Tomás Maia, O Olho Divino: Beckett e o cinema

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Tomás Maia

O OLHO DIVINO BECKETT E O CINEMA Tomás Maia

seguido de FILME Samuel Beckett

O OLHO DIVINO

Tradução de André Maranha e Tomás Maia

O OLHO DIVINO BECKETT E O CINEMA Tomás Maia

LINHAS DE FUGA 12

D O C U M E N TA


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linhas de fuga Lógica do Acontecimento – Introdução à filosofia de Deleuze, Sousa Dias O Cinema da Poesia, Rosa Maria Martelo O que é Poesia?, Sousa Dias Geografia Imaterial, João Barrento Žižek, Marx & Beckett – e a democracia por vir, Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 3.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz A Imagem-Tempo – Cinema II, Gilles Deleuze Tradução de Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 4.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz O Riso de Mozart – música pintura cinema literatura, Sousa Dias Os Nomes da Obra – Herberto Helder ou O Poema Contínuo, Rosa Maria Martelo Dito em Voz Alta – Entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo, Manuel António Pina O Olho Divino – Beckett e o cinema, Tomás Maia A Imagem-Movimento – Cinema I, Gilles Deleuze Pre-Apocalypse Now – Diálogo com Maria João Cantinho sobre política estética e filosofia, Sousa Dias Manuel António Pina – Uma pedagogia do literário, Rita Basílio


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Tomás Maia

O OLHO DIVINO BECKETT E O CINEMA

seguido de

FILME Samuel Beckett tradução

André Maranha Tomás Maia

D O C U M E N TA


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AGRADECIMENTOS

Bruno C. Duarte Claire Nancy Diogo Saldanha Federico Nicolao Helena Roldรฃo Manuel Rosa Paulo Pires do Vale Pedro Maia Pedro Ferreira Sofia Cascalho


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para o AndrĂŠ


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ÍNDICE

O OLHO DIVINO Abertura .................................................................

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I. O mito da arte visual ............................................. II. Esse est percipi ..................................................... III. Limiar da representação ...................................... IV. Fera ancestral...................................................... V. O olho divino .....................................................

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Reabertura .............................................................. 109

FILME, por Samuel Beckett ..................................... 117


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A ausência de Deus é maior, é mais divina que Deus. Georges Bataille


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E se a nossa história — toda a história humana — narrasse uma perseguição, perseguição imparável que exprime uma busca íntima? E se a história humana fosse primeiramente determinada pela nossa condição de caçadores, os homens perseguindo-se a si mesmos através e à custa de outros homens? E — sobretudo — se perseguir Deus não fosse outra coisa senão a autoperseguição do eu que se quis e quer identificar de vez? Então, talvez compreendêssemos que o problema não está no facto de perseguir, mas na perseguição de uma identidade plena ou definitiva causando a morte que nos devasta colectivamente — imemorialmente. Se começarmos por aceitar a «ausência de Deus» — e de todos os seus sucedâneos —, compreenderemos que não há um sujeito que se persegue, porque a «fuga» dos homens é, somente, a do tempo: é a abertura que precede qualquer «sujeito». O curso da história só mudará decisivamente quando interrompermos, em nós mesmos, a relação entre a presa indefesa e o predador ou o guerreiro invencível. São estas as hipóteses de fundo deste livro. Todavia, as páginas seguintes acompanham uma única obra partindo deste princípio: o cinema é essencialmente uma busca, e nesta confunde-se tanto a procura que visa

