Edith Wharton «O filho de duas mães»

Page 1


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 2


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 3

O FILHO DE DUAS MÃES


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 4



P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 6

TÍTULO ORIGINAL: HER SON © SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, MARÇO DE 2021 ISBN 978-989-9006-69-0 NA CAPA: THEODORE GERICAULT, RETRATO DE EUGENE DELACROIX (c. 1818) REVISÃO: DIOGO FERREIRA


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 7

No final do século XIX, as mulheres ascendiam por árduos caminhos ao reconhecimento dos seus nomes nos primeiros planos da literatura. Na França conhecia-se a já passada excepção de Madame de La Fayette e da sua Princesa de Clèves publicada (anonimamente) em 1678; e a de Madame de Staël, que sobressaíra pouco depois com Delphine e Corinne; um século mais tarde, a popularidade da Condessa de Ségur tinha sido bastante inofensiva porque apenas se ligava a uma literatura (com voluptuosidades sádicas, diga-se de passagem) destinada às crianças do seu país. Em anos dessa mesma época também aconteceu a inesperada audácia soprada de uma Inglaterra de ventos, a de três irmãs Brontë sugeridas na literatura por sonoridades masculinas onde soavam um Currer, um Ellis e um Acton Bell, não fossem ofender o público com a sua impertinente veleidade de ser avaliadas como romancistas; e também houve George Eliot e George Sand; ambas com o mesmo George a conferir uma aparência de virilidade aos seus cometimentos literários. Estas raridades forçavam a Europa a admitir uma literatura alimentada pelo talento de mulheres; mas, nas letras dos Estados Unidos da América, quem se mostrava com direito a exibir um perdurável nome feminino? Só Harriet Beecher Stowe, devido às eficiências sentimentais de Uncle Tom’s Cabin, o seu êxito de 1852. É certo que em 1890 tinha surgido a primeira edição (póstuma) dos


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 8

8

A p r e s e n ta ç ã o

estranhos Poems de Emily Dickinson, desde logo embaciados por uma indiferença de época que os deixaria adormecidos até um elitista reconhecimento futuro. No entanto, é deste mesmo ano Mrs Manstey’s View (história que associa a destruição de um jardim à derrocada de uma velha dama), estreia discreta da nova autora — Edith Wharton — destinada a referência inevitável da literatura americana do século seguinte. Edith só era desde há cinco anos Mrs Wharton. Nascera em 1862 como Edith Newbold Jones numa abastada família de Nova Iorque. A sua mãe tinha-se dedicado à tarefa de receber com elegância a fina flor da cidade e a fazer soar o prestígio de uma ascendência aristocrática; o seu pai, que nunca precisou de trabalhar, limitara-se a gerir com moleza e sem sobressaltos os dólares de uma avultada herança. Sobre as difíceis relações que mantinha com os seus pais, viria Edith a escrever: Fui durante anos oprimida pela sensação de que devia agradar a dois seres totalmente insondáveis — Deus e a minha mãe — que embora exigissem de mim as mesmas regras de comportamento, diferiam por completo quanto à forma de as aplicar. E a minha mãe era o mais insondável dos dois. […] Os meus pais mostravam uma absoluta indiferença perante os mais subtis problemas de consciência. Tinham o que pode chamar-se um código de probidade materialista. Acrescentemos isto: Nada conseguiu atormentar-me tanto a infância como o peso do sombrio e espinhoso horror de ter de «dizer a verdade», e a impossível tarefa de conciliar os critérios da franqueza exigida por «Deus» com a obrigação convencional de ser «polida» e não ferir a sensibilidade de ninguém. Despedaçada entre duas regras de conduta incompatíveis, eu sofria com uma perplexidade impossível de descrever.»


