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títUlo original: Un jardin sUr l’OrOnte © sisteMa solar, Crl (2021) rUa Passos ManUel, 67B, 1150-258 lisBoa tradução © diogo Ferreira 1.ª ediÇÃo, aBril 2021 isBn 978-989-9006-71-3 na CaPa: FranCesC Masriera i ManoVens, Un harénila belleza (1889) reVisÃo: jerÓniMo CaBrita
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não restava mais do que uma coluna partida pela metade, mas conservava a beleza de uma ruína imortal. Marcel Proust
trata-se, talvez, de uma das mais antigas histórias que o homem tem para contar, com exemplos que afluem a partir das mais remotas épocas, a perderem-se numa confusão de culturas que, matizando-a de diferentes valores, ainda assim não deixam de partilhá-la pelos corações humanos. tem servido como sustento da literatura… e desde há muito que a pintura lhe solicita cores. a matéria, nas mãos de um artista, também é costume pedir-lhe as formas. Quanto à dança, essa, conhece-a tão infalivelmente quanto certos libretos de ópera, que sem fadigas a têm cantado durante séculos. Muito as salas de cinema se servem dela para iluminar a sua convidativa e acolhedora escuridão. anda de mão dada com a arte. está-se a falar, portanto, das histórias de amor, daquelas que desde há muito a humanidade manifesta de diferentes formas, e neste caso em especial fala-se aqui de uma história «[…] de amor e religião…», e como se irá ver, já diz a língua popular, grande amor… grande labor. Mas pensando com maior afinco na sua faceta literária, é história que tem feito correr muita tinta, e não se vá pensar que
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cuida apenas dos amores entre os sexos opostos, e também não se pense que é história zelosa apenas com o imaginário humano. não tanto. se há casos que devem à ficção a sua perseverança na tradição narrativa, por vezes em pretéritos tão distantes que adquirem os traços da realidade, outros há que nasceram exactamente nessa realidade, mas diga-se que já com pátina que baste para ser difícil imaginar-lhes as cores verdadeiras. Conhece-se a ilíada e as complicações de helena de tróia. há a história de dafne e Cloé que longo nos conta, ele que vivia naquela ilha de lesbos onde safo chegou a cantar estes versos destinados a outra mulher: «toda eu me arrepio, e a minha língua quebra-se:/ Uma subtil chama atravessou-me a carne,/ e o meu suor corre como o orvalho/ amargo do mar;». Mas abrindo caminho pelo tempo, encontra-se nessa tal bruma, que dificulta a distinção entre a realidade e a ficção, as uniões de tristão e isolda — ousa-se duvidar que tamanho e poderoso amor não tenha existido? e dante (não só ele, poderia também referir-se d’annunzio, Francis Marion Crawford, rachmaninov ou ainda tchaikovski) versou sobre Francesca da rimini e Paolo, um amor que nasceu do virar das páginas das antigas lendas do rei artur. depois existe ainda o desespero isabelino de romeu e julieta, e mais tarde aquele fervoroso amor tão bem retratado por Prévost em Manon lescaut. Cento e dezasseis anos depois, pode ainda ser referido que a partir de 18 de dezembro de 1847 ficou a conhecer-se o tenebroso, de pesos góticos, amor além-túmulo pejado de violências com a força de intempéries que era Wuthering Heights, assinado por um tal ellis bell que acabou por se revelar ser uma tal emily brontë. Mas, entre esses mais célebres exemplos, entre as datas desses amores atribuídos à
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ficção ou à realidade, quantos e quantos mais povoam os séculos… Pode-se falar também aqui de Portugal, sobre essa inês de Castro e d. Pedro, que Camões inclui n’os lusíadas, que antónio Ferreira passou para o teatro, esse amor de que bocage dizia «Ouvem-se inda na Fonte dos amores/ de quando em quando as náiades carpindo;/ e o Mondego, no caso reflectindo,/ rompe irado a barreira, alaga as flores:». seria ainda possível trazer a esta enumeração os espinhosos e emaranhados amores libertinos que os séculos XViii e XiX profusamente produziram mais ou menos na sombra, amores pouco ou nada adeptos das convenções morais e religiosas dessas épocas em que a subversão não era tomada de ânimo leve. e outros mais existem, que pertencem a diferentes dimensões, escondem-se em recantos sombrios (ou nem sempre) que os escritores vão decidindo explorar à medida que o mundo acomete o homem com variados acontecimentos. é uma larga torrente, e é uma torrente que as tipografias foram ao longo do tempo engrossando com papel que tem agradado em diferentes graus a quem os vai lendo e ressuscitando. nessa produção cabe a parte de Maurice barrès, que ainda muitos livros deu a essas tipografias, mas nem em todas as ocasiões tratando dos amores da alma e do corpo… Primeiro que tudo, talvez valha a pena dizer que os relógios de Charmes marcavam a uma da tarde de 19 de agosto de 1862 quando auguste-Maurice barrès veio ao mundo. dos pais que o geraram, diga-se que coube mais à mãe, anne Claire luxer, mulher sensível às artes, desenvolver no jovem barrès uma apreciação da palavra escrita, tendo-lhe lido, por exemplo, durante uma convalescença, Walter scott e ricardo Coração de leão na Palestina; e este
