Conde de Mirabeau «Erotika Biblion»

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TÍTULO ORIGINAL: EROTIKA BIBLION

© SISTEMA SOLAR CRL, 2021 RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, MAIO DE 2021 ISBN 978-989-9006-85-0 NA CAPA: HIERONYMUS BOSCH (PORMENOR) REVISÃO: DIOGO FERREIRA DEPÓSITO LEGAL 483028/21 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ULZAMA


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A tudo o que a imaginação oferece para as arquitecturas de um palácio de reis, o castelo de Vincennes acrescenta-lhe a enorme torre-cárcere que Filipe de Valois começou e Carlos V terminou; tão robusta, disse-o Mirabeau, que só um canhão do mais grosso calibre lhe faria uma brecha. A História encheu-a com o castigo de muitas personagens célebres — e tardiamente, já no século XX, entregou o seu fosso sem água aos que a lei encarregou de fuzilar a espia Mata Hari. Mas com maior ligação ao que vai aqui interessar-nos, diremos que lá estiveram presos o Marquês de Sade e o Conde de Mirabeau. O marquês cinco anos e meio, sem escrever grande coisa do que forma hoje a sua obra literária (são de Vincennes os textos de algumas peças teatrais e o célebre Diálogo entre um Padre e um Moribundo), mas o Conde de Mirabeau nesses mesmos dias produtivo, porque em cerca de três anos concebeu, entre outros textos, o seu maior cometimento (como ficcionista autobiográfico) — Ma conversion ou Le Libertin de Qualité, obra com dedicatória a Satanás — e esta insólita e erudita Erotika Biblion. Sade e Mirabeau, primos afastados, odiavam-se. Pode depreender-se que o marquês não levava a bem o êxito público do conde, orador festejado e com tendências libertinas que não correspondiam a uma radical derrota dos valores morais da convenção, aquela que ele prolixamente pregava na sua literatura «sádica» e


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exemplificava com experiências de muito controversa repercussão pública; não levava a bem que ele as misturasse com uma incendiada defesa do povo sub-repticiamente submissa às virtudes de uma monarquia constitucional. A sua vontade de denegrir Mirabeau ficou bem registada numa página da Terceira Parte do romance Histoire de Juliette ou Les Prospérités du vice: «Mirabeau quis ser libertino, para ser uma coisa qualquer, mas não é nem vai ser nada durante toda a vida. Nem mesmo um legislador, por certo. Uma das melhores provas do delírio e da falta de razão que caracteriza o ano 1799 na França, é o entusiasmo ridículo que inspira este vil espião da monarquia. Que ideia hoje resta deste homem imoral e tão pouco provido de espírito? A de que é um velhaco, um traidor e um ignorante.» Mirabeau conta numa carta o que resultou do primeiro encontro visual que os dois tiveram em Vincennes. No dia 28 de Janeiro de 1780 o marquês viu, através da sua janela gradeada, o conde a passear no jardim anexo à sua cela. Com voz gritada chamou-lhe «giton [homossexual passivo, pederasta] do comandante do cárcere» e aconselhou: «Vai lá beijar o cu ao teu protector»; ainda lhe fez esta promessa: «Diz-me o teu nome, panasca, se tens coragem para tanto, porque eu quero cortar-te as orelhas, mal saia daqui!». E foi esta a digna resposta de Mirabeau (segundo Mirabeau): «O meu nome é o de um homem de honra que nunca dissecou nem envenenou mulheres!» (Referência aos casos de Sade passados em Arcueil e Marselha). Mas não foi queixar-se ao comandante do cárcere: «Não tenho estofo para fazer queixas deste monstro.» Trinta e um anos antes tinha-lhe sido dado o nome Honoré Gabriel Riqueti de Mirabeau; era o primogénito de Victor Riqueti, economista e marquês de Mirabeau. E quando a criada de quarto


