Nos Passos de Etty Hillesum

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NOS PASSOS DE ETTY HILLESUM



Filipe Condado José Tolentino Mendonça

NOS PASSOS DE ETTY HILLESUM 2.ª edição (revista e aumentada)

D O C U M E N TA



E X E RC Í C I O S E S PI R I T UA I S

José Tolentino Mendonça

Decidi-me a publicar estes apontamentos depois de ter visto as fotografias que o Filipe Condado realizou. As suas imagens têm certamente um enorme valor documental e correspondem a um trabalho pioneiro de revisitação biográfica dessa espantosa rapariga holandesa chamada Etty Hillesum. Filipe Condado é o primeiro autor a concretizar aquilo que está mais perto de ser um projecto de fotobiografia dela. Mas não é só isso. O olhar de Condado tenta ver por dentro, obstina-se sobretudo em reconstruir o puzzle do movimento interior de uma vida. E, desse modo, concedeu-me também o espaço para publicar as notas destes exercícios espirituais que eu havia orientado, em que a figura e os escritos de Etty Hillesum são, como ela diria, o coração pensante. Um agradecimento é devido à comunidade da Capela do Rato, em Lisboa, onde estes exercícios se realizaram; aos que peregrinaram comigo e com o Filipe Condado nos passos de Etty Hillesum; e, por fim, a quem se empenhou na transcrição das notas que se seguem, e que se mantêm dependentes do seu primeiro registo oral.

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Preparar o coração Antes de tudo perguntemo-nos o que é, em que consiste a experiência dos exercícios espirituais. Penso que sejam sempre de preferir as respostas mais sucintas. A mim serve-me esta: é um tempo de exposição a Deus… Como as folhas de uma planta se expõem ao sol para que nelas se desencadeie uma função vital, assim também nos expomos a Deus, ao seu olhar, ao seu amor, para que se active em nós um trabalho interior e invisível, mas igualmente vital. Por isso, é importante que aproveitemos o tempo o melhor possível, e o procuremos qualificar com decisão. Há aquele verso de Adília Lopes: «o tempo é templo». Ser-nos-á seguramente útil. E há aquele dito de um Padre do deserto: «Se cada um no fundo do seu coração não disser: “Eu e Deus estamos sozinhos no mundo”, esse nunca terá paz.» Tomemo-lo como proposta objectiva, também. Porventura, as condições em que vamos realizar esta jornada de retiro não serão as ideais. Se calhar sonhávamos com um dia no campo, uma permanência num mosteiro ou num contexto mais atractivo… Em vez disso, o que temos é este espaço ordinário e quotidiano, no coração ruidoso da cidade. Mas é fundamental aprender a relativizar os lugares e a libertar-se da prisão que podem representar as nossas necessidades, sobretudo quando se multiplicam acriticamente. Porque sofremos um certo delírio de que a vida espiritual é uma vida automática, sem esforço, que é só consolação, que as moções de Deus nos levam daqui para ali, como num doce balouço. E não é assim… Grande parte do itinerário espiritual é desértico; configura-se como um caminho de pedras; é um instigador despojamento, em que nada se escuta; é uma experiência de esvaziamento e nudez, e só isso. Do que não for assim desconfiemos, pois, com grande probabilidade, seremos ainda nós enredados no nosso desejo voraz por consolações. Os exercícios espirituais fazem-nos

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mergulhar numa saudável aceitação da inutilidade… Se nos interrogarmos para que servem, a constatação mais imediata é a de que não servem para nada. Este momento das nossas vidas não é útil, nem produtivo. Sugiro, pelo contrário, que repitamos ao longo do dia, à maneira de um mantra, a declaração: «Senhor, eu estou aqui à espera de nada…» De facto, não viemos para obter isto ou para provar aquilo: expomo-nos sem pretensões, abandonamo-nos. «Senhor, estou aqui à espera de nada.» Ainda uma última questão propedêutica. Na dinâmica dos exercícios espirituais as palavras podem ser importantes. Contudo, o mais importante é cada um deslocar o coração silenciosamente para Deus. E, mesmo que, no final, sintamos que não encontramos nada, o importante foi este exercício de abertura, este voltar-se para Deus com confiança. Vamos procurar o silêncio, desejar o silêncio, esse hóspede por vezes difícil. Vamos pedi-lo como se pede um dom importante, e deixarmo-nos trabalhar por uma luz que é maior do que nós e nos visita. «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo» (Ap 3:20).

Uma vida em contraciclo Não raro, reduzimos a espiritualidade ao estatuto de grafia tipicamente religiosa, desligada do resto. Para Etty, a espiritualidade foi uma experiência unificante e inteira, em que a descoberta de Deus ou das práticas orantes eram indissociáveis do ardente encontro consigo mesma. Isso podemos verificar tanto no desenho da sua biografia, como nas atitudes fundamentais que foram germinando nela e constituíram, depois, a sua expressão religiosa, ética e poética. Cada vida é uma história sagrada. O que nos é pedido não é o rastreio

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moral daquela existência, mas um reconhecimento. E aceitando a vida de Etty Hillesum, talvez aprendamos alguma coisa sobre a arte de aceitar a nossa própria vida. Esta rapariga, judia e holandesa, viveu até aos 29 anos de idade, quando a sua vida foi violentamente interrompida no Campo de Concentração de Auschwitz. Estes 29 anos foram recheados de acontecimentos. E, ao longe, olhando para a vida dela — como ao longe, olhando para a vida de cada um de nós — percebemos que há um caminho de que ela talvez não fosse imediatamente consciente, que há um itinerário onde Deus se vai tornando uma presença nítida. Etty nasceu numa cidade, Middelburg, e — com a idade de dez anos — transferiu-se com os pais e os irmãos para outra, Deventer. Em Deventer, o pai, formado em Línguas Clássicas e com uma estrutura psicológica frágil, foi, primeiro, vice-reitor e depois reitor do Liceu. Uma dor que todos trazemos e que não conseguimos facilmente curar é a dor da família a que pertencemos. Os vínculos de sangue são chamamentos inapagáveis, cumpridos ou frustrados, explícitos ou submersos. Os nossos familiares próximos não são como os idealizámos, mas nem nós próprios correspondemos às expectativas deles. E forma-se essa ferida, ancestral, geológica e incurável, que se sedimenta no tempo e é, muitas vezes, um dos grandes pontos de luta do resto da nossa vida. No caso de Etty Hillesum isso era muito claro: aqueles pais, aqueles irmãos, eram para ela um confuso nó de amor e sofrimento. O pai provinha de uma família burguesa da Holanda. A mãe era russa e havia chegado após um pogrom: tinha desembarcado ali completamente vulnerável, de cabeça rapada, vestida com um sobretudo de soldado para ocultar aquelas queimaduras de alto grau que são o abandono e a extrema solidão. É verdade que esta mulher conseguiu, em seguida, que os pais e os irmãos viessem da Rússia para a Holanda,

