feitas por um cineasta português. Com esta alegria se termina uma carta, uma ao menos. Merecemo-lo, não? Seu Mário Cesariny Nota: O segundo papel do Bureau Surrealista a que Mário Cesariny se refere não foi encontrado no espólio. ◆
Lisboa, Setembro 1978
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lisboa 12 jan.82 Grande Alberto Esta, com um grande abraço nosso para ti. (O nosso é o eu e o tu.) Os da New Directions responderam muito e disseram que sempre pagam a poesia a dobrar. Enganei-me. Há que dizer que pagam a triplicar. Também gostava de juntar fotocópia para o Luís Amorim de Sousa mas não sei onde é a Embaixada de Portugal. Saberás tu? Um grande e belo Ano Novo, apesar do que diz o Nostradamus, e o abraço sempre novo? do Mário Nota: A revista da editora americana New Directions, de Nova Iorque, incluiu no seu número 43, lançado em 1981, uma selecção de poemas de Mário Cesariny. Os poemas em questão foram traduzidos por Jean R. Longland e Jonathan Griffin, e previamente publicados numa breve Antologia da Moderna Poesia Portuguesa que Alberto de Lacerda publicou no boletim da Sociedade Luso-Americana, sediada em Nova Iorque. (The Journal of the American Portuguese Society, vol. XII, n.º 1, Verão 1978). A fotocópia a que Mário Cesariny se refere é de uma carta que enviou à editora contendo algumas observações sobre a impressão e disposição do texto. ◆
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Junho 85 Querido Alberto Passei hoje o 10 de Junho Dia de Camões de Portugal e das Comunidades — sobretudo das Comunidades! — a levantar os dois catálogos que me enviaste-ofereceste (soberbos, ambos — mas para o sempre — o Bacon!). E ao KKKnofli deixei o meu «Vieira/Szenes/Castelo Surrealista» plus o catálogo de 1 «Exposição Surrealista e Pintura Fantástica» que eu, com outro ainda talvez mais doido do que eu, organizei aqui fins do ano passado princípios deste. Foi tudo ilegal(!), as coisas que vieram de fora (pequenos formatos) eram declarados como impressos ou xailes para a Avó — e mesmo assim, alguns, menos avisados, sobretudo dos USA, enviaram como obras de arte e ainda por cima seguras em quantidades dolars que aqui são o abismo, o que fez a Alfândega abrir, reter, obrigar, reobrigar: a fazer o pino, a reenviar no prazo de, a jurar, a assinar, a meter no caso o Ministro, a Assessora, os suspensórios, o horror de ser chamado para sempre algo eterno, etc., etc., etc. (Esta talvez uma das graças que me ajudou a cair no buraco onde ainda prostro, como já te contei, mas houve outras, também em absoluto Portugal, Dia de Camões e das Comunidades, tal como tu magnificamente desancaste, isso-isto tudo, em poderosa entrevista dada no jornal das Letras e Artes disto-disso tudo.) Do que falámos pelo telefone, não acho mal insistir que escrevas tu também lembranças-saudades de Yèvre, pelo menos, egoisti71
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camente parlo, naquele 64 em que se fez a exposição no jardim e até demos nome a quadros da Maria Helena, lembras-te? (tu, os «Círculos Abertos» eu, «A Palavra», que, perdoa, a Maria Helena gostou tanto que deu este mesmo título a 2 telas, verdade que quase gémeas («La Parole I», «La Parole II»). Verdade também que «La Parole» como vocábulo, não dá nem soa como em português: A Palavra! — Enfim. — Claro que se eu tivesse tido esse teu testemunho — inédito ou não —, no meu livro o teria publicado. Assim, quero-o — quero-lhe — não sei para que uso possível ou impossível em que possa estar eu. Mas que esteja eu ou não eu ou ele livro desse modo com nós todos, tampouco importa tanto. Ideia esperta — como se diz do lume esperto, não? — é seria tu gostares tanto do livro depois de lido, como já gostaste depois de ouvido, ainda que em parte sola, e a propósito, mas sobretudo a despropósito, botares escrita jardim-abeto-quadros e o mais (muito mais) que viste e sabes. Eu tenho reprodução fotográfica (cores) (muito más) da jardim exposição. Aliás não há jardim nenhum. Há aqueles canteiros quase só selvagens — coisa de traseiras de casa, ou por casa. Também, se por acaso fizeres — eu acho que tens de fazer — não tem obrigação de remeter para mim, não é?, há muito que Portugal é um país independente e podes-deves dispor do escrito, para [ser] enviado para outras, ou para A Outra Banda. Por fim mas nunca acabando, em parte para te dizer, enquanto estás aí em Londres e mesmo talvez já nos USA, que me fazia um jeito muito grande ter em casa (a, em português, Do Assassínio Considerado Como Uma das Belas-Artes do De Quincey, mas no texto inglês, no original, enfim, numa edição britona. Será difícil? Se é, uma fotocópia das primeiras 10 também servia. 72
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Quanto ao Bacon, estou de acordo com o que dizes, surrealista «por dentro» e (se os ingleses) (o Conroy Maddox) e o fantasma do Breton não se importam, surrealista por fora, também, isto é por todos os lados. Aqui — e a mais lados — incluída a Vieira — sempre sai a espada do Artaud — mil-mais surrealista, para quem se der a fazer contas, do que o próprio Breton e os bretonzinhos que o expulsaram (em vão, coitados deles) do surrealismo. O que aliás é uma das duas ou três «teses», naturalmente só uma, sobre o que o meu «Szenes-Vieira» assenta. Muitos n’est-ce pas? E abraços deste que se assina Como teu Cesariny Mário Depois [de] depor, apercebi-me que não enviei também o catálogo da Exposição Vieira/Szenes Anos 30/40 Lisboa, na Galeria Emi (Valentim de Carvalho). Nada temas. É enviável pelo correio para a tua Primrose Prince of Baleia’s. Resta saber quanto tempo estarás aí. Quando saíres — digo-to porque estás sempre a sair, não é? A arte de sair, como a de bem cavalgar todo o mastro — diz para onde. Já são 3 e 1 quarto da noite e eu devia estar a dormir desde as onze. Percebes? Além da queda do governo (outra vez) a novidade, aqui, é que, finalmente!! deixámos de ter de ouvir todos os dias pela rádio Lisboa 2 os quarenta e três quartetos só para piano, do Lopes Graça, os duzentos motetos para harpa humana, do Lopes Graça, e os 11 Requiens pelas Vítimas do Fascismo, Lopes Graça. Ontem até houve a novidade da transmissão de uma de câmara do Armando 73
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José Fernandes. Fiquei banzado, não só por ser coisa enfim bem mais audível do que o Lopes Graça, como pelo facto em si próprio. Quero dizer (ou perguntar): quem terá tido a coragem divina de enfim fazer stopar a enxurrada que durava há 10 anos?! Quem?! Outra notícia engraçada foi terem dado ontem (Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, como sabes), a Ordem ou Oficialato ou Rubão do Infante D. Henrique (ou seria a Torre e Espada, ou aquela de Cristo?) à mãe do Cargaleiro, que faz tapetes e coisas assim. 66 pessoas foram agraciadas no Porto, e como é justo e bem se faz sentir, a mais aplaudida de todas foi a Hermínia Silva, além do Carlos Lopes. José Saramago, o escritor, também levou com a Cruz, benza-o Deus! Sentes a apoteose? Teu Mário O período escolhido para este A Salute to British Surrealism 1930-1950, parece-me arbitrário e vou já fazer queixa ao John Lyle, que desde os anos 60 publicou regularmente uma revista surrealista, Transformation, a que estão, ou continuam ligados, vários [ilegível] surrealistas ingleses. Por outro lado, mesmo no citado período, sobretudo 30, há mais gente do que a que aparece. Vale? Mário 74
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Continuo à espera do teu texto-insulto sobre Portugal, Camões e o Dia das Comunidades.
Retrato do poeta MÁRIO CESARINY, por João Rodrigues, 1961. Edição da Biblioteca Nacional, Portugal (incluído na carta)
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Lx. Nov. 85 Querido Alberto Recebi, pois, o teu postal Gertrudes. Vem com uma pequena mancha azul no sítio do olho esquerdo do cão (o do ao «natural», não o da pintura) que se vê atrás da dona, que é onde todos, mas todos, os cães devem estar. Excepto este, talvez, e só por a cara da Stein 75
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estar espantosamente parecida com a minha mãe em velhinha — olhos nariz e boca, que a minha mãe, a Sra. Dona Maria de las Mercedes Cesariny Rossi Escalona de Vasconcelos, por sinal entrada há umas semanas em portaló perpétuo, de pedra, no cemitério de Benfica em Lisboa, a antiga Hispânia «n’est-ce pas?»… é?, a minha mãe não usava aquelas rapazices em forma de cabelo, e, se era lésbica, decerto nunca chegou a sabê-lo (a saber que seria, isto é, se o fosse). Com estes Steins e Outrens julgo que farias um vistão nas tuas classes de ginástica americana, se desses a entender, só entender, o muito que de interessante (para americano médio em New York e Paris) há num livro que me caiu da Holanda. Transition 1927-38 — The History of a Literary Era escrito por Dougald McMillan, coim primeira publicação em Londres, Calder & Boyars Ltd. 18 Brewer Street W1 R 4AS; e em Amsterdam, também em 1975. Tirarias daí — se é que não conheces — uma pequena digressão lectiva para o teu exercício de charme em plena Bosta (desculpa a aculturação) e depois — o que é o meu interesse nesta história — e ainda, como o suponho, que porias isso escrito em inglês do Melville, mandavas um extracto de tudo para o meu amigo Franklin Rosemont, de Chicago, que é agora o manda-chuva e teoria do Surrealismus USA, simpático (mas bastante gordo) (ao contrário de Penélope, mulher dele, que evoluiu do gordo para o rectângulo em pé — é muito alta). Isso porque ele publicou um livro que também te recomendo (para as horas de maior arfagem), a saber: André Breton — What is Surrealism? — Selected Writings — Edited and introduced by Franklin Rosemont. Monad Press, distribuído por Pathfinder Press, 410 West Street, New York, N.Y. 10014. Com o mesmo ímpeto escreverias ao meu belo amigo romeno Andrei Codrescu, que esteve em Baltimore vários tempos, mas 76
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achando aquilo bom demais se mudou com a família para Louisiana, onde continua a editar A Monthly of Books and Ideas chamado Exquisite Corpse. Também lhe podes pedir o primeiro livro dele publicado aí, Life and Times of an Involuntary Genius, que tem coisas muito de se ler. O contacto é facílimo: escreves para «Exquisite Corpse» — English Department — Louisiana State University — Baton Rouge, Lousiana 70803. Porque carrego tanto o teu ano lectivo, com tal sinistra pormenorização? Pois porque, pedindo-te eu há um ano as primeiras páginas originais (em inglês, digo, de O Assassinato Considerado Como Uma das Belas-Artes do Th. De Quincey, me mandaste o Burra*, que é excelente para o montarmos na Páscoa (nos Açores) mas pouco vem ao meu pedido. Enfim, montando, o Burra fica esquisito entre o Turner, os Pré-Rafaelitas e o Bacon. (Cheira a francês por baixo das calças.) De forma que, era favor, o De Quincey é que vinha a calhar, agora que vais para Londres de regresso do exílio. A propósito, recebi a «Oferenda». Recebi e guardei. Virá à luz no próximo terramoto (o Halley acaba de passar no céu próximo e promete reincidir em Abril. Penso num qualquer dado favorável para uma «Homenagem a Pedro Oom», ainda não sei qual). A propósito de terramotos o Octavio Paz escreveu-me. Foi preciso aquilo para o fazer, caramba! Eu vou deixar passar seis (ou sete) meses e então dizer-lhe, escrito, que a culpa daqueles estremecimentos brutais é dos próprios mexicanos, que, tementes como coriscos, da Vénus Urânia, os castiga Vulcano. Achas que ele percebe? Mil abraços Mário * Edward Burra (pintor inglês, 1905-1976). (N. de L.A.S.)