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de Marie-Geneviève de Vassan lhe entregou depois do parto o filho acabado de nascer, mostrou-se muito prudente com esta frase: — Não vos assusteis, senhora. Mostrava-lhe e encaixava-lhe nos braços uma criança de grande cabeça, tomada nos seus primeiros anos de vida por um sintoma de hidrocefalia. À fealdade fisionómica (que Victor Hugo, no seu Étude sur Mirabeau veio a definir como «grandiosa e fulgurante», secundada pelo «pé torto, dois grandes dentes e a enorme cabeça»), acrescentemos-lhe as marcas da varíola que desde os três anos de idade maus enfeites lhe deixaram na pele do rosto. É do seu pai a crueldade deste fraternal aviso: «Aí vai um sobrinho vosso, tão feio como o de Satanás.» (Má sorte física, que bem pouco encontramos na benevolente visão dos seus retratistas.) Se o velho marquês quis ver o seu filho protegido pelas dignidades de uma honrosa carreira militar, bem cedo ele se mostrou com uma rebeldia que a tudo opôs vultuosas dívidas não pagas, devassidões e escândalos. Logo aos dezoito anos de idade entrou no seu currículo bélico uma guerra na Córsega; e, coisa curiosa a provar-nos que a sorte nos amores pouco se atém às belezas do físico: conquistou uma amiga íntima do coronel do seu regimento. A ira paterna — trovejante e digna de um marquês de romance — levou-o a pedir, e a conseguir para o seu filho, um encarceramento punitivo na ilha de Ré. Depois deste período, que levantou didáticas limitações ao seu comportamento, o seu pai pensou que o moderaria forçando-o a casar-se com uma filha de marquês destinada a sedutora herança; mas houve, apesar do casamento aristocrático, apesar das elegâncias cultivadas nos salões do seu sogro, novas e desenvoltas aventuras libertinas e um novo pedido (desta vez ao efémero Luís XV)


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para ele ser mantido em regime de liberdade condicionada no castelo de If: o da pequena ilha visível desde Marselha, a que sempre recorda (àqueles que lêem) o Edmond Dantès e o Abade Faria de O Conde de Monte Cristo. Mirabeau escreveu lá a sua primeira obra literária significativa, o Essai sur le despotisme. Mas este ano em If não chegou para satisfazer a vontade punitiva do Mirabeau marquês. Temendo que as solicitações da capital fossem desajustadas à veia libertina e caloteira do seu filho, mexeu influências para o transferirem em regime de semi-clausura para o castelo de Joux, menos limitado nos horizontes, sem o opressivo cerco de mar daquela ilha que nenhum interesse despertava a visitantes e já nem podia mostrar a atracção do rinoceronte indiano, a excitante oferta do rei de Portugal que tinha noutros tempos atraído a curiosidade dos marselheses — e no meio deles alguns estrangeiros como Albrecht Dürer, que tão imaginativamente o transtornou em desenho. Mas, com as restrições do casamento arrumadas à distância de Paris, com irresistíveis incitamentos femininos a passarem-lhe à frente, o feio mas insinuante Mirabeau mostrou-se capaz de vencer as fracas resistências de Marie Thérèse Sophie de Monnier, jovem com dezassete anos de idade (uma lovely, sad-heroic young wife, chamou-lhe Thomas Carlyle) casada com o presidente da Chambre des Comptes de Dole, quarenta e nove anos mais velho do que ela. Tudo isto foi insustentável na pequena cidade onde a honra dos maridos traídos era comentada e difundida em voz alta, onde os olhares se desviavam para ostentar um repúdio; Mirabeau teve de fugir, e fê-lo com Sophie; primeiro para a Suíça; e tempos depois, com o pretexto de maior segurança, para a Holanda. Sophie tentou justificar-se à sua mãe: «O futuro não me oferecia mais do