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mas eles, logo que puderam, partiram para os Estados Unidos, deixando-a de novo só. Isso agravou o seu estado psicológico: vivia cada dia da sua vida como uma sobrevivente e muitas vezes nem isso. Esther, ou Etty, era a filha mais velha. Além dela, o núcleo familiar compunha-se de dois rapazes, que em termos intelectuais eram brilhantes — mas marcados por graves crises psiquiátricas, com sucessivas histórias de internamento, devastados pela sombra de uma implacável dor. Vinham ambos de áreas de saber diferentes: o mais velho, Jaap1, tinha-se formado em Medicina, e o outro, Mischa2, era um pianista de talento. Até aos 18 anos Etty viveu com a família, e o vírus da infelicidade contaminou toda a sua infância e adolescência, como um mal que parecia perpétuo. Aos 18 anos, com o pretexto dos estudos, parte para Amesterdão. Embora tivesse concluído a licenciatura em Direito3, interessa-se muito pelas línguas, nomeadamente pelo russo; torna-se uma leitora omnívora; dispersa-se em paixões de diversa ordem; revela-se um catalisador entre os seus amigos. Mas quando se vê a si mesma sente-se a falhar aquele que é o seu mais áspero e perseguido sonho: vir a ser escritora. Em 1937, com 23 anos, ela vive perto do grande Museu do Reino (Rijksmuseum), na Rua Gabriel Metsü, na casa onde é governanta e que pertence a Hendrik Johannes Wegerif (tratado, entre os amigos, por Han), um viúvo de 58 anos, de quem se torna também amante. Em todo este tempo de Amesterdão, a dimensão erótica e sexual acaba por ser para ela a principal expressão de si. Etty passa por uma série de encontros e de desencontros, com um custo de sofrimento grande, nomeadamente quando recorre à interrupção da gravidez. _________ 1 Diminutivo de Jacob, nome do avô paterno. 2 Diminutivo de Michael, nome do avô materno. 3 Julho 1939 — conclusão da licenciatura em Direito.

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Um ponto de viragem na sua vida será claramente o encontro com Julius Spier; ele também judeu, e que conseguira, através do pagamento de uma avultada soma, autorização para emigrar da Alemanha, refugiando-se da ameaça nazi nos Países Baixos. Com rápido sucesso na capital holandesa, este discípulo de Jung, praticava uma forma de psicoterapia nova, a quiroterapia, procurando identificar a mão da criança que fomos na nossa actual mão de adulto, e perspectivando dessa forma um complexo processo terapêutico. Com Spier a vida dela vai mudar. Etty começa, por exemplo, a escrever o Diário por sua sugestão e vai sendo progressivamente iniciada neste «entrar em si mesma», que é uma coisa tão difícil! Parece uma tarefa óbvia, mas muitas vezes fica por concretizar isso de entrarmos na nossa morada e afrontar aquilo que somos. Essa é a viagem mais longa que poderemos realizar. O que é extraordinário na vida desta jovem mulher é que ela, de facto, se mete a fazer esse caminho, inicialmente com uma angústia avassaladora, e revelando passo a passo uma notável capacidade de renascer. Porém, enquanto ela se debatia com a reconstrução da vida, o cerco da morte fazia-se vizinho. Em Maio de 1940, os nazis invadem também a Holanda, e começa a perseguição metódica aos judeus. As autoridades alemãs concretizavam-na de uma forma crudelíssima: não eram eles que escolhiam os que iam para o Campo de Concentração; eram judeus que, através do Conselho Judaico, mediavam a ida dos outros judeus, o que tornava tudo ainda mais perverso. Etty chegou a trabalhar por breve tempo no Conselho Judaico em Amesterdão, na secção «Ajuda aos que partem», desempenhando tarefas burocráticas. Depressa se apercebeu do que estava, na verdade, a acontecer e solicitou voluntariamente transferência para a extensão do Conselho Judaico em Westerbork, departamento de «Bem-estar social das pessoas em trânsito». Primeiramente ela ainda ia e vinha entre esse Campo de Trânsito (que funcionava como

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uma estação intermédia antes de Auschwitz) e Amesterdão, até por motivos de saúde (ela dizia que tomava um quilo de aspirinas por mês). Aos poucos, porém, acaba por ficar no Campo, e, a partir da dissolução da secção do Conselho Judaico em Westerbork4, será declarada prisioneira efectiva, dada a extinção das prerrogativas anteriormente reservadas aos colaboradores desta instituição. Em Westerbork ela escreve o seu Diário, mantém uma correspondência e, sobretudo, está ao lado dos que sofrem. Naquele mundo completamente inesperado, naquele lugar que diríamos o «antilugar do espírito», ela vive uma das aventuras espirituais mais intensas do século XX. Um dia é metida num dos vagões com destino a Auschwitz. A última carta que temos de Etty Hillesum é um postal que ela consegue lançar para fora da carruagem, onde diz: «Deixámos o Campo a cantar»5. Ela chegou a Auschwitz no dia 10 de Setembro de 1943 e a sua morte foi anunciada pela Cruz Vermelha a 30 de Novembro do mesmo ano.

Tomar Etty como mestra espiritual Olhemos para a emergência da questão espiritual em Etty Hillesum… Sirvamo-nos da biografia dela, mas olhando em transparência para a nossa… que não tem de ser igual à sua! Podemos ter tido uma infância e uma adolescência, uma relação parental, uma aparição a nós mesmos, completamente diferentes das de Etty… ou encontrar traços comuns. O importante não é isso. Essencial mesmo é compreender como é que ela se confronta com o aberto da _________ 4 Em 5 de Julho de 1943. 5 Carta 71. A Christine van Nooten, arredores de Glimmen, terça-feira, 7 Setembro 1943, Etty Hillesum, Cartas 1941-1943. Trad. de Ana Leonor Duarte e Patrícia Couto, Assírio & Alvim, colecção Teofanias, Lisboa, 2009, 238.

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vida e floresce e como é que nós o fazemos. Essencial mesmo, como ela escreve, «é que alguma coisa de “Deus” penetre em ti, tal como existe algo de “Deus” na Nona de Beethoven» 6.

A alma precisa de um parto Dissemos já que Etty viveu com uma insegurança total… A primeira parte do Diário é o retrato de alguém em desequilíbrio, com uma fragilíssima estrutura interna, esvaziado de confiança. A sua vida é-nos relatada como um mar alteroso, agitando-se de um lado para outro, sem âncoras, sem pontos firmes que a ajudassem a consolidar uma arquitectura. Quando ela inicia o trabalho espiritual (e fá-lo, na primeira etapa, com a ajuda de Julius Spier) reconhecerá que estava bloqueada e que precisava de «um parteiro»7 para a sua alma. Mas ao dizer que precisava de um parteiro, Etty reconhece sobretudo que a alma precisa de um parto. Nem a sua, nem a nossa é de geração espontânea. Como é que se dá esse parto? Desta forma: aquilo que a bloqueava teria de ser identificado e abraçado, teria de ser objecto de uma reconciliação, teria de ser assumido como a geografia mais oportuna para o seu reflorescimento. Deus poderia entrar na sua vida pela única porta que ela consentia nessa época: o erotismo. Essa é talvez a primeira lição de Etty, como mestra espiritual. O divino frequentemente chega à nossa vida através do humano demasiado humano que experimentámos, isto é, através do eixo mais vulnerável de nós próprios. Nesta estação da vida dela tudo passava pelo erótico e pelo sexual. As coisas verdadeiramente significativas para ela encon_________ 6 Etty Hillesum, Diário. Trad. de Maria Leonor Raven-Gomes, Assírio & Alvim, colecção Teofanias, 3.ª edição, Lisboa, Outubro 2009, 304. 7 Diário, 24 Setembro 1942 (referência a Spier após a sua morte em 16 de Setembro desse ano), Etty Hillesum, Diário.

