André Gide «Paludes — Sotia»

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Capa da 1.ª edição de Paludes (1895)

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TÍTULO DO ORIGINAL: PALUDES (SOTIA)

© SISTEMA SOLAR, CRL (2021) RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, JUNHO DE 2021 ISBN 978-989-8833-48-8 NA CAPA: ANDRÉ GIDE NA ÉPOCA EM QUE ESCREVEU PALUDES REVISÃO: DIOGO FERREIRA DEPÓSITO LEGAL: 484806/21 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ULZAMA

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Para começar, 1895 com esta surpresa: o desconcertante Paludes num tempo de romances de bem comportada estrutura como os de Anatole France e Émile Zola — os que maior convivência tinham com os leitores dessa época — e conseguir acontecer, mesmo que em discreta edição da Librairie d’Art de Edmond Bailly e só multiplicado ao baixo número de quatrocentos exemplares. André Gide estava no seu sexto livro; tinha vinte e seis anos de idade e escrevia a sua primeira sotia — seriam na sua obra três — lembrando-se com esta palavra arcaica das peças medievais assim chamadas e que parodiavam de forma estouvada, ou mesmo enlouquecida, realidades familiares aos seus populares espectadores. 1895 foi também o ano em que ele saiu de uma determinante viagem à África do Norte, onde cedeu pela primeira vez à sua verdade sexual; também o ano em que se casou com a sua prima Madeleine Rondeaux (um casamento «branco») e teve o enorme transtorno sentimental provocado pela morte da sua mãe. São factos que não devem ser esquecidos se quisermos perceber o abalo interior que agudizou a sua percepção dos intelectuais parisienses, o seu cansaço perante o vazio que tinha à sua volta, um mundo de estilizadas vaidades e com a futilidade «pantanosa» que o incitou às metáforas virgilianas de Paludes. André Gide achava-se dotado de uma esquisita sensibilidade, construída por uma fusão genética que associava características tem-

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peramentais de regiões francesas muito pouco favoráveis a relacionamentos pacíficos. Nada mais diferente, escreveu em Si le Grain ne meurt, do que estas duas famílias; nada mais diferente do que estas duas províncias da França [Cévennes e Normandia] que conjugam em mim as suas contraditórias influências. Muitas vezes me convenci de que estava constrangido à obra de arte por só poder realizar com ela a concordância de elementos tão diferentes. Este escritor, a prolongar em adulto a criança doente, dada a crises de angústia e nervosas (algumas habilmente exageradas por necessidade de compaixão), expulsa do colégio por ter sido apanhada em plena prática de indecorosos «maus hábitos», foi entregue ao cuidado de preceptores e só depois deles às disciplinas do liceu Henri IV, formando assim o essencial da sua cultura. Aos onze anos de idade a morte do seu pai, professor de Direito na Faculdade de Paris, a intensa vigilância que essa orfandade inspirava à sua mãe, influíram e modelaram no essencial o temperamento que seria seu e a reflectir-se em toda a sua obra literária. André Gide foi autor publicado desde os vinte e dois anos de idade com Les Cahiers d’André Walter (se eu não escrevesse matava-me, dizia Valéry que lhe tinha nesses dias ouvido). Já nesse seu primeiro livro pode ler-se: De forma alguma, uma verdade de realismo […] mas uma verdade teórica, absoluta. […], anunciando o que seria constantemente perceptível em quantas ficções escreveu. Surgiu depois com Le Traité du Narcisse e no ano seguinte com Les Poésies d’André Walter; em 1893 publicou Le Voyage d’Urien e La Tentative amoureuse, e dois anos depois imaginou o estranho cometimento literário, exterior a tudo quanto se conhecia na literatura francesa, a que também deu o estranho nome de Paludes.