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s/d [Anotação de Alberto de Lacerda: Recebida em Abril de 86]
Albertus, Filho de Alberto: A Paula, quando a encontrei na praça Luís de Camões, disse que estavas em Londres. Na velha morada para onde te escrevo? É o casus que em Maio há aí uma Exposição de Colagens de Homenagem ao L.T. Mesens: eu participo e gostava imenso de ir aí — não só pela Exposição, claro, mas também. Como sempre — desde o tempo das cavernas, não? — o problema do Hotel — da dormida — é o grande problema. Caríssimo, sobretudo para nós portugueses do século XX, com maravedis que não valem uma bota mal se chega a Badajoz. Pergunto: Poderia assim contar contigo para a hipótese de me arranjares poiso nas seguintes condições: Letra A — A Melhor — sem pagar. Isso poderia alargar a minha estadia dos oito para os + dias. Além dessa, esta letra linda — A Letra — A — na alínea: não pagar poiso, é talvez a mais sólida garantia de eu poder ir mesmo. (A propósito: vou de companhia com o Nuno — Psiquiatra e Pintor — Toma! — Sozinho não me atreveria já. Estou muito velha. Oh. Mas o Nuno já tem poiso assegurado, casa de amigos.) Letra B — Pagando. Gostaria de saber os preços do Piccadilly Hotel, que é mesmo sobre Piccadilly, onde estive há dois anos, sem 78
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pagar eu. (Pagou ou há-de pagar a RTP.) É velhote, por isso bom, e está no centro. Mas é capaz de ser incomportável para mim. —————————— Pagando ou não pagando, a caminha teria de ser perto do centro. Ou no centro mesmo. (nós-sobre a estatuinha de eros). Saberás porquê. —————————— Serás tão gentil-homem que me digas, depressa e bem, algo sobre isto? Longo e saudoso «n’est-ce pas?» do teu Cesariny, Mário A ida, a ser, deve ser por início da 2.ª semana de Maio, ou por aí (+ ou –). ◆
(1986) Querido Alberto Hoje, 24 de Abril, a tua carta. Se, por novo milagre, receberes esta antes de saíres de Londres, e nos abraçarmos cá, a novela é esta: 79
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Concordo contigo quanto ao E.L.T. Mesens. As colagens são absurdas ou aquém disso, um livro de poemas — Trosième Front — que li há muito e ele publicou durante a guerra — a Outra Guerra, a de… não interessa —, e eu comprei cá não sei como, é muito melhor. Tudo somado, o personagem é belga e não é o Michaux. O que não tem qualquer importância porque a Exposição, organizada pelo El Janabi — árabe do Iraque e residente em Paris sob as Editions Arabie-Sur-Seine — isto, sim, tem piada — não passa de pretexto que eu peguei para talvez quem sabe ir a Londres. Escusado será dizer que no Piccadilly Hotel ou no meio da rua quem paga não serei eu — a não ser o avião, ida e volta. O problema complica-se ainda com o agradável facto, já constatado, de eu não poder, ou já não saber, viajar sozinho. No ano passado, tive finalmente a macacoa há muito aguardada — um esgotamento nervoso e cerebral que me espatarrou 3 meses na cama e do qual ainda sinto os apitos. De qualquer modo, já antes disso não punha os pés em sítio que me levasse (no sentido arcaico e melhor de levar) para fora do ordinário (quero dizer: comum de Lineu) sem ser acompanhado, o que é triste e é verdade. De contrário, há muito que eu não pararia em casa (Lisboa), com os comités vários a que tenho de ir em tudo o que é Mundo (desde o Norte ao Sul, digo Pólos). Dizia eu… ah que o problema complica-se e só se resolve tendo companhia, a qual dita feita efectivamente surge na pessoa do Nuno Feliz da Costa, meu Amigo, meu Médico (neurologista, ou psiquiatra, ou ambos) e além disso pintor e também fotógrafo, irra!, a quem apetece ir a Londres e assim vamos os dois se chegarmos a ir. Para já marcámos avião para do 9 ao 21 de Maio, esta última a do dia da volta. 80
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Como, em hipotenusa contrária, tu sais de Londres, não se vê como poderias acolher-nos chez toi, E já nem é essa a questão — a questão é ver se há ou não há quem desenbolse a loucura travesseira — a dormida e petit almoço que tem de dar para o resto do dia… — e se há, tanto faz que seja no Piccadilly como em Windsor, dentro do Castelo, e frente ao McDonald. Com muito abraço, e pedindo que ligues para aqui mal chegues O teu Mário O O’Neill está no Hospital e muito mal, com os tubos… Oremos… ◆
(25.4.86) (2.ª via) Querido Alberto Na carta que te escrevi ontem esqueceu-me pedir-te que me conseguisses, se puder ser, saber onde é a James Birch Fine Art Gallery, rua e número! (talvez esteja na lista telefónica?) que é onde abrirá a exposição, de 13 de Maio a 1 de Junho. Escrevi já ao Conroy Maddox, a perguntar, mas ele deve estar muito velho e não juro que se encontre agora em Londres. 81
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A coisa é importante porque embora tenha o nome da galeria, e o Convite-Anúncio que sai impresso na revista Grid com os nomes dos participantes (revista saída em Paris) — não vem lá a morada. Abraço e oxalá recebas esta ainda a tempo. Mário ◆ Mário Cesariny, postal. Figura De Sopro (1949), edição Ministério da Cultura
julho 87 Meu caro Alberto Pois lá fui ver a tua de colagens e mui admirado fiquei por serem tantas e muitas delas tão boas. As que eu gosto mais são as mais esbrancas, quero dizer, esbrancas, quero dizer mais menos do recorte bruto, cor e som, que é uso atacar as colagens. Mas também destas há que ver. Não tanto tempo, porque próximo o perigo Todo o Mundo e Azevedo. Este, Azevedo, escreveu como sempre um texto bonito. Já desde a António Arroio, 45 anos atrás, ele fazia bonito com um dedo no ar e a compreender tudo muito bem. E salva a devida diferença que corre entre compreender e em82
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preender. Deste último porém não estamos falando, tem pouco jardim à volta (deve ser isso). Ilha da Madeira. Tu, como vais de arquipélagos? Fico contente íssimo que tenhas aceitado escrever as Memórias Niscências da tua perambulação Terra, Mar e Ar; pois não te esqueça nada desde o primeiro porra à última delícia. Espero mínimo sete volumes, porque desta é que é: ou sim ou sopa. Eu com mal do país e mais com ser o que estou. Vagamente me obra ter acquirido (arcaismo) os 4 volumes, tradução espanhola plus página alemã, da Tetralogia do Wagner a tal do Ouro do Reno. Como em toda mi vida fui duas, três vezes à Ópera teve de ser assim. Grande poeta ele é, este Ricardo, mesmo em versão andaluso-castelhana. Chiça! Mas o Tristão-Isolda continua a ser o píncaro dos píncaros. Quando o vi-ouvi, ia morrendo (que é o que Wagner quer, com toda a razão). Espero que, por uma destas atmosferas, dês algumas notícias, albiónicas ou washingtas. E que não te esqueça o grão favor Guilgamesh. Pelo que sonho será a versão francesa de um tal O. Suiteneau, Paris, 1939. Se esta não for, será outra (a de P. Garalli, Paris, 1958?). Qualquer que seja, venha, e venha-se ela. Aqui. Abraço-te Mário ◆
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Desdobrável que acompanhou a exposição de colagens de Alberto de Lacerda na S.N.B.A.