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travam expressão por aí. Não conhecia outros canais, não havia explorado outros percursos, tudo lhe chegava através dessa mediação. Por isso, não é estranho o envolvimento com Han ou com Spier. Mas progressivamente vai penetrando num outro estádio de consciência, mesmo se a palavra caos seja uma das mais repetidas no Diário. No final de uma das sessões com Julius Spier, escreve no seu Diário: «uma pequena fatia de caos fitava-me de repente das profundezas da minha alma, e quando eu já te deixara e regressava a casa, queria que um carro me atropelasse. E pensei: Ah, bem, devo estar louca, como o resto da minha família! Mas agora estou novamente certa que não estou louca, só preciso trabalhar muito a minha pessoa, antes de me transformar num adulto e num ser humano completo.»8 Valorizemos esta consciência de que a pessoa tem de ser trabalhada. Esta é uma descoberta equivalente à invenção do fogo ou da roda. Porque no nosso percurso espiritual, o real problema não são as nossas misérias, os embaraços ou as armadilhas que nos prendem persistentemente. O nosso grande e único obstáculo é não percebermos a necessidade de trabalharmos espiritualmente a vida para que nos tornemos adultos também ao nível espiritual.

Revisitar os pontos de partida dolorosos A dor mais forte de Etty Hillesum começa por ser a da sua família, para com a qual tem palavras duras. Porventura, seriam simplesmente palavras realistas e sem filtro. Etty dizia que a família era _________ 8 Carta a Spier, 8 Março 1941. Paul Lebeau refere tratar-se de uma carta, escrita em alemão, que Etty dirige a Spier e com a qual inicia o seu Diário, Paul Lebeau, Etty Hillesum, Editorial A.O., Braga, 2014, 31. Utilizamos essa versão, referida também na edição italiana da Obra Integral, Diario 1941-1943, Edizione direta da Klaas A.D. Smelik, Adelphi Edizioni, Milano, 2012, 19.

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degenerada, que a casa era um manicómio e um caos total. De facto, não é difícil imaginar o caos. O pai tinha condicionantes limitações (de visão) e de ouvido9. Por exemplo, para voltar a casa do liceu, o porteiro tinha de acompanhá-lo. Sendo intelectualmente muito apreciado na cidade, refugiava-se nos estudos para não enfrentar a dificuldade da vida. A mãe era o contrário. O pai era silencioso e afável, embora distante. A mãe era extrovertida, barulhenta, caótica, temperamental, com súbitas explosões emocionais, seguindo o estereótipo de uma certa mulher russa. Ela nunca perdeu o sotaque da sua pátria, o que reforçava a impressão de que não estivesse completamente integrada naquela sociedade. Os pais de Etty eram ambos judeus, embora não fossem praticantes — e isto constituirá um acrescido problema, porque ela sente que não lhe transmitiram nenhuma gramática à qual pudesse recorrer. As figuras paternas fizeram-na sentir emocionalmente abandonada. Os irmãos sentiam o mesmo. Ela conta que o irmão mais novo fugiu uma vez de casa, deixando uma carta escrita a dizer que não conseguia suportar mais aquele ambiente. Depois de alguns dias de busca descobriram-no com uns amigos a viver no campo — e ela acaba essa memória do Diário dizendo: «como tem razão aquele rapazinho»10… Ao falar de casa, ela escreve: «Aqui em casa, uma mistura extraordinária de barbarismo e alta cultura. O capital espiritual existe aqui à mão de semear, mas está sem dono e sem guarda, deixado em desleixo ao desbarato. É deprimente. É tragicómico, não sei que tipo de casa é esta, mas aqui uma pessoa não progride.»11 _________ 9 Louis Hillesum era surdo de um ouvido (Paul Lebeau, Etty Hillesum, 17). 10 Diário, Agosto 1941. Patrick Woodhouse, Etty Hillesum, uma vida transformada, Paulinas, Lisboa, 2011, 31. Na edição italiana da Adelphi a citação aparece referida ao dia 15 de Agosto de 1941: «Depois de alguns dias à procura, descobrimos que ele estava com alguns conhecidos na província e tudo o que levou foi um par de escovas de dentes da mãe. Ele não quer regressar para casa. Quanta razão tem aquele rapazinho!» 11 Diário, 8 Agosto 1941, às onze da noite, Etty Hillesum, Diário, 107.

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O pavor dela é que, permanecendo prisioneira, possa perpetuar ininterruptamente aquela situação. Uma das razões, por exemplo, para o aborto (Etty refere isso de passagem no Diário) é ter medo de estar contaminada por uma doença hereditária. Por isso, teria jurado a si própria que nenhum ser humano, tão infeliz como ela e os irmãos, haveria alguma vez de brotar do seu ventre. Ela sente uma responsabilidade por aquele caos em que estava imersa, que a deixava indefesa e incapaz de ser. Esse é muitas vezes o nosso tormento: há um problema de base, um sentimento devastador que nos domina e amarra, e não conseguimos reagir. Ficámos paralisados, sem saber o que fazer. E, então, abortamos a vida. Etty interrompia o fluxo da vida de muitas maneiras. Conhecemos por nós próprios essa tentação: como não conseguimos, desistimos — e expulsamos a esperança sistematicamente. Ela usava uma palavra muito curiosa para descrever a sua casa. Dizia: «Na minha casa tudo era impessoal.»12 E sentia ódio e compaixão por aquelas figuras que giravam à sua volta. Olhava para a mãe, patética e infeliz, debatendo-se numa noite sem fim, e, de muitos modos, confessava: «Do fundo mais profundo de mim, eu olhava para a minha mãe, e gostava de a ter entendido melhor, gostava de a ter amado melhor…» E a mesma coisa em relação àquele pai que se refugiava no seu casulo para não ter de enfrentar aquele mundo agressivo. Mais tarde, olhando para os pais, vai explicar que _________ 12 A expressão «impessoal» é adoptada em Patrick Woodhouse, Etty Hillesum, uma vida transformada, 35. Na edição italiana, a citação aparece referida ao dia 24 de Abril de 1942: «Eu estava sentada na pequena sala de estudos do meu pai, desarrumada e impessoal como eram todos os quartos de todas as casas em que nós já vivemos». Na edição portuguesa da Assírio & Alvim, encontramos as seguintes citações de Etty a propósito da sua casa de família: «Isto aqui é um inferno» (Diário, 13 Agosto 1941, 108); «É tudo tão desequilibrado» (Diário, 8 Agosto 1941, às onze da noite, 105.)

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eles sobretudo estavam impreparados para construir um lar, que nunca o chegou a ser… Quando Etty completa 18 anos, e está sozinha em Amesterdão, o que ela procura, com toda a voracidade e desordem, é o amor… Claramente, a questão afectiva era a sua questão central. Ao se alojar como governanta na casa de Han, é ainda através da relação afectiva que ela tenta um equilíbrio. E, com o psicoterapeuta, é essa dimensão que a princípio serve para uni-los. Mas aí começa também uma estação nova.