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que três perspectivas: a morte, a escravidão acompanhada de desespero, e a felicidade. Escolhi esta; quem poderia hesitar, e ter uma qualquer hesitação?…» Nos seus nove meses de Amsterdão, o jovem conde de Mirabeau foi escritor e tradutor de textos ingleses assinados com o pseudónimo Saint-Mathieu. Mas a Justiça do seu país, incitada pelas diligências do marido atraiçoado, não foi lenta; a sua aventura foi juridicamente sentida como sedução de mulher casada e rapto, aquilo que a França punia com leis que condenavam à morte e ao gume da guilhotina. Houve em Maio de 1777 um pedido de extradição e a consequente entrega dos dois fugitivos a uma escolta policial; Mirabeau foi parar às masmorras de Vincennes; Sophie, grávida, foi acabar a sua gestação numa casa de saúde de Paris, e depois do parto expedida para Gien, onde tinha à sua espera uma decente reclusão no convento das irmãs de Santa Clara. Durante cinco anos, Sophie fez uma vida retirada, que só teve fim com a morte do seu velho marido; durante três anos e a poucas celas de distância do marquês de Sade, o conde de Mirabeau matou o tédio a escrever; e escreveu muito, e investigou muito; tudo o que lhe foi necessário para as suas ficções mais celebradas e pôr em livro as curiosas erudições da Erotika Biblion. * O título Erotika Biblion exigiu ao autor uma argumentadora nota prévia transferida para a voz dos editores: «Aviso dos Editores — O título desta obra não vai ser inteligível a todos os leitores, e vários haverá a não lhe encontrarem nenhuma relação com o tema. Não obstante, nenhum outro lhe con-


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viria; e se o deixámos em grego, adivinhar-se-á com facilidade a razão.» Difícil seria não darmos voz a Guillaume Apollinaire, que tão extensamente se demorou sobre este livro no prefácio à edição que ele próprio preparou para a colecção Les Maîtres de l’Amour: «Mirabeau acabou-o em 1780, e a 21 de Outubro desse ano escreveu a Sophie: … Eu contava, minha querida gatinha, enviar-te hoje um novo manuscrito que o teu infatigável amigo terminou, mas a cópia que destino ao livreiro de M.B. ainda não chegou ao fim; fica para a próxima vez. Vai divertir-te: são temas muito engraçados, tratados com um ar sério não menos grotesco do que eles, embora bastante decente. Acreditarias que fosse possível fazer na Bíblia e na Antiguidade investigações sobre o onanismo, as tríbades, etc., etc., e sobre as mais escabrosas matérias que os casuístas abordaram, e tornar tudo isso legível, mesmo aos que forem mais anacronicamente empertigados e polvilhados com ideias filosóficas? «Diga-se de passagem que um Errotika persiste numas quantas edições desta obra. «A Erotika Biblion é um muito singular monumento de impiedade. É fruto das leituras de Mirabeau na sua prisão. Ele lia com curiosidade, e até com prazer, obras de erudição sagrada de exegese bíblica; “Com aparas dos comentários de Don Calmet”, diz um seu biógrafo, “compôs a Erotika Biblion, recolha de indecências onde se registam os desvios do amor físico em diferentes povos antigos; em especial, dos Judeus, onde a originalidade, pelo menos, compensa a obscenidade da matéria.” «A primeira edição, segundo alguns, apareceu em Neuchâtel, segundo outros em Paris. Diz-se que a primeira só divulgou catorze