(29.1.88) Jan. Ainda, 88 Caro, A tua carta de 23 do agora. Escrevo-te de imediato, pois o que me tauta a cabeça, quando me lembro de ti, é nunca saber se estás em terra ou estás no mar (na América ou na Oceania, vulgo Londres). Claro que as da foto são as arcadas do Terreiro do Paço, e não é uma delas que é excepcional embora sim o seja, de olhos baixos o digo, és tu que estás lindíssimo, ainda princípios de Março e já 84
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Outono. Nem eu sabia, oh não, que aquilo ia dar tanto (ou alguma coisa) dessa história da LUZ que há nos teus versos. Acasos? Pelo sim pelo não, depois de uma dúzia de anos de desaparecida no insondável papelame, assim te a enviei, sempre à espera que se perdesse, apesar do registo postal. Afinal chegou. Muy bem. Como tu também dizes, isto afinal chega tudo: é como estar Algúria meditada, ou que, uma conta matematicamente (horrivelmente, também se quiseres) certa, a cuja, chegado o dia e a hora da fracção, tunc, abre a gaveta e sai o número gato. E é esquisito. For instance (locução esta tão Jorge de Sena, não era?!): teve de vir do Peru, há centos e centos de dias, um amigo que depois, milhares de dias volvidos — não, é erro: veio de Nova Iorque, fugido do Franco há séculos — oh!, não interessa! —: há muitas décadas — estou zuca! — deram-me a morada do Nicolas Calas habitante de Nova Iorque — se ainda está vivo e ali — num papelinho que, dir-se-ia, sumira para sempre ou só até ao Dia do Juízo. Pois este fim de ano, eu desesperado por aqui ninguém ligar um charro àquele magnífico livro dele, conheces, o Confound the Wise, onde fala de portugueses dos séculos XIV e XV e XVI (sem dúvida os únicos portugueses que há, e de que maneira! O resto é sumiço) e dos descobrimentos e do nosso barroco, e alfim desistido eu mesmo, por de mim mesmo dar saída àquilo, escrevi ao Vasco Graça Moura (não só por isso), (e eu pejado ainda por sobreporto, com essa-aquela das comemorações deles) falando-lhe no livro e no caso este. Pois não é que, quase na hora em que lhe escrevia, me desliza por debaixo não sei que papel, de jornal ou de livro ensosso, a tornada (feita) indispensável morada do Calas?! Junta à da Leonora 85
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Carrington, a quem nunca cheguei a escrever, por a ter como perdida — duas vezes, aliás: a primeira dada por Octavius, em Cidade do México: eu li Chihuahua e julguei logo que teria de ser no extremo norte do México, entre os Tarahumaras, o que me fez desistir de procurá-la. Afinal, parece que era ali ao lado, numa qualquer transversal! Esta cartota é uma ventania, está sempre a partir de lado para a outra coisa — a que não sabe o que é nem se é — mas tu desculpas e até talvez gostes, tu também emigrante perpétuo do tufão marginal, aquele que, como o deus bíblico, não mata, só sufoca. Apenas estrangula, o carinhoso! Voltando: Grandes novas me dás do Guilgamesh (eu ponho Guilgamesh por ter decidido, oxalá não engane, ser o sumério, de que não percebo nada, uma língua inevitavelmente mais gutural (macaca, sem pendor para o J, que é já de gente fina). Manda, manda, a francesa versão e mais essa de que me falas, de Herbert Mason (será irmão do James?). Eu parei-me com esse trabalho diante da porta que não se abre e que é uma versão inglesa dos anos 20 de um tal R. Campbell, em verso hexâmetro (metrificado), quem sabe se rimado também, que ele há de tudo, o qual R. Campbell, julgo eu que terá de ser, que não pode ser outro se não o maluco do Roy Campbell que conheci uma vez na casa dele de Colares-Sintra, com um chapéu de palha do tamanho de Constantinopla e uma gritaria anterior posterior que se sabia logo o que ia suceder. Ele era sul-africano e consta que escreveu uma sátira em versos à maluca e aos malucos do grupo da autora do espantosíssimo Orlando, no grupo de Bloomsbury (é assim que se diz?). Conheces, claro? 86
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Os meus amores pela Pre-Raphaelite Brotherhood vão muito adiantados e já tenho uma tarde tua para mim para quando chegares a Londres e te sentires tocado pela minha audácia (em te carregar co’a chatice). Tem os seguintes títulos a chatice: Solomon: A Family of Painters, exhibition catalogue, Geffrye Museum, London 1985 Oh! Ia continuar, mas estanco! A lista é quase longa e é melhor outra ocasião. Talvez eu consiga chegar a Londres uma vez mais? Mas perém (archaismo) não consigo desistir de te falar de um livro deste mesmo, creio que é o mesmo, Simeon Solomon: A Vision of Love, um proso-poema que ele escreveu em Itália e publicou em Londres em 1871. Que decerto só existe agora nas Bibliotecas Públicas, B.M. A ideia era obter uma fotocópia. Não tens por aí um aluno que te adora e vai fazer isso por nós? Este Solomon é para mim um ponto-chave: os pré-rafaelitas eram todos — e alguns seriam sem grande saber disso, só inquinados pelo carbonário Rossetti — eram todos bastante subversivos, no uso e nos costumes, mas o pobre Solomon foi o único que apanhou por todos, apanhado que foi com a boca na botija in urinol. Segue-se condenação judicial e desaparecimento total de Salomão. Ele era mais para as bandas de «mau», ou deficiente, pintor P.R.B.* Mas como eu o compreendo. Tinha tanto mais que fazer! Por isso, mas não só por isso — eu não sou propriamente um urinol, saberás — o meu grande interesse em ter a sua dele Vision of Love. Aposto que, como os do resto do bando, são visões do mais puro — platónico e italiano e beatrixico amore. Faz-me essa fotocópia, sim? * P.R.B.: Pre-Raphaelite Brotherhood. (N. de L.A.S.)
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Eu, muy contente e honrado com a ideia de figurar num catálogo teu. Saberás que há dez anos ou mais a esta parte tenho recusado isso por achar que já chega e até já está demais. Mas, portanto, contigo, decerto que sim. Só me incomoda não especificares datas e o insofismável acto-facto de, nesta-nessa espécie de escritos eu só saber escrever cada vez menos e cada vez pior. Diz datas — espero que alongadas! — e logo se verá. Abraço muito grande do Mário O teu «Diário»? Vai? Vem? ◆
Para o Alberto, esta fotografia sua, tirada pelo amigo que não o esquece, Mário, 1976
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(26.2.88) [Postal endereçado a: O Príncipe de Diotima, Sua Alteza Alberto de Lacerda]
Querido Alberto Recebi o Guilgamesh! URRÁ!! ARRÁRRÀ!! Ah!! E mais não grito porque já estou com a metafísica do: ainda estará na América Pitauchuya[?] ou já será nos Albions?! Teu, sempre Mário
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9.8.89 Alberto Como já te disse, e eu tanto amava que pudesses obturar, em edição mesmo ou fotocópia de, por favor, é A Casa das Almas que em britão deve ser The House of the Souls, mas tu lá sabes, do Arthur Machen, autor galês, parece. Nesta Casa, nesta edição, digo, ou repito, neste livro de Machen há um segredo muito interessante e que tem muito-tudo a ver com o que continua a ocupar-me: os pré-rafaelitas ingleses, diz-se. Mas já reparaste que, hoje, tudo o que em pintura vale válido, é pré-rafaelita? Já? Já? Viste a louca-mor este Junho último? Não gostaste do «meu» Fernando Pessoa? Não faz mal, eu também não gosto. Abraço Talvez súplica, Mário — Agosto, dia dos meus anos. E agora? ◆
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costa da caparica, 6 junho 90 Querido Alberto — Espanta-me a tua memória — e a dedicação que ela supõe! E mesmo que me ponha eu a supor que será um pouco porque supões também requeres — re-requeres o tal prefácio, não faz dano, somos assim e até por vezes somos os melhores e eu faço o prefácio — já estou a fazê-lo e pago com muito gosto os Esc. 15.000.00 da House of the Soul. Se uma refeição não muito boa, quase ranhosa para três pessoas num restaurante assim-assim quase custa isso aqui quando não custa mais se alguém se lembrou de beber algo depois do pseudo-jantar de anus — como não darei com a maior alegria os 15 contos necessários a um prazer muito e muito maior? (Há 10 anos e pico que persigo esse livro o esse «Green Book» incluído na Casa da Alma do Machen.) Pois da Biblioteca do Museu Britânico disseram-me que o livro se chamava mesmo The House of Soul, talvez tivessem engolido o s, e mais disseram que não podiam copiar mais de 10 páginas porque aquilo tem direitos, e não sabendo eu em que páginas vem o conto da Rossetti e o seu «Green Book», nem quantas páginas no livro, uf do Machen, estás a ver o impasse? De onde o melhor é largar mesmo as 15, mil, e o mais que for preciso e irá daqui num lindo eurocheque da CEE para o buuk-seller de antiques e passado por mim e enviado para ti ou para quem seja necessário mandar. Numa semana agora passada em Madrid (estive lá um mês mas o que sucedeu de gravemente importante foi numa semana, com intervalo, percebe-se?), entendi clara e definitivamente por91
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que é que os espanhóis não ligam mesmo nenhuma a Portugal: e é simples como o chinês: nós não temos nada a que se ligue. Imagina que eu, que até estudei música e agora ouço a rádio, eu não sabia que o Tchaikovsky tinha escrito ópera — pois escreveu quatro, inteiras, das quais A Dama de Espadas, maravilhosíssima coisa que vi (aliás é uma produção inglesa), com olho e ouvido trespassados de encanto, no Teatro da Ópera de Madrid. Ó Alberto, nós, isto é, eles — os portugueses — os portugueses — nem daqui a cem anos vamos ter a base necessária à apresentação de uma coisa daquelas, ainda que venham estrelas russos e russas para principais. E o russo cantado assim é lindo, e o maestro era um espanhol de talvez nem trinta anos, e o Tchaikovsky em ópera é magnífico sem ponto de secção entre vis popular e expressão erudita e além disso deixa de ser tão lamechas exageradamente como o é nas sinfonias e outrens, transfere para teatro, e o resultado é total. Além disso, apesar da Espanha católica dominante, o programa não se empacha de advertir, na parte biográfica, como no mais natural da natureza, que o Tchaikovsky não só o coiso e tal, mas que também incesto com o irmão, que lhe escrevia os libretos. Ainda não refeito deste considerável susto, apanhei no dia seguinte com uma representação do Alcaide de Zamaleia, do Calderón, na Companhia de Teatro Clássico em a mesma cidade, que me pôs a chorar mal atravessei a fronteira portuguesa, no regresso à merda. Tentando remediar, vim para aqui, para a Costa da Caparica, terra onde, além do meu quarto, não há mais nada! Não sei se recebeste O Virgem Negra. Mandei-to. Pois — mais uma — em revisitação de Toledo deparei com a casa, ultra-intacta, onde o Raul Leal escreveu aquela carta medonha ao Pessoa. Lá es92