Ensaiar o recomeço O primeiro momento de transformação acontece quando Etty Hillesum se torna capaz de falar do ódio a si mesma que ela transporta. O problema de Etty — frequentemente tão semelhante ao nosso — é que ela interiorizou todo este abandono, esta desordem, este caos, e odiava-se por isso. «Odeio-me como se fosse um veneno»13, diz ela a dada altura, no Diário. No processo terapêutico vai ter oportunidade de falar disso e de exprimi-lo: rebelando-se, chorando, lutando com a sombra de si mesma; e, ao mesmo tempo, percebendo que a vida pode ser outra coisa. Até aí ela vivera a fugir de si, surda à sua vida interior. Usava o pensamento e as paixões, mas sem estabelecer uma relação pessoal. Ainda não havia despertado para o silêncio, para a escuta profunda, para a integração da sua vida num horizonte de misericórdia que lhe permitisse abraçar a sua própria vulnerabilidade. Era isto que faltava a Etty Hillesum — e ela agora começava a perceber… Numa noite de Agosto, passeando sozinha pelos canais de Amesterdão, ela anota no seu Diário: «De repente tive a impressão de que não _________ 13 Patrick Woodhouse, Etty Hillesum, uma vida transformada, 45.

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estava sozinha, de que éramos duas pessoas, eu sentia-me como se fosse formada por duas pessoas, muito encostadinhas uma à outra, e sentia-me muito bem e muito quente como resultado disso; eu estava em contacto tão íntimo comigo mesma, cheia de calor interior, e sentia-me completamente confiante; descobri que me dava muito bem comigo»… A descoberta de que podemos partir da nossa realidade para um trabalho de reconciliação, foi o primeiro momento de libertação na sua vida. Aos poucos, e graças à relação com Spier, ela foi identificando este processo como uma aproximação a Deus: «Estas forças à minha disposição foste tu que as libertaste. Ensinaste-me a pronunciar o nome de Deus sem reservas. Foste o intermediário entre Deus e mim e agora tu, o intermediário, partiste e o meu caminho conduz em linha recta a Deus»14…

Passar da cabeça ao coração Um dos aspectos que chamam a atenção em Etty Hillesum é que ela não tem qualquer formação religiosa. O contacto com o religioso chega-lhe através do psicoterapeuta, que lhe fala de oração; vem de alguns amigos que a vão iniciando nesse caminho; vem da leitura pessoal da Bíblia e do trabalho do Espírito nela. Uma das primeiras coisas que Spier lhe diz é: «há uma grande coisa a fazer: é passares daqui (cabeça) para aqui (coração).»15 Nós precisamos disso, desse fatigoso trabalho de recuperação da vida, de aceitação e integração… Precisamos disso para nos podermos colocar à escuta de Deus. Porque pode acontecer que não _________ 14 Diário, 15 Setembro 1941, terça-feira à noite, à 1 hora, Etty Hillesum, Diário, 283. 15 Diário, 16 Março 1941, meio-dia e meia, depois do passeio que já se tornou uma boa tradição, Etty Hillesum, Diário, 75.

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tenhamos ainda percebido quem é Deus… e o que pode Deus fazer em nós… Lemos coisas absolutamente maravilhosas… mas em nós, na nossa trajectória biográfica, não experimentámos isso ainda até ao fundo, até ao fim. Porque esse é o passo e o início da espiritualidade verdadeira: experimentar Deus na nudez, na pobreza, na dificuldade da vida; sentir que Deus me contempla com amor, que ele me visita como o oleiro visita o barro, e vai modelando e remodelando o que sou… E, com que dedicação, Deus está disposto a trabalhar a nossa vida… Como aquela rapariga de Amesterdão temos apenas de ousar dizer: «Ó Deus, toma-me na tua grande mão e torna-me o teu instrumento.»16 Há um momento na vida de Etty, em que aparentemente não acontece nada de especial, mas em que colhemos já uma Etty diferente, uma Etty sob influência espiritual. Ela descreve a sua experiência assim: «Ainda agora, quando estava sentada em cima do caixote do lixo ao sol no nosso pequeno terraço de pedra com a cabeça encostada ao tanque e com o sol a dar nos ramos fortes, escuros e imóveis, sem folhas, do castanheiro, tive a sensação muito clara da diferença entre o antes e o agora; o sol a incidir nos ramos escuros, os pássaros chilreantes e eu sentada no caixote do lixo ao sol…; no passado também me costumava sentar muitas vezes assim, mas fora uma vez, nunca me sentira como me senti esta tarde; no passado, apreendia a árvore e o sol com o meu intelecto, sentia o desejo de pôr por escrito com muitas palavras por que razão isso me pareceu tão belo, queria entender como tudo se ajustava tão bem, queria apreender esse profundo sentimento primitivo com a minha mente… por outras palavras, eu queria sujeitar a natureza a mim _________ 16 Etty Hillesum, Diário, 58.

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mesma, sentia-me obrigada a interpretá-la — e o facto, bastante simples, é que agora eu deixava que isso me acontecesse; enquanto estava assim sentada ao sol, baixei a cabeça de forma inconsciente, como se quisesse receber ainda mais aquele novo sentimento de vida; de repente, percebi, no fundo do meu ser, como alguém pode ajoelhar-se com ímpeto e encontrar paz aí, com o rosto oculto entre os dedos entrelaçados»…17

Agradecer o que somos Que passagem ocorreu entre o «antes» e o «depois»? Etty assumia uma atitude que no caminho espiritual é fundamental e que tem de ser bem entendida: a passividade. A passividade é uma experiência decisiva. Vivemos num ativismo esterilizador, como uma cidade que não dorme. O início da abordagem contemplativa é a confiança e o abandono. O ponto de partida de Etty Hillesum era tão difícil… mas os pontos de partida não nos podem condicionar para sempre. Ela não escolheu aquele pai ou aquela mãe, não escolheu o lugar onde nasceu — e nenhum de nós escolheu isso! O ponto de partida é o que é, é o que pôde ser! Não há miséria que nos impeça de viver uma aventura espiritual: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo.»18 Etty não é só a rapariga que não se conseguia ajoelhar. Ela não sabia igualmente escutar, não sabia ser… Essas são as nossas patologias e precisamos de um tempo de aprendizagem. O primeiro _________ 17 Patrick Woodhouse, Etty Hillesum, uma vida transformada, 66. 18 Etty Hillesum, Diário, 75.

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apelo da «Regra de S. Bento», uma das tradições monásticas mais importantes do cristianismo ocidental, começa assim: «Meu filho, abre o ouvido do teu coração.» Esse é o princípio do nosso florescimento. «Abre o ouvido do teu coração»: aprende a passividade, aprende a viajar na tua alma… Quando Etty se coloca nesta atitude, começa a rezar assim: «Meu Deus, agradeço-te por me teres criado como eu sou.»19 Enquanto não repetirmos esta oração, com o máximo de verdade de que formos capazes, também não teremos paz. É assim que nos avizinhamos daquela «única certeza» que se tornou o ponto de conversão na vida de Etty Hillesum: «A única certeza em como viver e o que fazer, só pode provir das fontes que brotam lá no fundo de ti. E agora eu digo muito humilde e grata, e é a sério, embora eu saiba que mais uma vez me hei-de rebelar e tornar-me irritável: “Meu Deus, agradeço-te por me teres criado como eu sou. Agradeço-te por às vezes poder estar cheia de vastidão, essa vastidão não é senão o estar repleta de ti. Prometo-te que toda a minha vida há-de ser uma luta para atingir a bela harmonia e também humildade e amor verdadeiro de que me sinto ser capaz nos meus melhores momentos.”»20

_________ 19 Diário, 12 Dezembro 1941, sexta-feira de manhã, às nove horas, Etty Hillesum, Diário, 154. 20 Etty Hillesum, Diário, 117.