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último talvez tenha sido um dos fomentadores do mistério a respeito do Oriente que o fascinaria; já o seu pai, joseph auguste barrès, diz-se das suas relações que eram de uma maior distância. a contar onze anos de idade, dá entrada no colégio religioso de la Malgrange, em nancy, mas os anos que lá passou foram sentidos ao toque de tristezas, um local onde se tornou «corvo alcunha que lhe foi dada pelos colegas devido à cor escura do seu cabelo e o gosto por estar sozinho; sobre esta época viria a registar mais tarde: «no limiar da minha vida; na primeira época da minha infância, vejo no nevoeiro algumas formas comoventes, coisas que se prolongam em música; romanesco, interessantes nuvens, fadas (sem dúvida os devaneios no jardim de Charmes e nos vales alsacianos). tudo isso pára bruscamente no tão dilacerante primeiro dia em que me levaram e abandonaram ao pé do lago carregado de cisnes do palácio de la Malgrange, com um nome, uma perspectiva, um desconhecido de que eu tinha gostado e foi o início das grandes banalidades da vida.» era uma criança com uma sensibilidade que já anunciava as suas diferenças… Porém, dizer que a vida de barrès foi-se fazendo banalidade após banalidade, é coisa injusta. depois desses descontentes anos passados em la Malgrange, foi altura de frequentar o liceu de nancy, onde se diz que um amigo chamado stanislas de Guaita (que chegou a inspirar um feiticeiro satânico a j.-K. huysmans no seu bem conhecido livro là-bas), prestou auxílios à fermentação do gosto pelas letras, ao dar-lhe a ler Gustave Flaubert, théophile Gautier e baudelaire. e se o gosto pela literatura existia em barrès, também o gosto pela filosofia decidiu surgir estimulado por um professor que, e isto di-lo Pierre Moreau no seu livro cha-
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mado Maurice Barrès, propiciava também lições de um precoce misticismo aos seus alunos, deitando subitamente a mão a um já esquecido e estranho livro intitulado rêveries d’un païn mystique, de um tal louis Ménard, desta maneira tratando de «espalhar por cima dos seus alunos a “chuva de estrelas” de um espírito raro e secreto.» Com estes eventos, entre outros, se passaram os primeiros anos da vida de Maurice barrès. encontrando-se em idade de prosseguir os estudos, vai atender ao desejo que o seu pai tem de vê-lo notário formado na faculdade de direito, mas ao que parece barrès gosta mais dos serões de leitura na companhia desse Guaita. é portanto natural que tanta leitura e uma sensibilidade estimulada por intelectos mais sólidos lhe façam aumentar o desejo de escrever, e le journal de la Meurthe e des Vosges, de nancy, acolhe as suas primeiras crónicas. este jovem barrès, que durante a sua vida irá esgrimir a pena na defesa de diversas causas, bem sabe que Paris é a capital e, seja permitido imaginar por um momento, esta deve-lhe ter injectado na mente sonhos com a forma de páginas impressas… e munido dos seus vinte e um anos de idade instala-se naquela cidade cujas ruas eram pisadas por Victor hugo, anatole France, Paul Verlaine, alphonse daudet; cidade que começava a ver andré Gide, Paul Valéry e outros tantos. aquelas brasseries fazem-no travar conhecimento com o simbolismo e com os impérios «no fim da decadência» que as frequentam. Mas esses lugares repletos de joie de vivre, de cabeças letradas, abafados pelo fumo do tabaco, também lhe vão ensinar alguma coisa sobre o amor, e conhece então uma jovem que dá pelo nome de louisa, que se torna motivo de disputa entre ele e o seu amigo stanislas de Guaita, disputa que ganha o aspecto de