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tava, quase oitenta anos depois, na Praça de S. Gines, n.º 2. Pedi, e tiraram-me uma fotografia, aliás duas, à porta dele em 1916 (ou 17). Depois — mas haverá o acaso? — o mesmíssimo amigo que há vinte anos me fez uma foto comigo a correr pelas ruas de Toledo — foto saída num livro bem triste, de nome Jornal do Gato — resolveu fazer-me outra noutra rua. Ficou bela, e quando fomos ver o nome à rua, chamava-se Callejon del Nuncio Viejo!, de Viela, do Núncio Velho. Eu, do Núncio, abrenúncio, mas velho é o que eu estou, para o melhor e para o pior. Assim, mal tenha o texto do prefácio à colagem, o que pode demorar 1 a 2 semanas, mando. E por ora, só o abraço do teu Cesariny És capaz de me dizer, em simples postcard, se sim ou não foram os árabes que inventaram o zero? É que eu meti isso no teu prefácio e não tenho comigo a livralhada da confirmação. Se não foram, não faz mal, não. Além disso dirás à Paula linda que estes ranhosos daqui não querem dar mais de sete mil contos pela A morte do Burguês! Ora, que faço eu com sete mil contos, não me dizes? Assim, guardo o quadro porque tenho um plano: O que tenho e não tenho, pintura, livros dedicados ou indelicados, cartas, fotos, desenhos, nacionais, estrangeiros, objectos passados e futuros, escultura, processos da polícia, documentos de Fresnes e de infrenes — passar tudo para Espanha e não deixar nem rasto. Dado, sem nada em troca — apenas o grande gosto de 93
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deixar em sítio decente, subtraindo a este caos o pequeno Sinai de… de quê? Daquilo. De. Mário [Dentro do mesmo envelope:]
Querido Alberto pedes um prefácio para as tuas colagens como se elas precisassem desse pré. O mundo todo é uma colagem de vivos pegados aos mortos, que se nos tiram quantos já se foram, que fica sobre a terra, ou lá em casa, ou no quadro? Sessenta anos, setenta, do percurso assinado à vida humana actual? Que são sessenta revoluções do planeta se não multiplicarmos por sessenta triliões — o tri-leão, que figura da mágica! — e duzentos biliões — que grande luz também o bi-leão! — de percursos? Um não é número, diz o C. Marlowe, que cita já do Antigo. De onde, a colagem. Provavelmente, o único número certo, inamovível, seguro, é o zero. Fora dele é tudo zona de sombra. O zero foi descolado pelos árabes (como tudo o que ainda hoje tem algum préstimo na tão assaz titulada cultura ocidental, exceptuada a aspirina, os dez frigoríficos do Dr. Honecker e o trono Renascentista de Bokassa). Por isso a sua fé é sem imagens, sem ponto de secção entre infinito + e infinito –. Poderá dar para o chato, mas tal não o podemos dizer nós, que regurgitamos de imagens e que, para eliminar as mais incómodas — as quatro ou cinco com quem durante milénio se pôde falar, vulgo rezar —, inventámos a arte de pôr na parede só para que a parede deixe de aborrecer (de ser parede). Conversas com o Là-Bas, ou o Là-Haut, nem pensar. E 94
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a exultação de Picasso e todos os Picassos que foram à Arte Negra e à da Oceania e à do Quilé e lhe roubaram a forma, esvaziando-a como uma bisnaga pfffáf… do conteúdo que era a sua verdade, a pesada carga mágica determinante, acompanhando, gerámos a única forma restante de sacralizar: a elevação ao infinito de escudos que o nome do pintor pode custar. Repara que digo o nome, não a pintura. Esta, como é consequência óbvia e natural, importa cada vez menos. Importa a assinatura do Palhaço de Deus que move a operação. Quanto custam as tuas colagens? Ou melhor, a quem custam ainda? São rezas? Pertença do sagrado? Beijo-te as mãos, monsenhor. Lx. 9-6-90
Colagem de Alberto de Lacerda. Catálogo da Exposição realizada na Galeria Arcada, Março 1989. Texto do catálogo de Luís Amorim de Sousa
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1 agosto 90 Querido Alberto Recebido agora o teu postal e de seguida escrevo. Também recebi o livro das cartas do Machen há séculos. Agradeço-te a memória e o cuidado e o diz quanto é se compraste. Talvez queiras algo daqui que eu te mande para Boston. Diz, diz! O livro do Machen é curioso mas à minha, que não quero exaustiva, não vai servir muito. Perdoas? O que eu quero é o [ilegível] «The Green Book» que a Elizabeth Siddal passou para o Machen — ou ele lho tomou como apanhava tudo o que era gótico e bruxo a nóminus e anónimos — e que saiu sem a marca dela na House of Souls. Pago tudo o que for preciso, a própria alma. Mas tu agora sais de Londres. Como será isto? Saberás que soube, no México! — ou desde o México — que há quem pense que esse «Livro Verde» é, entre mais coisas, «a primeira obra surrealista, a primeira obra simbolista» e a primeira chave para ler a sério Alice no Mundo Subterrâneo do Carroll. E daí que… Tens razão quando dizes que gostaste e que o texto meu de que gostaste (sobre as tuas colagens) não fala das tuas colagens. Aquilo era como que o intróito à palradeira. Mas chegada a linha da palradeira, fiquei. 96
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Deixemos os outros palrar, não achas? E de algum modo, fica apontado. Porque o ponto zero — é a colagem. A tesoura sobre o 200014. Que dá 7. Que dá... Um grande abraço do teu Cesariny — Que há da Vieira? — Mesmo o Griffin e ninguém diz nada? ◆
10.08.90 [Texto enviado por correio Expresso]
O princípio de colagem — grau zero da associação — avassalou a escrita (a literatura) e a pintura surrealista até à saciedade, até à exaustão. Hoje, a pintura mais realista, mais observadora do modelo grego-romano, dá a desconfiar. Não será colagem, também?… Este, um triunfo do surrealismo, mas também a visível degradação em infindáveis cópias do que já Magritte e Schwitters haviam levado à exaustão. (Em Inglaterra, for instance, a pintura oficiosamente surrealista nunca mais acabou de libertar-se da escola — sobretudo daliniana.) (Em Portugal também não.) Os monitores da revolução surrealista sempre encontrariam mais de agradecer o propagandismo de uma forma já servida-pronta do que uma continuidade que incluisse rupturas (caso 97
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Artaud). Assim, essa continuidade por rupturas será retomada, ou não será retomada, no presente ou em tempos a vir. E quando aí se chegar, se é que não estamos chegados. Ler-se-ão de novo, com nova bastante atenção as primeiras páginas do Primeiro Manifesto (o de 1924): «A plus juste titre encore, sans doutes aurions-nous que nos emparar du mot SUPERNATURALISME, employé par Gérard de Nerval dans la dedicace des Filles de Feu, et aussi par Thomas Carlyle dans Sartor Resartus». ◆
lisboa, 18 de outubro 90 Querido Alberto Tu és realmente formidável e a tua carta de 9 de Outubro deu-me um alegrão. Recebi hoje. Encontra-me de cama, a convalescer de uma operação (à próstata) que foi ou é modelo sublime daquilo que a alta tecnologia pode e dá aos mortais (nós) e pelo outro lado ou o mesmo lado tira irremediavelmente ao seu (nosso) natural. Há anos que ando a dar por isso (quatro ou já cinco) com as pastilhas que tomo para dar remédio ao destrambelho cerebral que tive e de que ainda não me livrei completamente (nem consta que venha a livrar-me) com as sequelas dos nervos abalados e sempre prontos a saltar à mais pequena fagulha de contrariedade. Dão-nos coisas para adormecer — se não embalar! — o dragão ros98
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nador e não há maneira nenhuma, forma alguma de realmente estripá-lo, deitá-lo à retrete — ao mar! Para isso — ah! — teriam de deixar-nos abandonar tudo o que de contrário nos obriga — tudo o que é esta civilização da técnica sem homem dentro e que ainda vai conseguir formar o homem perfeito — todo feito de plástico para nada doer e à lua da lua das luas como quem toma um copo de água do Vimeiro — e, mais que tudo, poder-ir-e-vir sem dar por isso. Dar por isso vai ser a grande escolha a abater! E me parece que já está conseguido em 90/100. Agora nesta vida de deitado, pós-operatório, vejo a televisão — e isso aí vem! É medonho, diabólico, incessante, pertinaz! Mas é com a operação que fiz agora que o sistema geral — a bondade da ultratecnologia — se me revela simbolicamente abísmica — trituradoura. Imagina que já posso — já passei a urinar como um adolescente aos 15 anos — beleza! Mas, porém, todavia, contudo — fui esterilizado (tipo Hitler na Alemanha), deixei de poder fazer filhos! Sensações de Eros, as mesmas, as que quiser. O sémen, porém, deixa de ser ejectado para fora, é lançado para a bexiga e sai com o mijo. Não é ALTAMENTE simbólico este bem adquirido? NÃO É? Não é mesmo o pau de bandeira processional que esta civilização dita ocidental procriou e escarrou para todo o lado, à força de armas de fogo e de ferro? Sob, evidente, a mãe que tem de ser virgem, e o filho que tem de ser filho e também escarrou sangue por todos os poros — até que venha o Pai fazer-lhe o b. Mas, deixemos, e vamos ao nosso. O encontro do The House of Souls seria milagre se tu não fosses já o milagre encarnado vinte e quatro horas dia. E, tal o relatas, fornece as seguintes observações: 99
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Nos quatro capítulos que me indicas como formando o volume, não vem o título «The Green Book», que é a indicação que eu tenho como título do texto que a Elizabeth Siddal passou ou terá passado ao Machen, via Alice Siddal*. Ora bem: É possível que o The House of Souls tenha um prólogo e que esse prólogo diga ou não diga algo a esse respeito. Teria então que ler-se o dito prólogo e teria de investigar-se, também, se, por lapso, não falta nos 4 títulos-capítulos que apontaste: «A Fragment of Life»; «The White People»; «The Great God Pan»; «The Inmost Light» — a indicação de um 5.º que seria «O Livro Verde», «The Green Book». No centro desta alguma complicação, parece que se me torna evidente que o melhor do melhor seria fazer fotocopiar o livro todo, com prólogo e tudo, se tem, e botar no correio para mim. Aí parece que aparecem dois items. I — Se a biblioteca guardadora consente nisso II — Custo da Operação I — É possível que a um comum mortal seja negado. Já levei com a tampa da Biblioteca do British Museum quando pedi, a um amigo lá, fosse operar; têm o livro. Não autorizam porém reprodução para além de dez páginas. Ora: como eu não sei (nem o amigo sabia) quais as 10 páginas que quero, nem se 10 bastam, fiquei-me pela nega. Sucede, porém, que esse amigo, além de amigo, não era mais nada no mundo, nem sequer tinha nem tem um inglês correcto. * Mário Cesariny refere-se a Alice Liddell. (N. de L.A.S.)
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E contigo, a praxe será decerto outra. És um catedrático (para os Americanos corresponde ao Olimpo) (lembremos a bomba atómica) e como tal nada do possível, talvez do Impossível, te será negado. Conclusão, ou sequência do item: óbvia. II — Custo da operação: o que te dignares indicar. Como, porém (outra vez), os USA ainda não pertencem à CEE (lá chegarão), não posso mandar-te o cheque válido.* Ou posso? Acode-me. Terás aqui alguém a quem eu possa entregar? AH! Lembro agora que se o Bush ainda não é CEE, é-o a Senhora Thatcher. Logo — podia enviar-te para Londres o dito cheque, Prince of Wales etc. — N’est-ce pas? Girândola Final Digo: afinal: que afinal, ou em final, contenha ou não contenha a ah! Casa das Almas o almejado texto, se agradecia à mesma a fotocópia geral (que inferno) dado que são importantes no Machen todos esses textos — e difíceis de encontrar. O Gilgamesh que me enviaste — ed. norte-americana, 1985 — é-me muito útil, não só pela interpretação dos J. Gardner & J. Maier no prefácio como nas abundantes notas ao texto. Claro que continua tudo às aranhas, mas a teia é cada vez mais brilhante. A versão — Sîn-Leqi-Unninni — jazida na de * Carta enviada para os Estados Unidos. (N. de L.A.S.)