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fotografias e selecção de textos de Etty Hillesum

Filipe Condado

traduções do neerlandês

Maria Leonor Raven-Gomes (Diário) Ana Leonor Duarte Patrícia Couto (Cartas)



Ora vamos a isto! Vai ser um momento doloroso e difícil de ultrapassar para mim: confiar o meu ânimo reprimido a um insignificante pedaço de papel quadriculado. Os pensamentos são por vezes muito nítidos e claros na minha mente, os sentimentos extremamente profundos, (9-3-41) é porém difícil conseguir escrevê-los.

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Toda a vida tive esta sensação: quem me dera que houvesse alguém que (9-3-41) me pegasse pela mão e se ocupasse de mim.

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Viver plenamente, externa e interiormente, nada de sacrificar a reali dade exterior a favor da interior, e vice-versa de igual modo, eis uma bela tarefa. E agora ainda vou ler uma historieta fútil da Libelle e de pois vou-me deitar. E amanhã é preciso trabalhar novamente, nas ciências, na lida da casa e trabalhar-me a mim mesma, nada deve ser negligenciado, e uma pessoa também não se deve achar demasiado (25-3-41) importante. E agora boa-noite.

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Acredito que é isto que vou fazer: de manhã, antes de começar o trabalho, passar meia hora «para dentro», a escutar o que está dentro de mim. «Submergir-me». Também se pode chamar a isso meditar. Mas essa palavra ainda me atemoriza um pouco. Mas sinceramente por que não? Uma meia hora de silêncio dentro de si. Não chega somente mover os braços e as pernas e todos os outros músculos, de manhã na casa de banho. O ser humano é corpo e alma. E assim, uma meia hora de ginástica e uma meia hora de «meditação» podem formar em con junto uma larga base de calma e concentração para o dia inteiro. Porém, não é tão simples como isso: uma «hora silenciosa» assim. Isso requer aprendizagem. Toda a pequena tralha humana e todas as super (8-6-41) ficialidades teriam de ser eliminadas lá dentro.

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No final de contas há sempre um monte de desassossego em vão, numa cabecinha destas. Sentimentos e pensamentos de abertura e libertação também existem, mas a tralha está sempre à mistura. E é precisamente esse o objectivo dessa meditação: que, por dentro, uma pessoa se torne uma planície grande e ampla, sem o matagal manhoso, que esconde a vista. Que portanto alguma coisa de «Deus» penetre em ti, tal como existe algo de «Deus» na Nona de Beethoven. Que alguma coisa de «Amor» penetre em ti, não um amor de luxo de meia hora, onde te delicias a flutuar orgulhosa dos teus próprios elevados sentimentos, mas (8-6-41) amor, com o qual podes fazer algo no banal dia-a-dia.

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Somos apenas barris ocos pelos quais flui a História Mundial.

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(15-6-41)


Uma pessoa não deve perder-se continuamente nas grandes questões, uma pessoa não pode ser constantemente um campo de batalha, é pre ciso sentir regularmente os pequenos limites próprios que a rodeiam, dentro dos quais a pessoa continua então a viver metódica e conscien temente a sua vida, cada vez mais madura e aprofundada pelas experiências que tem nos momentos quase «impessoais» de contacto com (15-6-41) a humanidade inteira.

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Tudo é coincidência ou nada é coincidência. Se eu acreditasse na primeira hipótese, não conseguia viver, mas ainda não estou convencida (15-6-41) da última.

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A vida em si deve permanecer a fonte primitiva, nunca um outro ser. (18-6-41)

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Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo. Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Esses procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a cabeça e a escondem nas mãos, penso que essas pro (26-8-41) curam Deus dentro de si.

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Queria ser muito simples como a lua esta noite, por exemplo, ou como (4-9-41) um relvado.

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Quero ouvir-me por dentro. Sim, sim. Bem, fui então sentar-me no chão, no canto mais afastado do meu quarto, entalada entre duas paredes, a um canto, a cabeça profundamente curvada. Pois, e assim fiquei, sen tada. Muito silenciosa. Como se estivesse a fixar o umbigo, em religiosa espera de que novas forças quisessem brotar dentro de mim. O meu coração estava outra vez comprimido, nada fluía lá dentro, todos os canais de irrigação estavam assoreados e o cérebro apertado por um pesado parafuso. E quando estou assim encolhida, fico à espera até que (4-9-41) algo se derreta e corra em mim.

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Preciso mesmo de me tornar mais simples. Deixar-me tornar um pouco mais viva. Não querer ver imediatamente resultados na minha vida. O remédio sei-o agora. É preciso que me encolha a um canto no chão, e assim, encolhida, escute o que se passa dentro de mim. A pen sar nunca resolvo o assunto. Pensar é uma bonita e orgulhosa ocupação quando se estuda, mas não é a pensar que uma pessoa consegue «sair» de estados de alma difíceis. Nesse caso, outra coisa tem de acon tecer. Então deve ser-se passivo e escutar. Estabelecer outra vez con(5-9-41) tacto com um bocadinho de eternidade.

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[…] em momentos de verdadeira inspiração acho-me capaz de grandes coisas; mas a inspiração não dura eternamente e nos momentos mais triviais surge -me então o medo repentino de que nunca conseguirei executar algo daquilo que sinto em mim, nos meus momentos de «grandeza». Mas porque tenho eu de executar alguma coisa? Só tenho de «ser» e viver e tentar ser uma pessoa. Não se pode controlar tudo com a inteligência, é preciso deixar as fontes do sentimento e da intuição brotarem um pouco. O conhecimento é poder, bem sei, e talvez seja também por isso que colecciono conhecimento, motivada por uma es pécie de necessidade de afirmação. Francamente não sei. Mas, Senhor, dá-me antes sabedoria em vez de conhecimento. Ou melhor, só o co nhecimento que conduz à sabedoria faz a pessoa, pelo menos no que (5-9-41) me diz respeito, feliz; e não o conhecimento que é poder.

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A dor de estômago, a tensão, aquela sensação de aperto por dentro, e aquela impressão de ser esmagada por um grande peso, são certamente o preço que tenho de pagar de vez em quando pela minha voracidade (9-9-41) em querer tudo da vida e tudo querer entender.

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Não há outra coisa a fazer senão deixar as coisas ser como elas são, e não querer elevá-las a níveis impossíveis, e quando deixamos que elas sejam o que realmente são, é então que elas revelam o seu valor intrínseco. Quando se toma como ponto de partida algo absoluto, que real mente não existe e uma pessoa não deseja, não se consegue viver a vida (25-9-41) nas suas proporções reais.

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É esse o teu mal: queres capturar a vida em fórmulas criadas por ti. Queres apreender todos os fenómenos desta vida com o espírito, em vez de te deixares, tu mesma, apreender pela vida. Como é que era? «Pôr a cabeça no ar é possível, mas pôr o ar na cabeça já não é.» Vez após vez queres criar o mundo de novo, em lugar de o desfrutares como ele é. Há (4-10-41) qualquer coisa de prepotente nesta atitude.

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Às vezes custa-me tanto esforço para estabelecer a fasquia de trabalho para o dia: levantar-me, lavar-me, fazer ginástica, calçar meias sem buracos, pôr a mesa, em suma, «orientar-me» no dia-a-dia, que poucas forças me restam para outras coisas. Então fico, após me ter levantado a horas como outro cidadão qualquer, com o sentimento de orgulho de já ter realizado uma porção de coisas. Contudo, isso é o mais im portante para mim: a disciplina exterior, enquanto a interior ainda não está em ordem. Se de manhã durmo por mais uma hora, tal não significa para mim recuperar o sono, significa sim não conseguir aguen (20-10-41) tar a vida e fazer greve.