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um trio amoroso, mas vê o seu fim com Maurice barrès de sentimentos alanceados por louisa ter preferido o outro pretendente. desta contenda de amores é-lhe soprada a novela deux Misérables, publicada numa revista que se chama taches d’êncre, que por esses anos ele decide lançar e tê-lo-á como único redactor, mas só conhecerá quatro números antes de se dissolver. dessa época em que surge a revista de Maurice barrès, há ainda a sua estada em casa da família Chodźko, onde helena, a mulher de aleksander Chodźko, reconhecido orientalista, vai passar para as mãos de barrès a poesia de saadi. a palpitação do Oriente, que ao longo da vida do escritor parece não o abandonar, vai ainda ganhar a forma de um devaneio de belezas inauditas, mas até lá… … a vida vai seguindo, há artigos seus publicados em diversos locais, é certo, mas também há as viagens: se em 1885 conhece jersey, em 1886 está na bretanha, o ano seguinte traz a vez de itália e espanha. barrès conta agora vinte e seis anos e o seu primeiro romance sous l’oeil des Barbares surge a iniciar-se como o primeiro volume de uma trilogia que terá como nome le Culte du Moi. juntamente com o romancista, já vai sendo tempo de o homem politicamente activo irromper na sua geração, o homem que se reconhece no boulangismo e se dá por um socialista revisionista. Maurice barrès, com a sua devotação à política, utilizará em diversos casos a sua capacidade criativa para levar água a esse complicado moinho. le Culte du Moi vai fechar-se com o livro le jardin de Bérénice em 1891, e a par desse escritor tão politizado há também um jornalista a distribuir as suas linhas por jornais como la France, la Presse, chegando também ao
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le Figaro. é um homem com fortuna, é um homem que já conhece o êxito, e arranja então uma esposa com quem se casar, e para esse papel aparece-lhe Paule Couche, com quem se instala na rua Caroline, num palacete. Os ideais políticos que tocaram a barrès adquirem agora tons mais desagradáveis, a eles soma-se um ominoso nacionalismo que o leva, por exemplo, a não considerar com grandes simpatias os trabalhadores estrangeiros da sua França. a isto ainda vai juntar-se uma posição contra dreyfus, nesse caso que abalou o seu país. todavia, não deixando de lado a sua vontade de escrita romanesca, carregando consigo esse nacionalismo, dá início a outra trilogia que vai chamar-se roman de l’enérgie nationale e começa em 1897 com os desenraizados, um dos seus livros que vai sobreviver melhor à passagem do tempo. e a propósito desse enraizamento de cores nacionalistas, andré Gide chega a fazer uma pergunta a barrès: «nasci em Paris, de um pai uzetiano e de uma mãe normanda, onde quer você, senhor barrès, que eu me enraíze?» Mas aquela tendência para a aridez política leva-o a aproximar-se das margens à direita que representam maiores perigos. em 1900 aparece nas livrarias l’appel au soldat, e em 1901, para fechar essa trilogia que não conhecerá muitas edições ao longo dos anos, surge leurs Figures. andando um pouco mais pelo tempo, barrès liga-se a anna de nouailles, e essa ligação não é apenas a de um mero conhecimento proporcionado pelo meio intelectual. O escritor-jornalista-político parece sofrer os encantos lançados pela autora de la nouvelle espérance, que possui uma instigante descendência romena que seguramente trazia os cheiros de um Oriente que
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ainda estava a vibrar dentro de barrès, um Oriente também alimentado por páginas traduzidas a partir dessas línguas distantes que por lá se falam e oferecem prosas e poesias que somam delicados prazeres. Mas sabe-se, no entanto, que esta relação com anna de nouailles contava com um final de drama; um sobrinho de Maurice barrès, Charles demange, apaixonou-se pela escritora e pôs um fim à sua própria vida. desse acontecimento, e isto a título de curiosidade, François Mauriac extrairá o seu livro le Chair et le sang. acrescente-se que anna de nouailles talvez tenha sido uma das percursoras desse devaneio oriental com que Maurice barrès irá perfumar as páginas de Um jardim na Margem do orontes, e é possível que jean Cocteau não estivesse desprovido de razão quando sustentou que se trata de um roman-à-clef sobre anna de nouailles. em 1914 rebenta, sabe-se, a Primeira Guerra Mundial, e esse período foi atravessado por um barrès a escrever a modos que freneticamente para o l’Écho de Paris artigos que davam mostras de um apoio às tropas francesas, tendo com isso chegado à audácia de mais tarde serem necessários catorze volumes para recolher toda essa artigalhada. não só a guerra rebentou, mas também aconteceria nesse ano algo capital para barrès; já ia sendo tempo de ele próprio se dirigir a esse Oriente que o maravilhava. espanha (e também o egipto) já o tinham presenteado com saborosas ideias sobre o que as terras orientais poderiam ser, com aquela toledo que em 1911 o levou a escrever um texto chamado greco ou le secret de tolède. agora, encarregado de saber em que pé estavam as missões cristãs no líbano, Maurice barrès penetrou no Oriente que, diz rené Gillouin, «[…] prometia a si próprio não morrer sem lhe ter submetido o seu coração.»