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deter o tempo (e é a autoperseguição) como aquela que seria a fuga do próprio tempo (e é a perseguição de um outro que nos precede e nos sucede infinitamente). Ora, para evidenciar esta dupla busca, intrincada uma na outra, talvez tenha sido necessário fazer ainda um filme — simplesmente intitulado Filme — reduzindo a intriga à verdade da autoperseguição: o suposto caçador de imagens revela-se, afinal (no final), o próprio caçado. Foi o que Beckett fez mostrando que a história individual e colectiva é (ou tem sido) uma caça ao homem — e que não deixará de o ser enquanto no horizonte da vida humana houver um objecto a capturar. Em Filme, o sujeito encontra-se consigo mesmo sem a possibilidade de se fundir com o suposto objecto perseguido, sob pena de ele mesmo, «sujeito», morrer. Para dizê-lo abruptamente: a identificação absoluta do Sujeito é suicidária (e tal é a verdade da autoperseguição do Ocidente, ao querer incorporar o objecto do seu desejo 1). Quando Chris Marker afirma: A fotografia é a caça, é o instinto de caça sem a vontade de matar. É a caça aos anjos… Persegue-se, visa-se, tira-se e — clique! Em vez de um morto, faz-se um eterno.2 — quando alguém afirma isto sobre a fotografia (podendo afirmar o mesmo sobre o cinema), está decerto a identificar as artes visuais com a actividade de caçar, mas é para abalar a pulsão de morte sustentada nessa identificação. E é, em suma, para negar ou pelo menos inibir «a vontade de matar» — introduzindo um «eterno» no lugar do caçado. Toda a complexidade da questão do «divino» reside precisamente no apuramento de uma afinidade profunda entre o eterno (o imortal) e o morto. Para já, negar a vontade de morte aponta para uma ideia de imagem (artística)

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enquanto corpo ressurrecto, e portanto para uma relação entre o artista e o caçador fora de qualquer conotação pejorativa (como lhe é habitual e constantemente atribuída, mesmo que em modo irónico 3). Mas talvez já seja possível dizer algo mais graças a Beckett: fazer uma imagem implica ser caçado. Deixar-se vencer. É ele, o artista, quem morre — ou toma o lugar do morto — para fitar esse outro corpo que, graças à imagem, se eterniza. O artista ocupa o lugar de ninguém e atravessa a visão de todos (sobretudo daqueles que lhe sobrevivem). Ora, o lugar do morto (do imortal) é o lugar da câmara. E se a nossa condição de caçadores é provavelmente indelével, então a câmara será sempre disposta entre dois olhares — como referiu Beckett a propósito de Filme: «Uma visão relutante e repulsiva e outra ferozmente voraz.»4 Quer dizer, uma visão de presa e outra de predador… Todavia, a lição singular de Filme reside justamente na suspensão desses dois olhares, na desistência dessas duas posições, conduzindo-nos a uma contínua deposição que nos liberta da dialéctica mais poderosa da história humana: a dialéctica entre a presa e o predador, ou entre a vítima e o carrasco, o dominado e o dominante (a dialéctica cuja lógica foi definitivamente fixada por Hegel na relação entre o Senhor e o Escravo). O artista ocupa o lugar de um morto (de um imortal) objectivado no olho-câmara e prolongado no olho-projector. Não se julgue, porém, que este enunciado seja uma abstracção de Beckett ou minha; é, antes, o saber inconsciente do cinema, saber que enforma implícita ou explicitamente uma obra — só para dar alguns exemplos: Dr. Mabuse, o Jogador (de Lang), Viagem a Tóquio (de Ozu), A Palavra (de Dreyer), O Sétimo

