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Anna M. Klobucka
O MUNDO GAY DE ANTร NIO BOTTO
D O C U M E N TA
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© ANNA M. KLOBUCKA, 2018 © HERDEIRA DE ANTÓNIO BOTTO © SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA 1.ª EDIÇÃO, MAIO 2018 ISBN 978-989-8902-16-0 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 441377/18 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS SA RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Pode a crítica vir com seus tambores, Seus clarins ou punhais envenenados, Que eu fico tal e qual como essas couves Que há nos grandes jardins civilizados. António Botto, inédito
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agradecimentos Ao longo do processo demorado da sua gestação e composição, este ensaio beneficiou da generosidade de muitas pessoas. Expresso a minha gratidão especial a Richard Zenith e a Fernando Beleza, leitores assíduos e companheiros de inúmeras conversas sobre Botto e assuntos afins. Agradeço também a todos e a todas que me convidaram para apresentar este projeto nas suas universidades, que leram um ou mais capítulos e/ou cujo interesse em debatê-lo em diversos contextos me ajudou a formular os seus contornos e conteúdos: António Fernando Cascais, António Manuel Ferreira, Carlos Mendes de Sousa, Daniel da Silva, Fernando Curopos, Mark Sabine, Paulo Alexandre Pereira, Phillip Rothwell, Raquel Ribeiro e Rhian Atkin. Pela ajuda material na localização ou interpretação de fontes, fico grata a Rita Correia, da Hemeroteca Municipal de Lisboa; Fátima Lopes, da Biblioteca Nacional de Portugal; Ricardo Marques, Ana Bela Almeida, Helena Lopes Braga, Mary Farrelly e Rita Larkin. A generosidade de George Monteiro em oferecer-me o seu próprio exemplar de Children’s Book de Botto merece um agradecimento muito particular. Por último, mas nunca em último, devo imensa gradidão a Victor K. Mendes pelo apoio e lealdade infalíveis que iluminam a nossa vida partilhada.
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introdução Reinventar Botto
Magro, diáfano, louro umas vezes, outras moreno – Botto já pintou os cabelos, por capricho, eternamente efebo recordando um pajem florentino, movendo-se ao ralanti numa lassa expressão de cansaço, abrindo muito os olhos redondos e apertando muito os lábios até comprimir a boca num coração de carta de jogar, desconcertante nas suas teorias e misterioso propositadamente – ele criou só para si um tipo de beleza estilizada masculina, uma estética moderna rimando[,] como nos versos, a sua pessoa, os seus fatos e a sua vida. Augusto Ferreira Gomes, citado pelo Repórter X (1929)
O título deste ensaio, O mundo gay de António Botto, representa um anacronismo que reconheço e assumo. Nem Botto nem os seus contemporâneos jamais empregariam o termo «gay» para se referir à homossexualidade masculina; mesmo em língua inglesa, o uso generalizado do adjetivo com este significado denotativo remonta apenas aos anos 60 do século passado (a data que os dicionários indicam para a sua primeira ocorrência é 1953), embora a respetiva conotação possa ser detetada em várias fontes – documentos históricos, literatura, cinema – ao longo das décadas e mesmo séculos anteriores. Hoje em dia, porém, a palavra gay encontra-se dicionarizada em português e amplamente entendida como um rótulo identitário associado, não apenas a uma conjugação da identidade masculina com a orientação erótica e afetiva para o mesmo sexo, mas a uma versão decididamente moderna de tal associação, forjada no O mundo gay de António Bott o
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contexto dos movimentos de defesa dos direitos humanos a partir da segunda metade do século vinte. Referir-me ao mundo que António Botto constrói à sua volta como um «mundo gay» não implica, no entanto, uma essencialização e projeção trans-histórica desta formação contemporânea. A formulação reflete, antes, a convicção (que será amplamente fundamentada mais adiante) de que o trabalho cultural realizado por Botto permite entrever – e por vezes até ver com muita clareza – a trajetória emancipatória que os sujeitos e as comunidades identificados com a «condição homossexual» irão percorrer ao longo do século vinte1. Por outras palavras, o próprio Botto coloca-se muitas vezes numa relação prospetivamente anacrónica para com o seu tempo histórico, por mais que o seu amigo e defensor Fernando Pessoa o procurasse devolver ao modelo identitário quintessencialmente finissecular de «esteta». Falar sobre o «mundo gay» em relação a Botto não é, de resto, uma ideia inteiramente original: inspirei-me para este efeito no título do ensaio Lorca y el mundo gay, publicado em 2009 por Ian Gibson, biógrafo histórico de Federico García Lorca, no qual Gibson encara «com normalidade» (para citar a linguagem do resumo do seu projeto que aparece na contracapa do livro) a homossexualidade do escritor, discutindo as correntes homoeróticas patentes na sua obra e lançando uma nova luz sobre vários elementos da biografia lorquiana decisivamente informados pela sua orientação sexual (incluindo o seu assassinato pela milícia fascista em 1936). O seu ensaio inscreve-se, deste modo, no crescente repertório de textos críticos e biográficos que invertem a tradição homofóbica estabelecida de varrer a consciência incómoda da sexualidade «desviante» do maior poeta espanhol do século vinte debaixo do tapete da respeitabilidade histórico-literária nacional e nacionalista. ————— 1 Sobre a história da identificação homossexual na modernidade ocidental e o debate construcionista-essencialista na historiografia LGBT ver António Fernando Cascais, «Apresentação» e «Um nome que seja seu: Dos estudos gays e lésbicos à teoria queer» em Cascais 2004.
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Tal como o projeto de Gibson e afins, a minha abordagem de Botto tem por objetivo a recuperação da matéria histórica, quer nunca discutida, quer marginalizada e/ou perspetivada de uma forma consciente ou inconscientemente enviesada, assim como a (re)interpretação desta matéria com a ajuda das ferramentas produzidas nas últimas décadas pelos estudos gays e lésbicos, estudos de género e a teoria queer. Os propósitos centrais de recuperação e reinterpretação que orientam este ensaio situam-no, porém, de uma forma assaz ortodoxa, na área dos estudos gays e lésbicos, paradigma que floresceu principalmente no espaço cultural anglo-americano nos anos 70 e 80 do século passado, e a opção de identificar o seu objeto como o «mundo gay» de Botto deriva, também, desta constatação. Os trabalhos de base que resultaram do referido esforço – pioneiro, frequentemente realizado a contramaré dos poderes vigentes, e que só muito gradualmente veio a ser reconhecido pela academia – criaram um fundamento robusto para a emergência dos Estudos Gays, Lésbicos e Queer como um paradigma institucionalizado e campo de debate – neste último sentido, muitas vezes por abrirem um espaço para a crítica multifacetada e construtiva das suas propostas iniciais de interpretação, crítica que levaria os seus protagonistas não apenas a um esforço de reconcetualização epistemológica e reavaliação política da matéria já assegurada, mas também a um regresso aos textos e aos arquivos2. A minha esperança é que este livro, com a sua perspetiva e construção assumidamente incompletas e provisórias, seja precisamente o oposto daquilo que se convenciona referir como um «estudo definitivo», oferecendo antes pistas e sugestões aproveitáveis em futuros trabalhos críticos sobre o escritor e criador cultural único à escala nacional, europeia e global que foi António Botto, e também sobre os meios socioculturais alargados em que se inseria a sua intervenção individual, em Portugal e no Brasil. ————— 2 Emprego aqui a designação de «Estudos Gays, Lésbicos e Queer» em homenagem ao volume fundacional desta área de estudos em Portugal enquanto um projeto disciplinarmente transversal (abrangendo as ciências sociais e humanidades), Indisciplinar a Teoria: Estudos Gays, Lésbicos e Queer (Cascais 2004).