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exemplares, apreendida quase na sua totalidade pela polícia. Ao que parece, a edição de 1792 foi de igual modo perseguida, embora um certo número de exemplares tenha chegado ao estrangeiro. Chegou mesmo a Roma, e o livro foi posto no índex a 2 de Julho de 1794. O decreto que condena a obra traduz agradavelmente em latim o título grego Erotika Biblion, id est: Amatoria Bibliorum. «A propósito da Erotika Biblion, Lemonnyer cita este artigo tirado de um jornal da época, datado de 20 de Agosto: “Apareceu um novo livro com um título já de si assustador: chama-se Errotika Biblion. É de Roma, da tipografia do Vaticano, 1793, volume in-8º. O seu objectivo é provar que os Antigos, apesar da dissolução dos nossos costumes, eram bastante mais corrompidos do que nós; e o autor faz metodicamente e com uma ordenada comparação, incluindo nela os Judeus, o que a tal respeito encontra através de citações dos livros santos, e que não são lá muito edificantes. Por causa disto uma erudição imensa e quadros dos mais licenciosos, ainda mais fortes dos que existem em Le Portier des Chartreux. O livro fez-se muito raro; diz-se que só catorze exemplares foram distribuídos em Paris, e o resto foi apreendido pela polícia.” «Lemonnyer ainda cita outro artigo de 28 de Novembro de 1783: «“A Errotika Biblion não tem mais do que dezoito cadernos impressos em in-8º, e está subdividido em dez títulos de uma só palavra, ininteligíveis ao comum dos leitores. Formam outros tantos capítulos autónomos, com uma ligação difícil de descobrir, embora com um objectivo comum e bastante explícito, provar que os Antigos nos ultrapassam infinitamente quanto à corrupção dos costumes; a sua brevidade está cheia de investigações eruditas e até mesmo muitíssimo curiosas, que fazem dela uma obra tão erudita como agradável.


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«“O autor, para lá de um talento, que é o do perfeito domínio das línguas mortas, tem o de escrever muito bem a que é sua, o de ser leve no gracejo e o de parodiar com frequência Voltaire; nos quadros muito sujos que por vezes apresenta, serve-se sempre de expressões honestas ou técnicas; de resto, parece muito versado na arte das volúpias, dando a tal respeito lições que fariam inveja aos Gourdans e aos Brissons, ou seja, aos mais peritos no género. «“Os editores anunciam num aviso que têm do mesmo autor outros manuscritos com igual mérito e um interesse não menos picante, prometendo que irão dentro em breve revelá-los ao público; só podemos desejar avidamente que o façam.”» Estas impressões, de críticos literários da época e transcritas por Apollinaire, estão revestidas de um tumulto que pode actualmente parecer excessivo. A Erotika Biblion de Mirabeau sem nenhuma dificuldade subsiste porque tem páginas a soltarem torrentes de subtil ironia e com momentos de um irreprimível humor; pelo seu comprazimento em exposições do «condenável», disfarçando-o com as cautelas de uma moralista e implícita exclamação: «Vede como tudo isto é mau!» Nas suas primeiras cinco edições o título foi adulterado. E é fácil acreditar que Errotika nada tenha a ver com uma repetida e gritante gralha em muito visíveis letras de forma da sua capa. E também é estranho, a não se admitir uma táctica maquiavélica, que as suas primeiras três edições tenham sido impressas em Roma, na Tipografia do Vaticano, ligada por vocação a obras tão opostas às incómodas erudições de Mirabeau. O desaire desta palavra Errotika muito mais parece uma partida pregada ao distante e indefeso autor pelas impressoras da principal sede da cristandade, o aproveitamento de uma boa ocasião para fabricar impunemente


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um título que acusava subtilmente de «erradas» as transcrições e interpretações impertinentes do texto bíblico. A Errotika Biblion foi posta à venda com este erro no título em três edições romanas de 1783, na edição póstuma do livreiro Le Jay, de 1792, na edição póstuma de Vatar-Jouannet, de 1801. Só a partir da edição de 1883, publicada pelos Frères Girodet, o seu título surgiu com o Erotika previsto pelo manuscrito do autor. Tardiamente, em 1860, uma tradução alemã insistiu no Errotika já corrigido pelas últimas edições francesas. Esta obra (dividida em dez capítulos com títulos de difícil decifração pela cultura do leitor mais comum) parece guiar-se pelo objectivo de trazer à evidência que a má fama dos costumes do tempo de Luís XVI era injusta perante o que podia avaliar-se com as desregras de tempos anteriores. E apesar desta convicção, evidente ao longo da obra, estreia-se com um primeiro capítulo, Anagogia, que surge como excrescência a este propósito. O leitor começa por ler uma utopia, uma fantasia científica à Voltaire, onde um herói da mais alta antiguidade (mas com um nome Shackerley, de inesperada sonoridade britânica) é confrontado por uma civilização do anel de Saturno, antítese da conhecida pelo homem terreno que vive em sociedade. No Ensaio sobre o Despotismo, publicado oito anos antes, já Mirabeau tinha escrito: No seu estado natural, o homem não quer comandar nem ser dependente […] mas no estado social as ideias alargam-se, os desejos agudizamse, as paixões desenvolvem-se, e a do domínio é uma das primeiras a germinarem no coração humano. Pode então deduzirse, como possível intenção de Mirabeau, que a sua Anagogia queira sugerir-nos o imaginado ser «saturniano» como antítese e desejado modelo que o habitante terreno teria de seguir para poder


