«Manuel António Pina — Desimaginar o Mundo (ensaios)»

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Manuel antรณnio Pina desiMaginar o Mundo

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Aline Duque Erthal Danilo Bueno Eduardo Lourenço Gustavo Rubim Joana Matos Frias Leonardo Gandolfi Maria João Reynaud Osvaldo Manuel Silvestre Paloma Roriz Paola Poma Pedro Eiras Rita Basílio Silvina Rodrigues Lopes Tarso de Melo

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Manuel antónio Pina desiMaginar o Mundo ensaios organização

Rita Basílio Sónia Rafael

doCuMenta

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esta edição respeita a opção de cada um dos autores relativamente à ortografia da língua portuguesa.

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Morrer e depois: a partilha do impartilhável1 Aline Duque Erthal

Morrer em poema de Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde, livro de estreia de Manuel antónio Pina, lê-se: «tento ser objectivo: / em nenhum lugar morri menos de 3 ou 4 vezes» (2013, p. 22). a ideia da morte como ocorrência repetível — e, ainda por cima, enunciável por quem a vivenciou — causa estranhamento imediato: afinal, que tempo é esse, que se enuncia post mortem em primeira pessoa? de onde se fala dessa experiência, como se fala sobre ela — e quem fala? Questões sobre tempo, espaço, movimento, subjetividade e escrita são recorrentes em Pina. Pedro eiras, em artigo para a revista Relâmpago justamente sobre a morte na obra do autor, observa que «a ordem cronológica das coisas e dos actos se encontra fora dos gonzos, como quer Hamlet: o dia “repousa”, porém “virá”, porém “há muito, muito tempo”. Presente, futuro, passado — mas também enunciação agora e morte outrora —, todos os tempos se dobram, incluem, multiplicam, reflectem» (2014); concordando, acrescentaríamos: todos os tempos e espaços e subjetividades e textos se dobram, incluem, multiplicam, refletem. desde o primeiro até o último de seus livros, indaga-se2 a respeito dessas coordenadas, alcançando, título inspirado em «Ver e depois: a poesia ecfrásica em Pedro tamen», artigo de Fernando J.B. Martinho publicado pela revista Colóquio-Letras. 2 usamos «se», aqui, tomando-o como índice de indeterminação do sujeito, e não na função reflexiva do pronome. 1

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Carta aberta para a mãe para sempre morta Danilo Bueno 1 depois da obra poética de Pina, os poetas sabem repetidamente sobre a nossa condição tardia, seja do horizonte cultural, seja da reedição da própria técnica poética: somos deficitários de muitos séculos e de muitas formas de fazer, de modo que Pina torna ainda mais evidente essa saturação do universo erudito, trazendo-a para revirá-la enquanto instância biográfica, reflexiva e derrisória. Pina expõe de forma irônica (polifônica) a tentação de representar nossa época como inatual, por mais que os fatos tecnológicos apontem para o contrário. a linguagem que usamos dá reviravoltas na filosofia e retorna novamente em formato de oráculo, em que o peso do tardio nos conduz ao lugar onde somos novamente ancestrais e sucessores de nós mesmos, interlocutores da família morta em um «jardim impresente». séculos e séculos não foram suficientes para ensinar qualquer coisa a alguém, declara Pina, com um sorriso no canto da boca. se essa poesia pudesse ser pensado por meio da geometria, ela seria a espiral e a elipse, a atravessar, com metódico ceticismo, todas as «verdades», existenciais e linguísticas. Para Pina, o aleatório seria apenas mais um dogma. nesse sentido, Pina é kafkiano, projeta lentamente o absurdo, na lentidão das semanas e das hipóteses, recorta nossa existência do niilismo danilo Bueno (Mauá, sP, 1979), doutor e mestre em letras pela universidade de são Paulo. Publicou Fotografias (2001), Crivo (2004), Corpo sucessivo (2008), Dia útil (2011), Uma confissão na boca da noite (2013) e Para viver automaticamente (2016). 1

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Manuel António Pina. A ascese do Eu1 Eduardo Lourenço Voz dele, Voz nossa? Nossa porque dele. Manuel António Pina