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 9

A p r e s e n ta ç ã o

9

Estas dificuldades psicológicas não vão estar ausentes em muitas das suas personagens e não foram diminuídas com o seu casamento, aos vinte e três anos de idade, com Edward Robbins Wharton — que nunca conseguiria fazê-la esquecer-se de Walter Berry, doze anos mais velho do que ela, formado em direito, um laureado de Harvard com mãe dominadora que o inibia a ter relações que competissem com a sua afeição materna; o que sabia seduzi-la por ser muito culto e conhecedor da literatura francesa, explicava ela à falta de melhor argumento. Como este Berry, celibatário endurecido, nunca fez nenhuma proposta onde Edith pudesse encontrar a sombra de uma vontade de casamento, cedeu com facilidade a tornar-se Mrs Wharton. Teve porém a surpresa de um casamento de lençóis brancos e quotidiano tempestuoso, onde pairavam nuvens levantadas pelas suas sucessivas convivências masculinas, por conversas «literárias» que ultrapassavam as medidas culturais de um esposo frívolo, por aquilo que já iam sendo ciúmes de marido, provocados pelo nome que começava a soar com frequência nas conversas da cultura novaiorquina: Mr Edward Robbins Wharton detestava que o referenciassem como «o marido de Edith Wharton». Asmática e sofredora, psicologicamente instável, Edith não obtinha do mundo certezas e tranquilidades que conseguissem expulsar «os seus medos», aqueles que serão pano de fundo num razoável número de histórias de fantasmas e que estarão subtilmente presentes, ou muito diluídos, nas engrenagens de quase todas as suas ficções literárias. Não consigo, viria ela a confessar, no próprio momento do terror dar-lhe uma forma. Era como se uma qualquer presença sombria e indefinível estivesse sempre agarrada aos meus passos, pronta a saltar e ameaçadora. […] Qualquer que fosse a sua forma, nunca era tão formidável e opressiva como na altura em


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 10

10

A p r e s e n ta ç ã o

que eu regressava do meu passeio quotidiano (feito com uma criada, uma governanta ou o meu pai). Nos últimos metros, a esperar na soleira que viessem abrir a porta, sentia-a atrás de mim, em cima de mim; e se a porta não fosse logo aberta, eu sufocava de terror. Esta mulher assustada e com saúde frágil procurava preencher agitadamente a sua vida, esquecer-se do seu casamento frio, compensar-se com as possibilidades materiais de uma grande fortuna ampliada pela morte de um primo milionário, a que vai permitirlhe manter uma casa em Nova Iorque e outra em Newport, esta com os esplêndidos retoques do arquitecto Ogden Codman, seu colaborador literário no livro The Decoration of Houses, um grande êxito de vendas. Mas, à noção de vida de Edith Wharton estas duas casas não bastavam. Já conceituada autora dos contos reunidos em The Greater Inclination (1899) e do romance The Touchstone (1900) (enviado de imediato a Henry James, talvez para fazê-lo saber que passaria a ter uma atenta seguidora do seu método de contar subordinado a «um ponto de vista»), mandou construir uma sumptuosa mansão — The Mount — numa herdade de Massachussets. Mas estes esplendores americanos não preenchiam as exigências de uma mulher com a sua cultura. Não era invulgar que as grandes fortunas da América, as largas vidas da América, tivessem nessa época uma irresistível atracção pela Europa. O velho continente acenava-lhes, cheio de oportunidades que a nova civilização americana não podia oferecer. Edith Wharton gostava, como tantos outros americanos ricos, da Itália. E estava no início de uma criação literária que ia encher-se de Itália; o seu primeiro «grande» romance, The Valley of Decision (1902), pôs em cena o estranho médico de Carlos V que quis dissecar um homem vivo.


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 11

A p r e s e n ta ç ã o

11

Em 1906 Edith Wharton decide viver quase permanentemente em Paris. Tem ali oportunidades de convívio que a América, mesmo oferecendo com frequência a sua mesa a convivas escolhidos, não lhe saberia dar. E Paris também a faria esquecer-se dos lados negativos do seu marido inerte. Envolveu-se com o jornalista americano Morton Fullerton, representante de The Times na França, e teve as noites de amor com a intensidade que o seu poema «Terminus» nos revela (Wonderful were the long secret nights you gave me, my Lover…, lemos no seu primeiro verso). Esta audácia de comportamento devolve Edward à América, sob o pretexto «oficial» de uma má saúde que ele poderia no seu país vigiar sem tantos percalços. A verdade é que as suas relações com Edith se tornavam insuportáveis, e só a distância parecia dar-lhes uma solução. Encontramo-la a justificar-se numa carta de Maio de 1910 a Morton Fullerton: Os Wharton são hábeis a não reconhecer a tensão a que estou submetida e a impossibilidade de alguém, com a minha constituição nervosa, continuar a viver assim. […] Ele só tem uma ideia — estar todas as horas, todos os dias, ao pé de mim. Se tento fugir-lhe, persegue-me; se me revolto e digo que preciso de estar só, dizem eles que estou a abandonar um doente. Os médicos afirmam que não é possível de momento hospitalizá-lo à força, e que ele tem o direito de fazer o que quiser! […] Tudo com a certeza, reiterada pelos médicos, de que isto me mata e não lhe faz nenhum bem! Com Edward longe e em plena liberdade parisiense, talvez sugestionada pelo seu gosto de viver na sucessão de quartos de uma grande casa, Edith define-se com uma curiosa metáfora: Penso muitas vezes que a natureza de uma mulher é como uma grande casa cheia de quartos; há o vestíbulo que todos atraves-