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anos mais tarde, essa viagem viria a ser o tema de um livro seu, Une enquête aux pays du levant, mas um ano antes da sua publicação, em 1922, Um jardim na Margem do orontes surgiu na revue des deux Mondes nas edições de 1 até 15 de abril, assumindo o formato de livro no mês seguinte. este texto começou por querer-se uma novela que integraria um volume, mas viu-se com as dimensões de um romance. repleto da energia e do ritmo de uma ópera (e barrès dizia: «Vou contar umas das pequenas óperas que tenho no espírito.»), compõe o cenário de uma tragédia; e dele foi, de facto, retirada uma ópera pelas mãos de alfred bachelet. Mas essa estrutura que se constrói sobre uma tragédia é percorrida por uma linguagem enérgica que não se demora em tornar vivos os cheiros, as cintilações, as texturas de que o texto está cheio — são palavras de sábia escolha que chegam ao leitor à custa de uma pureza de estilo que confere ao romance uma qualidade de cápsula do tempo, onde os amores de um cristão e de uma rainha sarracena vão decorrendo com a consistência de uma lenda. Colocando melhor as coisas, surgem as palavras de rené Gillouin: «não lemos este livro, respiramo-lo como um perfume, saboreamo-lo como se fossem frutos, escutamo-lo como uma sinfonia, seguimos no fundo de si próprio, na articulação da alma sensível e da imaginação, o desenrolar de uma sucessão de frescos voluptuosos e pungentes.» Para servir de pano de fundo aos amores que se contam neste livro, barrès decidiu colocar o narrador ao abrigo do ruído milenar das gigantescas nórias que hoje permanecem em hamã apenas pelo seu valor histórico. talvez seja esse o sábio ardil de Maurice barrès, fazer acompanhar a sua história com o ruído dessas gigantescas rodas de madeira, ao mesmo tempo
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que invoca um Oriente secreto que o tempo tem conservado com toda a sua singularidade ficcional, criando simultaneamente um efeito hipnótico através da linguagem que utiliza. ainda assim, este romance de fulgores orientais não agradou a certos leitores de barrès; e aquele Guillaume, que por causa dos seus amores distorce o que são os bem firmados valores da igreja, não foi do agrado de muitos cristãos. Contando com o facto de barrès ter posto de lado os seus ideais políticos para escrever este livro, vemos, além disso, josé Vincent a censurar-lhe: «O poeta humorista ameaça — queira o céu que seja daqui a muito tempo — morrer na impenitência final. Como prova disso só quero esse recente jardim na Margem do orontes, tão pouco adequado por causa da sua mole perfídia, pelo terrível langor em manter firmes esses impulsos da energia nacional que, com tanto talento e coragem e durante muito tempo, barrès tinha oferecido…» então barrès surge aqui como um romancista mais livre de pejos, coisa que não agradaria a alguns e deu início àquilo que o padre brémond, seu amigo, disse ser a «tola querela do Orontes.» Com uma inclinação mais nacionalista, dá a publicar em 1923 o livro souvenirs d’un officier de la grande armée, uma recolha feita por ele das memórias do seu avô. no prefácio, e já a pressentir Charmes como morada final, barrès invoca: «hoje, domingo de manhã, a primeira manhã da minha estada anual em Charmes, acabo de dar o passeio do meu pai e do meu avô ao longo do rio Moselle. a juventude da paisagem estava deslumbrante, e o seu fundo de silêncio era trágico. Perto do rio, uns quantos gritos de crianças assustavam os peixes; os pássaros cantavam sem auditório; os sinos das aldeias soavam com toda
