Emilia Pardo Bazán «Contos Bravios»

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contos bravios


retrato de JoaquĂ­n sorolla y bastida (pormenor)



© sistEMa soLar, crL (2020) rUa Passos ManUEL, 67b, 1150-258 Lisboa tradução © anÍbaL FErnanDEs 1.ª EDiÇÃo, oUtUbro 2020 isbn: 978-989-8833-52-5 na caPa: HiEronYMUs boscH (PorMEnor) rEvisÃo: DioGo FErrEira DEPÓsito LEGaL: 474350/20 EstE Livro Foi iMPrEsso na PUbLito — EstÚDio DE artEs GrÁFicas ParQUE inDUstriaL DE PintancinHos, 4700-727 braGa


Era filha única do advogado José Pardo Bazán y Mosquera Rivera, que deu um forte apoio parlamentar ao reconhecimento do catolicismo como religião do Estado Espanhol. Agradecido por estas bem sucedidas diligências, o papa Pio IX enviou de Roma uma carta onde sugeria que lhe fosse concedido o título de conde; o rei Amadeo de Saboia (El rey caballero) concordou, e este conde-advogado com residência mais assídua na rua Tabernas da Corunha, mas com outras que lhe davam alternativas em Sangenjo e no Pazo de Meirás, passou a ter solicitações políticas que o faziam descer da Galiza e frequentar quase todo o ano a corte de Madrid. Emilia, a sua filha, muitos anos depois também viria a ser condessa — desta vez por graça do rei Afonso XIII; e pôde assim, nos seus últimos treze anos de vida, acrescentar uma nobreza heráldica aos seus prestígios de escritora e figura pública com um nome resumido a três palavras mas que simplificava outro — o nome-ladainha do seu baptismo — aquele que nos dá direito a perda de fôlego e a algum espanto: Emilia Antonia Socorro Josefa Amalia Vicenta Eufemia Pardo Bazán y de la Rúa-Figueroa Somoza. Esta Emilia, com nome a perder de vista, teve uma infância protegida e folgada numa Corunha que as suas ficções literárias viriam a chamar Marineda. Teve preceptores que a defenderam


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de indesejáveis convivências populares, impossíveis de afastar numa escola pública. E lia muito. Diz-se que fez versos aos nove anos; diz-se que aos quinze escreveu o primeiro conto. E diz-se que ela, para se demarcar do que parecia então inevitável, recusou a banalidade das lições de piano e das aulas de música, nesses anos a infalível prenda das raparigas bem nascidas. Aos dezasseis anos de idade casou-se — foi decidido que seria melhor casar-se — e fê-lo com don José Quiroga y Pérez de Deza, estudante de direito de origem fidalga, apenas três anos mais velho do que ela. O muito jovem casal abrigou-se sob as asas do conde de Pardo Bazán, acompanhou-o nas suas deslocações que desciam desde a Galiza até Madrid, e doña Emilia foi vencida pelos mundanismos da capital: com o meu pai eleito como deputado nas constituintes de 1868, começámos a passar os invernos na corte e os verões na Galiza. o meu congénito amor pelas letras sofreu um grande eclipse obscurecido entre as distracções que Madrid oferecia à recém-casada com dezasseis anos. […] todas as manhãs visitas ao picadeiro para aprender equitação, todas as tardes a carruagem na castellana, todas as noites teatros ou saraus; na Primavera concertos no Monasterio, e à saída do concerto ver matar no Tato; no verão, à noite, El retiro; cavalo algumas vezes na casa de campo ou na ronda; e quando calhava, um giro até ao Escurial ou a aranjuez. Passatempos […] que […] começavam a deixar-me na alma um vazio, uma sensação de angústia inexplicável…» A jovem doña Emilia diz-nos assim que começava a fazer-lhe falta (até à angústia) o antigo conforto das letras; da sua voz forte; tão forte, que acabaria por vencer e obrigá-la a aplicar-se aos grandes esforços da aprendizagem do francês, do latim, do