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Regressando ainda à comparação com o caso de Lorca e ao modelo do livro Lorca y el mundo gay de Gibson, urge reconhecer que o legado nacional e transnacional de António Botto se configura de uma forma assaz diferente quando justaposto comparativamente com o caso exemplar do escritor espanhol. Deixando de lado, para já, a questão do estatuto de Botto como um «poeta menor» dentro do cânone modernista português (que contrasta com a posição incomparavelmente mais elevada de Lorca na história da literatura espanhola moderna), importa atendermos ao seguinte. Se Lorca é colocado por Gibson, na perspetiva que subjaz ao título do seu estudo, numa relação de contiguidade vital e duradoura com a formação que o seu biógrafo apelida de «mundo gay» (e que se traduz numa mundivivência complexa, composta de relações, discursos, tradições, imagens, interpretações, etc.), Botto situa-se antes no centro solar de um universo pessoal e coletivo que ele próprio cristaliza, sustenta e, principalmente, representa no contexto cultural e histórico da sua vida e obra. É um «mundo gay» pelo menos tão complexo e diverso como o de Lorca, mas protagonizado inequivocamente pelo próprio Botto, quer na perspetiva deste sobre si mesmo e o seu ambiente (real e imaginário), quer na visão que dele terão tido os seus contracenantes no drama da performatividade identitária que enformava a sua atuação social. Para começar a explicar melhor esta ideia, consubstanciada no título O mundo gay de António Botto, recorro ao epitáfio notavelmente delicado e comovente com que o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade respondeu à notícia da morte de Botto (atropelado em 1959 numa avenida do Rio de Janeiro, onde vivia desde 1951, tendo emigrado para o Brasil em 1947): Não me interessa discutir se o Bôto dos poemas finais valia ou não o Bôto triunfal de outros tempos. Interessa-me essa fidelidade do poeta a si mesmo, esse orgulho de não renunciar à poesia e de se con-
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siderar um príncipe do mundo, esse poder de manipular mitos e dar-lhes uma existência, uma densidade social. Nesse sentido, coube-lhe uma forma de felicidade que nenhum infortúnio externo podia atingir. Bôto criava o seu reino.3 Nesta apreciação Drummond alude a um aspeto da vida e da obra de Botto que tem sido regularmente assinalado na fortuna biográfica e crítica do autor, mas pouco ou nada explorado como matéria significante no seu próprio direito. Trata-se da sua extraordinariamente variada e robusta veia de autoinvenção, tipicamente caraterizada como a propensão para a mentira sobre si próprio que teria sido impulsionada pela sua megalomania imoderada. Divergindo desta tradição do comentário, proponho relacionar a referida faceta da criatividade do autor à sua improvável e em última análise insustentável – no contexto histórico e social em que viveu – identidade pública queer.4 A hipótese que coloco – e que será desenvolvida e ilustrada no capítulo seguinte, «A vida imaginada» – é que Botto não apenas se autoinventou como uma espécie de ícone gay, mas também construiu ao seu redor uma complexa realidade virtual, à escala internacional senão global, em que pôde prosperar plenamente como tal e em que a sua poesia homoerótica e a sua imagem de homossexual praticamente assumido não provocavam nem escarnho nem titilação, mas tão-somente admiração ————— 3 Correio da Manhã (RJ), 19 de março de 1959, p. 6. Pasta «Sobre a Morte de António Botto» (E 12/3536 no espólio de Botto na Biblioteca Nacional). Em todas as citações a grafia original foi atualizada, mantendo-se, no entanto, as variações do nome do escritor – Botto, Boto ou (por vezes, no Brasil) Bôto. As futuras referências aos materiais provenientes do espólio de Botto identificarão a cota e o nome da respetiva pasta. 4 Se o mundo construído por Botto é um mundo gay (como mais adiante se clarificará e ilustrará), penso que o termo queer será mais apropriado, em vários casos, para caraterizar a perceção pública da sua atuação e identidade social, entendendo-se neste contexto por «queer» qualquer manifestação desviante do padrão heteronormativo – e mesmo socialmente normativo num sentido mais vasto, em que «queer» significaria (como significa em inglês) «estranho, esquisito, bizarro» – sem que a leitura contextualmente situada desta manifestação leve obrigatoriamente à sua solidificação ontologizante no modelo «homossexual» ou «gay».
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e respeito inquestionáveis. Sem querer afastar propriamente as evidências da vaidade inegavelmente prodigiosa de Botto, venho sugerir, porém, que os produtos concretos desta invenção de si não apenas merecem ser contemplados como componentes integralmente significativas da vida artística do autor, mas podem também ser relacionados ao seu destino de um homem e artista gay, de origens muito humildes, que se conseguiu elevar às fileiras da elite cultural portuguesa apesar da sua pobreza e da falta de qualquer instrução formal avançada. Assim, a realidade virtual concebida por Botto teria a função de criar condições de possibilidade onde estas não existiam e de produzir um ambiente acolhedoramente homófilo e indiferente à origem de classe, capaz de o proteger das realidades muito menos acolhedoras do ambiente social e cultural em que efetivamente se movimentava.
O fenómeno bottiano No campo da ainda muito pouco estudada epistemologia cultural e literária do «armário» português, a vida, escrita e fortuna crítica de António Botto conjugam-se para formar um caso singularmente complexo e fertilmente potenciador da produção de conhecimentos inéditos5. Longe de afastar ou encobrir a homossexualidade assumida da sua personalidade poético-existencial, Botto cultivava o homoerotismo literário em primeira ————— 5 A expressão «epistemologia do armário» remete para o importante estudo de Eve Kosofsky Sedgwick, Epistemology of the Closet (1990). Em A Chave do Armário. Homossexualidade, casamento, família, Miguel Vale de Almeida observa que, no contexto contemporâneo, a singularidade do armário português se relaciona com «a própria estrutura familiar e sexual da sociedade portuguesa: a negação da importância do espaço público e a valorização das redes familiares e de amizade têm reproduzido uma enorme dificuldade nos processos de “saída do armário”, às vezes dos próprios dirigentes e ativistas [LGBT]» (Almeida 2009, 18). Está ainda inteiramente por realizar uma investigação arqueológica da constituição e evolução histórica desta questão na sociedade portuguesa, desde a Idade Média até à atualidade, mas principalmente ao longo do último século e meio.