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furtar-se aos malefícios que os capítulos seguintes tão deleitosamente irão descrever. Mas tentemos, com a ajuda da erudição de um tal Chevalier de Pierrugues, engenheiro de Bordéus, que em 1783 muito por extenso discorreu sobre este livro de Mirabeau, fazer uma ideia do que significam os estranhos títulos da Erotika Biblion. Anagogia — formado a partir de duas palavras gregas, com o sentido «elevo para o alto», a felicidade eterna numa terra prometida. O Anelitróide — um capítulo que trata sobretudo da Criação divina e dos absurdos que a seu respeito os teólogos formularam, utiliza a língua grega para sugerir que nenhuma «perfuração» sexual é indigna, desde que ela tenha como objectivo garantir a propagação da espécie humana. A Ischa — a mulher como obra-prima da criação, o auge criativo do Sexto Dia que não deve ser menorizada em nada perante o seu companheiro homem. Ischa é uma palavra do sânscrito que significa «total consciência». A Tropóide — palavra formada a partir do grego e que pode ter o sentido «moralidade de um povo». A conexão das características morais com as características físicas, a influência do solo, das instituições políticas sobre as qualidades do povo sobre o qual elas se exercem. O Thalaba — palavra do hebreu ligada a um herói «destruidor». Aqui, destruidor é quem pratica o onanismo, quem perde «a semente» sem a finalidade da procriação. A Anandrina — palavra inspirada pelo grego, que pretende associar o lesbianismo a uma «redução» qualitativa das funções da união sexual. A Akropódia — adaptação de uma palavra grega com o sentido de «extremidade», aqui ligada aos problemas do corte do prepúcio na circuncisão.


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O Kadhesch — outra vez o emprego do sentido grego para designar a «mutilação», ou seja, a castração dos eunucos. O Behemah — palavra que em hebreu significa «mula» e aqui, por extensão, bestialidade. A Anoscopia — do grego, e com o sentido de «contemplar» ou «espiar», para uma exposição sobre o que pode devassar-se nos propósitos dos charlatães e dos enunciadores de falsas profecias. A Linguanmania — associação do latim lingua, e do grego mania, para definir a insistência maníaca com que se deu nome a todas as subtis variedades dos actos sexuais. Sabe-se, pelo manuscrito, que Mirabeau pretendia terminar o seu livro com um capítulo chamado Zonah, dedicado às cortesãs gregas; mas pressente-se que o entregou apressadamente à tipografia, antes de fazê-lo chegar à versão definitiva. * Mirabeau saiu de Vincennes a 17 de Novembro de 1780. O seu delito, «sedução de mulher casada e rapto», foi indultado sob caução paterna; Sophie, essa, continuava no convento, e quando de lá saiu enamorou-se de um jovem oficial que pouco tempo depois morreu tuberculoso; Sophie suicidou-se por asfixia aos trinta e cinco anos de idade, em 8 de Setembro de 1789. Victor Hugo é categórico: «A primeira parte da vida de Mirabeau está cheia de Sophie, a segunda enche-se com a Revolução. Uma tempestade doméstica e depois uma tempestade política; Mirabeau é isto.» Com o seu casamento judicialmente desfeito, com Sophie nos braços do jovem tenente Edme Benoît de Poterat, Mirabeau não