Manuel antónio Pina é, entre outras coisas, um romântico anti-romântico. a sua visão não procede da consciência de um espaço fantástico, como a de qualquer Avatar, visado como de pura imaginação. o seu espaço matricial, se paradoxo se consente é o da Morte, com minúscula e não com maiúscula como o de antero. também não é o da Morte apavorada e domesticada de Pessoa: o daquilo que não pode ser dito — e ainda menos enfrentado — sem nos retirarmos da existência que nos supomos. É só aquilo que lá está mesmo sem se anunciar. em suma, o que nos divide não nos deixa unir a nós mesmos. agora. não depois daquilo que chamamos a «nossa morte», o impensável por excelência. a morte, a sua presença, se assim se pode dizer, no texto e na percepção dela na Poesia de Manuel antónio Pina, é qualquer coisa que, desde sempre, faz corpo connosco, que embebe o nosso quotidiano ou se torna fantasma no quarto desconhecido onde, de repente, acordamos outros. É, sobretudo, aquilo que uma vez percebido não nos deixa dizer eu, sem que dessa nomeação imortalizante se levante essa espécie 1

texto editado, pela primeira vez, no Jornal de Letras, 2 a 15 de Junho, 2010.

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Outra voz: modulações de sobrevivência em Manuel António Pina Gustavo Rubim a singularidade da poesia moderna não vem das ideias ou das atitudes do poeta: vem da sua voz. isto é, da acentuação da sua voz. É uma indefinível, mas inequívoca modulação que a torna outra. Octavio Paz 1

1. se posso começar por uma declaração de interesses, gostaria de dizer que, apesar do título e do tópico que acima se lê, o que me fascina e atrai na poesia de Manuel antónio Pina é, sobretudo, a sua sintaxe. Foi a arte sintática de Manuel antónio Pina que me tornou e manteve leitor dos seus poemas, desde que os li pela primeira vez, no livro Aquele que quer morrer. este título é, aliás, um bom exemplo dessa arte, enquanto título-frase depois misteriosamente repetido, sem alteração nenhuma, no título das três primeiras partes do livro: «i. aquele que quer morrer»; «ii. aquele que quer morrer»; e «iii. aquele que quer morrer». Quatro vezes o mesmo título, quatro vezes a mesma frase! isto era bastante estranho para mim em 1979 (o ano em que presumo que tenha lido Manuel antónio Pina pela primeira vez, traduzo a frase de octavio Paz a partir da tradução para inglês de Helen lane em octavio Paz, The Other Voice: Essays on Modern Poetry, new York, san diego, london, Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1991, p. 153. 1

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A pura falta: a pura fala Joana Matos Frias

a pura falta de coisa nenhuma, […] a sua indizível inexistência. Manuel António Pina

Quando se reúne a obra poética de um escritor sob o título Todas as Palavras, há um protocolo de leitura que de imediato se estabelece, e que poderá ter consequências decisivas na aproximação subsequente a essa obra. no caso de Manuel antónio Pina e da colectânea Todas as Palavras: Poesia Reunida, vinda a lume no ano da morte do autor, a promessa de «todas as palavras» parece agenciar uma dupla perversão: por um lado, a ela subjaz a ameaça de que Pina terá gasto todas as palavras que teria ao seu dispor; por outro, não menos importante, o leitor já sabe que na poesia de Pina não encontrará todas as suas palavras, já que uma boa parte delas terá ficado, não na poesia, mas na prosa, programaticamente convocada sob os auspícios da saudade num outro título muito expressivo, o da «antologia pessoal» Poesia, Saudade da Prosa, publicada em 2011, numa espécie de consumação material daquela já antiga declaração de afecto «de modo que te amo em prosa» (Pina 2013: 23). ora, em primeiro lugar, um pacto como o que se insinua em Todas as Palavras pode provocar uma sugestão de exuberância, de saturação e de multiplicidade que, se excluirmos os títulos dos primeiros livros de Manuel antónio Pina, dificilmente se aplica a esta obra, composta A pura falta: a pura fala

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Cheio de passos e de vozes falando baixo Leonardo Gandolfi

infância embaciada entre 1973 e 2011, Manuel antónio Pina publicou um pouco mais de dez livros de poesia, outros tantos infantis e por aí vai. entre os muitos gêneros que praticou, o autor escreveu um ensaio sobre Aniki-Bobó (1942), primeiro filme de ficção de Manoel de oliveira. destaco um comentário sobre o filme, porque nele, acredito, reside algo de importante para a leitura da poesia de Pina. Aniki-Bobó é um filme que, embora seja falado, ainda tem muito da lógica do cinema mudo, sua narrativa depende mais da sequência de imagens do que das falas: «os diálogos do episódio resumem-se a duas ou três frases, mas até estas — como o próprio fundo musical que comenta a acção — seriam, em estritos termos narrativos, dispensáveis» (2012, p. 42). ao ler os poemas de Pina, o leitor encontra versos assim: «Falo de uma vida / muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida; / haverá uma vida assim para viver, / uma vida sem a si mesma se saber?». em parte, a inclinação para o silêncio e mudez aponta para um tipo de inocência que — parece — as palavras não são mais capazes de ter. a inocência em fuga acaba por deixar uma forte marca na obra do autor. inês Fonseca santos localiza «a infância, o regresso e o caminho de casa» como pontos centrais em sua poesia (2004, p. 21). nesse sentido, o poeta escolhe Aniki-Bobó, por conta da mudez e do olhar infantil que conduz uma história que não é infantil. em outras Cheio de passos e de vozes falando baixo