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e desinibida pessoa como se nisso não houvesse nada de extraordinário para a época, levando até alguns críticos e jornalistas que se pronunciaram nos anos 20 e 30 sobre a sua poesia a professarem um desembaraço equivalente e bastante avant la lettre, no contexto português e europeu, perante a questão da afirmação e expressão aberta da preferência erótica pelo mesmo sexo. Mais, esta «efetivação no discurso do desejo homossexual» (Lugarinho 143) nas Canções de Botto dava origem, ao mesmo tempo, a um fenómeno social e cultural de dimensões muito mais alargadas e popularizantes do que um mero reconhecimento literário poderia provocar. Escrevendo em 1929, Repórter X (Reinaldo Ferreira) cita o resumo sucinto, elaborado por Augusto Ferreira Gomes, do espetáculo público da notoriedade de Botto: Mas toda a gente conhece, afinal[,] o Botto. Ele é um personagem marcante do desfile lisboeta. Quando ele passa, notam-no; apontam-no; cochicham o seu nome. Mesmo fora de Lisboa evocam-no, repetem «blagues», por vezes caluniosas, pelo prazer cruel de fazer rir os parceiros mesmo ao preço de uma calúnia… Já o meteram numa revista… Os jornais humorísticos picam-no de «charges»… E ele, indiferente quando a sua popularidade se torna grosseira[,] disfarça uma ponte [sic] de vaidade quando se sente discutido, popularizado, notado, saliente na lisura monótona da vida portuguesa. Esta faceta diversa e materialmente espetacular da existência social de Botto será discutida mais amplamente no Capítulo II («Armário, homofobia e resistência»). Mas entretanto vale a pena realçar, a propósito do estatuto exemplar que lhe era atribuído no ambiente cultural português, alguns passos da extensa polémica entre José Régio e Tomás Ribeiro Colaço que se desenvolveu no jornal Fradique em 1934-35 e que ilustra bem a quase-normalização da problemática homossexual que o fenómeno botO mundo gay de António Bott o
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tiano encarnava6. Pois na sua intervenção de 18 de outubro de 1934, por exemplo, Ribeiro Colaço oferece nada menos do que uma close reading, longa e detalhada, de uma canção homoerótica de Botto («Inda bem que me enganaste») que lhe teria sido indicada por Régio como «maximamente representativa das qualidades de António Botto» e em cuja discussão dedica um espaço considerável à contemplação da «homossexualidade literária». Régio, por sua vez, responderá a Ribeiro Colaço com uma contraleitura igualmente detalhada (e que se estende de 6 de dezembro a 21 de fevereiro do ano seguinte) da mesma canção, a qual diz considerar, aliás, não «maximamente representativa» mas apenas «uma das que acho mais belas» (Régio 1934, 5) na obra de Botto. Nesta polémica, apesar de se assumir como detrator de Botto, a quem considera um poeta medíocre, Ribeiro Colaço faz questão de insistir em que «nada [lhe] repugna ou [lhe] confrange tal modalidade literária» (ou seja, o homoerotismo): [Se] na literatura portuguesa surgisse um caso de homossexualidade sincera, – superiormente traduzida e sentida, tocada pela nobreza ou pela grandeza sentimental que não são apanágio exclusivo de nenhum sentimento – esse caso deveria merecer a quantos escrevem, e a quantos lêem com a faculdade de entender, respeito, admiração [e] acatamento. (Colaço 1934, 7) Valerá a pena notar ainda que a «falta de nobreza» que Ribeiro Colaço atribui ao poema de Botto se deve, na sua leitura, à feminização do sujeito lírico da canção, interpretação que situa este sujeito em sintonia ————— 6 Ver a descrição resumida desta «longa, mas serena polémica» em Amaro 1999, 57. Na sequência de artigos intervieram também outros autores, nomeadamente Marques Matias e José Augusto, cujos textos em defesa de Botto apareceram no Fradique a 4 de outubro de 1934. As versões revistas dos textos de Régio publicados no Fradique foram posteriormente reunidas no seu António Botto e o amor (Porto: Progredior, 1937). Sobre o tópico de Régio como leitor de Botto, ver Pereira 2005.
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com o que Eve Kosofsky Sedgwick viria a descrever como um dos «dois tropos de género, contraditórios entre si» que estruturam a história das concetualizações e representações discursivas da homossexualidade no Ocidente desde os finais do século dezanove, nomeadamente o «tropo da inversão», resumível, quando aplicado aos homens, pela divisa anima muliebris in corpore virili inclusa – ou seja, uma alma feminina no corpo masculino (2003, 31). Ribeiro Colaço afirma-se, pelo contrário, como partidário daquele «verdadeiro sentido da homossexualidade» que se exprime através da «identidade de sexos» (1934, 7), isto é, de acordo com «o tropo da separação dos géneros», para continuarmos a citar a terminologia de Sedgwick (2003, 31):7 Só esse sentido e não outro, se nos pode impor com recorte próprio, feição sua. Desde que um sentimento homossexual leve quem o sente a converter-se em caricatura do sexo oposto, ou, mais claramente, desde que um poeta homossexual passe a ser, mentalmente, uma poetisa, – deixa de haver homossexualidade, ou fica esta restrita a um aspecto material que não pode ser nunca o que interesse a poesia; esse poeta será, digamos, uma mulher do sexo masculino; – absurdo, ca————— 7 «Na perspetiva deste último [tropo da separação dos géneros], cruzar as fronteiras do género está longe de fazer parte da essência do desejo. Pelo contrário, o facto de pessoas do mesmo género, agrupadas de acordo com o critério mais determinante da organização social, cujas necessidades e conhecimentos económicos, institucionais, emocionais e físicos podem por isso ter tanto em comum, poderem afinal unir-se também no campo do desejo sexual, é a coisa mais natural do mundo. A substituição do termo “lésbica” por “mulher identificada-mulher” [woman-identified woman], como a própria noção de um continuum no desejo homo-social feminino e masculino, sugerem ambos que o tropo de separação dos géneros tende para uma assimilação mútua entre a identidade e o desejo, enquanto que os modelos de inversão dependem da sua distinção. Os modelos de separação dos géneros colocariam, portanto, cada mulher que gostasse de mulheres e cada homem que gostasse de homens no centro “naturalmente” definidor do seu próprio género, ao contrário dos modelos de inversão, os quais tendem a colocar os indivíduos homossexuais, biológica ou culturalmente falando, no limiar entre os géneros» (Sedgwick 2003, 31-32). No trecho citado, corrigi ligeiramente a tradução deste capítulo do livro de Sedgwick (o único segmento do seu estudo que se encontra traduzido para português).
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ricato, e ridículo, não já em nome dos cânones da normalidade, mas dentro do próprio âmbito a que o acompanhámos. (Colaço 1934, 7; itálicos no original) Escrevendo em resposta a esta intervenção de Ribeiro Colaço, e reafirmando-se como um defensor das elevadas qualidades literárias da poesia de Botto, Régio oferece uma interpretação mais matizada da identidade de género que atribui ao sujeito lírico de Botto (declarando, por exemplo, não negar «que haja feminilidade em muitos versos de António Boto» e que «todo o artista, por mais viril, participa em certos aspectos da natureza feminina»), mas em última análise concorda com o seu adversário em qualificar negativamente o tropo da inversão, reservando não para a homossexualidade masculina em geral mas antes para a sua encarnação excessivamente efeminada o mesmo desprezo que Ribeiro Colaço infundira na sua identificação do poeta invertido como «uma poetisa»:8 Tomás Ribeiro Colaço não intepreta como os interpreta os versos de António Boto senão porque vê nessa paródia do feminino o ridículo de certa homossexualidade (ridículo aliás profundamente trágico) e voluntária ou involuntariamente pretende lançar o ridículo sobre o poeta que discute. Se não é isto…, leu muito mal os versos de António Boto: nunca ele fala da sua beleza como uma mulher falaria da sua. Já nos diz a velha fábula que Narciso era homem… (Régio 1934, 7) ————— 8 A designação mais notória de um poeta português como uma «poetisa» (mais concretamente como «a nossa maior poetisa») deve-se a Teixeira de Pascoaes, num comentário sobre António Nobre dirigido a Eugénio de Andrade (e recordado por este último no texto «Imagem de Pascoaes», incluído no volume Os Afluentes do Silêncio). Embora tal discussão não caiba nos limites do presente ensaio, valerá a pena interrogar a relação histórica entre esta identificação desprestigiante, reiteradamente trocada «entre homens» (poetas portugueses), e o processo da emergência da autoria efetivamente protagonizada por mulheres no campo da poesia portuguesa ao longo do século XX. Sobre a descrição de Nobre como «a nossa maior poetisa», ver ainda Klobucka 2011, 9-10.