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Selo (de Bergman), Vertigo (de Hitchcock), O Sabor da Cereja (de Kiarostami), A Arca Russa (de Sokurov), O Cavalo de Turim (de Tarr)… Em todos estes filmes, ainda que diversamente e por vezes de forma muito fugaz, a câmara toma o lugar do ausente ou dos ausentes. Mas Filme, de Beckett, torna consciente aquele saber a ponto de o tornar motivo único do seu argumento. É a história do cinema numa vertiginosa e (quase) muda curta-metragem: a história do Ocidente vista do ângulo que ele mesmo denega. Beckett vai mostrar-nos assim não só a verdade da autoperseguição, como também a possibilidade de um cinema — e, mesmo, a possibilidade do cinema — que não cede à ilusão mortífera dos caçadores. Um cinema que simplesmente dá a ver aquilo mesmo que faz o cinema: esse olho que, desprovido de qualquer vontade subjectiva, de qualquer tempo próprio ou desejo mortífero, perseguirá não um Sujeito, mas aquilo que o precede: o nascimento do visível. E se esse olho exercerá sempre um poder fascinante sobre o espectador, um poder que retoma e renova o fascínio causado pelo olhar dos primeiros ídolos (isto é, das primeiras representações de mortos), então vou dar-lhe o nome de olho divino. A passagem do ídolo à imagem também pode ser vista em Filme. O que me levará a dizer que Beckett, procurando discernir a essência da câmara e a duplicação desta no projector, conduziu o cinema ao seu limite inicial. Aliás, não vejo outro modo de a arte recomeçar, insistir sobre o seu começo depois de Hegel (depois do suposto «fim da arte» — e depois de todos os fins…). Se a arte não abdicar da sua necessidade — se ela não se deixar ultrapassar por si mesma (e tal é o verdadeiro sentido da história hegeliana das artes) —, ou ainda: se a arte persistir antes da arte, então

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não lhe restará senão ser, continuar a ser uma mística material. Mas agora nuamente, pobremente, sem qualquer amparo metafísico. Mística material: nenhuma nova religião, e nenhum resto de antiga religião; simplesmente, a mudez dos homens feita matéria.

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———— 1 O «desejo» forneceria um outro (o mesmo…) guião para narrar a história do Ocidente enquanto história da autoperseguição do Sujeito ou enquanto história da busca de um outro no homem (ou do outro no homem). — Empregarei o termo «sujeito» com maiúscula sempre que lhe for atribuído, aqui, um sentido metafísico (voltarei brevemente a este ponto no capítulo III). 2 Chris Marker, Commentaires 2, Paris, Seuil, 1967, p. 87 (frases pronunciadas no início do filme Si j’avais 4 dromadaires, de 1966; a peça Play, de Beckett, é evocada no final por uma das vozes-off ). 3 É o caso, apesar de tudo, de Walter Benjamin na sua «Pequena História da Fotografia» (in A Modernidade, edição e tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 257). 4 «A reluctant, a disgusted vision, and a ferociously voracious one», nos termos referidos por Stanley Gontarski em «Film and Formal Integrity», in The Intent of Undoing in Samuel Beckett’s Dramatic Texts, Bloomington, Indiana University Press, 1985, p. 192 (citado e traduzido por Gabriela Borges, A Poética Televisual de Samuel Beckett, São Paulo, Annablume, 2009, p. 35).

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I Jamais um vivo e um morto coincidem — a não ser através de um face-a-face com a imagem; jamais um vivo sobrevive quando é apanhado por um morto — a não ser através da arte. A estrutura temporal da vida — de qualquer vida — é a de um morto diferindo de um vivo (um morto que estranhamente precede e sucede ao vivo). Que a estrutura da vida singular seja esse diferimento, eis aquilo que o homem expressa desde que ele se narra para si mesmo. A narrativa é a autoconsciência do diferimento da vida. Mas eis também — através das narrativas primitivas (a começar pela primeira epopeia conhecida, a de Gilgamesh) e portanto através das narrativas heróicas — que o homem procura anular aquele mesmo diferimento. A busca da imortalidade — o encontro superador da diferença entre o vivo e o morto — não é um tema entre outros da narrativa heróica: é a sua verdade e o seu sentido. Se o homem se narra para figurar a superação de si, podemos pensar que «a busca da imortalidade» é uma expressão inteiramente redundante: o objecto último da busca é sempre a imortalidade, e esta só se apresenta através de provações mortais que implicam, por sua vez, uma busca. ——