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alemão e do inglês — para poder aproximar-se dos maiores nomes literários nas suas línguas originais. E também nos diz que se preparava com estes treinos para ser uma imparável criadora literária. Aos vinte e oito anos Emilia Pardo Bazán publicou a sua primeira novela, abrindo com um Pascoal López, autobiografia de um estudante de Medicina a torrente onde hoje encontramos todos os títulos que nos impressionam pela quantidade, pela qualidade literária e por esse dom mais raro que é uma sabedoria — a sabedoria na literatura — a arte de prender o leitor a uma história. Em dias que já eram da sua controversa consagração, explicou-se: o primor da feitura está na rapidez com que se conta, na descrição exacta e sucinta, no interesse bem graduado que devemos despertar logo nas primeiras linhas. E ainda: não cansar as pessoas, que em geral detestam as salas de espera e desejam entrar o mais depressa possível no salão. Atenta a estas regras escreveu romances, novelas, ensaios, teatro, monografias, contos; e apesar da sua adoração por Émile Zola, nunca se considerou militante da sua marca naturalista. Há realismo e realismos, dizia. Há esses onde falta, ou melhor, onde sobra qualquer coisa para poderem gabar-se de ser um género de boa lei. Eu, realista? todos os que lerem os meus ensaios críticos compreenderão que sou idealista; nem realista, nem naturalista, apenas eclética. Emilia Bazán considerava a Espanha um país com identidade própria, digno de ter um realismo a la española, já com os conhecidos bons exemplos de Galdós e Pereda. Mas o seu casamento com don Pérez de Deza?… Houve uma primeira harmonia mansa; ele tranquilo e reservado, a apoiar


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a vocação literária da sua esposa, ela a retribuir esta atenção interessando-se pelos seus estudos de Direito. O primeiro dos seus quatro filhos teve de esperar oito anos até a agitada Emilia Bazán se considerar em condições de passar pelos estorvos muito femininos de uma gravidez. Mas esta compreensão mútua começou a dar sinais de instabilidade. Don Pérez incomodava-se com a imagem pública da sua mulher. Era indecente uma mulher casada apoiar publicamente o exemplo da literatura francesa, que as boas consciências espanholas consideravam pornográfica. As suas ficções tinham preferência por personagens femininas audaciosas e revolucionárias, com uma filosofia de vida «apenas aceitável quando praticada por homens». 1883 foi o ano em que o seu romance La tribuna (sobre as trabalhadoras de uma fábrica de tabaco em Marineda) e o ensaio La cuestión palpitante se excederam nesta insolência, e don Pérez pediu à sua mulher que deixasse de escrever. A escritora Emilia Pardo Bazán recusou-se a ceder às implorações do seu marido; e uma viagem à Itália, vivida sob esta tensão, fê-los decidir que passariam a não viver juntos. (Hoje conhece-se a lista dos amantes que esta separação lhe deu, entre eles o escritor Benito Pérez Galdós, relação amorosa prolongada a um período longo de mais de vinte anos. E também se sabe que Emilia vestiu luto pesado durante um ano, quando Galdós morreu.) Em 1886, esta autora de «histórias impróprias numa mulher saída de um tão honrado extracto social», e a quem chegaram a chamar puta, marimacho, gorda y fea — embora houvesse outros que já a reconheciam como um dos grandes escritores da literatura espanhola — chegou a atrever-se ao romance Los Pazos


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de Ulloa, que não hesitava em passear por amores incestuosos (é verdade que praticados com o desconhecimento do parentesco que os amaldiçoava), e que as bibliotecas públicas foram proibidas de ter à disposição dos seus leitores, por se deter de forma tão intolerável sobre a nobreza degradada, sobre a decadência do mundo rural galego. (Note-se que uma das explicações centrais desta decadência galega é por ela argumentada de um modo pouco usual entre os espanhóis: É claro que no atraso da Galiza há um problema histórico relevante, que vai deixar uma profunda pegada. Depois da sua amputação de Portugal, a Galiza fica como membro destroncado, sem vida própria. Quando Portugal se eleva e domina o oceano […], a Galiza anula-se. Enquanto a irmã do além-Minho se veste de brocado e ouro, a do aquém solta entristecida o seu velho alaúde, retira-se para a montanha, calça tamancos de pastora; e só quando a tarde morre e recolhe os seus gados, entoa uma qualquer copla rústica.) Ela queixava-se: se em vez de Emilia eu escrevesse Emilio, nada desta tempestade se ouviria. Era um lamento que se ajustava à sua bem visível afirmação feminista. (Um país que queira prosperar e ser dono do seu destino, não pode relegar as mulheres para as funções domésticas, escreveu num ensaio; e ainda: sai bastante barato dar a morte a uma mulher). Emilia Pardo Bazán foi o primeiro elemento do sexo feminino a presidir ao salão de leitura do Ateneu de Madrid; foi a primeira catedrática na Universidade Central de Madrid, tendo a seu cargo o curso de Literatura Contemporânea de Línguas Neolatinas; um seu muito comentado discurso na Institución Libre de Enzeñanza criticou vivamente (e escandalosamente) a passividade, a obediência e a submissão das mulheres aos seus maridos. Em 1910,