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 12

12

A p r e s e n ta ç ã o

sam quando entram e saem, o grande salão para as visitas mundanas, a pequena sala onde os membros da família circulam à vontade; mas depois, muito mais dentro há outros quartos com portas de puxadores que nunca ninguém abre; ninguém conhece o caminho que lhes dá acesso, ninguém sabe o que lá existe; e no quarto mais secreto, no santo dos santos, fica a alma na sua solidão. Na América, longe dos prestígios culturais e dos desvios ao bom senso matrimonial da sua mulher, o marido amargo vinga-se com uma metódica dilapidação da fortuna que só pelo casamento lhe pertence. Edith reage; apresenta provas com peso jurídico; e em 1913, o ano do seu grande êxito The Custom of the Country, será também o ano do seu divórcio. A Edith Wharton livre volta a ser Edith Jones; excepto na literatura, onde o Wharton do seu ex-marido permanece para não perturbar um já bem firmado nome de escritora. Em Paris, a vida agitada desfaz-lhe uma grande parte dos vazios que ela, no seu «quarto secreto», não consegue nunca preencher. Vive rodeada de relacionamentos masculinos que vão de Paul Bourget a Anna de Noailles, que vão de Henry James a Howard Sturges; sente-se bem no centro de homens cultos, de uma corte onde é adulada e elogiada, sobretudo por homossexuais. Em 1947, no seu livro Portrait of Edith Wharton, Percy Lubbock definiu-a assim: «Tinha uma sensibilidade feminina e um espírito masculino. Gostava de estar rodeada por uma corte atenta, e gostava que a tratassem como um homem. Este duplo desejo era satisfeito pelo seu universo de palavras e homens. E, sem dúvida por causa disto, gostava dos homens atraídos por outros homens, mostrando-lhes uma forte solidariedade. Perder este universo era um risco que ela não queria correr.»


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 13

A p r e s e n ta ç ã o

13

Mas a guerra iniciada em 1914 fez um profundo corte nesta convivência intelectual e construiu-lhe uma outra actividade febril, distante da literatura. Ocupou-se obsessivamente com a precária situação dos refugiados belgas; mostrou-se activa, dominada por um dinamismo prático, pouco previsível se o confrontarmos com as elegantes branduras da sua vocação mundana, a instalar ocupações e refúgios que foram chamados American Hostels. Dois anos depois, o governo francês premiou-lhe a esforçada causa incluindo-a no grupo que exibia nessa época com orgulho a cruz da Legião de Honra. Começaram então a viver-se os ilusórios tempos de paz europeia, conhecidos por belle époque. E a escritora Edith Wharton, com possibilidades de se entregar de novo e descansadamente ao seu talento, em 1920 mostrou ao público The Age of Innocence, que permanece mais célebre entre os seus romances e o que deu pela primeira vez o prémio Pulitzer a uma mulher. Fez-lhe suceder The Glimpses of the Moon (1922), A Son at the Front (em 1923, o ano que a fez doutor honoris causa da universidade de Yale), Old New York (1924), The Mother’s Recompense (1925), Twilight Sleep (1927), The Children (1928), Hudson River Bracketed (1929) e The Gods Arrive (1932). Mas esta celebração literária, estes sucessivos êxitos de crítica e público, são ensombrados por uma porção de desgostos que lhe tocam muito de perto os sentimentos. Em 1927 Walter Berry, o «seu» advogado americano, o dedicatário de Pastiches et Mélanges de Proust, o homem a quem ela chamava the love of my life, morre em Paris; pouco depois morrem-lhe dois dos seus antigos empregados; e um criado de quarto é assassinado pela sua mulher. A sua literatura acusa estes maus dias enchendo-se de histórias com subtilezas amargas, pessimismos e sombras. Talvez por tudo