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Ora, o cinema não é uma simples manifestação da estrutura da vida: ele é o acontecimento que realiza — no sentido próprio e técnico do termo — a ideia de diferimento, e mesmo, de uma forma visível, a ideia de perseguição. O cinema é a realização da estrutura temporal da vida (e é justamente por isso que, antes do advento histórico do cinema, cada vida já se podia ver a si mesma como um filme, ou pelo menos como uma sequência relativamente ordenada de imagens). «Realização», neste sentido, significa efectivação em tempo real, sucessão irreparável ou imparável de imagens. Há uma estrutura cinematográfica da vida cuja temporalidade é inteiramente realizada pelo cinema. Se a percepção humana inscreve nos órgãos naturais o movimento da vida, a percepção que o cinema possibilita é a grafia do que desse movimento não é visível a olho nu. A vida, pensada como diferimento interno, é cinemato-gráfica, mas o cinema mostra a realidade invisível ou intervalar desse movimento.1 Quando o cinema subordina os seus elementos constituintes (ópticos e acústicos) à narrativa, ele cumpre uma função clássica; mas quando suspende a sua propensão para a narrativa e dá primazia à sua materialidade sonora e visual — não deixando por isso, necessariamente, de contar uma história —, o cinema abre-se à sua possibilidade, e essa abertura é justamente a questão moderna da sua existência. Beckett, ao reduzir a narrativa a uma perseguição, e ao suspender essa mesma perseguição, mostra que algum cinema clássico transporta consigo necessariamente uma inquietação moderna e, inversamente, que o cinema para ser moderno não está impedido de narrar. Clássico ou moderno, clássico e moderno, Beckett persegue com a perseguição de Filme a possibilidade do cinema como tal.

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O próprio cinema, constituído por vinte e quatro imagens por segundo, é materialmente predeterminado por uma busca do olhar — a qual não obedece porém aos requisitos de qualquer narrativa. O cinema realiza (efectiva em tempo real) a busca constituinte do olhar. —— A busca do olhar tomou o seu espaço e o seu tempo próprios na cultura que nos determinou enquanto civilização visual ou da visualidade, isto é, na cultura grega que iniciou a passagem do ídolo para a imagem artística (ainda que esta passagem só se cumpra com o cristianismo e, em particular, com a noção de ícone). É por isso que vou propor que no cinema ocidental (mas o cinema é, primeiramente, um fenómeno ocidental…) culmina o pensamento grego da visão. Por «pensamento grego da visão» entenderei, essencialmente, três aspectos: a visão frontal (que explica tanto o seu interdito como a sua transgressão imaginária), a visão monocular (que procura excorporar-se) e a visão luminosa (ou que é literalmente uma fonte de luz). Lembremo-nos, para começar, que a relação entre estes três aspectos só se clarifica com a compreensão de que o divino grego é um esplendor — e um esplendor que mata (o exemplo primeiro sendo o raio fulminante de Zeus «que tudo vê» 2 ). —— O dito é atribuído a Heraclito, mas foi La Rochefoucauld quem o anotou: «Nem o Sol nem a morte podem ser vistos fixamente.»3 («Fixamente» significa, aqui, frontalmente.)

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Ora, é face a este interdito da visão frontal, e ao respeito por ele instaurado, que se vai delimitar, no Ocidente, a arte da visão ou a visão enquanto arte. É face ao nada visual — à pura impossibilidade de ver — que a visão humana se torna possível. A visão dos homens organiza-se, ontológica e fisiologicamente, em torno do seu ponto cego. Que este interdito — associando a luz solar à morte — exprima a impossibilidade de ver deus face a face, eis o que toda a mitologia grega sobre o olhar atesta (tal como o atestará, depois, a palavra de Deus a Moisés: «Não poderás ver minha face, pois nenhum homem me verá e viverá»; Ex 33,20). Daí, paradoxalmente, que o divino possa tomar, no mundo grego, a forma humana pois a imagem designa o que já não pretende incorporá-lo. «[O] que se aceita com a antropomorfização total do corpo divino é a impossibilidade não somente de representar o deus, mas de vê-lo, tal como ele é, na sua potência.»4 Daqui pode extrair-se uma primeira definição do imortal: é aquele que vê e não é passível de ser visto. É aquele que cega ou fulmina quem o quer ver. Inversamente, ser mortal significa ser visto. A imagem (artística) é o modo de um mortal ver aquilo que o cega. É a mediação da imortalidade. Beckett pensará a origem do cinema a partir desta ideia primordial de imagem, embora o material de Filme não seja aparentemente grego.5 —— «Nem o Sol nem a morte…»: o impossível dado por excesso, o impossível dado por defeito. O raio fulminante, a órbita vazada. Qual é o mito capaz de ilustrar o pensamento grego da visão? O mito da mediação do impossível visual?