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Assurbanípal biblioteca, é das mais tardias, mas ajuda, também. Vem fazer companhia a uma também recente edição espanhola (1988) também muito notificada ao leitor e de algumas surpreendentes revelações (ou confirmações). Ontem, ao reler Mallarmé — pasmoso Senhor do Abismo Central — li o que ainda não me tinha dignado ler: o «ensaio» dele Les Dieux Antiques. Oh! Não é que este poeta sabia mesmo tudo? E, para o que agora me importa, a evidenciação de que, se os gregos apertaram quanto puderam a filtragem do mundo seu anterior para a sua deles mítica sagração (— até criarem aquilo de: civilização igual a gregos e o demais não presta, chama-se bárbaro —), como fizeram com os mitos nórdicos, arianos e os hindus ou védicos ou os persas — já a Mesopotâmia pura e simplesmente não existe, não chega à Hélade. Não a querem nem dada nem emprestada, se não já feita Egipto e, mesmo assim, veríamos… ou melhor, não veríamos. P.S. — Já sei que tu és um grego atravessado, mas deixa lá, não te importes. O Pascoaes também o é. O único de nós todos — desde o D. Dinis! — que não quis ser grego é o António Maria Lisboa. Por isso sucedeu o que lhe sucedeu. Quando fazes a tua exposição? Sinto que o texto que te enviei é pequeno — insuficientemente breve. É que, quando ia começar o teorema — a «explicação» — achei que não era precisa. Os Américas fizeram agora a edição da obra completa da Christina Georgina Rossetti. Achas que vai chegar cá? Eu podia 102
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pedi-la na Livraria Buchholz, mas não tenho o nome do editor. Mais esta? Abraço grande, Mário [Dentro do mesmo envelope:]
Preciso totalmente de ter, fotocopiado por quem de possível, o poema de Simeon Solomon (1840-1905) A Vision of Love, publicado em 1871. Não sei se em livro, folheto, ou com mais gente. A Biblioteca do Museu Britânico é inevitável. E preciso de ter um nova biografia, que saiu o ano passado, creio, de Thomas Chatterton. ◆
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[A primeira página deste caderno, enviado posteriormente a Alberto de Lacerda, contém a seguinte anotação: Caderno de Apontamentos Para Eu Cifrar O Que o Cesariny me deve em Livros Aqui Comprados e Enviados para Ele. Quanto me deve o Mário Cesariny… tem apenas 4 folhas preenchidas: ]
2. Não compro mais nada sobre o Simeon Solomon; ele, o Cesariny diz que já tem que baste sobre isso. Mas, conforme me venham surgindo outros elementos graves sobre a PRB, por exemplo, tudo o que se relacione com a ALICE LIDDELL, a grande amiga da Elizabeth Siddal, seria belo encontrar e enviar-lhe.
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3. E descobrir também o «Livro Verde» desta Elizabeth Siddal, que ela nunca publicou, e que, parece, foi parar a um livro dum tal Arthur Machen, que o edita em 1906, entre contos e contarelos a que dá o nome de A Casa das Almas. O Cesariny diz que tem um livrito de eurocheques que não lhe servem para nada em Lisboa — diz mesmo que em Lisboa nada serve para na — 4. da, neste momento! — que é desde o século XVI, acrescenta!! —, e que compensará quanto seja preciso e ainda mais quanto a compras minhas de livros para ele… Está bem [Alberto de Lacerda — assinatura inventada por M.C.] ◆
carta enviada a 11 de janeiro de 1991 Querido Alberto Acabo de receber hoje dia 10 Jan. o teu postal londrino que não dataste (nunca datas). E escrevo-te mesmo antes de contactar com a 111, já é tarde para isso. Estou tão contente com o que fizeste, que já nem me importa que, por qualquer azar — que não haja! — o, esse, Machen não me venha parar às mãos. Que se lixe o Machen e um grande Viva! Por haver pessoas, amigos, como tu! Viva! Claro que todo tremo com a hipótese de eu, amanhã, ligar para a 111, e não ver, ou não ver ainda, o livro. Não importa! É 105
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um grande arco azul, por cima da terra — o céu! — e por baixo do mar — a água. Vê-lo, como eu? Belo! ———— Mas não é verdade que eu não respondo. Eu, respondo sempre! Não respondo? For instance: não vi e não gostei (da Retrospectiva da Menez). Sei que é pouco o que aparece nos jornais e na TV, mas o que vi deu-me medo de lá ir (quanto à sua fase actual; a, ou as, anteriores, não estão em causa). Já sei que agora a liberdade é toda e mais alguma e vai até ao cansaço-aço das vanguardas-guardas. Não guardas? Mas aguarelas grandes tipo fim de curso, anos 40 Lisboa, ó por favor! Espero que lhe passe. A morte do António Dacosta ainda não me saiu da rua. Mas é para isso que vimos, não é? Há seis anos e pouco, quando passei em Janville-sur-Juine — conservo as fotos! — ele podia passar por meu neto! Sem muito exagero! Estava conservado em menino à beira da água, a brincar com os pés. Loiro! (Enfim, quase loiro.) Um menino. Depois, a pintura, o afã dela, roeu-o. Enfim. Enfim, se não fosse a pintura seria qualquer outra coisa. Um automóvel. Um char-à-banc-Tzan! Tzan! Favor sair. Vais à Retrospectiva da Vieira em Madrid, Maio, F. March? Eu, espero ir, mas depois das inaugurações. Se a tão alta Dama não quer ver-me em Lisboa porque haveria eu de ir vê-la a Madrid? Dispenso. A menos que já esteja mesmo, ou um pouco, patarata, e deva ser atendida como doente. Nesse caso, ponho a bata e lá vou. Mas com ou sem Vieira-ela-mesmo devo ir a Madrid em Maio. Não queres coincidir? Reincidindo, um pouco: tu que a visitas todos os estios, deves poder saber mais que eu. Com oitenta e cinco 106
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anos não estará mesmo lirú? Em alto modo, foi-o sempre… (tira os pontinhos). Quem está óptimo, e, como sempre, cheio de razões, é o Cargaleiro. Um autêntico sol! Quando falar para a 111 escrevo de novo. Até lá o mesmo abraço 91 Mário Estive um mês e 3 dias em Madrid, chez un ami, e outro mês, ou quase, nos Açores. Houve obras no atelier (tecto e paredes) e até anteontem, dia 8, conto seis meses sem pintar. Belo! Mário Fiz uma operação no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa. Sim, esse onde morreram o Pessoa e o Almada e onde o Lisboa (António Maria) não morreu porque já não havia dinheiro para pagar a conta. É justo, isto? Responde. Mas o meu 90, somme toute, não foi sempre assim mau. ◆
[Três postais na mesma carta:]
postal 1 (rimbaud) P.S.: Já tenho os 2 vol. dos The Complete Poems of Christina Rossetti, da Louisiana University Press, 1979. Ó que Grande Senhora! (Quando aqui tínhamos o Garrett e a Alorna! Oh! Oh!) (E «eles» tinham o Wordsworth e o Coleridge! Ah!) Também — suponho — deve interessar-te saber que comprei num leilão — saiu carote! — o Portugal and Madeira (este and 107
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Madeira já prenuncia a independência da Ilha do mesmo nome), do teu amigo Sacheverell Sitwell. Comprei-o a pensar em ti. Nas páginas brancas últimas tem uns desenhos a lápis — lápis mesmo — que lembram figurinos para peças de teatro, um, por baixo, escrito também a lápis, «Tomar». De quem serão? Penso trocar contigo, se acaso não tens (a ed. é de 1954), pelo Southern Baroque Art do mesmo Sacheverell, se acaso tens. Ou, para melhor: eu mostro o meu e tu mostras o teu — se acaso temos. Mais abraço Mário postal 2 (braga) 10 Jan. 91 Outra novidade de cair para o lado a deitar água dos ouvidos — ver — é ter-se descoberto agora que em 1940 — ano fasto da era salazarenta — pintaram com cal viva — perdão, não explico bem. É assim: as paredes da charola do Convento de Cristo foram pintadas, todas elas, a fresco, no século XVI; (como era de esperar: pintura manuelina) (ainda só se sabia da arquitectura e escultura). * O Eugénio d’Ors fala neste livro.
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4 séculos após era 1940 e deram uma mão de cal naquilo tudo, foi tudo para o caralho tapado mais limpo — tudo brancura exemplar e monasta. No outro dia, era 1990 e começando-se a raspar, tampouco se sabe porquê, apareceu a primitiva escultura. A mim o que me dá o soluço é que naqueles anos 40 já havia Reinaldos dos Santos e Almadas, e Diogos Macedos e outros e ninguém disse nada. Postal 3 (série de gravuras populares: o pior bicho de chaves) Não sabiam?! É o impossível constatado! Realizado! O 25 de Abril — e já lá vão 17 anos — ainda não conseguiu fazer-nos sair disto. O convento de Cristo, de Tomar, continua a esboroar-se de podre e o Director vem de opinar que são de conservar, na charola, as camadas de pintura que, feita no século XVIII, já tapavam as manuelinas do século XVI. Não é bom? Diz ele que exemplificam a continuidade… Outro abraço Mário
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16 janeiro 91 Querido Alberto, Escrevo-te de novo, neste 16 de Janeiro 91. Já telefonei para a 111 e ainda não tinha chegado lá a tua remessa Machen. Está um tempo delicioso. De guarda-chuva aberto, baixo os olhos e imagino-me em Londres. A ilusão dura até que chegam os losangozinhos sacanas do empedrado escravo. Londres foi a única área onde me senti bem. Beneficiei talvez, também, de condições favoráveis naquelas minhas estadias. Mas depois repeti-as por minha conta e risco, e por mais de um ano mais. Quando me deixas ir aí? Passei agora dois meses duros. Fiz (fizeram-me) uma operação (a célebre próstata). O êxito cirúrgico não prescinde de uma fase bera. De seguida, tive obras no atelier: arranjaram o tecto que estava trágico, pintaram, e está agora muito bonito, sem nada nas paredes, branquíssimas. Junho, passeio em Madrid, chez Aranda, e Julho nos Açores. Soma tudo quase sete meses sem pegar no pincel. Repeguei agora e dei por uma dorzinha idiota no flanco. Acho que é da posição diante do cavalete. Pinto sentado e, como não uso paleta, o que faltava depois do Velazques da Silva, estou a fazer natação para a direita (do chamado busto, digo). (Parece-me que tenho de arranjar um banco giratório estilo piano.) (E um piano, também, se não tivesse pena dos vizinhos.) 110
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(Lembro-me que num passado, oh remoto, eu estudava a Sonata em si bemol menor, do Chopin, a que tem a «Marcha Fúnebre», e por baixo de mim, sito ao 1.º andar, estava a morrer um coronel reformado. Que morreu mesmo, e eu não sabia. Será que ele gostou daquela companhia, que a tomava por homenagem minha, ou apavorei-lhe mais o transe? Sabe deus.) Abraço, em qualquer caso não tão fúnebre, do muito teu Mário [Dois postais incluídos na mesma carta]
Lisboa, Casa dos Bicos. Vila Viçosa, postal em branco.