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 14

14

A p r e s e n ta ç ã o

isto, em 1933 se tenha resolvido a escrever Her Son (O Filho de Duas Mães, que ocupa o maior número de páginas de Human Nature), onde a rivalidade esgrimida entre duas «falsas mães» se resolve num sombrio desaire de esplendorosa ironia. Edith Wharton terá mais quatro anos de vida. Em 11 de Abril de 1935 é atingida por um premonitório ataque cardíaco; outro, dois anos mais tarde e mais grave, deixa-a fechada no Pavillon Colombes que ela tinha adquirido sete anos antes em SaintBrice-sous-Fôret, perto de Paris. Morre a 11 de Agosto de 1937, e é enterrada no cemitério de Versalhes, ao lado de Walter Berry. «Para mim nunca estará morta», confessa numa carta o historiador de arte Bernard Berenson. «Mantém-se apenas incontactável, num sítio qualquer onde não a ouvimos e de onde não pode responder-nos. É muito duro, mas não aquilo a que chamamos morte.» A.F.


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 15

I

Não reconheci de imediato Mrs Stephen Glenn quando a vi pela primeira vez no convés do Scythian. A viagem já ia a mais de meio, e contávamos chegar nas próximas quarenta e oito horas a Cherbourg quando ela apareceu no convés e se sentou ao meu lado. Estava mais bela do que nunca e sem ter no aspecto mais um dia do que na altura do nosso último encontro — no final da guerra (em 1917, creio eu), não muito antes de o seu filho, o aviador, ter sido morto. No entanto, ao olhar para ela cinco anos depois pareceu-me uma estranha. Porquê? Não era, com certeza, pelo cabelo branco. Tinha-lhe calhado a sorte, frequente nas mulheres americanas, de o adquirir enquanto o rosto se mantém fresco; e uma dúzia de anos antes, quando era frequente encontrarmo-nos em jantares ou na Ópera, já esse diadema prateado a coroava. Agora, olhando-a mais de perto vi que o seu rosto continuava sem nenhum desgaste. O que a tinha alterado tanto? Talvez a fina linha de ansiedade entre as escuras e fortemente desenhadas sobrancelhas, ou talvez os sombrios e estrelados olhos que pareciam metidos a fundo nas órbitas e os mostravam como vislumbres da noite através do arco de uma caverna. Mas que sinistra imagem atribuo a tão meigos olhos como os de Catherine Glenn! Foi no entanto o que me sugeriu de imediato o olhar que deitei à dama com luto pesado que se instalou ao meu lado e se voltou para dizer:


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 16

16

E d i t h Wh a r t o n

— Não está, pelos vistos, a reconhecer-me, Mr Norcutt?… Sou a Catherine Glenn. Era uma coisa inegável. Reconheci-a e acrescentei: — Como é que foi possível eu não a reconhecer? Não faço nenhuma ideia. Levará a mal se eu disser que foi por estar ainda mais bela do que na altura em que a vi pela última vez? Com uma perfeita simplicidade respondeu: — Não. Não levo… porque preciso que isso aconteça; quer dizer, se houver nisso um qualquer sentido. — Um qualquer sentido?… Pareceu que hesitava; nunca tinha sido mulher que encontrasse facilmente as palavras. — Um sentido na vida. Bem vê, desde que nos conhecemos tudo perdi: o meu filho, o meu marido. — Baixou ao de leve a cabeça, como se as palavras que pronunciava fossem sagradas. Depois acrescentou com o ar de quem se esforçava por chegar a uma mais escrupulosa exactidão: — Ou, pelo menos, quase um sentido. O «quase» confundiu-me. Tanto quanto eu sabia, Mrs Glenn não tinha tido nenhum filho além do que perdera na guerra; e o velho tio, que ela me tinha apresentado, estava desde há anos morto. Eu perguntava a mim mesmo se ela, qualificando assim a sua vida solitária, não aludiria a consolos da religião. Disselhe num murmúrio que estava a par do seu luto duplo; e ainda mais me surpreendeu ao responder: — Sim; eu vi-o no funeral do meu marido. E sempre tive na ideia agradecer-lhe por isso. — Estive lá, evidentemente. Continuou:


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 17

O Filho de Duas Mães

17

— Dei conta de todos os amigos do Stephen que lá estiveram. Fiquei-lhes muito reconhecida, em especial aos mais jovens. (Isto dizia-me respeito.) Como sabe — acrescentou — um funeral conforta-nos muitíssimo. Olhei-a de novo com surpresa. — O meu filho… o meu filho Philip (por que acharia necessário dizer-lhe o nome, se era o seu único filho?)… o funeral do meu filho Philip teve lugar no sítio onde o aeroplano caiu, uma pequena aldeia no Somme; eu e o pai dele fomos de imediato até lá, depois do Armistício. Um dos nossos capelães leu o ofício. A gente da aldeia estava presente… e foi para nós muito amável. Mas não havia mais ninguém… nenhum amigo nosso; nessa época só os parentes próximos podiam obter salvos-condutos. E o nosso filho teria desejado que assim fosse… Quereria ficar onde caiu. Mas não é a mesma coisa do que ter amigos à volta, como no funeral do meu marido. Enquanto falava deitava-me um olhar fixo, quase embaraçoso. Nunca me tinha ocorrido que Mrs Stephen Glenn fosse o género de mulher que desse particular importância à lista dos presentes no funeral do seu marido. Sempre me tinha parecido distante e abstracta, separada do mundo atrás dos muros altos da sua felicidade doméstica. Mas ao acrescentar esta nova informação sobre o seu carácter aos fragmentos da informação que eu já tinha sobre a sua primeira aparição em Nova Iorque, e à impressão de devaneio que costumava dar-me nos nossos encontros, comecei a ver que essa lista de nomes talvez fosse o que ela tinha em maior apreço. E perguntei então a mim próprio o que sabia, de facto, a seu respeito. Muito pouco, compreendi, mas sem dúvida quanto bastava para ela achar que era


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 18

18

E d i t h Wh a r t o n

suficiente. Porque comigo assim sentado e a ouvir-lhe a voz, a vislumbrá-la num não resguardado perfil sob a sombra do crepe, comecei a suspeitar de que aquela vigilância, que me tinha parecido uma baça simplicidade, seria a de alguém secreto ou talvez de uma pessoa com um segredo. Há entre estas duas coisas uma diferença; porque é raro a pessoa secreta ser interessante, e é raro ter um segredo. Senti-me porém inclinado — embora nada houvesse a justificá-lo — a incluí-la nesta segunda classe. Comecei por pensar nos anos da nossa intermitente relação — nunca mais do que isto, porque nunca fui íntimo dos Glenn. Quando ela apareceu em Nova Iorque, eu era um homem muito jovem; ela era, nesses anos noventa, uma bonita rapariga — do Kentucky ou de Alabama — uma sobrinha do velho coronel Reamer. Órfã quase na infância e sem nada ter de seu, passou de uma relutante relação a outra, acabando por subir aos palcos (corria esta lenda) e seguir através do continente uma companhia ambulante. Mas como o director abandonou a sua trupe num qualquer Estado longínquo, o coronel Reamer, apesar de imbecil e desfalcado, e sem dúvida perplexo ao tentar descobrir como resolver a situação, enfrentou-a ainda assim corajosamente sacudindo o egoísmo de celibatário e abrigando na sua casa a rapariga. Este passado, que parece agora suavemente colorido, teve nos anos noventa qualquer coisa de febril e deu uns laivos de romance e mistério à bela Catherine Glenn, que apesar de resgatada a tamanhos perigos e promiscuidades surgiu notável e com um ar muito distante. O coronel Reamer era um velho ridículo. Nele tudo era ridículo — o «capachinho» (provavelmente o último que existiu), o duvidoso título militar, as anedotas sobre a cavalaria su-


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 19

O Filho de Duas Mães

19

lista e os duelos entre cavalheiros com títulos militares e civis de boas carreiras, tudo isto de um obsoleto cheio de proa, e dotado de um carácter saído do Martin Chuzzlewit1. Era em Nova Iorque um maçador famoso; só tolerado por ser primo em segundo grau de uma Mrs Fulana de Tal, porque era pobre, porque era simpático, e encontrara uma forma de oferecer, com um sorriso e um jubiloso gesto, roupa e abrigo à sua esfomeada sobrinha. O velho Reamer, lembro-me eu, esteve sempre apaixonado por uma porção de nomes e tinha a ânsia de ver o seu na «coluna mundana» dos jornais da manhã, de dizer-nos com quem tinha jantado ou não tinha podido jantar por já estar comprometido com outras pessoas ainda mais importantes. Os jovens chamavam-lhe «O Velho Já Comprometido», por causa da sua grande ansiedade em fazer-nos saber que o não tinham visto em determinado serão mundano porque já estava comprometido com outro. Mrs Glenn, pensava eu, talvez tivesse aprendido com o seu tio a dar muito valor aos nomes, às listas de nomes, em certas ocasiões à presença de certas pessoas, a um estatuto mundano que até podia fazer da morte uma consagração. Ao meu lado, o seu perfil era de tão puro mármore, de tão triste mármore, que não sugeria nenhumas preocupações deste género, e o mesmo acontecia com o profundo e suplicante olhar que fazia cair sobre mim. No entanto, muitos pormenores me justificavam esta teoria. Até o seu casamento com Stephen Glenn parecia confirmá-lo. Voltei atrás no tempo, e em pensamento comecei a 1