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Como estes breves extratos do debate entre Régio e Ribeiro Colaço permitem constatar, o ambiente cultural dos anos dourados do poeta António Botto, parecendo por vezes improvavelmente homófilo, apresentava-se também – e menos surpreendentemente – como repleto de sintomas de homofobia, mesmo que esta não equivalesse a um repúdio absoluto mas antes fosse qualificada ou reservada, como o é na afirmação acima citada de Régio, para «certa homossexualidade» (num discurso de policiamento identitário e aceitação seletiva que ainda não se encontra de todo ultrapassado na realidade portuguesa do século vinte e um). O próprio Régio, escrevendo trinta anos após a polémica que o envolvera nas páginas do Fradique, oferecia uma representação eloquente da ambivalência desse ambiente através do retrato de Botto – disfarçado de poeta João Salvador – que inseriu no volume Vidas São Vidas do seu romance A Velha Casa. A citação que se segue resume a reação, complicada e contraditória, perante a imagem pública de João Salvador que é partilhada por Lelito, o protagonista autobiográfico do romance, e o seu círculo de amigos: «Que se passará, em verdade, no íntimo deste homem?» pensou algumas vezes «Quem será ele?» Decididamente, começara a admirá-lo, no seu género; mas sem deixar de também o desprezar, ou até, em certos momentos, o achar enjoativo ou repugnante. De resto … a outros componentes e aderentes do grupo se estendia esse misto de admiração e desprezo… (125) Como o narrador regiano também observa, um motivo particular da perceção negativa de João Salvador originava entre os que eram os seus «colegas em todos sentidos, embora alguns secretos», mas que, ao contrário dele, não chegavam a verbalizar a sua singularidade coletiva na poesia que escreviam: «Os versos destes eram vulgares, por isso eram estes que mais o odiavam e invejavam» (120). Como João Salvador, Botto encarO mundo gay de António Bott o
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nava um segredo que era aberto até ao máximo possível (e impossível), mas que para os que o rodeavam permanecia tão indizível como o fora desde sempre. Um outro testemunho retrospetivo (da autoria de Luiz Pedro Moitinho de Almeida) oferece o relato de Fernando Pessoa – que partilhava com Régio o papel de um dos promotores e defensores mais fervorosos de Botto no meio literário português – a contar anedotas sobre o amigo e a fazê-lo «em tom gozão … aflautando a voz» (12). Considerado como um dispositivo de representação, o maneirismo vocal de Pessoa – uma enunciação imitativa intencionalmente destinada a significar a homossexualidade de Botto – comporta um sentido performativo particularmente complexo. Este sentido poderia ser interpretado em termos da dinâmica de enunciação (e de denúncia) que Sedgwick descreve de maneira seguinte no contexto da sua análise de Em Busca do Tempo Perdido de Proust: «a teatralização do armário-figurado-como-espetáculo de forma a preservar a privacidade de um outro armário, ocultado como o ponto de vista» (1990, 242)9. A relação Botto-Pessoa será abordada no respetivo capítulo deste estudo, mas vale a pena observarmos preliminarmente que a cumplicidade fluida e equívoca entre a evidência espetacular da autorrevelação de Botto e a contradança vertiginosa da ocultação e manifestação de desejos dissidentes, protagonizada coletivamente pela «companhia heterónima», é capaz de render benefícios analíticos consideráveis numa leitura aprofundada desta relação. Note-se ainda que o sentido do «ridículo» que satura a apreensão pública da figura do homossexual, e que na polémica entre Régio e Ribeiro Colaço figura como um elemento instrumentalmente relevante da hermenêutica explícita e implícita tecida à volta da canção analisada, era também uma preocupação recorrente na escrita pessoana, tendo sido canalizada preferencialmente para a poesia de Álvaro de ————— 9
Esta e outras traduções serão da minha responsabilidade sempre que não for dada outra indicação.
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Campos, mas manifestando-se igualmente em Bernardo Soares ou nos apontamentos ortónimos sobre a formação do «homem superior» publicados originalmente por Teresa Rita Lopes em Pessoa por Conhecer: «O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar» (Lopes 27)10. Observe-se, finalmente, ainda a propósito da voz aflautada e do tom gozão de Pessoa, que a história, simultaneamente multissecular e escassa, da representação da homossexualidade masculina no universo literário português, desde o meirinho Fernan Díaz das cantigas de escárnio e maldizer até ao espantoso Libaninho de Eça de Queirós (este último surgindo no mundo ficcional de O Crime do Padre Amaro na mesma altura em que, de acordo com a muito debatida tese de Michel Foucault, o homossexual é constituído como espécie no discurso normativo da sexualidade ocidental), consiste de retratos compostos no modo exclusivamente satírico pelo menos até O Barão de Lavos de Abel Botelho nos finais do século dezanove (com a sua imagem de degenerescência muito mais sinistra do que cómica, posto que roçando a autoparódia), se não mesmo até ao século vinte, quando finalmente surgem as perspetivas radicalmente diferentes das obras como Nova Sapho (1912) do Visconde de Vila Moura, A Confissão de Lúcio (1913) de Mário de Sá-Carneiro e Canções (1920-21) do próprio António Botto. Será também pertinente recordar, neste contexto, que a vida de Botto sofreu uma viragem decisiva para pior com o seu despedimento, em 1942, do cargo de funcionário público que ocupava, ato justificado com referência a três infrações específicas, duas das quais eram de natureza elocu————— 10 É pertinente registar também que a caraterização recebida de Botto como uma «figura ridícula» é reconhecida defensivamente na frase de abertura do importante ensaio de Joaquim Manuel Magalhães sobre o poeta: «Se considerarmos António Botto … meramente como “esteta”, ele pode surgir como uma figura ridícula e uma escrita medíocre» (17).
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tória: «dirigi[r] galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega» e «fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição» (Diário do Governo 1942, 5795). Parece seguro afirmar que foi precisamente a liberdade incauta da expressão discursiva e corporal bottiana – tanto na sua modalidade literária como na vivencial – que determinou com uma consistência particular o ultraje que a sua existência representava, não obstante a declaração sintomaticamente bizarra de João Gaspar Simões de que era «na verdade, nos olhos que a sodomia de António Botto avultava, coisa que, aliás, acontece quase sempre com os sodomitas» (168). Botto destacava-se como uma figura excecional por causa do que dizia e por causa da maneira como falava – devido ao que Maria da Conceição Fernandes, no seu livro sobre Botto, refere acriticamente como o seu «preciosismo narcísico … forma de chamar a atenção geral para a sua pessoa», apoiando esta afirmação com o testemunho de Luís Forjaz Trigueiros, numa entrevista pessoal, de que «o poeta quase sempre se conduzia como se estivesse num palco, proferindo as suas frases com um certo empolamento dramático» e que «esse seu modo afectado “aborrecia as pessoas” e que as levava, muitas vezes, a afastarem-se do poeta» (Fernandes 49). Uma releitura do espetáculo da presença pública de Botto como – passe ainda este anacronismo – um homem gay out and proud, espetáculo recordado em muitos testemunhos contemporâneos e posteriores (embora geralmente em clave homofóbica ou, no melhor dos casos, ambivalente, como ilustram as citações acima), permanece um objetivo crítico por realizar. Como escreve Paulo Alexandre Pereira, «De que outro modo, se não como estudada teatralização de si, poderão ser lidas as oscilantes modulações da persona poética de Botto quando, afivelando a máscara-simulacro da mais estreme honestidade confessional, ele se revela, ainda e sempre, nos microdramas … que constituem os seus poemas, artista poseur?» (2005, 149; sublinhados no original). No presente estudo, a matéria poética tanto das Canções como dos poemas e rascunhos inéditos
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de Botto será explorada recorrentemente – como não poderia deixar de ser – mas a ênfase principal recairá precisamente na interação mutuamente contingente das esferas da expressão literária, por um lado, e da atuação e receção social, pelo outro, na esteira do reconhecimento, articulado por Carlos Mendes de Sousa, do «entrelaçamento da personalidade biográfica com a personalidade literária» na composição da «figura mundana» (728) que Botto foi, inextricavelmente, tanto em vida como em literatura.