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Tive atelier neste ninho de pombas. Era a janela paralela a esta no mesmo telhado. A vista era um deslumbramento. Quem lá ia ficava na janela até mais não poder. A Vieira foi uma vez e não se podia arrancá-la daquela vista que parecia lançar-nos no espaço puro. Em voo. Mas isso atingia tudo e todos. Marujada também. (Digo, marujada.) Não saíam, não saíam! Eu saí, quando fui forçado a isso, em 1964. Cidades queimadas, oh! Claro que não havia espaço para pintar. Só para deitar. Se deitaram… oh. ◆
janeiro ainda Querido Alberto A tua carta de 19 deste mês que finda fez-me cair num poço de angústias, profundo. A falta de sexo — pois os portugueses agora estão sem sexo. Sabias? E era a única coisa que eles tinham, coitados, via incidência árabe. E eu que sou, ou fui, ou era de esquerda, devo reconhecer e talvez proclamar que: desde que a direita deixou de mandar em Portugal, isto é, do 25 de Abril a hoje, desde a ida, mas terá ido? — do tenebroso fascismo, não há tesão que se veja nos portugueses. Resta assim questionar — é a última esperança — se aquela coisa — aquela tesão, que havia — era mesmo tesão ou um símile engraçado a fazer de conta. Não interessa! Em matéria de 112
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tesão, o que parece, é, ou melhor, o que tesão aparece é uma mesma forma de aparecer — não tem outra. E agora? Claro que há factores. Com o largar da democracia, o alagar da droga. Com a condenação pacifista da guerra, a pura e simples conveniência própria de não faltar ao escritório e de não ver bombas no ar. Podem cair! A auto-satisfação-manutenção-civil de um regime militar de escravatura civil exercido e mantido sob boa lei. Uma data de mortos a andar na rua ao encontrão — os mortos-ricos vão de automóvel. Mas também a estes sucede o já previsto insolúvel-solúvel: horas de ponta: duas horas para o percurso de dois minutos. Não andam! São caricatos e apitam, apitam! Emudecem. Os mais assaz e definitivamente mortos, sorriem, de cabeças imóveis. Deixaram de olhar para fora, para os lados. Para quê? «Não há nada para ver, ali.» Conta-me agora mesmo (por telefone) um amigo que o General Eanes, nestes últimos tempos, deu em contar e recontar a tudo o que é íntimo dele histórias da guerra de África; que se põe a chorar como uma Madalena, rios de lágrimas, pois escolhe obsessivamente as histórias inclusas de soldados, ou semi-oficiais ou o que eram, que lhe morreram nos braços. E ficamos sem saber se isso é ainda manobra de propaganda política, ou sentimento verdadeiro do homem. Querido Portugal. Amada menoridade de tudo e para tudo. Seria muito belo se entretanto a Espanha não tivesse já enviado para o golfo não sei quantos cruzadores. E fragatas. E rebuçados. O «Sebastian del Cano». Decerto. Que foi quem administrou pelo cano dele a glória, a riqueza, e a descendência do portuguesinho 113
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morto a tempo em Zebú, o Cebú, Zebú é melhor: o Magalhães. Conheces? O Magalhães duas vezes frechado na mesma perna (creio, ando a investigar se é a mesma) e da última ido desta para melhor. E que era coxo — desde a primeira frechada, em África — e exibia, em Sesimbra, o escravo malaio, Henrique, cuja beleza fazia parar de espanto todas as damas da corte, e não só. O escravo que o amava. Sei eu e um dia explico. Como está por explicar a história do Jau, do «escravo» do Camões. Ah. Pois, como te dizia, a tua última deixou-me na angústia. Então sou eu que tenho de pedir para a América post Columbiana o nome da senhora que possivelmente veio, ou não veio, para a Península e isso no caso de não sei quê e não sei quantos, americano amigo ter ou não ter vindo, ter posto ou não ter posto, 111 ou 316? Eu morro! Eu desisto! Eu já não quero! Quando te falava do desaparecimento de ou do sexo, era para agrafar a pulverização do nexo. Não há nexo! Falta o; nexo. Mas talvez seja o mesmo, disfarçado. Tiras o s e pões o n. Esperança é que fique ainda o exo. Que devia grafar-se èqcu, (à cause) da nossa Mesopotâmica, n’est-ce pas? Teu infeliz exo Mário Hoje, Terça, 5 Fevereiro, Ponho no correio ◆
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lx. março 91 Querido Alberto Máximo O que parecia mentira de poder ser foi hoje agora mesmo — telefonema da 111 e eu ainda zonzo de uma gripe de oito dias e agora com louca febre só à noite — porra! — pus-me a caminho e EIS (como nas Virgens dos Milagres) o «Green Book» aqui comigo, nos joelhos com que te escrevo. Está inserido numa das novelas do Livro, a que tem o nome «The White People». Este é pois um dia grande, que deve tudo à Casa de Portugal da Silveira Correia de Lacerda, sobre a qual chovem bênçãos que nem se acredita, visto daqui. Espero que estejas em Londres, para onde segue este Registo do Acto Único. Mário Mínimo ◆
lx. 1 maio 91 Querido Alberto, O texto da House of Soul que me enviaste é melhor do que tudo o que eu poderia esperar. Magnífico! Ontem saiu na televisão o William Walton. Um programa de duas horas em que a primeira é quase toda preenchida com a vida que ele fez com os teus amigos Sitwell. Bem que o Walton não é o 115
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Mozart, nem o Mozart nem o Bach. Mas é um músico que sabe trabalhar a pedra, isso sabe! E o que é audível, sensível, cheio por dentro e escorreito por fora. Diria mesmo que é muito bom. E não está só: o Elgar, o Von Williams1, o Britten — este, apanha-me menos — e outros. O Arthur Bliss. Enfim, são os ingleses, não é? —————— A propósito de ingleses, o teu amigo pessoal Sacheverell Sitwell, com quem até fizeste (sem me dizeres nada) uma antologia de versos do Burns2, tem um livro que me urge ler, Southern Baroque Art. Fico a pensar que, de todos e quaisquer modos, será bem mais fácil de obturar do que a inefável The House of Soul. Cismo até que talvez o tenhas na tua biblioteca de Babel londrina. Tens? Então, era mais um grande favor foto estampar e enviar para estes desertos onde já nada sobrevive de pé. Na situação de deitados (ao mar) parece que ainda há alguns. Muito poucos. Realmente nenhuns. Entrou Maio e já te vejo a fazer a ponte para a França Grega (Maria Helena)! Mas esta vai a Espanha (Madrid) onde lhe fazem a Retrospectiva (não teve outra, ali). Pensei ir e não vou. Irei em Setembro. Aliás, o poeta convidado é o António Ramos Rosa. O seixinho da praia algarvia. Bom poeta, diz a contemporaneidade. Ai. Espero que tenhas recebido a minha carta, que acusava a enfim recepção da Casa da Alma por mão da «111» (entre toda a numero1 Vaughan Williams. (N. de L.A.S.) 2 A referida antologia não existe. Mário Cesariny alude, por engano, à Antologia de Swinburne, seleccionada por Edith Sitwell, que a autora dedicou a Alberto de Lacerda: To Alberto de Lacerda who suggested the making of it. (N. de L.A.S.)
