DEMANDAS DE MANCHAS
2019-2021
Os instantes podem aí retomar o passado e também ir buscar o futuro antes que ele aconteça.
Jorge Molder
Talvez tudo tenha começado de um modo estival nas baínhas do paraíso, com a imprecisão e o disforme a quererem sair do tubo e virar figuras. Havia uma caixa e a côr começava a derreter no gelado — é daqui que tudo partiu, diz-nos Carlos Corais, como se a infância ressurgisse de um lastro ao qual se quer regressar em tonalidades que buscam fixar-se num plano de tons equilibrados. Não era a linha que fazia nascer as coisas, era a mancha, a afiançar, como escreveu Adorno, que era o Novo, o Isso, a desassossegar, ainda sem rosto, com riso a alastrar embora discreto, e no olhar, luminescência miúda a afinar a escuridade. Que coisas nos queria confessar? Porque no fundo o discurso já habitava a mancha que só tinha que buscar planos, no labor de enquadrar, para não continuar por aí a esvaír-se, a desaparecer do olhar, a ser secundária ante a deambulação fatal das linhas — quer-se aqui uma certa quietude inquietante.
Entre a mancha e a figura alguma coisa se passa, balbuciou o génio que queria habitar tudo isto. Era uma criatura que talvez possuísse o autor — figura a levar palavras ao forno, para que sejam bem cozidas. Não se limitava a ser amável, dado que tinha muitíssimo para contar, por exemplo, viagens, conquistas, dificuldades, formas de evasão, de explicação, de expiação. Para o génio a solidão entre as casas comunicava a humanidade do escuro, quando a insónia teima e a cidade parece articulada pela solidariedade entre insónias, pela actividade acanhada dos que não estão a amanhar o impartilhável dos sonhos. Há muitas criaturas nocturnas que produzem ruídos que as crianças temem como gargarejos, sons aquáticos, e que correspondem a figuras muito antigas, como as Górgonas, o homem do saco, os papões. Algumas são figuras de morte, outras de puro delírio, outras ainda são inquietações brandas ou sarcásticas. Está ali alguém? Onde está o antídoto materno, que estanca os medos? Ou são vindas sucessivas que chegam e não chegam? Vens então como amigo?
— pergunta Carlos Corais, qual hóspede que quer que lhe habitemos a amabilidade. Imagens que interrogam para acolher, sem impôr, sem exibirem escândalos ou dissimulações.
James Hillman falou sobre a importância de acordar a meio da noite. Porque é que à medida que a idade vai avançando, acordamos mais? Porque a escuridão também é nossa amiga e está habitada, e são as suas manchas espessas que nos revelam, ou nos questionam, ou nos levam para sítios com os quais não contávamos: lugares imaginários que fazem o esplendor da existência. A princípio desconfiamos, porque a mancha ainda era escura, e não parecia estar a dizer a verdade. Mas à medida que se fazia conversável tornava-se uma figura afectiva, dotada de cores, que desejava devolver a intimidade que desconhecíamos, que talvez tenha sido aquela de que nos despedimos no útero, ou outra que é a ternura imensa, a que faz o apelo — quiçá o Amor que desata a mover poetas e astros. Pergunta-nos ainda Carlos: De que sentes falta? Para onde vais? Queres que te guie? Isto é, há uma viagem que é necessário fazer para conquistarmos o que habita o coração, o vibrátil diante do medo, dado que o medo leva ao centro que é o viajar, continuar a viajar para que a luz seja vista. São assim manchas-figuras que guiam a outros mundos — mundos idênticos aos de Ulisses, de Dante, de Cyrano ou Júlio Verne, onde a imaginação e o afectuoso imperam. Começam por ser estranhas para se volverem entranhas, parodiando Pessoa e evocando Salomão, quando dizia que a sabedoria vem das entranhas. Parecem-nos estes guias discretos, de pouca monta, e logo nos perdemos no jogo das suas multiplicidades teatrais. As interrogações interrogam-se umas às outras, sem soberba. E cada vez que o fazem, a mesma pergunta ganha outros matizes: o que faz perceber de alegria?Questão espinosiana-nietszchiana de superação, de crescendo, de desfrute. Só que aqui a alegria cuida-nos e é interpessoal: há alguma coisa em que o possa ajudar?Este é o fundo ético que dispensa agendas, prelecções, hipocrisias, oportunismos. As manchas a deixar de ser manchas são pragmáticas e tocam na ferida, no escândalo que é cada dor/cor — são curandeiras. São elas que dizem: que posso eu temer?O que é o mesmo que dizer que o temor dado, essencial, se transformou em alegria e vontade de mais aventura nesse fora do mundoque é a vida.
Pedro ProençaEncontro Inesperado
Sem título (Juno)
2019 (página 5)
óleo/papel Arches 300 gr., folha 56×41 cm., mancha 25×25 cm
Encontro Inesperado
2019-20 (páginas 9-21)
Óleo de água/papel Arches 300 g, folha 56×76 cm, mancha 24×24 cm
Encontro-te finalmente. És realmente tu?
Quem foi que te contou essa história?
Por onde tens andado?
Que é que te preocupa?
Que pensas fazer de mim?
Estás a dizer a verdade?
Que pretendes tu?
O que faz o esplendor da existência?
Para onde vais?
De que sentes falta?
Porque queres tu que eu olhe o céu?
Queres que te guie?
Oh, Vens Então Como Amigo?
2021 (páginas 23-31)
Ponta seca e água-tinta/papel BFK Rives, folha 38×56,5 cm, mancha 14,5×14,5 cm
Pensas que receio olhar-te nos olhos?
Porque te disfarças desse modo?
O que te faz perder a cabeça?
Que significa o teu apelo?
Acaso notas em mim alguma coisa de lúgubre?
É esta a primeira vez que te propões revelar esse demónio?
Porque não me deste ouvidos?
Oh, vens então como amigo?
Que Posso Eu Temer?
(Teatro)
2021 (páginas 33-41)
Aguarela/papel Canson Montval 300 gr., 29,7×42 cm
Procura alguma coisa em que o possa ajudar?
Porque se escondeu o homem?
Será a verdade coisa assim a perturbar a paz?
A quem cabe afinal saber divertir o público?
O que é que faz perceber de alegria?
Dizes que a vida é fora do mundo?
Nunca viste o coração por dentro?
Que posso eu temer?
Sobe e Desce
2019 (páginas 46-47)
Óleo/papel Arches 300gr., folha 41,5×34 cm, mancha 24×24 cm
Sem Título
2019 (páginas 48)
Óleo/papel Arches 300 gr., folha 38×38 cm., mancha 24×24 cm
Sem título
2019-20 (páginas 42 à 47)
Óleo/papel Arches 300 gr
1, 2, 3 folha 57×42 cm, mancha 24×24 cm
4 folha 27,5×25 cm, mancha 24×24 cm
© Carlos Corais, 2022
Texto © Pedro Proença
© Sistema Solar (chancela Documenta)
Rua Passos Manuel 67 B
1150-258 Lisboa
ISBN: 978-989-8833-97-6
Junho de 2022
Fotografia
Pedro Lobo
Design
André Cruz
Tipografia
ABC Camera (Dinamo)
Impressão e acabamento:
Empresa Diário do Porto
Oficina Joana Paradinha
Agradecimentos:
Pedro Lobo
Pedro Proença
André Cruz
Joana Paradinha
DL: 502051/22