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A palavra poética em cena1 Maria João Reynaud

i. a memória da infância como paraíso perdido é, em larga medida, uma construção imaginária. numa entrevista editada em 2009, em vésperas de ser homenageado na terra onde nasceu, o sabugal, Manuel antónio Pina confessa que «os [seus] poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça»2. e refere com algum detalhe a descoberta de Winnie The Pooh (Joanica Puff ), já na idade adulta: «o ursinho Puff é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado — que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. e esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância»3. nesta entrevista, conduzida por anabela Mota ribeiro, talvez se encontre a chave (ou uma das chaves) do universo de criação de Manuel antónio Pina e da sua relação com a linguagem — muito especialmente com a da poesia: «seduz-me — explica o poeta — a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de 1 lembrando a transposição cénica de O Pássaro da Cabeça e Mais Versos para Crianças, de Manuel antónio Pina. 2 «toda a verdade sobre os gatos, o cão, o Pooh, e o Pina». entrevista de anabela Mota ribeiro, suplemento «Pública», jornal Público, 26 de abril de 2009. 3 Ibidem.

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De pernas para o ar: a obra de Manuel António Pina nos anos 70 Osvaldo Manuel Silvestre a hipótese que gostaria de explorar aqui, em regime ainda experimental, pressupõe, para começar, tomar a sério e em toda a sua extensão, desde logo em sede metodológica, a ideia de que a obra de Manuel antónio Pina ganha em ser lida como um continuum de verso e prosa, mas também de crianças e adultos, o que implica resistir à tentação para naturalizar o contrato de leitura supostamente inscrito nos textos infantis, que pediriam leitores infantis, bem como o contrato de leitura da poesia, que pediria leitores adultos. Como escrevi há exatos 10 anos, numas «notas sobre a obra infantil de Manuel antónio Pina», no blogue os livros ardem Mal, a respeito do primeiro livro infantil de Pina, O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973), que é o seu primeiro livro, «o que […] a dupla ascendência [lewis Carroll e alberto Caeiro] do livro seminal de MaP implica é a noção de que não há um leitor natural, assim como não há um contrato de leitura natural, inscrito nestes textos (os de Carroll & Caeiro e os de MaP).»1 na minha hipótese, isto implica então um trânsito permanente e desejavelmente intenso entre os textos de Pina, sem nos rendermos inteiramente ao superego do cânone ou dos géneros, extraindo antes as devidas consequências teóricas e hermenêuticas de versos como estes:

1 o texto encontra-se no seguinte endereço: https://olamtagv.wordpress.com/2008/02/11/ notas-sobre-a-obra-infantil-de-manuel-antonio-pina-i/

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Por um pensamento de infância em Manuel António Pina Paloma Roriz 1 Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar. Adília Lopes

o colecionador, o ladrão ao abrir o primeiro livro de poesia de Manuel antónio Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde, surgido em 1974, lemos a epígrafe: «The time has come», the Walrus said, / «To talk of many things: / Of shoes — and ships — and sealing-wax — / Of cabbages — and kings — / And why the sea is boiling hot — / And whether pigs have wings» (Pina, 2012, s/p) de Through The Looking-Glass, Alice do outro lado do espelho. o trecho é uma parte do poema do autor inglês publicado em 1871, intitulado The Walrus and the Carpenter, A morsa e o carpinteiro, e talvez seja possível tomá-lo como epígrafe não só deste livro, mas de um projeto mais amplo de escrita: falar de muitas coisas, de outras coisas, através de outras vozes, contra muitas vozes. a epígrafe de Carroll apontaria ainda outra porta de entrada para a obra de Pina: a da sua produção infantojuvenil, que terá início em 1973, com o livro O país das pessoas de pernas para o ar. ao seu lado, o doutoranda em literatura Comparada na universidade Federal Fluminense e mestre em estudos lusófonos pela universidade sorbonne-nouvelle — Paris 3. integra o grupo de Pesquisa Poesia e Contemporaneidade do Programa de Pós-graduação em estudos da literatura uFF/CnPq. Bolsista CnPq. 1

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Manuel António Pina entre ruínas e outras moradas Paola Poma

Se calhar a única maneira de construir é sobre ruínas M.a.P.