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Faz aquilo que a tua mão acha que deve fazer e não penses demasiado antecipadamente. Portanto, agora fazemos a cama e levamos as chávenas para a cozinha, e depois logo vemos. […] mergulha na hora que passa e não te ponhas a remexer as próximas horas com o teu pensa(20-10-41) mento, os teus medos e as tuas preocupações.

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Ó Deus, dá-me de manhãzinha menos pensamentos e mais água fria e ginástica! A vida não se deixa apanhar em meia dúzia de fórmulas. No final de contas é com isso que te ocupas constantemente e que te obriga a pen sar de mais. Tentas capturar a vida em algumas fórmulas, mas tal não é possível, a vida tem infinitas nuances e não se deixa apanhar nem sim (22-10-41) plificar. Mas por isso mesmo, tu podes ser simples.

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Ontem à noite, de bicicleta pela fria e escura rua Lairesse, desejava po der repetir o que então murmurei em voz baixa: «Deus, pega-me pela mão, acompanhar-te-ei bem-comportadamente, sem muita resistência. Não me desviarei de nada do que nesta vida vier de encontro a mim, tentarei integrar tudo em mim com as minhas melhores forças. Mas dá-me de vez em quando um momento de sossego. Também não pensarei mais, na minha ingenuidade, que essa paz, se ela vier, será eterna; hei-de aceitar igualmente o desassossego e a luta que hão-de vir outra vez. Gosto de me sentir abrigada e segura, mas não irei revoltar-me se (25-11-41) for exposta ao relento, desde que seja pela Tua mão. […]»

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«[…] Hei-de acompanhar-te sempre guiada pela Tua mão e tentarei não ter medo. Hei-de tentar irradiar algo do amor, do verdadeiro amor ao próximo, que tenho dentro de mim, onde quer que eu esteja.» Contudo também não deves andar a exibir-te com esse «amor ao próximo». Não sabes se o tens. Não quero ser especial, somente quero tentar ser aquela que em mim ainda procura o desenvolvimento total. Às vezes penso que desejo a reclusão de um convento. Porém, é com as pessoas e o mundo que terei de lidar. E hei-de fazê-lo, apesar da aversão e do cansaço, por vezes. Mas prometo que hei-de viver a vida em (25-11-41) pleno e até ao fim.

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«Ama o próximo como a ti mesmo.» … deve-se deixar o outro ser como ele é. Quando desejamos moldar as coisas conforme a imaginação, vamos sempre de encontro a um muro e ficamos desiludidos, não com outro, mas com as exigências que lhe fazemos. Isto é parvoíce e (28-11-41) francamente muito antidemocrático, mas humano.

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Ajoelho-me outra vez no tapete de coco áspero, tapando a cara com as mãos e peço: «Ó Deus, deixa-me ser assimilada por um grande senti mento uno. Permite-me que eu faça as milhentas pequenas coisas quotidianas com amor, mas faz com que cada pequeno acto nasça de um grande sentimento central de disponibilidade e de amor.» E nesse caso sinceramente não importa o que se faz e o que se é. Mas por en(3-12-41) quanto ainda me falta muito para lá chegar.

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A única certeza de como viver e o que fazer só pode provir das fontes que brotam lá no fundo de ti. E agora eu digo muito humilde e grata, e é a sério, embora eu saiba que mais uma vez hei-de rebelar-me e tornar-me irritável: «Meu Deus, agradeço-te por me teres criado como eu (12-12-41) sou. […]»

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Uma vez escrevi num dos meus diários: «Gostava de tactear com as pontas dos dedos os contornos desta época.» Nessa altura estava sentada à minha secretária sem saber bem como atingir a vida. Isso era por eu ainda não ter chegado à vida dentro de mim. Soube alcançar a vida dentro de mim enquanto ainda estava sentada a esta secretária. E então, de repente, fui lançada num foco de sofrimento humano numa das múltiplas frentes espalhadas por toda a Europa. E foi aí que eu experimentei isto abruptamente: a partir dos rostos das pessoas, de milhares de gestos, de pequenas manifestações, de biografias, comecei a inter(22-9-42) pretar estes tempos, e muito mais do que isto.

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Por ter aprendido a ler-me a mim própria, percebi que podia fazer igualmente a leitura dos outros. É como se realmente, lá, as pontas sensíveis dos meus dedos tivessem seguido ao longo dos contornos desta época e da vida. Como é que é possível que essa extensão de urzal cercada por arame farpado — onde tanto destino e sofrimento humanos chegam e partem — permaneça uma recordação quase carinhosa na minha memória? Por que motivo o meu espírito não obscureceu lá, mas, pelo contrário, ficou mais claro e lúcido? Nesse lugar li algo destes tempos que não me parece destituído de sentido. Por entre os meus escritores e poetas e flores amei a vida de forma muito intensa, à beira desta secretária. E foi lá, entre as barracas, repletas de gente agitada e perseguida, que (22-9-42) achei a confirmação para o meu amor por esta vida.

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Uma coisa já eu sei de certeza: nunca hei-de conseguir escrever do mesmo modo que a própria vida, com todas as suas letras animadas, escreveu para mim. Li tudo com os meus próprios olhos e com muitos (22-9-42) sentidos. Nunca serei capaz de reproduzir exactamente.

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[…] com a tal camisa na mochila vou para um «destino desconhecido», como lhe chamam. No entanto a terra é toda a mesma debaixo dos meus pés errantes, ou não? E o céu é o mesmo, ora uma vez com a lua ora outra vez com o sol, para não nos esquecermos das estrelas sobre a minha cabeça entusiasmada, não é? Porquê então falar em des(22-9-42) tino desconhecido?

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Dá-me um pequeno verso por dia, meu Deus. E se eu nem sempre o puder copiar por não haver papel ou luz, então hei-de declamá-lo baixinho para o teu grande céu, à noite, mas dá-me um pequeno verso de (24-9-42) vez em quando.

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[…] aqueles que dizem «vives com demasiada intensidade» não sabem que uma pessoa se pode recolher numa oração como se fosse a cela de um convento, e que em seguida continua em frente com a energia renovada e a tranquilidade recuperada. Creio que é justamente o medo que as pessoas têm de se esforçarem demais que lhes retira as suas melhores forças. Quando uma pessoa, ao fim de um processo longo e difícil que prossegue diariamente, atingiu as fontes primárias dentro de si, a que eu agora desejo chamar Deus, e quando uma pessoa trata de manter esse caminho até Deus aberto e livre de obstáculos — o que acontece «trabalhando-se a si própria» —, essa pessoa renova-se na fonte e então não necessita de ter medo de oferecer forças a mais. (28-9-42)

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Na realidade, esta é a nossa única obrigação moral: desbravar dentro de nós grandes planícies de tranquilidade, cada vez mais tranquilidade, para a poder irradiar sobre os outros. E quanto mais tranquilidade houver nas pessoas, mais tranquilidade haverá também neste mundo (29-9-42) agitado.

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Os frutos e as flores crescem em qualquer pedaço de terra onde sejam plantados. Não será essa a intenção connosco? E não devemos nós aju(2-10-42) dar a concretizar essa intenção?