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logia que há esta do 111 deve ser a mais idiota no sentido actual de idiota). E que não te desagrade receber mais esta a pedir mais coisas. Mas, ó Alberto, sendo o Sacheverell teu amigo e tudo — e oxalá ainda esteja vivo. Estará? E, se não está, não foste, uma só vez que fosse, pôr uma flor na do repouso eterno dele ámen? Não foste. Também é capaz de ser uma daquelas muito difíceis de abrir (jazigo — monumento — casa de campo — não parem). Pois põe-lhe esta flor agora pelo correio. Eu recebo. Mil beijos. Fico à espera. Teu. Mário — Já te disse que comprei num leilão o Portugal and Madeira (que título saboroso): do dito S. Sitwell. Disse. [Postal em branco incluído na mesma carta]
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[Anotação de Alberto de Lacerda no topo da carta:]
recebido julho 91 Querido Alberto Que ideia tão maluca a tua! Então se eu tivesse receio que divulgasses o meu «segredo» (que só é segredo dado-visto o estado da ignorância geral de tudo para com tudo o que não seja o horário do trem e do autocarro, hoje) (para a universidade e para o Tribunal — são correlativos) — se eu tivesse esse receio, ter-te-ia dado as indicações que te dei, em sucessivas cartas — e mais do que indicações: informação e caracterização do assento, nas ditas cartas, as quais devem estar fazendo estátua jacente, nos USA, mas que a todo o momento podes reler, na volta do corpo? Disse-te (escrevi-te) tudo o que esperava desse texto e que essa minha espera se confirmara. E não só o que esperava eu, mas o que outros (muito poucos: só um) afirmavam dele — e nem o rabo do gato que me levou ao gato. Além disso, terias, terás sempre nos USA o livro que «colossalmente» descobriste-encontraste — ou seria que ardeu com a fotocópia produzida? Vê bem como isto que te digo — que não é pouco — ou é? — inutiliza deveras a história de um «receio» de «Apropriação». Talvez a minha última para ti não fosse boa nos devidos termos. Isso, admito. Se é isso, desculpa lá — que eu também te aturei muita coisa bicuda, se é que ainda te lembro, e se deste por elas. Somme toute, e se não ofende outra vez, a tua curiosidade vai mais no sentido de constatar se eu já estou zuca de todo ou se tenho bom ponto a meu favor? Pois então, cruza o Oceano outra vez, faz Colombo no V Centenário, relê as minhas cartas e vai di118
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reito ao livro, enquanto eu por cá tento descobrir onde subjaz a fotocópia que submergiu (já pela segunda vez) (e desta mais fundo) na papelada-livralhada-geral das minhas ondas. E creio que chegarás primeiro à América do que eu a ela. Está um calor horrível — medonho — sobre a minha casa, um segundo andar que sofre em cima o telhado geral que a esta hora da tarde vai nos 39 graus. Que tal? Sempre portugueses. E para tirares o ponto de como as ondas estão, não encontro os três livros de poemas do Jonathan Griffin — e mais o Hidden King — de que neste momento preciso em absoluto, e é já história atrasadíssima no intento de publicar na Colóquio duas versões inglesas inéditas de dois poemas meus juntos…, e era com duas traduções portuguesas minhas de poemas dele! É bonito, como homenagem, e está resolvido, como publicação, e era este fim-de-semana que eu ia fazer e não posso! Seriam dois dias — ou duas horas? — não para fazer a tradução, mas para encontrar o onde! Vê bem como estou fraco, de braço ou de cabeça. Espero que sintas piedade Mário Ainda quanto ao Griffin, veio-me à testa a ideia, bastante mais pirosa, de fazer vir daí uma companhia inglesa para representar aqui The Hidden King. É-me claro que não sem pouca a dificuldade disso e nisso. Mas tendo em conta que estes de cá andam a gastar milhões em merdas absolutas a propósito do centenário das descobertas-conquistas (sobre as quais te mandei um papel editado por mim e de que não disseste pio. Mandei-te também um catálogo da exposição minha que teve a mesma sorte). 119
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The Hidden King é um poema dramático de linguagem e forma lindíssimas e só tenho pena de que não me seja fácil, ou menos difícil, para mim, traduzi-lo. DEVIAS TRADUZI-LO TU. Mas propor a tradução seria entregá-lo logo ao amadorismo macacal em que o nosso teatro caiu. Já era mau antes do 25 de Abril — mas conseguiu ficar muito pior. Assim, o necessário é gastar a massa louca necessária à representação inglesa aqui. Não é impossível dados os milhões disponíveis e o verdadeiramente nacional achado: as Comemorações irão (ler: arrastar-se-ão) até ao ano 2000. Ano de partida sem regresso para a lua. Neste sentido já escrevi ao David Mourão Ferreira e ao Luís Amaro, com quem tenho ou tive correspondência (cartas, digo) com motivo da «Homenagem» quatro-poemas-quatro-traduções ó Colóquio, e fico agora à espera do que eles me digam. Fiz isso porque a Gulbenkian é o único e verdadeiro (ou falso) Ministério da Cultura aqui das berças. Veremos o que respondem. Entretanto, e ainda com mais calor do que ontem, é, ainda, Mário, Cesariny Diz ainda à Paula que achei FORMIDÁVEIS os painéis que ela fez para a casa da comida National Gallery e que tenho fome absoluta de ir ver isso mais de perto. Mas que fiquei triste de ela não se ter lembrado de ir espreitando pelo buraco da peep-show-box que no meu tempo estava na sala X e era e é do Samuel van Hoogstraten, primo do Rubens, parece. 120
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O que ela, Paula, podia ter metido naquelas casas espreitadas pelo buraco da parede, ainda por cima (ou por baixo) com tanto azulejo e losango e ângulo luso-neerlandês. Assim, e mesmo que ela, Paula, considere terminada e em seu sítio a série agora realizada, faço-lhe eu esta encomenda. Aquela caixinha tem tanto a ver com a própria e mesmíssima Vieira, da das Silvas! E com o Arpad! E o gato! Telefona. À Paula. Diz-lhe isto. Diz que é como o pedido de um moribundo. Que já me inscrevi para a próxima do Golfo. E que morrerei insatisfeito, caso não cumpra. — Vale? Valeu? Mário
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agosto 91 Alberto. Recebi. O teu poema é muito bom — a carta também — e eu vou dá-lo — se te agrada a ideia — ao Hermínio, para que o publique na Phala, o boletim da editora dele. Como também és um «poeta da Assírio» — mais bem da Assíria — suponho gostarás da ideia. Abraços Mário
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lx. 13 set.91 Querido Alberto Outro bom poema. Que lhe vais fazer? Eu toda a vida ouvi e até citei essa corneta do «les lendemains qui chantent» mas não 122
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juro tê-la lido no Aragon. Pelo que telefonei ao Hermínio, da Assírio, e ele diz que sim, que é desse senhor. Não te afadigues em buscas do Southern Baroque Art, não me é assim tão essencial embora chegasse lúsio. Falei-te nisso porque te sei companheiro londinense do Sacheverell dos Anos Búzios e da Casa da Doida, mas não é como o Gilgamesh. Melhor viria. Mas já por puro luxo, a antologia de versos que vós dois fizesteis, do Robert Burns. Mas a fazeres-me isso (da antologia do Burns) seria cópia exaustiva do livro, ponta a ponta, capa e tudo. Para o Re-Canto especial da «minha» Biblioteca. Ah, sabes que o Teixeira Rego, o da «Renascença Portuguesa» e arredores, em 1912 já tinha em casa a Epopeia do Guilgamesh??!!! Fala dela num livro que o Hermínio tem de publicar, ou republicar: Nova Teoria do Sacrifício. Estes 50 anos de marxismo de revólver e sabre e pastel de neve para todos, até para os desgraçados dos portugueses — que buracão medonho fomos! Estivemos. Porque estivemos, mesmo que mesmo no mais fundo do poço a ansiar por respirar! Na minha última carta para ti, para ti ainda em Londres, suponho, enviei-te a indicação das páginas do «Livro Verde» incluso na Casa da Alma, ou das Almas, do outro. Recebeste? Abraço grande Mário ◆
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jan. 1992 Alberto Saiu aqui um artigo do António Ramos Rosa a propósito dos teus Sonetos. Pu-lo de parte, para enviar-te, mas os correios implacáveis (ditos da limpeza dos quartos) levaram-no. Ele diz que és o igual de Petrarca e de Camões. Já não me lembro se agrega o Dante, mas talvez que sim. Se isso te alegra, alegra-te. Eu continuo triste, Abraços Mário.
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[Dedicatória incluída no livro:]
Para o Alberto Esta Lembrança-Voto De Bom Ano Novo Mário Jan. 92 ◆
30 junho Estive fora 1 mês. Respondo-te no dia em que cheguei, 30 Junho Querido Alberto Tenho o desgosto de te anunciar que não só não tiro fotocópia do Machen como ficaria muito triste se tu utilizasses para as tuas coisas uma coisa, ou mania, que é minha, que me levou — ou levará ainda — anos de procura, e que eu não cederia a ninguém por coisa nenhuma — antes, é óbvio, de ver publicado por mim o resultado, mesmo parcial, dessa procura. É certo que me ajudaste no caso do Machen — fotocópia USA — como noutras coisas também — mas a sair e quando sair, o que vou intentando — devagaríssimo, é verdade! Confiemos. — Mas não será menos certo o meu agradecimento, em letra de forma, pela tua ajuda. Até lá, faz favor, guarda alguma calma, e deixa o Machen no meu quarto de brinquedos, sim? Pois ele — ou ele me fornece um dos brinquedos125
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-mor nesta que vou tecendo sobre os Pré-Rafaelitas e espero poder terminar, antes de ficar definitivamente gago. É um «plano» extremamente ambicioso, sabes? Para o qual me falta método e sobra tropeção. Idem, com o Guilgamesh. Mas este é só — só!… — uma questão de eu voltar a poder ter aí uns dois meses de trabalho contínuo, os quais não vislumbro deste 2.º andar dt.º nem desde mim. Mas se eu ainda durar para aí uns 10 anos — isto, quando já se vai fazer 68 anos, é bem duro, ó Alberto! — ou até mesmo 5 — pode sair. Quanto aos pré-rafaelitas, tenho agora — que tudo tem um possível e um impossível, não é? — «matéria» que baste para não sair nenhuma asneira grossa. Os livros que pedi para Paris (ao Alfredo Margarido, que diz a tudo que sim, mesmo quando sabe que é não), desisti deles. O único que me faz verdadeira falta de não apanhar é a Histoire Philosophique du Genre Humain de Fabre d’Olivet (10 volumes) (um existérico-esotérico, pois) e está-se mesmo a ver que esticará o pernil antes que os franceses se lembrem de reeditar. Essa reedição acontecerá quando corpos e buracos negros e brancos forem enfim e completamente libertos daquela da filosofia do socialismo científico, digo vulgo Marx, apêndices, apólices, e seguros. Para já fica a alegria de saber que a falsa Leninegrado voltou hoje a chamar-se S. Petersburgo — que é como está e nunca deixou de estar em Dostoiewsky, Tolstoy, Gogol, Turgueniev — quem mais? todos os que, esses que sim, fizeram uma revolução fodida no mesmo dia em que apareceu o careca de pistola-metralhadora na mão. E os da pintura também — todos proscritos*. E os da músi* Estou a referir-me aos revolucionários não-pseudo.
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ca (Stravinsky, que o Lopes Graça e o Shostakovitch, dois imbecis com ideias corais, acharam, escreveram e publicaram, ser um músico muito decadente, muito reaccionário). E o Bulgakov. E todos, menos a minoria, rascassíssima e iluminadíssima que vem de ser atirada ao mar — por agora só in nomine, qu’inda mandam muito. (Como em Portugal, bastante.) (Não é curioso?) Ah!, e quando veio a notícia nos portugueses jornais que a falsa «Leninegrado voltaria a chamar-se S. Petersburgo», os jornais portugueses, servidos por redactores que hoje têm obrigatoriamente o 11.º ano, se não a Faculdade, escreveram e publicaram sanpeterburgo, com s minúsculo, imagina, e o demais, como digo, sublinhado. Não é bom? Notícias da Vieira? O tratamento chega para a cura, ou não? Está tão velhinha, já! Atrozmente só, e com medo atroz, creio, de dar por isso. Um grande abraço sem Machen e sem Reproché Mário [Escrito à margem:]
Mando-te mais um papel que editei, este impresso, e um catálogo, também. ◆
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l. junho 93 Albertíssimo: Se achas que ela não se importa, gostava de ter a morada da Rosarinho em Lisboa. Sabes? Beijinho nos dedos e no pulso, Mário ◆
costa da caparica, julho (1993) Querido Alberto, Graças pela tua carta, e o catálogo Paula, e os Livros, e o Poema. Quase um navio de guerra, a adornar. O Poema, se lhes tirares os dois primeiros versos, que, se olhares bem, não fazem falta nenhuma, fica uma obra-prima. O Catálogo da Paula, e a dedicatória, farás, a mim, o grande favor de agradecer, de olhos baixos, e no maior silêncio comprometedor. Mal a vires, pois. Os Livros são uma beleza, ainda que eu não me lembre muito bem do White, mas acho que sim, que sim, em Amesterdão ou Roterdão. O endereço-adereço da Rosarinho também caiu muito bem. Agora que estamos na praia não vai ser fácil a excursão a Belém, mas vou-lhe escrever entretanto. 128
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Mário Cesariny, Paula Rego e Alberto de Lacerda, 1964.