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a força e semeavam ao acaso os seus chamamentos seculares. terminei a manhã com uma ida ao cemitério para conversar com os meus pais. as inscrições das suas campas relembram-me que o meu avô morreu aos sessenta e dois anos e todos os meus, em média, por essa idade; previnem-me de que é altura de eu organizar as minhas coisas. “é certo irmos para lá!”, dizia com bom senso esse encantador louco do jules soury quando ia a Montparnasse visitar a campa da sua mãe. Mas esse profundo descanso apenas sorri plenamente àqueles que cumpriram toda a sua tarefa e executaram o seu programa. Ora, começo a sentir-me um tanto pressionado pelo tempo.» e não estava longe de ter razão. a 4 de dezembro desse fatídico ano de 1923, Maurice barrés já contava sessenta e um anos de idade quando uma crise cardíaca lhe fez o coração parar na sua casa de neuilly-sur-seine, levando-o depois a ser sepultado nessa mesma Charmes onde visitava e conversava com os seus. diogo Ferreira
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no final de um ardente dia de julho de 1914, eu estava sentado na margem do orontes, num pequeno café da antiga Hamã, na síria. as rodas a escorrer, que dia e noite giram ao sabor do rio para elevar dele a água benfazeja, preenchiam o céu com o seu gemido, e um jovem sábio lia-me num manuscrito árabe uma história de amor e religião… trata-se dessas horas divinas que permanecem no fundo da nossa memória como um tesouro, para nos enfeitiçar. Por que me encontrava eu nesse dia na misteriosa e tão seca cidade que é Hamã, onde o vento do deserto levanta em redemoinhos a poeira dos Cruzados, dos selêucidas, dos assírios, dos judeus e dos distantes Fenícios? estava à espera que fosse organizada uma pequena caravana com a qual ia percorrer os montes ansariés para procurar nos seus velhos torreões os descendentes dos famosos Haxixinos. e a este jovem sábio, que vagueava como eu pelas ruelas do bazar, um irlandês encarregado pelo British Museum das escavações de jarabulus no eufrates, acabava um feliz acaso de fazer-me encontrá-lo. dois europeus perdidos no meio destas casas cegas e mudas, sob um sol tórrido, depressa se associaram. este irlandês era aliás um desses homens de imaginação improvisadora que sabem animar cada minuto da vida e em quem o
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pavoroso calor do Verão sírio desenvolve essa espécie de poesia que vem do tremor dos nervos postos a nu, uma poesia de esfolado vivo. após termos percorrido a cidade e chegado até aos jardins que a prolongam cerca de cem metros ao longo do rio, tínhamos visto tudo e nada. Que espírito se esconde em Hamã? o que magicam estes sírios? Queríamos compreender, queríamos vislumbrar nesta decoração monótona, no coração destas pequenas casas, todas parecidas e todas fechadas, mais do que interiores de pátios; interiores de almas. — não acha — disse-me o irlandês — que agora seria melhor procurarmos antiguidades? Um indígena conduziu-nos até a uma porta, na qual deu uma série de pancadas combinadas, e após algumas negociações e os cinco minutos necessários para as mulheres se retirarem, fomos introduzidos num divã onde, uma vez o café servido, um judeu mostrou-nos os seus tesouros: dois ou três bustos funerários de Palmira, que ele desembaraçou dos lençóis que os envolviam como as faixas de uma múmia, moedas de ouro e prata com a efígie dos imperadores sírios, e um manuscrito árabe. — o manuscrito — disse-me o irlandês após um rápido exame — é de uma escrita medíocre, mas à primeira vista parece-me muito curioso. Poderá ter pertencido a um desses mestiços de ocidentais e indígenas que os Cruzados por cá chamavam Potros e, na grécia, gasmulos1. os Potros (ignoro de onde vem este nome) eram produtos de pai franco e mãe síria, 1 num mais amplo sentido, estes termos são utilizados para designar os que descendiam de uniões entre bizantinos e latinos. supõe-se uma relação com «mulus», que em latim significa «mula». (n. do t.)
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