Romance pícaro de Charles Dickens. (N. do T.)


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 20

20

E d i t h Wh a r t o n

reconstituir Stephen Glenn. Era bastante mais velho do que eu, e uma familiar figura dos meus primeiros dias de Nova Iorque; um homem que enfeitava permanentemente a sociedade, olhado como o desejável, o que falava, o que se comportava e recebia bem os seus amigos, que no seu nível social preenchia um espaço, exactamente como o seu mundo esperava que o fizesse. Enquanto Stephen Glenn foi um homem jovem, as velhas damas confusas com um qualquer problema social (muitas existiam nesses draconianos dias) consultavam-no como um dos Anciãos da comunidade. No entanto, nele nada havia precocemente envelhecido ou ressequido. Era um dos mais belos homens daqueles dias, um bom atirador, um bom director de danças de salão. Ganhou prática em barras de tribunal e chegou a membro de uma reputada firma que se ocupava sobretudo com a gestão de velhos e importantes patrimónios novaiorquinos. Com o passar do tempo, as velhas damas que o tinham consultado sobre problemas sociais começaram a pedir-lhe a opinião sobre investimentos; e neste ponto era considerado de igual forma fiável. Só uma nuvem lhe escurecia a vida destes primeiros tempos. Tinha-se casado com uma prima afastada, uma mulher do género apagado que lhe não deu nenhum filho e não tardou a cair (por esta razão, dizia-se) numa suicidária melancolia. Por causa disto, a bonita casa de Stephen Glenn, outrora tão hospitaleira, transformou-se durante muitos anos num lugar severo de mais para ser habitado. Mas ela acabou por morrer, e depois de um intervalo decente o viúvo casou-se com Miss Reamer. Ninguém ficou muito surpreendido. Fora notado que havia entre o belo Stephen Glenn e a bela Catherine Reamer uma


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 21

O Filho de Duas Mães

21

atracção mútua; e apesar de as velhas damas pensarem que ele podia ter feito melhor, algumas entre as mais cáusticas diziam que ele dificilmente poderia fazer outra coisa, depois de ter transformado a sobrinha do coronel Reamer numa «coisa tão visível». As atenções de um homem casado, em especial de um infeliz casado que vivera virtualmente separado da sua mulher, eram nesses dias olhadas como um perigo que se intrometia no futuro de uma jovem. No entanto, Catherine Reamer soube pôr-se tão acima destas insinuações como dos perigos da sua teatral e arriscada aventura. Bastaria olhar-se para ela e verificar que não havia na superfície lisa daquele mármore nenhuma fenda onde a maledicência pudesse criar raízes. A casa de Stephen Glenn voltou a abrir-se e o casal a receber discretamente. Achou-se natural que Glenn quisesse dar um pouco de vida àquela casa durante tanto tempo transformada numa espécie de túmulo; mas apesar de jantares tão bons como uma cuidadosa escolha da comida e do vinho poderia proporcionar, nenhum dos membros do casal tinha dons para fazer da sua hospitalidade um êxito; e o grupo dos mais jovens começou, na época em que os conheci, a achar que jantar com eles era uma espécie de frete. Stephen Glenn ainda continuava bonito e a sua mulher formosa, talvez mais formosa do que nunca; mas parecia que a apatia da prosperidade se tinha abatido sobre eles; e arvoravam a sua beleza e a sua afabilidade como uma roupa cara, vestida para a ocasião. Havia no seu aspecto qualquer coisa estática, imutável, tal como na sua amabilidade, na sua conversa, nas ementas dos jantares cuidadosamente preparados e no estudado arranjo da mobília da sala. Tinham um rapazinho nascido um ano depois do casamento,