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tardou a recuperar o que era sua verdadeira forma de conviver com o mundo: «essa espécie de ferocidade», di-lo Gustave Lanson, «de exaspero físico que substituía nele a leveza da libertinagem então na moda; uma fogosa natureza explodia nestes vícios, em vez da graciosa corrupção que as pessoas se tinham habituado a admirar.» Um ano depois de Vincennes, Mirabeau teve de fugir de Paris e de impertinentes credores. Ele, um homem de grandes cidades, sujeitou-se a um exílio provinciano em Aix-en-Provence; mas aí, entediado e a olhar desesperadamente para as águas do Ródano, calhou à sua ociosidade o sopro fresco de Henriette Amelie de Nehra, uma holandesa culta e experiente que soube dar-lhe alguma estabilidade emocional e financeira. E num dia de mais animosos sonhos foram para Londres; Mirabeau publicou nesta altura Considérations sur l’ordre de Cincinnatus, de imediato traduzido para inglês, mas os fracos proventos que a Inglaterra lhe dava condenaram este desvio a uma duração curta, terminada em 1785 com o regresso a Paris. Mirabeau, dívidas à parte, escândalos perdoados, era para aqueles que o conheciam de perto o forte pressentimento de uma invulgar astúcia política, de uma capacidade oratória útil naquela França que fermentava a sua Revolução. Talleyrand escolheu-o para ser durante seis meses espião em Berlim, a espiar a corte da Prússia, e os seus trabalhos foram úteis; mas não lhe foi oferecido nenhum posto diplomático, como as suas expectativas exigiam. Vingou-se com a publicação de um panfleto que denunciava a agiotagem, diatribe contra o funcionamento dos bancos e da alta finança, onde fazia afirmações que o levaram a fugir para Liège. Depois da acalmia das instituições ofendidas, fez-se membro da Sociedade dos Amigos dos Negros, que reivindicava a supressão da


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Funeral do Conde de Mirabeau.

escravatura nas colónias francesas. De audácia em audácia, de oratória em oratória, com um poder expressivo que galvanizava, que ao sabor de gestos largos lhe despenteava a cabeleira, conseguiu que viessem a apontá-lo como um dos mais enérgicos membros da Assembleia Nacional e da sociedade dos jacobinos. Houve mesmo um padre, o abbé Sieyes, que numa das sessões não conteve a sua exaltada explosão: «Viva, viva o Hércules da Liberdade.» Sim… mas quem diria que este Hércules-Mirabeau associava o seu aceso discurso público de tantas liberdades ao secreto apoio que ia dando em Versalhes, pago por moeda de ouro e à hora, aos conselhos segredados à monarquia degradada de Luís XVI e Maria


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Antonieta? Que sonhava para a sua França, não a república que em todo o lado germinava nas vozes revolucionárias, mas uma monarquia não absoluta, inspirada no modelo britânico e em Montesquieu, regulamentada por uma constituição? Mirabeau, que teria apenas três anos de vida para exibir as suas múltiplas vitalidades, continua a ser, além de orador e jornalista, um autor de livros: em 1788 com De la monarchie prussienne, sous Frédéric le Grand, onde põe a nu o que espiou de mais excitante nos seus tempos de Berlim; no ano seguinte com Dénonciation de l’agiotage e com Histoire sécrète de la cour de Berlin. É eleito presidente da Assembleia Nacional Constituinte, mas escreve artigos no Courrier de Provence que expõem a público o que devia manter-se reservado às suas sessões, dando origem a um decreto que o proíbe de continuar com essa prática; é redator do jornal L’Apocalypse, onde a visão pessimista daqueles dias da França pede meças às visões bíblicas de João de Patmos. Quando morreu, a 2 de Abril de 1791, pôde encontrar-se como justificação um copo de vinho, delicioso mas envenenado. O seu funeral enfeitou-se com honras ditadas por Luís XVI (que só teria por mais um ano a cabeça presa ao pescoço), e o seu corpo foi transportado com grandes pompas para o Panteão; mas foi alguns meses depois encontrado o dito «armário de ferro» no palácio das Tulherias, com documentos que mostravam as suas relações com o rei e a rainha de Versalhes; a excitada correria de um povo que já executava os actos violentos da sua revolução, encaminhou-se para a sua sepultura; violou-a, despedaçou-a, e lançou-lhe os restos aos esgotos de Paris. A.F.


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ANAGOGIA

Sabe-se que os manuscritos, entre as inúmeras descobertas das antiguidades de Herculano, esgotaram a paciência e a sagacidade dos artistas e dos eruditos. A dificuldade consiste em desenrolar volumes meio consumidos desde há dois mil anos pela lava do Vesúvio. Tudo se desfaz em pó, mal se lhe toca. Mas os mineralogistas húngaros, mais pacientes do que os italianos, com mais prática a tirar partido das produções que as entranhas da terra oferecem, puseram-se à disposição da rainha de Nápoles. Esta princesa, amiga de todas as artes e perita na que consiste em excitar a emulação, acolheu favoravelmente estes artistas; e eles entregaram-se ao trabalho. Começam por colar um pano fino num dos rolos; quando ele seca penduram-no e ao mesmo tempo assentam o rolo num caixilho móvel, para fazê-lo descer muito devagar, à medida que o desenvolvimento se executa. Para ser mais fácil, com a barba de uma pena passam um fio de água gomada sobre o rolo e a pouco e pouco as partes soltam-se para ficar coladas de imediato ao pano esticado. Este penoso trabalho é tão demorado, que eles só conseguem desenrolar no espaço de um ano algumas folhas. E o dissabor de se encontrar as mais das vezes manuscritos que nada informam, esteve prestes a fazê-los renunciar a esta difícil e fastidiosa tarefa; mas tão demorados esforços acabaram por ser


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recompensados com a descoberta de uma obra que não tardou a excitar o génio das cento e cinquenta academias da Itália1. Era um manuscrito moçárabe, elaborado nesses perdidos tempos em que Filipe foi raptado, tendo ao pé de si o eunuco de Candace2; em que Habacuc, arrastado pelos cabelos3, levava a quinhentas léguas de distância o jantar a Daniel, sem ele arrefecer; em que os filistinos circuncidados reconstruíam prepúcios4; em que os ânus de ouro curavam as hemorróidas5… Em que um tal Jeremy Shackerley, segundo o manuscrito um verdadeiro crente, de tudo isto se aproveitou. Jeremy era viajado; e de pai a filho nada se perdera nesta família, uma das mais antigas do mundo porque conservava as não equívocas tradições de uma época em que os elefantes habitavam as partes mais frias da Rússia, o Spitzberg dava excelentes laranjas, a Inglaterra não estava separada da França, a Espanha ainda se ligava ao continente do Canadá através dessa grande terra chamada Atlântida, com um nome que só nos Antigos se encontra, mas uma história que o engenhoso Bailly muito bem conhece. Shackerley quis ser transportado até um planeta dos mais afastados do nosso sistema6; e não foi pousado em Saturno, mas no seu anel. Esta orbe imensa ainda não estava completaVer Nota A, p. 145. Actos dos Apóstolos, cap. VIII, 39: Spiritus Domini rapuit Philippum, et amplius non vidit eunuchus. 3 Ver Nota B, p. 146. 4 Ver Nota C, p. 146. 5 Reis, liv. VII, cap. VI, 17: Hi sunt autem ani aurei quos reddiderunt pro dilecto domino. 6 Ver Nota D, p. 147. 1 2


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Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Anagogia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 O Anelitróide . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 A Ischa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 A Tropóide . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 O Thalaba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 A Anandrina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 A Akropódia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 Kadehsch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 Behemah: da bestialidade . . . . . . . . . . . . . . . . . 106 A Anoscopia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 A Linguanmania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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