Os lugares de Botto O lugar, ou melhor, os diversos lugares de Botto na memória histórica e literária portuguesa, sobretudo os que foram traçados discursivamente ao longo das décadas decorridas desde a sua morte em 1959, formam um mosaico heterogéneo, composto tanto de presenças como de ausências. Entre estas últimas pode contar-se, para dar apenas um exemplo entre vários possíveis, a sua não inclusão entre os 47 poetas representados na antologia crítica da poesia portuguesa no século vinte, Século de Ouro (2002), organizada por Pedro Serra e Osvaldo Manuel Silvestre. Como é geralmente sabido (já que esta faceta do volume foi objeto de muita e acesa discussão na altura do seu lançamento), a escolha dos autores e textos incluídos na antologia não foi operada pelos próprios editores, mas antes em negociação entre estes e o coletivo dos 73 ensaístas convidados a colaborar no projeto, o que torna os resultados deste processo de seleção mais sugestivos ainda enquanto indicadores sintomáticos de um determinado consenso cultural e académico. Já no capítulo das presenças, é possível citar o longo verbete (da autoria de Carlos Mendes de Sousa) dedicado a Botto no primeiro volume de Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, publicado em 1995; neste volume, que abrange as letras de A a C, os únicos auO mundo gay de António Bott o
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tores com direito a mais colunas de texto do que Botto são Camões e Camilo Castelo Branco, enquanto um espaço igual (sete colunas) é ocupado apenas por Afonso X, Diogo Bernardes e Eugénio de Andrade. É claro que se trata, neste caso, de uma relativa anomalia no horizonte global das publicações enciclopédicas e pedagógicas sobre a literatura portuguesa. O que parece certo é que, ao contrário de vários outros poetas ou escritores considerados «menores» no repertório canónico das letras nacionais, Botto não ocupa um lugar clara e consensualmente definido, tanto no que diz respeito à determinação do valor relativo da sua obra quanto no que toca à definição dos elementos concretos que subjazem a este valor. Por outras palavras, não existe propriamente uma versão canónica do conhecimento sobre o autor António Botto, consolidada pedagogicamente para o efeito dos programas de ensino ou mesmo para a ilustração dos leitores cultos fora do ambiente escolar ou universitário, o que pelo menos em parte será ainda atribuível ao diagnóstico, formulado em 1989 por Joaquim Manuel Magalhães, de que Botto «não pertence aos vendáveis por obrigação do outro comércio lírico institucional das Faculdades de Letras, onde não seria muito “aceitável pelos colegas” como tema de cursos» (18). Ao mesmo tempo, segundo ilumina António Fernando Cascais, o repositório dos discursos críticos sobre Botto contém um material muito rico, em particular, para o estudo dos «processos retóricos com que a crítica literária laborava no sentido de “ambiguação”, por assim dizer, da relação entre os traços biográficos e a expressão artística e literária» (2013, 384): Termos como esteticismo, paganismo, decadentismo, termos distintamente médicos ou psiquiátricos, ou ainda termos que passam a circular indiferentemente entre a cultura popular, a representação mediática, o vocabulário crítico e a linguagem científica (efeminação, narcisismo, sensibilidade, sensualismo, delicadeza) … passam a constituir filtros úteis e eficazes que permitem à crítica proteger os seus au-
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tores de censura sempre que não querem chamar as coisas pelo nome, bem assim como, mas simetricamente, permitem insinuar a suspeita sobre a sexualidade deles sempre que o propósito é destruí-los. Trata-se de uma etapa crucial na construção do armário literário português. Convém notar ainda, a este propósito, que o discurso eufemístico e o emprego de termos codificados (do foro médico, psicológico ou estético) para se referir obliquamente à identidade existencial e/ou expressão literária não heteronormativa nem sempre pode ser claramente delimitado de acordo com a intenção subjacente de quer «proteger» quer «destruir» o autor visado, como vários exemplos ilustrarão ao longo dos capítulos seguintes11. Nesta secção, sem procurar operar um levantamento minimamente abrangente da fortuna crítica de Botto, mesmo no que diz respeito ao tratamento hermenêutico da sua poesia homoerótica e condição biográfica homossexual, atenderei apenas a alguns textos particularmente ilustrativos da complexidade da questão e que oferecem uma visão preliminar da construção da imagem pública de Botto, processo que será discutido amplamente mais adiante. Se os «termos distintamente médicos ou psiquiátricos» referidos por Cascais passam a infiltrar-se, efetivamente, no ensaísmo literário a propósito de Botto, existe pelo menos um exemplo do emprego do seu «caso» num tratado com ambições propriamente científicas, intitulado Sexo Invertido? Considerações sobre a homossexualidade (1943), da autoria de Luís A. Duarte Santos, identificado no frontispício como «primeiro assistente e encarregado de regência de cursos na Universidade de Coimbra» e autor de vários trabalhos na área de medicina e biotipologia. Declaradamente militante nos seus propósitos, o autor cita em epígrafe nove versos de uma ————— 11 Emprego aqui o masculino singular não no sentido genérico, para significar escritores de qualquer sexo, mas porque este repositório discursivo tem sido construído quase exclusivamente à volta de autores homens, pelo menos historicamente (por motivos demasiado complexos para poderem ser aqui comentados).
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canção de Botto – sobre «o amor sem pudor» que «Tanto pode abraçar uma donzela / Mordendo-lhe os mamilos virginais / Como beijar o sexo do primeiro / Adolescente que passe» – para em seguida afirmar a razão de ser do seu próprio livro em seguintes termos: Contra o «clima» que permitiu sentir, escrever e publicar estes espantosos e inconcebíveis versos, ergue-se o presente trabalho, propositada e consciente reação conciliadora da verdade científica com a moral. O que torna Sexo Invertido? um artefacto cultural interessante no presente contexto é a insistência reiterada do autor na urgência política da sua intervenção e o destaque atribuído aos versos de Botto, na epígrafe mas também no corpo do ensaio, como o sintoma da decadência moral patente na atualidade portuguesa. Como veremos no Capítulo II, já a primeira edição das Canções provocara, em 1921, diagnósticos muito semelhantes ao formulado em 1943 pelo lente de Coimbra: A legião dos Wilde (com as obras de quem os editores portugueses, na presente febre editorial de traduções, começam a inundar o nosso mercado), Gide, Proust, Botto e das Collete [sic], vai sempre crescendo por vezes com os francos aplausos da crítica que chega a regozijar-se com a existência desses casos inspiradores de obras de alto valor estético. (Santos 31) Por mais que Botto procurasse (e mesmo até certo ponto conseguisse) a legitimação da sua obra pelas autoridades nacionais moralmente conservadoras – como o cardeal patriarca de Lisboa, cuja aprovação formal vinha registada no frontispício do Livro das Crianças já em 1931 – a sua reputação continuava a justificar que fosse visto, em 1943, como o único escritor português comparável aos exemplarmente corruptos Wilde, Gide,