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toda esta pujança afirmativa sugeriu a Afonso XIII que devia nomear «a sua condessa» conselheira da Instrução Pública. Emilia Pardo Bazán, sacudida entre defensores e opositores, entre prestígios literários e abjectas censuras, conseguiu ser no seu país uma figura com forte presença no mundo cultural, publicar sem dificuldade uma obra literária extensa, frequentar tertúlias de Pérez de Ayala, Unamuno e Fernández Flórez, destacando-se nesse grupo de intelectuais-machos como insolente presença, exemplo único de um interlocutor do sexo «oposto». Em toda esta desenvoltura teve porém um desaire tri-repetido que a entristeceu: foi recusada três vezes, sem nunca conseguir que a elegessem como membro da Real Academia Espanhola. Teve lá defensores como Joaquín Sorolla. Unamuno ou Ramón de Campoamor, dispostos a tê-la como par, mas dois nomes de peso a terçarem armas verbais contra ela — Menéndez Pelayo e Clarín — e nessa torrente de palavras um sarcasmo célebre: «Não pode ser eleita porque o seu cu não cabe nos cadeirões desta Academia.» A condessa de Pardo Bazán foi uma incansável contista, lembrada muitas vezes como o Guy de Maupassant espanhol — de quem colheu, por certo, uma proveitosa lição oficinal. Não pelo estilo, que é exemplo forte de uma vocação castiça, mas pela «velocidade» e pela arte de saber transformar singelas anedotas da vida real em factos literários. O número dos seus contos ainda hoje não é dado como certo, e a sua biógrafa Eva Acosta chega a supor que, reunidos os ainda dispersos por jornais sul-americanos, poderão chegar a seiscentos. A disciplina formal do conto cumpria uma das maiores exigências da sua relação com a narrativa escrita: o contista tem de cingir-se ao tema, fechar num reduzido espaço uma acção


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de drama ou comédia. Mas a inspiração que lhe era necessária para corresponder à ânsia de mais um conto — a forma literária que na sua vocação prevaleceu sobre todas as outras — nem sempre comparecia à chamada: Há dias […] em que não me ocorre para um conto nem um mau tema, e há horas em que eles se apresentam à minha imaginação às dezenas, o que me faz sentir a impaciência de os trasladar para o papel. Hoje deixou de ser controversa. É considerada uma importante e singular figura das letras espanholas, a dominar a sua corrente realista e no fim da vida a temperá-la com diferenças sopradas pelo modernismo. E se a Corunha lhe fez um monumento vistoso no jardim de Méndez Núñez, em Madrid podemos vê-la ali no centro, na Rua Princesa (aquele prolongamento mais estreito da Gran Vía, a partir da Praça de Espanha), sentada muito branca numa cadeira erguida até ao alto de um pedestal, como a imaginou Rafael Vela del Castillo para a deixar solidamente celebrada no pequeno jardim chamado… claro está… Das Feministas. Emilia Pardo Bazán, la fea, la gorda, que publicou dois livros — La cocina Española antigua e La cocina Española Moderna — sobre aquilo que a tradição gastronómica do seu país mais valorizava — gostava de comer. Fez-se uma obesa de bom garfo, diabética, e o excesso de glicose no sangue causou-lhe úlceras oculares que complicavam com difíceis contratempos os seus momentos de escrita e de leitura. No dia 12 de Maio de 1921 morreu. Nessa manhã tinha começado a escrever mais uma novela: La Esfinge. A.F.



retrato de JoaquĂ­n vaamonde cornide


Jardines de las Feministas em Madrid, escultura de rafael vela del castillo (1926)


no jardim de Méndez núñez da corunha, escultura de Lorenzo coullaut valera (1916)