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 22

22

E d i t h Wh a r t o n

e eram devotados pais com tendência para relatar prolixamente histórias sobre os seus gestos e os seus ditos; mas ninguém saberia imaginá-los a andar com ele aos tombos no chão do seu quarto. Havia mesmo quem dissesse que eles deviam ir para a cama com coroas postas, como os reis e as rainhas de um baralho de cartas. Aos poucos foram-nos considerando menos bons na sua preocupação em ser distintos e impressivos, começaram a achá-los grosseiros, pomposos e um pouco absurdos. No entanto, as velhas damas continuavam a falar de Stephen Glenn como de um homem que dignificava a sua família; e a sua mulher adquirira atributos de uma figura de proa, e era como ele consultada sobre os mais delicados problemas sociais. Ao que parece, durante todo este tempo — penso nele enquanto olho para trás — não existiu nas suas vidas ninguém que realmente tenha sido seu íntimo… Mas depois voltaram de repente a suscitar interesse: quando o seu filho único foi morto, atacado solitariamente em pleno céu por uma patrulha aérea alemã. O jovem Phil Glenn foi o primeiro aviador americano a tombar; e quando se conheceu a notícia, as pessoas perceberam que os Mr e Mrs Glenn que eles conheciam não passavam de uma fachada, e havia atrás deles um pai e uma mãe apaixonados, esmagados, revoltados, agonizantes, embora com a determinação de enfrentar sem flectir a sua perda, mesmo que tivessem de morrer por isso. Stephen Glenn morreu por causa disso, e apenas dois anos mais tarde. Os médicos imputaram a sua morte a uma doença precisa, mas todos aqueles que o conheciam sabiam mais do que isso. «Foi a perda do rapaz», disseram, acrescentando: «É terrível ter-se apenas um filho.»


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 23

O Filho de Duas Mães

23

Depois do funeral do seu marido, não voltei a ver Mrs Glenn; e deixei por completo de pensar nela. Mas agora, a caminho de um lugar que eu iria preencher no consulado americano de Paris, dei por mim sentado ao seu lado e a recordar-me destas coisas. «Pobres criaturas — era como se dois bustos de mármore fossem quebrados, atirados do alto dos seus pedestais e esmagados», pensei ao relembrar-me dos rostos do marido e da sua mulher depois de o rapaz morrer; «e ela, a pobre mulher, foi duas vezes esmagada… Diz, no entanto, que ainda se tornou mais bela…» Voltei a perder-me em conjecturas.


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 24


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 25

II

Disseram-me que uma dama com luto pesado queria falar comigo por causa de um assunto urgente; olhei para o exterior do meu antro privativo no consulado de Paris, e para a sala cheia de mapas e retratos de presidentes onde as visitas ficavam antes de passar para o gabinete do vice-cônsul ou do cônsul. A dama era Mrs Stephen Glenn. Tinham passado seis ou sete meses desde o nosso encontro no Scythian, e eu tinha-me outra vez esquecido de que ela existia. Como não era uma pessoa que nos ocupasse o pensamento, de novo me interroguei sobre o seu luto de estátua e por que razão ele conseguia fazê-la parecer mais nobre, mais atraente do que nunca. Deitou um olhar às pessoas que esperavam a sua vez abaixo dos mapas e dos presidentes, e disse em voz baixa que desejava encontrar-se em privado comigo. Como eu estava nesse momento livre, levei-a para o meu gabinete e dispensei o dactilógrafo. Mrs Glenn pareceu que se perturbava com os sinais de actividade que em meu redor existiam. — Receio que venham interromper-nos. Gostava de falar-lhe a sós — disse ela. Assegurei-lhe que não corríamos o risco de ser interrompidos, desde que dissesse com poucas palavras o que tinha a comunicar-me…


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 2



P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 124

A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O Capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco O caso Kurílov, Irène Némirowsky A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal O rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 125

Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan Derborence, Charles Ferdinand Ramuz O farol de amor, Rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière A minha vida, Isadora Duncan Rakhil, Isabelle Eberhardt Fuga sem fim, Joseph Roth O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans Tufão, Joseph Conrad Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud Eu, Antonin Artaud A morte difícil, René Crevel A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry Balkis (A Lenda num Café), Gérard de Nerval Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud Riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes Entre a espada e a parede, Tristan Bernard A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen Os meus Oscar Wilde, André Gide As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw Meu irmão feminino — «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 126


P_Edith Wharton_O filho de duas mães.qxp:sistema solar 10/03/21 17:47 Page 127

DEPÓSITO LEGAL 000000/21 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.