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Proust e Colette (distinção que o autor de Sexo Invertido? não via, manifestamente, como um elogio). Se esta contribuição para a fortuna crítica de Botto figura num polo extremo (e facilmente caricaturável) na escala das abordagens do seu «caso» literário, já algumas outras visões críticas, mais epistemologicamente respeitáveis, constroem uma versão mais matizada e bem educada, porém ao mesmo tempo igualmente pejorativa e comparavelmente ideologizada, do valor da obra bottiana. Assim, por exemplo, o pessoano alemão Georg Rudolf Lind dedica uma secção do seu ensaio Teoria poética de Fernando Pessoa (1970) ao «equívoco em relação a António Botto» (144), procurando expor o fracasso do ensaio «António Botto e o Ideal Artístico», publicado por Pessoa na revista Contemporânea em 1922, em tentar encobrir «a pobreza artística» da escrita bottiana através de «uma transposição cega de ideias prediletas para um assunto que se lhes não adequa» (152). Como teremos a oportunidade de ver melhor nos capítulos seguintes, o referido ensaio – o primeiro de vários que Pessoa dedicou à obra do amigo – efetivamente encena uma relação sofisticada de desadequação entre as ferramentas hermenêuticas e a matéria literária trabalhada no texto (relação esta colocada, aliás, em perspetiva irónica pelo próprio autor, por via de Álvaro de Campos, o que no mínimo mostra não se tratar de uma operação «cega»). Se neste ponto concreto seria difícil discordar de Lind, o que merece destaque, no presente contexto, não será a sua tese principal, razoavelmente evidente, mas antes dois aspetos distintos da sua avaliação da obra e personalidade artística de Botto. O primeiro é a energia retórica investida no negativismo da sua caraterização do poeta como um «pobre forjador de versos» (154), como se Botto precisasse urgentemente de ser rebaixado como autor e como se lhe coubesse a responsibilidade moral pela «falha» crítica de Pessoa em «António Botto e o Ideal Artístico». O segundo ponto é a notável cegueira de Lind em relação à faceta propriamente política da irrupção das Canções no ambiente português do início do anos vinte; argumentando contra a intelectualização O mundo gay de António Bott o
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e ideologização de Botto por Pessoa, Lind insiste repetidamente numa visão da poesia bottiana como uma escrita não apenas sem valor mas também sem qualquer significado cultural ou ideológico identificável: É em vão que Pessoa tenta emprestar à amoralidade de Botto o verniz dum propósito intelectual, chamando-lhe liberdade em relação ao outro sexo, liberdade do conceito de dever, liberdade em relação à ideia do bem. Em vão justifica Pessoa a homossexualidade do amigo como «arma contra a opressão do nosso ambiente»: Pessoa tropeçara na sua própria destreza mental ao tentar utilizá-la na avaliação dum poeta de quem qualquer definição ideológica estava condenada, desde o início, ao fracasso. (154) Se o passar dos anos moderou o léxico crítico legitimamente aplicável à caraterização da escrita homoerótica de Botto – escrevendo nos finais dos anos sessenta, Lind não emprega aspas ao referir-se à «obscenidade» e «imoralidade» desta – outros elementos da atitude crítica não inaugurada mas exemplificada aqui pelo seu ensaio continuam recorrentes no mainstream histórico-literário nacional. Assim, em Entre Fialho e Nemésio (1987), Óscar Lopes será perentório na sua denúncia desproporcionalmente acesa do «mito de um talento que não resiste à leitura atenta» (594) das Canções: As Canções falham inteiramente, até por simples falta de inteligência e cultura, no seu visível intuito de recriar a lírica anacreôntica em tempos modernos. O culto da sensualidade, do vinho, o seu específico donjuanismo ou narcisismo, o registo das vicissitudes de um amor escondido, não recuperam a dignidade dos predecessores. O amoralismo não se liberta, afinal, de laivos de uma baixeza inconscientemente assumida («Se os nossos corpos se entendem / nada mais nos é preciso»). O mau gosto é por vezes atroz…
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Mais umas investidas gratuitamente hostis contra Botto pontuam aqui e ali o espaço textual de Entre Fialho e Nemésio, como ilustra um resumo isolado da obra do poeta como um «misto da então provocante homossexualidade, descarada autopropaganda, populismo afadistado e (noutra parte da obra) da moralidade mais convencionalmente cor-de-rosa burguesa» (584) ou a afirmação de que Pessoa terá editado e louvado Canções «para irritar o público» (475). É também no capítulo dedicado a Pessoa, referindo-se à sua prática de «reduções ao absurdo», que o crítico observa que as apologias pessoanas «de Botto e Raul Leal pareceram, no tempo, absurdos éticos» (495). Em justaposição com a referência à «então provocante homossexualidade», esta frase permite sugerir a leitura dos juízos citados como em boa parte dependentes de uma projeção pessoal a partir dos horizontes epistemológicos e potíticos situados na segunda metade do século vinte, justamente ao contrário do que implicam as partículas discursivas «então» e «no tempo»12. Como veremos mais adiante, os depoimentos apologéticos de Pessoa sobre Botto e Leal registados na altura da polémica sobre a «Literatura de Sodoma» não eram nem atos isolados nem legíveis como absurdos pelo menos por uma pequena mas motivada comunidade de sentido à qual em boa parte, ou mesmo principalmente, se destinavam. Contra o pano de fundo da intepretação histórico-literária e posicionamento ético-político perante o caso de Botto exemplificados seletivamente pelas abordagens de Georg Rudolf Lind e Óscar Lopes, o já aqui citado breve ensaio de Joaquim Manuel Magalhães sobre o autor, publicado em 1989, surge como um depoimento claramente diferenciado em relação ao consenso crítico que implícita e explicitamente evoca, assinalando, ————— 12 Óscar Lopes assume, aliás, este método de perspetivação por projeção ao afirmar, no mesmo parágrafo, que «[o] ocultismo aristocrático de Pessoa pelo tempo da primeira Guerra Mundial reage aos lugares-comuns da ideologia pequeno-burguesa nacional em termos cujo sentido histórico hoje não ilude ninguém: o Ultimatum de Álvaro de Campos é tão claramente pré-fascista como o Manifesto do Futurismo de Marinette [sic], que aliás o inspira» (495; sublinhados meus).
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por exemplo, o valor relativo da noção de «bom gosto» (usada por Lopes): «O que é de “mau gosto” num poema tem de ser pressentido em função de gosto de cada um, por sua vez ligado ao gosto dominante de uma época» (17-18). Na sua perspetiva, as inegáveis fraquezas localizadas das Canções cedem perante «uma outra qualidade» em que consiste o valor «perdurável» do fenómeno poético bottiano na sua generalidade (18): Essa qualidade reside, talvez, na coragem com que afirma, tematicamente, um desejo homoerótico consciente dos terríveis tabus sociais e defrontando-os; na linearidade com que joga esse desejo, ora descrevendo-o em pequenas histórias exemplares, ora assumindo-o como tormento cantável; na difícil simplicidade com que aproxima do ritmo e do sentir da poesia popular a complexidade tornada flexível dos sentidos verbais. A reconfiguração dos significados e qualidades associáveis à poesia das Canções, com o objetivo de «fazer repensar Botto» (20), que o ensaio de Joaquim Manuel Magalhães opera tem tido uma descendência limitada e descontínua na crítica e historiografia literária em Portugal. No texto pioneiro de Eduardo Pitta, Fractura: A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea (2003), Botto é mencionado repetidamente, como não podia deixar de ser, mas a sua breve apreciação qualitativa como um poeta cuja «pulsão homossexual … traduziu-se num esteticismo em grande parte falhado» (25; sublinhado original) ecoa um lugar comum enviesado da fortuna crítica bottiana13. O objetivo que o presente ensaio procura cumprir não se prende propriamente com uma proposta de interpretação crítica alternativa da poesia lírica (ou da obra ————— 13 É importante lembrar aqui que poucos anos mais tarde o autor de Fractura iniciou o ambicioso e muito meritório projeto de reeditar as obras completas de Botto, cuja realização foi no entanto interrompida pela falência da editora Quasi após o lançamento, em 2008, dos primeiros dois dos nove volumes previstos (Canções e Outros Poemas e Fátima).
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completa) de Botto que vise redimensionar a sua inscrição nas narrativas da história da literatura portuguesa moderna. Mas subjaz-lhe a intenção central de construir um repositório renovado de materiais e ferramentas que facilite a eventual realização do projeto maior de «repensar Botto» dentro e fora das coordenadas histórico-literárias nacionais.