É justamente pela «ideia de forma» que quero me aproximar do último livro de Manuel antónio Pina cujos temas mais obsessivos parecem retornar como uma espécie de requiem e, de modo inusitado, apontar para a construção de imagens visualmente mais concretas sem perder a flutuação tão característica da sua linguagem poética. interessa pensar, de início, no título — Como se desenha uma casa — cujo didatismo alude, num primeiro momento, a um projeto pictórico ou arquitetônico impondo na sua elaboração a concreção da materialidade. Por outro lado, o fato de se tratar de um livro de poemas revela que a transfiguração poética dá à linguagem o seu mais alto grau de abstração. em ambos os casos o «como se» organiza um método para se desenhar, construir e/ou erguer uma casa. o título também dialoga, explicitamente, com a obra de Joana rêgo1 — Outside/ Inside — de 2004, escolhida para capa do livro. Vale lembrar a exposição feita pela artista (janeiro de 2014 na Casa-Museu abel salazar CMas) — Palavras Objecto. Joana rêgo desafiou alguns escritores como ana Hatherly, gonçalo M. tavares, Manuel antónio Pina, Valter Hugo Mãe, Vasco graça Moura, entre outros, a escolherem seu livro de preferência, explicando as razões dessa escolha. inspirada nas opções feitas, pintou pequenas telas com a capa dos livros eleitos, e ao lado de cada tela um breve texto explicando a escolha feita pelos escritores convidados. Manuel antónio Pina elegeu a obra Winnie the Pooh, de a.a. Milne. 1

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Que horas são? Derivas sobre o tempo em Manuel António Pina Pedro Eiras 1 Corria o ano de 1974, e Manuel antónio Pina avisava, no título de um livro de poesia: Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde. nunca mais parámos de interrogar o enigma deste título, tão inesperado, críptico e subtil que dá vontade de colocar mil perguntas a Manuel antónio Pina: de certeza que não é o fim do mundo? de certeza que não é o princípio? por que razão é tarde, e tarde para quê? e por que razão não é realmente tarde, mas apenas um pouco tarde, qual é a diferença entre ser tarde, tarde demais, ou apenas um pouco tarde? a melhor homenagem que podemos fazer a esta poesia, sempre tão interrogativa, talvez seja fazermos-lhe também perguntas, e nem sequer para lhes responder, pois a única resposta possível é a própria pergunta, certa ciência do espanto e um sagaz princípio de incerteza. Multipliquemos então as questões em torno daquele título, mesmo se as suas elipses o defendem, mesmo se é legível e contudo indecifrável, exposto e secreto em simultâneo, gerador de dúvidas e não de respostas. Vale a pena reler o que sobre ele diz o próprio autor, numa entrevista que concederia muito mais tarde, no ano 2000, a américo antónio lindeza diogo e osvaldo Manuel silvestre: a história desse título é um pouco (ou um muito) prosaica. o livro chamava-se (e talvez ainda se chame) Duas Biografias. Ainda Não É o Fim, 1 Faculdade de letras da universidade do Porto. instituto de literatura Comparada Margarida losa.

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Poesia e travessia: circulações e resistências em Manuel António Pina Rita Basílio toda a obra é uma viagem, um trajecto […] Gilles Deleuze seremos o calar do corpo, a ele deixaremos os lugares, e só escreveremos, só leremos, para abandonar aos corpos os lugares dos seus contactos. Jean-Luc Nancy

o livro Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma é Apenas Um Pouco Tarde (1974) está dividido em duas «secções». na secção ii, são-nos dadas a ler, no seguimento do título «Billy the Kid de Mota de Pina, Vida aventurosa e obra ou tudo o Que acabou ainda nem Começou» (Pina, 2012, p. 15) três epígrafes1 que leio como uma orientação geral para pensar a relação — que reconheço em toda a escrita de MaP — entre poesia2 e travessia. antes de chegar às epígrafes, abro um breve parêntesis para fazer notar o excêntrico modo como o título que encabeça esta secção — «Billy the Kid de Mota de Pina, Vida aventurosa e obra ou tudo o Que acabou uma primeira versão desta hipótese foi explorada num outro ensaio que, movido por diferentes solicitações que foram, então, traçando os seus próprios caminhos, intitulei Manuel António Pina. Uma Pedagogia do Literário (2015). retomo agora algumas passagens dessa anterior travessia para, revendo-as, explorar desvios. ao longo do texto, o nome do autor será abreviado para a sigla MaP. 2 usarei aqui o termo «poesia» não apenas como metonímia do vasto e problemático conceito de «literatura», em MaP, mas também como forma de designação mais aproximada ao que inclui o «infalável» na própria experiência (estrita) da relação com as palavras, a(s) voz(es) e o mundo, para que aponta o deítico «isto», recorrente na sintaxe de MaP. 1