A MORGADA DE BOUZAS



não vou ficar por tão minuciosa e diligente, que fixe com exactidão o sítio onde estes sucessos aconteceram. basta os aficionados da topografia novelesca saberem que bouzas tanto pode situar-se nos limites da pitoresca região berciana, como nas profundidades e nas fendas do barco de valdeorras, encravadas entre a serra da Encina e a serra do Ege. bouzas pertence moralmente à Galiza primitiva, a bela, a que ainda estava há vinte anos por descobrir. Quem não viu ali a Morgada? Quem não a conhecia, desde que era assim menina e encarrapitada no carro do milho, a regressar ao seu paço solarengo nas calorosas tardes de verão? Já mais crescida saía a corrichar, a cavalgar em pêlo um rocim sem mais arreios do que a cabeçada de corda. Parecia de uma só peça com o gibão; para montar agarrava-se às crinas grosseiras ou apoiava a mão direita na anca, e de um salto, pim!, subia. antes tinha cortado com a pequena navalha a vara de aveleira ou de tamargo, e balanceando-a sobre as inquietas orelhas do facatrás ia como o vento pelos despenhadeiros que guarnecem a margem do rio sil. Quando a Morgada foi mulher e direita, o seu pai fez a viagem à clássica feira de Monterroso que convoca todos os sportmen rurais, e feirou para a rapariga uma égua de muitos maus instintos, quatro graus acima da marca, traquinas, tor-


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dilha, recastada de andaluza (era como que uma filha do semental do governo). completava a oferta um rico albardão e um freio com ponta de prata; mas a Morgada, deixando-se de meninices encaixou na montada uma sela de mulher (porque de selas à inglesa não há notícia em bouzas) e sem necessidade de picador que a ensinasse, nem de corneta que lhe empatasse a coxa, dominou a sua égua com destreza e galhardia de centáurea fabulosa. se um qualquer honrado burguês madrileno chegasse impensadamente a bouzas e visse aquela mocetona sozinha e a cavalo por brenhas e bosques, penso eu que diria com sentenciosa gravidade que don remigio Padornín das bouzas criava a sua filha única como uma maria-rapaz. E gostaria eu de ver o gesto de uma preceptora saxónia perante as inconveniências que a Morgada se permitia. Quando a sede a incomodava, apeava-se tranquilamente à porta de uma taberna do caminho real e serviam-lhe um pote de vinho puro. Às vezes divertia-se a medir forças com os ganhões e os rapazes da lavoura, e a uns tantos vergou o pulso ou deitou abaixo. não era raro ajudar na descarga do carro do tojo, nem lavrar com a melhor junta de bois do seu estábulo. nas ceifas, desfolhas, romarias e festas de padroeiro bailava como uma pitorra com os seus próprios jornaleiros e cultivadores, escolhendo os que preferia, de acordo com o costume das rainhas, preferindo os melhor constituídos e mais ágeis. não obstante, era mais fácil verem-se manchas no céu do que sombras na rude virtude da Morgada. não tinha outro código de moral que não fosse o catecismo aprendido nos tempos de menina; mas ele bastava-lhe para regular o uso da



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— Estou bem? — interrogou em busca do primeiro elogio. a resposta da criada da hospedaria foi juntar na boca todos os dedos da mão direita e separá-los bruscamente. Quando entrou no salão, onde estava um calor insuportável e flutuava um vapor de corpos humanos espesso e nauseante, alguns homens — entre eles dois hóspedes da estalagem alvoroçados e astutos — acolheram a forasteira com uma saraivada de piropos que a deixavam carmesim, metade por orgulho e metade por vergonha. Marisapo beliscava-a para lhe dizer que não se aturdisse, que a tinha ao seu lado. Um surdo rumor corria entre as raparigas da aldeia agrupadas num dos costados do salão, numa fileira de bancos ensebados que o empresário adquirira no saldo de móveis de um café que tinha fechado. não gritavam; cochichavam apaixonadamente, afogavam risinhos trocistas. a segredarem, ocultavam a boca como se quisessem afogar a gargalhada que sai a espumar, e lançavam olhares de soslaio ao cacho de rapazes que permaneciam de pé à sua frente, sem terem largado cajados e bordões, mudos e ameaçadores. ameaçarem? Quem? sem dúvida os de fora… o velho rito da esquecida organização tribal, atávica, do qual não tinham o mais leve conhecimento reflectivo, renascia, saía das escuridões da subconsciência como um impulso voluntário. o que vinha ela, com os seus colares de brilho, procurar no baile, entre as raparigas da localidade? Por que razão se pavoneava, apresentando-se com um enfeite diferente, com outro penteado que nunca fora visto? Por que libertava de si um cheiro a drogaria ou a especiarias que fazia espirrar? Por que tinha penduradas sobre os olhos aquelas cortinas de cabelo? o caça-rapazes, sobre-


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tudo o caça-rapazes na testa causava-lhes uma doentia excitação de ira sensual. o raio da provocadora! Por que não havia ela de arranjar-se como todas as outras, com a sua trança enrolada? tomás cachopa, o carpinteiro de carroças, o mais enfurecido, fez uma sugestão sombria: — Devíamos tosquiá-la como as mulas e os carneiros. talvez assim se lhe baixasse a grimpa! a ideia fez-se firme na imaginação dos rapazes. isso da tosquia era divertido! Mas a verdade é que não havia ali tesouras, que chatice! Mas que pena! tomás, como quem não quer a coisa fazia uma busca na algibeira interior. Uma navalha vale tanto como as melhores tesouras, e não é preciso ser pastor para sabermos tosquiar. alvoroçadas com a cumplicidade dos rapazes, as raparigas faziam umas às outras sinais, esperavam preparadas com a emoção do que ia acontecer. a música tocava de um modo acre e estridente, mas ninguém tomava a resolução de dançar. Um dos hóspedes da pousada, negociante de vinhos, tinha ido momentos antes convidar a Liboria; mas Marisapo, astuta e já alarmada, fez uma observação deslizar até ao ouvido do homem, e ele retrocedeu. — cuidado… eles estão com más intenções… o cachopa é muito bruto… o vermelho de cravo das faces de Liboria converteu-se numa palidez de argila. compreendeu que estava qualquer coisa a dar para o torto. — vamos embora, María — suplicou com angústia. o carroceiro já estava a aproximar-se dela com a navalha dentro da mão. Era só agarrar no rolo de cabelo, um corte de


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esguelha e zás!, ver-se-ia o que restava do penteado insolente, insultuoso para as outras raparigas. cedeu ao impulso, a brandir a faca reluzente. com um guincho agudo, Liboria fez uma instintiva defesa com o braço, e o sangue brotou empapando o pano do vestido; a arma tinha penetrado até ao osso. caiu no chão, desfalecida de terror e dor. Houve uma reacção: dois ou três atiraram-se ao culpado para o manietar, e ele estupidamente e sem largar a navalha repetia: — só era para tosquiá-la, mas que chatice! Para tosquiá-la e mais nada! atemorizados, os hóspedes da estalagem tinham desaparecido. E só a corajosa Marisapo increpava, furiosa, ajoelhava-se no chão ao lado da desmaiada a fazer-lhe uma ligadura com um lenço porque era urgente estancar a hemorragia. — Mais bruto do que os teus jumentos, selvagem, alma ruim! Que mal te fez a desditada, não me dizes? Devias ser enforcado, meu cão! Dá-me a navalha para eu te pôr com estas mãos as tripas à mostra, amaldiçoado! o carroceiro continuava de pé; e ao ver que o desarmavam, o empurravam para a rua a gritar: «Um médico! socorro!», levantou-se bem firme nos pés e resmungou torvamente: — o quê! Um homem já não pode exceder-se numa brincadeira? Ela própria pôs-se a jeito. Pois que se enfade e se arranhe. É para aprender a não vir para aqui com modas novas!


ÍnDicE

apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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a Morgada de bouzas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Geórgicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o Meu suicídio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . saletita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . curado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o arame . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . inútil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . solução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quase artista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o cavalgador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . veleidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o cabelo branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o natal do Peru. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . na aldeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

19 35 43 51 59 67 75 83 91 99 109 117 131 141 149



últimos livros O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest renan Derborence, charles Ferdinand ramuz O farol de amor, rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules boissière A minha vida, isadora Duncan Rakhil, isabelle Eberhardt Fuga sem fim, Joseph roth O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans Tufão, Joseph conrad Heliogábalo ou o anarquista coroado, antonin artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, antonin artaud Eu, Antonin Artaud A morte difícil, rené crevel A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph roth O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules verne Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), aphra behn As Portas do Paraíso, Jerzy andrzejewski Tirano Banderas (novela de Terra Quente), ramón del valle-inclán Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry Balkis (A lenda num café), Gérard de nerval Diálogos das carmelitas, Georges bernanos O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’arbaud Riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid andreiev A morte da terra, J.-H. rosny aîné Nossa Senhora dos Ratos, rachilde O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de cervantes Entre a espada e a parede, tristan bernard



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