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Orfeu transgride, pelo próprio olhar, o interdito dos mortos; Actéon encara directamente o divino (e acaba devorado pelos próprios cães); Psique arrisca a visão directa sobre o objecto amoroso (e, nesse momento, perde Eros). Resta Perseu — o mito que conjuga a órbita vazada com o raio fulminante. O mito da arte visual. É que Perseu dá a ver o raio desse vazamento, ou dessa ausência de visão (humana): o olhar da Medusa é o reverso da radiação fulminante do Sol (ou de Zeus). Nas primeiras versões do mito, Perseu olha na direcção oposta ao olhar da Medusa; mas as versões posteriores ao século V introduzem o recurso ao espelho (ao escudo polido) permitindo ao herói não ser petrificado, pois ele cruza o olhar do monstro num reflexo. Perseu extrai da imagem uma força de vida e um poder de morte (decapitando a Medusa, empunhando depois a cabeça petrificante). A morte da morte é, rigorosamente falando, imaginária; a Medusa — a imagem — é o aspecto mortal da morte (da imortalidade). —— O problema de Perseu pode então enunciar-se: como é que se pode ver na escuridão? Como é que se faz luz sobre a Noite? (A morte, desde Hesíodo, é uma das filhas da Noite.) O mito responde: através de um único olho. Desde então que a visão divina é singular (ou monocular). Com efeito, para chegar à morada da Medusa, Perseu apodera-se do único órgão que as Greias partilham entre si. Ele rouba-o sem que esse olho tenha pertencido a alguma delas, ou sem que venha a pertencer a ele mesmo, o herói.

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É um olho desincorporado, um olho excorporado que, depois de devolvido, as três irmãs voltam a partilhar. Olho sem corpo — olho exterior ao corpo humano — capaz de vislumbrar a Noite: tal é a prefiguração (grega) do olho divino. —— Digo «prefiguração» porque, em rigor, a figuração dá-se com o escudo de Perseu. Não só esta arma é circular e luzidia (à semelhança de um globo ocular), como a sua artificialidade consuma a exteriorização do corpo humano.6 Arma defensiva que figura emblematicamente o vínculo entre o órgão da visão e um certo sentido de defesa — Beckett dirá: de imunidade — procurada pelos humanos. E se juntarmos à similitude entre o olho e o escudo convexo a crença óptica dos Gregos segundo a qual um objecto se deixa impressionar pelo raio visual do olho que o contempla, então compreendemos por que razão a arma de Perseu é portadora do poder medúsico. O seu escudo é uma superfície que emana o raio mortal que a impressionou. As Greias cederam o seu único olho — mas este era natural e foi-lhes, naturalmente, devolvido. O escudo de Perseu já é uma excorporação da visão humana, ilustrando perfeitamente o segundo aspecto do pensamento grego da visão (a visão monocular). Perseu assinala o momento em que os humanos já dispõem de um artefacto para cumprir uma função divina: fazer luz sobre a Noite. Tal vai ser justamente a função da câmara — e, sobretudo, do projector de cinema.

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seguido de FILME Samuel Beckett

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