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Os tumultos da linguagem e a ilimitação do mundo Silvina Rodrigues Lopes nas considerações que se seguem sobre poemas de Manuel antónio Pina, proponho-me tomá-los como propiciadores de enigmas nos quais fica sugerida a ofuscação promovida pelas pretensões à apresentação/representação de verdade única e intransmissível. assim, a insistência em temas persistentes, pelos quais tudo passa, está envolvida em movimentos de fuga à captura do sentir/sentido na construção/pensamento que se oferece. daí que essa construção não ignore que o que nela importa é o que a torna susceptível de ser aceite sem ser seguida. Como tal, inseparáveis de temas como o amor, a morte e o mundo, surgem aqueles que se referem à condição literária — a crença, a resistência, o imediato: 1. crença na partilha do pensamento enquanto partilha de razões; 2. resistência à dissolução (pelo encantamento ou pelo conhecimento) da dissimetria entre falantes; 3. afirmação do imediato como distância que solicita uma escuta, uma voz, nem positiva nem negativa, que suspenda as razões propiciadas no poema pela «sua» voz não separável do literal, dos sentidos que se fazem nas palavras. a expressão «voz literal» (do poema «arte poética») coloca a inseparabilidade da voz e da letra no poema e com ela a sua duplicidade imanente. a voz, como se verá adiante, é inscrição de desejo de suspender as tiranias (do natural, das convenções) e, sendo inseparável da fala, é inseparável das composições de palavras que permitem a consciência da sua insuficiência. É nos usos repetidos de certas expressões que os sentidos literais vão diferindo de modo mais ou menos notório, Os tumultos da linguagem e a ilimitação do mundo

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Sem que palavras?1 Tarso de Melo 2

Convocado a escrever sobre um poema de ruy Belo para a antologia crítica Século de Ouro (lisboa: angelus novus/Cotovia, 2002), o poeta Manuel antónio Pina revelou, por mais de uma vez, o incômodo que sentia diante daquele «trabalho de casa» sobre uma obra poética que, em parte, era responsável por ele, Pina, ser um «escritor de versos». Para Pina, a poesia de ruy Belo era «algo amado» e, assim, a sua «compreensão dela não passa por qualquer exercício de análise». lembro isso porque, de minha parte, para escrever aqui sobre a poesia de Manuel antónio Pina, estou diante do mesmo incômodo — sem, no entanto, a mesma competência para realizar a tarefa. Vou em frente, porém, um tanto por desfaçatez e outro, bem maior, para tentar entender por extenso o que faz com que eu goste tanto da poesia de Pina. Foi nas páginas da revista Inimigo Rumor, em 2003, que tomei contato com um poema de Manuel antónio Pina. naquela época das memoráveis edições luso-brasileiras da revista carioca (do número 11 1 este texto foi escrito no segundo semestre de 2007, para ser publicado no K — Jornal de Crítica (volume 16). não é muito mais do que um testemunho da minha paixão pela poesia de Pina: um chamado à leitura de seus poemas, uma exortação à publicação deles no Brasil. Fazia, então, poucos anos que eu havia conhecido a poesia de Pina e andava diariamente com seus livros, lendo, relendo, divulgando para os amigos. Quase uma pregação, repetindo os versos de Pina e tentando apontar alguns dos sentidos que se me revelavam então. daí o tom e certa ingenuidade do texto, que decidi manter aqui, sem correções, para dar conta dessa paixão que só aumentou de lá para cá. 2 É poeta, advogado e professor, doutor em Filosofia do direito pela universidade de são Paulo. autor de Íntimo desabrigo (2017) e Alguns rastros (2018), entre outros livros.

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© sisteMa solar (doCuMenta), 2020 rua Passos Manuel, 67 B, 1150-258 lisBoa © os autores (teXtos) 1.ª ediÇÃo, MarÇo 2020 isBn 978-989-9006-25-6 na CaPa: Manuel antónio Pina (FotograFia de luCÍlia Monteiro) reVisÃo: luÍs guerra dePósito legal 468649/20 este liVro Foi iMPresso na PuBlito – estÚdio de artes grÁFiCas ParQue industrial de PintanCinHos, 4700-727 Braga

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