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É assim que as pessoas vivem. Utilizam os outros para se convencerem a si próprias de algo em que não acreditam no fundo do coração. Uma pessoa procura então nos outros um instrumento para abafar a própria voz interior. Escutasse cada um a sua voz interior um pouco mais, tentasse cada um deixar ressoar a voz dentro de si, e haveria muito menos (2-10-42) caos.

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Começo a ter problemas de insónia, não devia ter. Saltei para fora da cama muito cedinho e ajoelhei-me ao pé da janela. A árvore estava completamente imóvel nessa cinzenta manhã parada. E eu rezei: «Meu Deus dá-me a mesma calma grande e poderosa que também existe na tua natureza. E se queres que eu sofra, nesse caso dá-me o sofrimento imenso e absorvente, mas não me dês os milhares de pequenas ralações que con(3-10-42) somem uma pessoa e a destroem completamente.»

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«Dá-me calma e confiança. Deixa-me ser algo mais, deixa que cada dia para mim seja mais do que as mil pequenas ralações da sobrevivência diária. E todas as ralações que temos acerca da comida, da roupa, do frio, da nossa saúde, não são outras tantas pequenas moções de desconfiança em ti, meu Deus. E tu castigas-nos imediatamente por isso, não castigas? Com insónias e uma vida a que na realidade não pode chamar-se vida, não é?» Quero ficar uns dias deitada em sossego, mas nesse caso quero ser uma grande oração. Uma grande calma. Tenho de recomeçar a levar a minha calma dentro de mim. «A paciente deve levar uma vida tranquila.» (3-10-42) Trata tu do meu sossego, meu Deus, esteja eu onde estiver.

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Claro, é o extermínio total, mas suportemo-lo sobretudo com graciosidade. […] À noite, lá deitada no meu catre, por entre mulheres e raparigas ressonando baixinho, sonhando em voz alta, chorando silenciosamente ou dando voltas na cama sem conseguir dormir, essas mesmo que durante o dia frequentemente diziam: «Não queremos pensar», «Não queremos sentir porque senão enlouquecemos», eu sentia então uma ternura imensa e ficava acordada e passava em revista os acontecimentos que me causavam impressões a mais num dia demasiado longo, e pensava: «Faz então com que eu possa ser o coração pensante da barraca.» Quero sê-lo novamente. Queria ser o coração pensante de todo um campo de (3-10-42) concentração.

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Não quero ser a cronista dos horrores. Há-de haver outros em número suficiente. E dos sensacionalismos também não. Ainda esta manhã eu disse à Jopie: «Apesar de tudo, chego sempre à mesma conclusão: a vida é bela», e «Creio em Deus.» E quero estar lá no meio daquilo a que as pessoas chamam «terrores» e ainda dizer: a vida é bela. E agora estou para aqui deitada a um canto com tonturas e febre, e sem poder fazer nada. Acabei de acordar completamente sedenta, estendi a mão para agarrar o meu copo de água e fiquei muito grata por esse gole de água fresca e pensei: Era bom que andasse por lá só para dar um gole de água àqueles que (8-10-42) mais precisam dela, por entre aqueles milhares amontoados.

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Às vezes, sentava-me ao lado de alguém e passava-lhe um braço por cima do ombro, e dizia pouca coisa e olhava para as caras. Nunca havia nada que eu estranhasse, nenhuma expressão de desgosto humano me era estranha. Tudo me parecia conhecido como se eu já soubesse tudo e tivesse passado por isso alguma vez. Algumas pessoas diziam-me: «Para aguentares isso é porque tens nervos de aço.» Não creio ter nervos de ferro, antes nervos muito sensíveis, mas «aguentar» eu consigo. Sou capaz de olhar de frente toda a espécie de sofrimento, não tenho medo disso. E este sentimento estava constantemente presente no final de cada dia: amo muito os seres humanos. Nunca senti azedume pelo que lhes era infligido, mas sempre amor pela maneira como as pessoas sabiam suportar, no fim de contas sabiam suportar, por muito pouco preparadas (8-10-42) que estivessem interiormente para suportar alguma coisa.

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Vou voltar a ler o Santo Agostinho. É tão severo e inflamado. E tão apaixonado e cheio de pura entrega nas suas cartas de adoração a Deus. Francamente, essas são as únicas cartas de amor que deviam escrever-se: (9-10-42) as dirigidas a Deus.

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Creio poder suportar e interiorizar tudo desta vida e desta época. E se a exaltação for demasiado grande, e se eu não souber mais encontrar solução para ela, nesse caso ainda me restam duas mãos juntas e um joelho dobrado. É um gesto que não nos foi transmitido a nós judeus, de geração em geração. Aprendi-o com dificuldade. É o legado mais precioso do homem cujo nome já quase esqueci, mas em cuja melhor parte eu continuo a viver. Como essa foi na realidade uma história estranha da minha parte: essa da rapariga que não conseguia ajoelhar-se. Ou, com uma variante: a da rapariga que aprendeu a rezar. É o meu gesto mais íntimo, mais íntimo do que os que tenho ao estar junta com um homem. No fim de contas, uma pessoa não pode derramar todo o seu amor sobre uma (10-10-42) única pessoa, pois não?

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Gostaria de ser um bálsamo para muitas feridas.

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(13-10-42)


Ser fiel a tudo o que uma pessoa iniciou num momento espontâneo, demasiado espontâneo por vezes. Ser fiel a cada sentimento, cada pensamento que começou a germinar. Fiel no sentido mais lato da palavra. Fiel a si mesmo, a Deus, fiel aos seus próprios melhores momentos. E onde uma pessoa está, ser totalmente, cem por cento ser. (30-10-42) O meu «fazer» consistirá em «ser».

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Na noite do transporte, um jovem polícia holandês com ar triste disse-me: «Perco mais de dois quilos em noites destas, e limito-me a escutar, olhar, e calar-me». E é por esse motivo que eu também não gosto de (3-7-43) escrever muito sobre isto.

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Queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é realmente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de mim, costumo caminhar a passo enérgico ao longo do arame farpado e, nessas alturas, volta a assolar-me o sentimento — não consigo evitá-lo, as coisas são como são, existe uma força elementar — de que esta vida é algo de glorioso e magnífico e que, um dia, teremos de construir um mundo totalmente novo. E quantos mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade teremos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós. Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir. E se escaparmos a estes tempos imaculados no corpo e na alma, mas sobretudo na alma, sem rancor, sem ódio, então, também nós teremos algo a dizer após a guerra. Talvez seja uma mulher ambiciosa: gos(3-7-43) taria de poder ter apenas uma palavrinha a dizer.

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Por vezes, as pessoas dizem: «Consegues tirar o melhor partido de tudo». Acho esta expressão desmoralizante. Em todo o lado, tudo está perfeito e, ao mesmo tempo, péssimo. Ambos estão em equilíbrio, em todo o lado e sempre. Nunca sinto que tenho de tirar o melhor partido; tudo está perfeito como está. Qualquer situação, por muito miserável que (11-8-43) seja, é absoluta e contém em si o bem e o mal.

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Depois desta noite, houve um momento em que senti seriamente que, de futuro, seria pecado voltar alguma vez a rir. Mas lembrei-me então de que, não obstante, alguns haviam partido a rir, embora não muitos, apenas alguns, desta vez. E talvez haja também quem ria de vez em quando na Polónia, embora não venham a ser muitos deste transporte, creio eu. Quando penso nos rostos daquele pelotão de acompanhamento de guardas de uniforme verde armados — meu Deus, aqueles rostos! Olhei-os um a um, escondida por trás de uma janela, e nunca na minha vida houve algo que me deixasse tão assustada. Pus em causa as palavras que constituem o leitmotiv da minha vida: E Deus criou o Homem à Sua (24-8-43) imagem. Esta passagem viveu comigo uma manhã difícil.