Uma palavra ainda quanto a livros: estes, to disse, são mui belos, mas sabes — e te peço que esqueças — a minha afición aos Pré-Rafaelitas, ingleses, se há outros (há: somos todos), e daí é que eu queria que chovesse muito, ou tudo, o que pudesse chover. E, por agora, para não haver dúplices, passo-te o que tenho em casa, creio: Pre-Raphaelite Diaries and Letters do mano W. Michael Rossetti, Obra Completa, II volumes, da Christina Rossetti, ed. Americana A monthly revista Germ, reedição O «Livro Verde» da Elizabeth Siddal, em A Casa da Alma que fotocopiaste tu. Obra, não completa, mas bastante exarada, do Dante Gabriel Rossetti, seguida das numerosas traduções que ele fez dos renascenças italianos. Este volume tem a graça de ser fotocópia completa daquele que existe, impresso, na biblioteca do Fernando Pessoa e do qual foi fotocopiado: 129
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The House of Life do D.G. Rossetti em versão bilingue (italiano-inglesa). Ed. Romana The Vision of Simeon Solomon Solomon: A Family of Painters (que acho me mandaste tu) Rossetti and His Circle de Max Beerbohm The Diary of Ford Madox Brown, de Virginia Surtees The Diaries of George Price Boyce — Pre-Raphaelite Women de Jan Marsh The Pre-Raphaelite Sisterhood, de Jan Marsh Esta Jan Marsh é uma chata que não percebe um cabelo do assunto e expele moralismo à la mode (inexistente!) mas, mesmo nisso, dá e revela alguma coisa. Enfim, o Grande Catálogo da Primeira Séria e Grande Exposição dos Pre-Raphaelites em Londres, 1984, que vi com grande assustadora alegria. Depois, e noutro por fim, e para que entendas, apanhei em Madrid uma e-nor-me biografia do Crowley, tradução espanhola de um que tampouco é muito de fiar, mas não deixa de dar a este Mago basto como ele é: Um espanto. E, mais tarde, na Buchholz(?) de Lisboa, uma antologia (breve) de poemas do dito Mago. Diz o antólogo — não tenho comigo esse livro — que buscou mais-mais os versos literariamente mais válidos do que os versos-fórmulas do Bruxo. Ora o certo é que tem, bruxo e não bruxo, estatuto impressionante — e aterrador muitas vezes. O Pessoa — que eu amo — é uma menina de onze anos — salvo a Ode Marítima, é? — ao pé do que esse tipo quis e fez. Mesmo só literariamente, se dás licença. Que: ele joga com coisas que dão susto ao próprio Diabo romano. Porra. 130
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E por assim te dou a «Good night Sweet Prince» que são três da manhã. E A Breve? Mário PS.: Espero, com este pairar nas águas, poder enfim tomar conta do Guilgamesh. Temo, perém, que ainda não seja desta próxima, pois necessito (preciso) de pinta. Já que a falta de imagem própria se está revelando, aqui, pelo menos de momento, tão carente como em Lisboa. Ah Mário ◆
costa dos scythas julho 99 Caro Carus Caras Knás Knós Knés Alberto Olá. Como estáses. Há muito que não contactamos n’est-ce pas? Qual pas! Ou bien quel papa? Ou. Cocó? «Que drama, o da digestão! Sobretudo a última cena.» T. de P. 131
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Um anjo que caga! — O homem é? Felizmente que, segundo o Nostradamus, a brincadeira acaba toda no próximo dia 11. Se for verdade, e se vai mesmo tudo tudo para o enguiço, quero dizer-te que não me importo — se vai realmente tudo, tudo — pois — e dizer que tive muito gosto em conhecer-te. E pedir-te agora uma inominável coisa — a fazer-se é melhor antes do tal dia 11: Se não tinhas a bondade eslava de fotocopiar por inteiro — capa e tudo — a Antologia do Swinburne que fizeste com o (S. Sitwell?) Gostava de ter isso. Muito. Por causa da mosca. Tenho um livro dele sobre Portugal e a Madeira. Bom título, é? O Swinburne é O Maior. A Christina Rossetti também, é o maior. O D.G. Rossetti também é o maior, na especialidade. E o… ah, escapa-me agora o nome mas também Pré-Rafael, o primeiro, pintor (de 1 só quadro) — depois, Poeta — que parece que também é o maior, para quem ah, William Morris — o maior, dizia, para quem o pode ler bem em inglês; e o da Balada do Velho Marinheiro, também o Maior (quando li, fiquei com muita pena do Romantismo Português); e a Balada do Cárcere de Reading — de que tu não gostas — também, o maior. Enfim, como estás tu efectivamente?(!) E porque não escrever uma coisa bonita sobre estes, esses, Pré-Rafaelitas? Não sabes que os franceses andam num esforço desesperado para se incorporarem (1.os em tudo!) à P.R.B. por causa e à sombra do Simbolismo deles, franceses? Malandros em tudo. Quase.
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O Guilgamesh ainda estou à espera que um dia possa copiar-se por inteiro a tradução do Coutenau, do Clube du Livre, Paris, 1950… A única, creio — e já vi muitas — versão pela qual poderia guiar-me menos mal. Mas ninguém, nem eu, está para ir à Biblioteca N. de Paris fazer o biscate. Já alguns universitários, Lusófes e tudo, e espanhóis, tentaram também, por telemóvel. Nada. E daqui me vou à Cutty Sark que era nossa, e àquela noite em casa daquele judeu, you must remember, n’est-ce pas? Muitos beijinhos e imensas desculpas pelo favor Swinburne te pede o nominado Mário Cesariny Ainda que não perguntes, eu, da chamada saúde física, estou bastante mal. Certo? [Incluídos na mesma carta:]
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[Anotação de Alberto de Lacerda:]
recebida a 25.10.2000 Querido Alberto Tanto tempo, sem! E já passou um século (!!!). Suponho — e há séculos que estou para dizer-lhe isso — que o Alberto de Lacerda de Portugal estará um tanto ou quanto — mínimo? Máximo? Assim-assim? — agastado comigo por causa daquilo da Assírio & Alvim. Mas o que o que se passa entre mim e Alvins é que eu não tenho a mais mínima — la más minima — influência sobre o que as Alvins publicam ou não. A terceira vez que lembrei uma coisa que seria lindo editar, desisti. Obra minha, sim senhor. Pró demais, grande favor seria calar bico. Final e parágrafo. Não te pergunto aquelas coisas do costume porque já estou farto do costume. 134
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Mas deves ter certo que eu não te esqueço,1 ainda que a lembrança não nos Mário sirva muito, muito. Nota: última carta de Mário Cesariny encontrada no espólio de Alberto de Lacerda. A resposta a esta carta, que se transcreve, é a única resposta de Alberto de Lacerda encontrada no «dossier» Cesariny. ◆
londres, 25 de outubro 2000 [De Alberto de Lacerda a Mário Cesariny:]
Queridíssimo Mário Que alegria enorme, que surpresa, receber a tua carta esta manhã. Que ideia, eu estar zangado. Nunca me passou pela cabeça responsabilizar-te pelo comportamento deste ou daquele editor. Passou a ser um país de traduções — más. É perfeitamente inconcebível que ainda não haja obras completas do Gomes Leal, por exemplo — um dos maiores, um dos máximos! Lembro-me do Casais, um dia a protestar com o chorrilho de antologias dizendo: «o que deviam fazer era publicar-lhe tudo o que ele escreveu». Sim, também eu sonho — pois é, uma 1 O que este bilhetito prova à mais larga extensão. Não é?
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contradição — fazer-lhe uma antologia mas sem aquelas podas, aquela «censura» vergonhosa da antologia do Nemésio. E a antologia do O’Neill não é coisa por aí além. Também eu julgava que estavas enxofrado comigo. Porquê, não faço ideia nenhuma. Poesia é, em parte, telepatia. Nestes últimos dias tenho pensado muito em ti. Et voilà, chega hoje carta. Com que então Santiago de Compostela é em Lisboa? Aprender até morrer. Tenho um postal divino da Maria Helena e do Arpad escrito em Santiago. Nunca vi. Adoro a Espanha. Prefiro-a mil vezes a Portugal. Portugal acabou com o assassinato de Inês de Castro. O D. Pedro — fabuloso! E louco — comme il faut! 136
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Mário Cesariny, Arpad Szenes, Vieira da Silva e Alberto de Lacerda, Castelo de Cambord, 1964
Eu acho isso um disparate, uma chatice, uma contrafacção. O Eça é que soube ver isso — que desgraça eu poder escrever tais palavras. A açorda — em certos restaurantes — continua a ser magnífica — a poesia, com a grega e a inglesa, é uma das três maiores do mundo — Lisboa continua, apesar das machadadas, a ser um dos maiores poemas da Europa, a cozinha é uma das três melhores, depois da chinesa e da francesa — mas de resto, ça pue. A vida tem sido muito complicada (poupo-te os pormenores) mas uma das raras razões para eu voltar a visitar isso — és tu. A Maria da Graça, que é dificílima mas eu amo muito. A Maria Emília — não te lembras dela — uma grandessíssima amiga — uma das raras pessoas bondosas num país onde quase 137
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toda a gente é má. E o Jorge Martins, uma jóia de moço; e várias outras pessoas. Mas há tantos mortos. Lembro-me cada vez mais da Maria Helena e do Arpad. Conhecemos do melhor que o horroroso género humano pôde produzir. Ter estado em Yèvre com ela é ter estado no paraíso. Que saudades. E Londres, connosco, não, não foi nada mau. A King’s Road, o café do Ponsa (que é feito dele?), as nossas passeatas nocturnas, as intermináveis conversas em Tite Street. N’est-ce pas? Pois, e a visita ao Penrose. Pintas muito? Colagens? Diz coisas. Vamos conversar por carta. Apetece-me imenso. Estou muito isolado. 30 anos fora de Londres — reformei-me do ensino — paga-se um preço. — «Ah, está cá?» e outros disparates. Quero continuar a carta — lettre-fleuve — mais legível que os romances, espero — mas quero já mandar estas laudas. (Bonita palavra, lauda) Até amanhã — Um enorme abraço a enorme saudade do Alberto Como vai a tua irmã? Dá-lhe um grande beijo.
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Mário Cesariny e Alberto de Lacerda, 1978.
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M Á R I O C E S A R I N Y N A DOCUMENTA
Cartas para a Casa de Pascoaes Mário Cesariny edição de António Cândido Franco «Le Temps des Pionniers» – Desenho, inversões, pintura e colagem sobre fotografia Mário Cesariny Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas Mário Cesariny edição de Perfecto E. Cuadrado, António Gonçalves e Cristina Guerra Cesariny – em casas como aquela fotografias de Duarte Belo texto de José Manuel dos Santos
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edição de Luís Amorim de Sousa
D O C U M E N TA FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA
CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA ALBERTO DE LACERDA
UM SOL ESPLENDENTE NAS COISAS cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda
UM SOL ESPLENDENTE NAS COISAS cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda