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TÍTULoS DoS oRIGINAIS DAS PRoSAS: THE HOPI SNAKE DANCE; THE WOMAN WHO RODE AWAY; SUN
© SISTEMA SoLAR, CRL (2021) RUA PASSoS MANUEL 67B, 1150-258 LISBoA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: MAx ERNST, FlORESTA vERMElHA REVISÃo: DIoGo FERREIRA 1.ª EDIÇÃo, AGoSTo 2021 ISBN 978-989-8833-53-2 DEPÓSITo LEGAL 487377/21 IMPRESSÃo E ACABAMENTo: ACD PRINT, SA RUA MARQUESA D’ALoRNA, 25-19 2620-271 RAMADA
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índice
Apresentação ........................................................
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o sol em mim ...........................................
17
a dança da serpente nos hopis ........................
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Águia no Novo México ..............................
51
a mulher que fugiu a cavalo ...........................
57
sol ..................................................................... 115 oito poemas com sol ......................................... Homens-Sol .............................................. Mulheres-Sol ............................................. Democracia............................................... Aristocracia do Sol .................................... Consciência .............................................. As Classes Médias ..................................... Imoralidade .............................................. Censores ...................................................
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O Eastwood, onde nasceu, e o Nottingham que lhe fica ao lado e onde estudou, estão ambos na Inglaterra triste e esquecida pelo sol; a que tinha no seu tempo pós de carvão e ferro fugidos das minas e a pousarem em tudo o que não fosse varrido por um qualquer vento ali chegado como salvador. Temos estas fealdades bem contadas numa página de Lady Chatterley’s Lover: As casas de tijolo enegrecido, os telhados de ardósia preta íngremes e luzidios, a lama negra do carvão, os pavimentos húmidos e escuros. Parecia que a tristeza tinha impregnado tudo. Nada é mais terrível do que esta negação completa de toda a alegria de viver, esta total ausência do instinto da beleza que nem sequer possui um pássaro ou mesmo outro animal, esta morte consumada de toda a faculdade de intuição humana. Anos mais tarde Graham Greene seria categórico e rápido no romance A Gun for Sale: «Nottingham é “sinistra”». David Herbert lawrence, o quarto dos cinco filhos do mineiro Arthur lawrence, nasceu sensível a estes rigores de clima e de vida. O seu curto relato autobiográfico relembra o menino pálido e franzino com o nariz entupido, que a maior parte das pessoas tratava com o carinho que se dá a todos os miúdos com ar delicado. Com duas semanas de idade, David Herbert teve uma bronquite; e depois gripes; e depois pneumonias; tudo o que preparava um bom campo à tuberculose e à sua primeira himoptise de 1913.
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Em 1913 — ele com vinte e oito anos de idade e já autor dos romances The White Peacock e The Trespasser, a um ano de se casar com Frieda (farta do barão von Richthofen e ansiosa por abrir a asa que daria protecção a um delicado intelectual; melhor ainda, a um intelectual carente de protecção feminina) — teve um sério anúncio de vida curta e de que estaria destinado a uma saúde pouco favorecida pelo nevoeiro inglês. Nestes séculos de tuberculose como sentença de morte, a medicina britânica incitava os seus tísicos a emigrarem. Fê-lo com conhecidos escritores. Se as irmãs Brontë morreram a ouvir os ventos do Yorkshire porque nenhuns meios tinham para a extravagância de ares distantes, em 1754 Henry Fielding morreu em lisboa, sem tempo de chegar à Madeira, em 1894 Robert louis Stevenson foi acabar sob o sol quente de Samoa; e anos mais tarde Katherine Mansfield iria para aquele sul de França que só lhe deu vida até 1923. Mas D.H. lawrence não escolheu um «lugar terapêutico» sem passar por hesitações. Os sintomas da tuberculose agravavam-se com ele na Inglaterra, ou a viajar por uma Europa mais quente mas não muito melhor para os seus pulmões. Em 1916, com o seu mal a dar avisos alarmantes, ainda andou por uma enevoada Cornualha; em 1919 decidiu-se por Capri e Taormina, em 1922 experimentou Ceilão e a Austrália, e só em 1923 foi parar ao Novo México, depois de se demorar em Nova Iorque, Tahiti e São Francisco. Com o Novo México D.H. lawrence chegava, enfim, à «sua» terra de sol. E ficou fascinado pelo Sol. Não apenas por aquele que os médicos lhe apontavam como pacificador da sua tuberculose, mas pelo sol no seu mais amplo sentido carnal e cósmico. Penso que o Novo México foi a mais bela experiência de mundo exterior que alguma vez fiz, disse à revista Phœnix.
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Não tenho dúvidas de que irá transformar-me para sempre. […] Na manhã magnífica e triunfante do Novo México tomo consciência súbita de que uma parte da nova alma desperta e o velho mundo cede o passo ao novo. lawrence estava em terras de sol quente sobre a pele, mas também do Sol dos índios, esse que confere ao homem um poder abstracto e profundo, o que estaria presente em duas obras de ficção — The Plumed Serpent e A Mulher que Fugiu a Cavalo — e sobrevoa uma parte do seu livro de viagens Mornings in Mexico. A sua relação com os índios do México nunca passou pela sedução exótica nem pela vertigem romântica. O «bom selvagem» de Jean-Jacques Rousseau andou sempre longe da sua fascinada admiração. Numa carta de 25 de Outubro de 1923 a John Middleton Murry lemo-lo a enunciar o difícil, senão impossível, apaziguamento entre duas civilizações no seu essencial antagónicas: Têm de atar-se os dois extremos da corda que se partiu. […] Não chega uma mão estendida no espaço. É preciso outra chegada do extremo oposto para darmos o aperto de mão. A mão escura e a mão do homem branco. «Todavia no alcanzan. No tocan. Se debe esperar.» O escritor sentiu-se tentado a exprimir o antagonismo entre o mundo anglo-saxónico e o mexicano. Os índios perturbavam-no com a sua estranheza e a sua aspereza, e reconhecia-lhes o mérito de terem conservado misteriosos laços com o universo. Queria encontrar-se literariamente com esse povo que ele via fazer da dança uma disciplina capaz de lhe aumentar o poder sobre as forças vivas da terra; que tinha sabido conservar o primitivismo indissociável do homem obediente aos seus instintos, que tinha por mais importante ser do que saber. E neste programa teria de construir perso-
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nagens decididas a levar até ao fim experiências de vida exteriores aos círculos fatais da civilização europeia. O contacto de lawrence com um sol que lhe foi preconizado como «terapêutico» passou para a sua obra sob três formas distintas e todas alheias a este papel curativo. lemo-lo em vários poemas publicados neste livro como celebração, sentido como força suprema, como poder cósmico que conduz o homem à sua superior vitalidade de corpo e de espírito, que o conduz à negação dos valores pervertidos de uma decadente humanidade; lemo-lo no texto «A Dança da Serpente nos Hopis», descrito com alguma ironia e distância, como valor máximo de uma religião animista que o venera a dançar, tomando-o como pretexto para um espectáculo duvidosamente isento de uma intencional atracção turística; é influenciado por ele sob esta mesma forma religiosa no romance The Plumed Serpent; mas também o encontraremos na sua história curta «A Mulher que Fugiu a Cavalo», aqui com a mulher branca entregue ao sol num sacrifício que se pretende redentor da servidão do índio à civilização do homem branco, mas oportunidade literária para a instalar num contexto dramático oposto ao das ficções de outros autores da sua época, largamente celebradas pelo público porque lhe ofereciam a exótica excitação romântica de um corpo masculino «selvagem», conquistador de uma mulher «civilizada» que hesitava entre o horror da violação e o amável consentimento dos seus carenciados sentidos. O texto «A Dança da Serpente nos Hopis» é aqui apresentado na sua segunda versão, a que sucedeu à da revista Laughing Horse em Setembro de 1924 e surgiu como um dos textos de Mornings in Mexico. Mabel lodge, uma das mulheres que conviveu de perto com lawrence, inglesa excêntrica que teve a ousadia de se casar com o
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índio Tony luhan numa época em que isso era visto como «aberração», incitou lawrence e Frieda a deslocarem-se com ela e o seu marido até Hotevilla, no Arizona, para assistirem à dança da serpente da tribo dos Hopis. A viagem decorreu entre os dias 14 e 23 de Agosto de 1924 num carro guiado pelo índio. A primeira versão de «A Dança da Serpente nos Hopis» desagradou profundamente a Mabel lodge, como se lê no seu livro Lorenzo in Taos: «O relato terre à terre e seco da nossa longa excursão àquela aldeia só era uma simples enumeração realista que um qualquer repórter fatigado e descontente podia assinar. Nenhum singular ponto de vista, nenhum ponto de decifração, nenhuma espécie de apreciação. Interiormente senti-me cada vez mais fria e afastada de lawrence. Não tinha sido para ele escrever uma coisa como aquela que eu o tinha levado à dança da serpente. Decepcionada, fora de mim, tomei o partido de deixá-los regressar a casa sozinhos e ficar alguns dias em Santa Fe na casa de Alice. No momento da despedida mantive-me de pedra; mas lawrence atravessou a parede que entre nós se tinha levantado, dizendo: “Sei que não gostaste do meu artigo. vou escrever outro”. […] Alguns dias depois de regressar a casa fez essa admirável e muito compreensiva descrição da dança, a que pode ler-se em Mornings in Mexico.» Numa carta a Middleton Murry, lawrence diz: Esta religião animista é a única que está viva; a nossa não passa de um cadáver. No seu texto defende a dignidade do ritual sagrado dos Hopis, o contacto estabelecido entre o homem e o dragão cósmico. A tribo dos Hopis mantém com o sol uma relação dupla. Este astro que a ilumina e aquece, que é benfazejo e faz crescer o milho da sua alimentação, tem como contraponto outro sol escuro e
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irado no interior da terra, o que dá mostras da sua cólera expelindo lava através dos vulcões. Os Hopis elegem dois animais como mensageiros privilegiados destes dois sóis: a águia que vêem voar até mais alto do que qualquer outra ave e ficar próxima do sol celeste; a serpente que vêem enfiar-se na terra e aproximar-se do sol obscuro e irado que existe no interior do mundo. Entre os dois sóis é de temer e de aplacar o segundo, já que o sol celeste é tranquilo e sempre disposto a fazer crescer as plantas do seu alimento. Nas vésperas desta dança eles sacrificam águias para contentar o sol obscuro, oposto ao sol celeste; e durante a dança segredam mensagens à serpente cascavel e conduzem-na docemente à toca, esperançados na sua benéfica intervenção junto do sol obscuro. Nesta religião anímica também existe um deus supremo — o Quetzalcoatl, a «serpente emplumada» — que concentra em si os poderes destes dois sóis e representa as energias telúricas da vida, da abundância vegetal, do alimento físico e do alimento espiritual, e que em si reúne dois símbolos essenciais: quetzal, um pássaro (o pharomachrus mocinno com vida entre as névoas das montanhas) que tem vistosas penas na cauda e os astecas e os toltecas veneram, e o coatl, nome genérico da serpente1. O puritano lawrence só via as relações entre sexos como resposta a um apelo físico tão básico como o da fome, da sede ou do sono. Enfeitá-lo ou contorná-lo, sobrepondo-lhe outras dimensões, atirava-o para os domínios da pornografia. lawrence aprovava as histórias com ar saudável que em Boccacio se reduzem à franqueza física; e olhava para uma Jane Eyre de sentidos reti1 Registe-se que existe em Portugal uma editora, a Quetzal, que tem no seu símbolo uma excelente estilização gráfica da serpente fazendo assim, dir-se-ia que insolitamente, a representação do coatl e não do quetzal.
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centes perante o senhor de Rochester como bom exemplo da pornografia; ainda mais condenava a reaccionária fantasia sexual da personagem feminina de Edith McHull, autora do romance The Sheik, nos braços do xeque pseudo-árabe, entre palmeiras e na solidão do deserto. A história da mulher que fugiu a cavalo fez surgir na literatura (dir-se-á que pela primeira vez) uma mulher branca não destinada a excitar homens de pele escura que se expõem ao seu olhar num cúmulo de exuberância física. A mulher branca iria desta vez enfrentá-los com uma absoluta indiferença pelo seu atractivo sexual; e, pelo seu lado, sentir-se-ia apenas vista como objecto assexuado entre homens faustosamente dotados para as relações físicas. E esta «afronta» à oportunidade de uma fantasia literária onde interviesse o dirty little secret tão obsessivamente condenado no seu texto «Pornography and obscenity», teria como centro uma suprema história de Sol. A mulher que fugiu a cavalo vê-se entre índios que a elegem como mensageira solar. Fugida do tédio do casamento para uma aventura que tinha começado envolta num tolo romantismo, ainda mais irreal do que o existente nas raparigas, acedia à hiperlucidez concedida pelas drogas e, com ela, à complacência perante o seu destino de vítima oferecida a um supremo poder. Porque aqueles índios viviam uma má época da sua história, roubados pelo homem branco no que tinha sido um ancestral poder. Dizia-lhes uma crença que a grande força geradora seria recuperada com o encontro astronómico do sol e da lua; e que em esplendorosos tempos esta conjunção celeste seria indirectamente obtida descendo o Sol até ao homem índio, descendo a lua até à mulher índia, para o seu encontro físico e terrestre multiplicar o Poder.
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A aparição do homem branco tinha feito o Sol e a lua zangarem-se, tornando os encontros físicos do homem índio e da mulher índia estéreis quanto a essa força vital. Mas bastaria o índio mostrar-se capaz de dominar o homem branco, oferecendo a sua mulher ao Sol, para o astro supremo voltar a penetrar no homem índio, a lua voltar a entrar na mulher índia, e a sua conjugação restituir-lhes a força perdida. Para cenário desta oferenda, D.H. lawrence lembrou-se de uma gruta que tinha visitado num dos seus passeios a cavalo nos arredores de Taos, a região dos índios adoradores do Sol; que o tinha impressionado pela cascata à frente da entrada, e que formava durante o Inverno uma gigantesca estalactite de gelo suspensa como um dardo sobrenatural. O seu conto «Sol» desvia-se deste sol índio para reconhecer forças de vitalidade e geração a outro sol, agora europeu e siciliano. Juliet entrega a sua nudez ao sol da Sicília com a convicção de que era gradualmente penetrada para ser conhecida no sentido cósmico e carnal da palavra; e que também se despojava das tensões da civilização. A inesperada aparição do seu marido, novaiorquino e pouco batido pelo sol, começa por ser vista como uma contaminação do seu paraíso, onde tem maior lugar o camponês siciliano (irmão, na sua sedução física, do Mellors que já tinha noutras páginas seduzido lady Chatterley). O texto terminará com uma ironia amarga: Juliet completa a sua metamorfose física, mas não mental; e o seu novo filho não terá um pai pertencente ao sol mas às civilizadas penumbras de Nova Iorque. *
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De nada valeu a lawrence viver em terras de sóis a que ele atribuía poderes divinos e revitalizadores. O poderoso astro não soube poupá-lo a uma himoptise em Taos nem, no ano seguinte, a outra muito mais grave em Oaxaca. O homem que escrevia: este país é muito belo, o seu céu muito perfeito e em todos os seus dias azul e quente, e tem flores que se sucedem com uma tão grande rapidez, compreendeu que teria de abandonar estas belezas e regressar à Europa velha e solarmente pobre, mas com uma medicina mais eficiente. Fugiria, nessa Europa, das névoas inglesas; havia, pouco distantes do seu país, as terras quentes da Itália, como Spotorno e Scandicci, os locais onde mais tempo se fixou. Nenhum agravamento na sua saúde conseguiu opor grandes restrições ao seu desejo de mobilidade nem ao de se expressar como escritor. lawrence, que só teria mais quatro anos de vida, ainda viajou pela Itália, e não resistiu aos apelos de Palma de Maiorca, Baden-Baden e Bandol. No que respeita à sua actividade como escritor, em 1926 ainda conseguiu terminar The Plumed Serpent e escrever a peça de teatro David; em 1927 publicar Mornings in Mexico; em 1928 o livro que abre com o texto «A Mulher que Fugiu a Cavalo», Collected Poems e a terceira e controversa versão do romance The Lady Chatterley’s Lover; em 1929 os poemas de Pansies e «Pornography and obscenity», o texto onde melhor se revela a sua puritana moralidade. viu-se em 1930 obrigado a receber cuidados no sanatório de vence. Mas já era um caso clínico perdido. E foi a 2 de Março que olhou para Frieda, a sua mulher, e com algum ânimo lhe disse: «Estou agora a sentir-me melhor». Mas, por ironia do destino, mal acabou de dizê-lo morreu. A.F.
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o sol em mim
Vai erguer-se o sol em mim, aos poucos vou ressuscitar, já tenho no meu mar as brancuras de uma falsa madrugada. Tenho o sol em mim. E um sol no céu. E mais além o sol imenso atrás do sol, o sol de imensas distâncias que se abraçam nos genitais de um vivo espaço. E depois de tudo isto o sol dentro do átomo que é deus no átomo.
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