Os arquivos e os detritos O heterogéneo e disperso conjunto de textos literários éditos e inéditos, apontamentos soltos, cartas, testemunhos, artefactos visuais, estudos históricos, fontes de imprensa, etc., em que este ensaio se fundamenta constitui o repositório ao qual me continuarei a referir como o arquivo geral de Botto, ou seja, o agrupamento de elementos diversos que possibilitam a documentação e análise (forçosamente seletivas no presente contexto) do fenómeno multifacetado da sua atuação e receção literária e cultural. No centro deste conjunto global – do «arquivo» no sentido lato, conceito robustamente explorado pelas humanidades e ciências sociais ao longo das últimas décadas – encontra-se o arquivo bottiano no sentido mais circunscrito e tradicional, o da coleção de documentos arquivados à guarda de uma instituição dedicada à preservação e construção do conhecimento histórico, no caso a Biblioteca Nacional de Portugal. O extenso espólio de Botto albergado no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da BNP, composto de milhares de manuscritos, recortes de imprensa e outros documentos, provenientes quase exclusivamente dos doze anos do seu exílio no Brasil (1947-59), foi um recurso inestimável para a construção deste estudo, apesar da sua organização em parte rigorosa e em parte informe – com pastas que reúnem por vezes dezenas de textos em verso e prosa sob rótulos coletivos genéricos (por exemplo, «Fragmentos vários») – e apesar da qualidade predominantemente, embora não univerO mundo gay de António Bott o
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salmente, inferior dos rascunhos literários e ensaísticos que Botto produzia naqueles anos do seu declínio físico e mental. Tanto o arquivo mais abrangente, que permite mapear e analisar o protagonismo cultural de Botto, como o seu espólio pessoal prestam-se à exploração orientada pelo que J. Halberstam descreve como a «metodologia detritívora» (scavenger methodology), o emprego de métodos diversos «para recolher e produzir informação sobre os sujeitos que têm sido deliberada ou acidentalmente excluídos dos estudos tradicionais da atuação humana» (13), alimentando-se de materiais eventualmente pouco apetecíveis para o bom gosto institucionalizado e afastando a compulsão académica de respeitar a coesão disciplinar e escalas recebidas de valores estéticos e ideológicos. No caso particular bottiano, esta metodologia urge também o afastamento da preocupação decisiva com a determinação da verdade empírica e a rejeição da desvalorização da produção imaginária revelada como empiricamente insustentável, nomeadamente no que diz respeito à «vida imaginada» de Botto. Não quero com isto dizer que não me preocupa o valor factual da matéria aqui estudada; antes pelo contrário, procuro sempre que possível e desejável determinar o que efetivamente aconteceu e fundamentar com o que se sabe qualquer especulação sobre o que poderá ter acontecido, assim como corrigir ou pôr em perspetiva os equívocos e até erros que abundam na fortuna biográfica e crítica de Botto (o que realça a natureza muitas vezes mais lendária do que propriamente histórica do conhecimento disponível sobre o autor). Mas ao mesmo tempo procuro também recuperar e valorizar os ingredientes do registo histórico que tenderiam a ser marginalizados ou mesmo rejeitados – precisamente como «detritos» – numa abordagem regida por princípios ortodoxos da moral hermenêutica, cujo emprego não raro enviesado tem contribuído, neste caso particular, para promover a inferiorização de Botto enquanto autor literário e ator cultural, como já aqui se ilustrou e como ainda veremos mais adiante.
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Um exemplo concreto que permite elucidar tanto o interesse em desvendar a factualidade da vida e obra de Botto como a importância de empregar este registo factual apenas como o ponto de partida para um trabalho de interpretação contextualizante e construtivo tem a ver com as traduções das suas obras. Como é sabido, principalmente nos últimos anos da vida Botto alegava (e vários comentadores, geralmente jornalistas, portugueses e brasileiros, repetiam) que os seus livros tinham sido traduzidos para numerosos idiomas e editados em milhões de exemplares pelo mundo fora. Este tópico será discutido mais amplamente nos capítulos seguintes, mas note-se de forma preliminar que fontes bibliográficas recentes (como, por exemplo, a cronologia da vida e obra de Botto inclusa na edição das Canções e Outros Poemas por Eduardo Pitta) identificam seguramente apenas duas traduções publicadas, ambas em inglês: The Children’s Book, editado em Lisboa, pela Bertrand, em tradução de Alice Lawrence Oram, e as Songs vertidas por Fernando Pessoa (e impressas apenas em 1948, treze anos depois da morte do tradutor, em Portugal ou no Brasil). Botto afirmava igualmente que O Livro das Crianças, além de contar com a sanção oficial do cardeal patriarca de Lisboa, era também aprovado para uso escolar na Irlanda: «traduzido em inglês e aprovado oficialmente na Irlanda» é, por exemplo, a descrição do livro na lista das obras do autor em frontispício da sua antologia de contos infantis A Verdade e Nada Mais, publicada em 1935. Tendo em conta a abundância mirabolante das afirmações bottianas fabricadas – até na mesma lista, onde O Meu Amor Pequenino, por exemplo, aparece «traduzido em holandês, italiano, espanhol, inglês e alemão» – assim como o facto de The Children’s Book ter sido editado em Portugal (e não na Grã Bretanha), a hipótese da adoção escolar irlandesa, «facto ainda hoje controvertido» no dizer delicado de Pitta (Botto 2008, 17), parecia destinada a ser remetida para a longa lista das invenções bottianas. Ora bem. Acontece que O Livro das Crianças foi traduzido não apenas para inglês mas também para irlandês e que a publicação desta última O mundo gay de António Bott o
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versão foi da responsabilidade da editora do Estado da Irlanda14. Do livro, editado em 1941 e intitulado Leabhar na hóige: scéalta ón bPortaingéilis (Livro da juventude: Contos [traduzidos] de português), existem alguns exemplares nas bibliotecas públicas irlandesas e britânicas e um na Universidade de Wisconsin em Madison, nos Estados Unidos. Este último exemplar, o único a que tive acesso, foi encadernado em Lisboa e leva uma inscrição manuscrita de Botto («As crianças são o céu do mundo»), podendo-se especular que terá pertencido, porventura, à coleção particular de Jorge de Sena, que foi professor em Wisconsin entre 1965 e 197015. Na edição irlandesa não existe nenhuma indicação sobre o uso escolar do livro, de modo que Botto deverá ter extrapolado esta ideia (cujo valor de verdade não consigo determinar) ou do facto da publicação do livro pela editora do Estado irlandês ou da informação fornecida pelo tradutor. Este, curiosamente, manteve-se anónimo, ao contrário da prática comum seguida na série de publicações a que o livro pertence. Contribuiu, no entanto, um breve prefácio (que se segue a uma nota atribuída a Pessoa), no qual Botto é comparado a Patrick (Pádraig) Pearse, escritor e ativista político irlandês que foi um dos líderes e o principal porta-voz da Revolta da Páscoa em 1916, vindo a ser executado após o fracasso desta insurreição contra o domínio britânico e tornando-se um dos heróis do nacionalismo irlandês. De acordo com o tradutor do Livro das Crianças, existem «grandes semelhanças» entre a escrita de Botto e de Pearse; mais espantosamente ainda, o seu prefácio afirma que a coletânea dos contos infantis de Botto é o primeiro livro alguma vez traduzido da língua portuguesa para a irlandesa. ————— 14 Fico profundamente grata a Mary Farrelly e Rita Larkin pela tradução do prefácio do tradutor e de outros elementos do livro, e pela elucidação das referências contextuais relevantes. 15 O que explicaria a afirmação de Sena, no verbete que dedicou a Botto em Líricas Portuguesas, de que os seus contos infantis «tiveram realmente as edições estrangeiras que se julgava ser uma das mentiras megalomaníacas do poeta» (cit. em Botto 2008, 17), embora a «edição estrangeira» (sem contar os poucos livros de Botto editados no Brasil) fosse de facto apenas uma.