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«Conseguirá alguma vez alguém descrever ao mundo exterior o que aconteceu aqui?», pergunto ao meu companheiro. O mundo exterior provavelmente pensa que somos uma multidão cinzenta, uniforme e sofredora de judeus, nada sabendo das brechas, abismos e diversidades existentes entre os indivíduos e os grupos; talvez jamais venham a (24-8-43) compreendê-los.

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Deus do céu, vão mesmo conseguir fechar todas as portas? Sim, vão. Fecham as portas, comprimindo a multidão de pessoas amontoadas e empurradas para trás. Pelas estreitas aberturas no topo, vêem-se cabeças e mãos que mais tarde acenarão para nós quando o comboio partir. O Comandante percorre novamente de bicicleta o caminho a todo o comprimento do comboio. Depois esboça um breve gesto como um monarca numa opereta e um pequeno ordenança apressa-se a ir buscar respeitosamente a bicicleta. O comboio solta um silvo cortante (24-8-43) e um comboio com 1020 judeus deixa a Holanda.

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Christine, abro a Bíblia ao acaso e eis o que encontro: O Senhor é o meu alto refúgio. Estou sentada em cima da minha mochila, no meio de um vagão cheio. O pai, a mãe e o Mischa estão uns vagões mais à frente. A partida acabou por chegar inesperadamente. De ordens repentinas de Haia, especialmente para nós. Deixámos o campo a cantar, o pai e a mãe firmes e calmos, tal como o Mischa. Viajaremos durante três dias. Obrigada pelos vossos cuidados. Amigos que ficaram para trás hão-de escrever para Amesterdão; talvez venhas a receber notícias por eles. E pela minha última carta longa. Até à vista, de nós os quatro. (7-9-43)

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Uma vida interrompida?… Westerbork, Holanda

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Não, uma vida diluída por toda a Humanidade. Avencas, Portugal (a minha praia de infância)

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TESTEMUNHO

Filipe Condado

No princípio do ano 2017, fui desafiado por José Tolentino Mendonça a participar numa peregrinação à Holanda — Nos Passos de Etty Hillesum —, organizada pela Capela do Rato em Lisboa. Propósito: não apenas conhecer a sua vida e os seus lugares, mas sobretudo entrar na sua espiritualidade e deixar-se transformar por ela. Além de integrar o grupo como peregrino, tinha a missão de produzir um registo fotográfico que pudesse, mais tarde, com uma escolha de textos do seu Diário, vir a ser materializado num livro ou numa exposição. No meio de grandes transformações que ocorriam na minha vida, achei que poderia ser bom e aceitei o desafio. Só não sabia que, mais tarde, me iria também ser pedido que escrevesse sobre esta experiência… Quando acabei de ler o Diário de Etty Hillesum, lembrei-me de uma frase que alguém terá dito: «Certos livros deixam-nos o barco depois da viagem.» Etty, com o seu Diário, tinha-me deixado não só o barco, mas também uma forte tempestade que precisava de ser domada.

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Como foi possível que uma só pessoa provocasse em mim sentimentos tão contraditórios? Tanto me irritava com o seu excesso de introspecção, como me apaziguava com as suas descobertas; tanto parecia tornar tudo mais complicado, como sabia tão bem dar nome às coisas; tanto me deixava perdido e emaranhado nos seus caminhos interiores, como me oferecia pistas tão claras, de uma imensa frescura; tanto me cansava da sua complexa personalidade, como provocava em mim o desejo de uma nova espiritualidade por ela inspirada. Foi neste cenário que, em Julho de 2017, parti, em peregrinação, para a Holanda. E depois veio a parte mais difícil, partilhar por escrito esta experiência. Na verdade não foi apenas difícil, foi mesmo muito difícil, de tal modo que passei um ano e meio sem conseguir escrever uma palavra! O que é que me faltava? Olhei centenas de vezes para estas fotografias; voltei ao Diário vezes sem conta… mas nada saía de mim. Um dia percebi o que me acontecera. Não tinha ido como verdadeiro peregrino, como quem tem a coragem de partir de bolsos vazios, com o desejo ardente de acolher o que possa acontecer; como quem se dispõe a estar vigilante para não deixar que a subtileza de Deus lhe passe ao lado; como quem lhe basta o desejo de encontro para arriscar partir. Senti-me então chamado a voltar, desta vez como peregrino, sem medo da possibilidade de regressar de mão vazias. Marquei a viagem e em três semanas estava de partida. Em Amesterdão hospedei-me perto da casa da Etty, pois queria fazer daí o meu ponto de partida. No primeiro dia, noite adentro, percorri inúmeras vezes o caminho entre a sua casa e a casa de Julius Spier («o parteiro da sua alma»). Esperava com isso encontrar inspiração, mas nada acontecia. Ao frio e

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debaixo de chuva, senti-me como um mendigo perdido pelas ruas de Amesterdão. Numa das voltas, sentei-me naquelas escadas do n.º 27 da Courbetstraat, onde Etty também se terá sentado a absorver os progressos que o seu coração ia fazendo. Mas nem aí me saía nada. Senti que era tudo demais para mim. Voltei ao caminho e, a dada altura, percebi que a chuva intensa me conduzia o olhar para o chão, impedindo-me de ver o que se passava à minha volta. Levantei a cabeça como quem deixa de olhar para dentro e comecei a fixar-me no interior das casas. O escuro da rua e o enquadramento das próprias janelas criavam a ilusão de estar no cinema a ver filmes de vidas reais: amigos à volta de uma mesa; casais aconchegados no sofá; crianças de pantufas aos saltos na cama. Cenas familiares de um quotidiano feliz e tranquilo. Quando cheguei de novo a casa da Etty, também olhei para dentro, mas estava tudo apagado. Então, senti que tinha diante de mim o seu legado. A sua entrega de vida e a sua dádiva de amor estavam agora espalhadas pela paz que testemunhei no interior das outras casas, como se de um efeito colateral se tratasse. Tão discreto, tão simples; aparentemente tão insignificante, mas tão nobre e grandioso! Voltei a Westerbork, e aí percebi que foi também por ela que aquele campo, outrora lamacento e lugar de um enorme sofrimento, se tinha podido transformar num belo, sereno e até leve jardim verdejante. Ela, como ninguém, mostrou-me o que é guardar e defender até às últimas consequências o lugar que Deus habita em nós. Ela, como ninguém, ensinou-me a importância de exercitar a gratidão. Ela, como ninguém, mostrou-me que é o facto de esperarmos um destino comum que nos faz cúmplices e irmãos na aventura do caminho.

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© FILIPE CONDADO, 2021 © JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA TRADUÇÕES © MARIA LEONOR RAVEN-GOMES, ANA LEONOR DUARTE E PATRÍCIA COUTO © SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA 1.ª EDIÇÃO, MAIO DE 2019 2.ª EDIÇÃO, SETEMBRO DE 2021 ISBN 978-989-8833-66-2 TIRAGEM: 1000 EXEMPLARES DEPÓSITO LEGAL 489216/21 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA GRÁFICA MAIADOURO S.A. RUA PADRE LUÍS CAMPOS, 586 E 686 (VERMOIM), 4471-909 MAIA PORTUGAL





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