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Tendo em conta as caraterísticas singulares deste evento editorial – a edição cuidada, com gravuras originais lindíssimas; a chancela do Estado irlandês; a equiparação extravagante entre Botto e Pearse tecida pelo tradutor anónimo – é curioso que o próprio autor assim beneficiado não tivesse procurado divulgar e ressaltar mais assiduamente esta prova inimputável do êxito internacional da sua obra, para além da muito reproduzida asserção sobre o seu uso escolar – a qual, note-se, fazia ainda antes (em 1935) de a edição irlandesa efetivamente ser lançada (em 1941)16. Será que a posição periférica da Irlanda no sistema cultural europeu, comparável à ocupada por Portugal, não oferecia as mesmas garantias de valorização que as provas, inteiramente fictícias, do reconhecimento no foro internacional formuladas por Botto em forma de elogios que lhe eram supostamente dirigidos pelos escritores do «centro» europeu – como Lorca, Gide, Pirandello, Virginia Woolf (entre muitos outros) – e com que ornamentava liberalmente as edições das suas obras? E que significado podemos atribuir ao anonimato do tradutor irlandês entusiasmado e à comparação que este faz entre Botto e Pearse, sobretudo tendo em conta os debates sobre a sexualidade do líder nacionalista irlandês? Segundo escreve o seu biógrafo mais recente, «Embora não seja possível derminar se Patrick terá sido um pedófilo latente ou ativo, para além da sua tendência a beijar rapazes, parece provável que se inclinava sexualmente nessa direção» (Augusteijn 62). Botto traçava uma linha divisória categórica entre a sua escrita homoerótica e a literatura infantil que produzia, mas a sua justaposição com Pearse no prefácio à edição irlandesa do Livro das Crianças, no contexto da reputação estabelecida de Botto como cantor singular da ————— 16 Em 31 de janeiro de 1941, o jornal Os Sports, no qual Botto colaborava, noticiava o seguinte: «O Ministério da Educação da Irlanda prestou ultimamente homenagem ao ilustre poeta português, aprovando oficialmente um dos seus livros, que será ofertado também como brinde aos alunos mais aplicados». Observe-se que aqui também é a chancela da aprovação oficial e não a existência em si da tradução e edição irlandesa que interessa ao autor da notícia, quase certamente ditada pelo próprio Botto.
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sexualidade proscrita, poderá lançar luz sobre a hipotética motivação do tradutor ao mencionar Pearse, afirmando que tanto este como Botto entendiam «a mente das crianças» e que eram escritores «do mesmo género». Posto que o tradutor anónimo não chegasse a explicitar o seu eventual desejo de promover uma apologia do amor aos rapazes através da evocação conjunta de Botto e Pearse – objetivo para o qual O Livro das Crianças enquanto tal não oferece, aliás, nenhum fundamento – a conjugação complexa dos elementos que convergem na publicação da edição irlandesa dos contos de Botto constitui-se como uma contribuição fascinante para o mapeamento da circulação e articulação transnacional da cultura queer europeia nas primeiras décadas do século vinte. Tal propósito mais abrangente, cuja realização colocaria o fenómeno bottiano em diálogo com os protagonismos e experiências dos seus pares internacionais e com os contextos específicos da atuação cultural destes, não chega a ser cumprido pelo presente estudo, ou melhor, constitui-se nele apenas como uma presença ocasional e comparativamente acessória (como acontece, por exemplo, no Capítulo IV, onde considero a relação Botto-Pessoa em justaposição analítica com o diálogo entre Oscar Wilde e André Gide). Parece-me que o próposito de recuperar Botto como uma figura de relevo singular à escala europeia e global deve passar, em primeira instância, pela sua reinserção diferentemente perspetivada no contexto cultural e intelectual português, que foi sempre o foro principal e privilegiado da sua atuação artística e vinculação afetiva (não obstante o cosmopolitismo insistente da sua «vida imaginada» que teremos a oportunidade de observar no capítulo seguinte). Outro propósito importante que fica presentemente adiado, mas que ainda assim não quero deixar de assinalar, prende-se com uma exploração mais exaustiva do arquivo bottiano – tanto no sentido geral, do repositório cultural coevo de textos e artefactos contextualmente relevantes, como na aceção reservada ao seu espólio dos inéditos. Quanto a este último, urge considerar a hipótese de
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uma ou mais edições dos textos de Botto que permaneceram inéditos na altura da sua morte. É compreensível que o declínio qualitativo da produção e visão artística de Botto nas décadas de 1940 e 1950 – patenteado, entre outros indícios, pelas revisões introduzidas na última edição das Canções em vida do autor (1956) e pelo volume póstumo Ainda não se escreveu (1959) – tenha colocado em dúvida a viabilidade de tal eventual iniciativa editorial. De resto, ainda há relativamente poucos anos não pareciam sequer existir condições materiais mínimas para a exploração e potencial divulgação dos escritos desconhecidos de Botto, independentemente do seu eventual interesse e valor. Escrevendo, em 1997, no dossier temático que o Jornal de Letras dedicou a Botto no centenário do seu nascimento, Ricardo Araújo Pereira pintava uma paisagem desolada, com a doação do espólio do escritor à Biblioteca Nacional impugnada, devido à disputa entre os herdeiros, e a edição das obras completas, cuja negociação estava em curso, congelada pelo mesmo motivo. Uma vez levantados estes obstáculos, hoje em dia permanece operativo apenas mais um, mas porventura o mais difícil de ultrapassar: a visão cumulativa do espólio bottiano como um aglomerado de detritos de pouca valia, visão contra a qual este ensaio procura argumentar através da utilização tão ampla quanto possível de fragmentos inéditos como apoio e adorno da sua narrativa crítica. Quanto ao arquivo geral do protagonismo artístico e cultural de Botto, este também permanece por escavar mais completa e assiduamente, sobretudo no que diz respeito aos múltiplos reflexos e efeitos do fenómeno bottiano relevantes para a história da cultura LGBT em Portugal, como será o caso da sua fortuna crítica e também o do registo das suas relações com outras personalidades da época conotadas (pela maior parte de forma oblíqua ou oculta) com a identificação não heteronormativa. Mas mesmo no domínio restrito de intervenção autoral direta de Botto, existe pelo menos um repositório extenso dos seus textos que este ensaio não conseguiu integrar e que consiste nas crónicas com que Botto colaborava no jornal Os Sports e no O mundo gay de António Bott o
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seu sucessor Mundo Desportivo (neste último apenas durante quatro semanas) na primeira metade dos anos 1940. Críticas de teatro, cinema e livros entremeadas com contos, poemas, pequenos quadros da vida lisboeta e relatos pessoais (por exemplo, sobre uma atribulada viagem a Sintra) estes textos veiculam a voz de Botto no papel de um comentador cultural sui generis, ao mesmo tempo descontraído e opinioso nos seus juízos, expressivo na articulação das prioridades críticas que observa («Veronica Lake parece que tem mais cabelo», começa o relato do filme Casei com uma feiticeira), casualmente bisbilhoteiro (com citaçãoes frequentes de pequenas conversas ouvidas na plateia ou no elétrico) e, sobretudo, dono de uma sensibilidade estética e afetiva singular e sem papas na língua, que se entusiasma igualmente com um filme de piratas protagonizado por Tyrone Powell («Exuberância de movimentos, combates navais, abordagens, duelos, virilidade!»), com a grandeza suprema de Greta Garbo («A arte de Greta Garbo é um pilar de civilização») e com o excesso da emoção provocada por Bambi («Não sei o que hei de dizer! Depois de ver este filme desse genial feiticeiro de beleza que se chama Walt Disney, fiquei atado, e estou atado, sem saber o que hei de dizer»)17. O que o presente projeto procura construir é, sobretudo, a base material e o contexto epistémico em que este e outros repositórios dos detritos de Botto – por exemplo, o acumulado ao longo dos doze anos da sua permanência no Brasil, para além do que tem sido possível desvendar através do prisma restrito do seu espólio – possam ser recuperados, contemplados e operacionalizados como elementos catalizadores de novos e inusitados conhecimentos e narrativas, assim alargando, diversificando e enriquecendo o foro cultural português (e não só). ————— 17 O estudo de Maria de Conceição Fernandes informa sobre a colaboração de Botto em Os Sports e Mundo Desportivo (52-54) e relata as recordações do jornalista Carlos Pinhão que entrou na redação d’Os Sports na altura em que Botto escrevia para o jornal. As datas dos textos mencionados neste parágrafo são as seguintes: Veronica Lake, 28/4/1944; Tyrone Powell, 22/12/1943; Greta Garbo, 17/2/1943; Bambi 28/1/1944.
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Índice
Introdução: Reinventar Botto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo I: A vida imaginada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 Capítulo II: Armário, homofobia e resistência . . . . . . . . . . . . . . . 82 Capítulo III: Homem, português, homossexual . . . . . . . . . . . . . . 132 Capítulo IV: Botto e Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182 Capítulo V: As homopaisagens brasileiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Obras citadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261 Índice onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
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