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Palude é uma palavra que, nas línguas francesa e também portuguesa, designou em tempos passados — e nunca com muita popularidade — aquilo a que hoje chamamos vulgarmente «pântano». E serviu a André Gide para designar todo o ambiente que rodeava o seu Tityre, personagem que lhe chegava da primeira Bucólica de Virgílio, onde é um pastor em diálogo com Melibeu, emissor de uma sentença que poderia ser desencorajadora se não estivesse em concordância com o que o próprio afirmava. Títiro, pastor recubans (deitado), ou seja, estendido com a sua flauta numa fresca sombra, só tem à volta pedras nuas e juncos enlameados a cobrirem todas as pastagens; mas Melibeu fá-lo notar que, se aqueles campos são bastante extensos e razoáveis perante o que Títiro exige da paisagem circundante, ele, Melibeu, foi expulso da sua terra natal e chora ali os suaves e férteis campos da sua infância. Títiro está satisfeito; satisfaz-se com a mediocridade paisagística que o rodeia, e com ela se contenta. O Tityre de André Gide vive numa torre circundada por campos pantanosos, mas para encarnar como metáfora actores que representam a intelectualizada e vácua monotonia dos salões parisienses do final do século XIX; propõe-se como personagem central da história de um homem que não pode viajar, que vive num campo de lamas e lodos (o Paris dos intelectuais) e nenhum esforço faz para sair de lá. O autor identifica este Tityre consigo próprio (no livro, o único Tityre consciente da sua tityrização) e com todos os que giram à sua volta, literatos vazios e cheios de uma retórica fútil, os frequentadores do salão de Angèle, a única figura feminina que surge com presença física no livro e não podemos deixar de associar a Madeleine Rondeaux, a que já era então sua mulher na vida real, sendo a isto levados por duas

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frases: — Dormir à casa da Angèle. Digo à casa e não com ela, uma vez que nunca ultrapassámos pequenos e anódinos simulacros. E mais adiante: Não somos desses de onde nascem, cara amiga, os filhos dos homens. A vaga história que põe em cena estes Tityre — que no livro circundam os excertos do diário de um imaginado Tityre-protótipo — também é das adversidades da composição de um romance negador de si próprio e com uma sistemática destruição do que esperaríamos como estrutura que a esta pretensão se arrogasse (o narrador afirma: os meus princípios estéticos opõem-se a que eu escreva um romance), mas que logra um essencial intuito — deixar explícito nas suas coordenadas mais significativas o homem comum, este resíduo, esta matéria-base que encontramos no fundo das retortas depois da fusão que subtiliza as particularidades. Os Tityre de André Gide, que habitam o simulacro de um romance, são homens «deitados» e imóveis na mediocridade dos salões literários de um Paris quase novecentista. São débeis, travados por um pensamento enrolado em sucessivas espirais paralisadoras da acção. Mas o seu narrador nunca chega, ele próprio um Tityre consciente das impossibilidades de um bem definido resultado que imagina com o título Paludes, a um texto aceitável e satisfatório perante o objectivo que desde o início se propõe. O livro Paludes — insatisfatório e incompleto perante o seu autor impotente que deambula por encontros com os seus auto-complacentes tityres, que introduz no seu não-romance de um não-romance duas descrições conscientemente alheias ao plano geral (a de uma caça à pantera e a de uma caçada aos patos) — irá nas páginas finais anunciar-lhe um desolado sucessor: Pólderes,

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é provável que destinado, sob este título também ligado a campos (mas agora condicionados por uma artificial protecção de diques), a uma reiterada impossibilidade de concretização. A entusiástica anuência à estranha proposta estrutural de Paludes começou a ser muitos anos depois visível, quando vozes da cultura literária francesa do século XX se referiram a ela em termos que o autor durante a sua vida nunca conheceu. É certo que Mallarmé lhe tinha escrito uma carta com frases à sua maneira rebuscadas e cuidadosamente elogiosas: «Não faço alusão à sua gota picante e com preciosa ironia, que se aguenta por cem páginas e é de essência única; mas, pelo contrário, à efabulação espiritual que se aproxima da maravilha e encontrou, no suspenso e no que é lateral, uma forma que deveria apresentar-se e ali não encontraremos»; e que André Breton, com bem conhecidos ditos e atitudes pouco favoráveis ao escritor André Gide (e que até escolheu, para a sua Antologia do Humor Negro, um texto do escritor-pugilista Arthur Cravan que o ridiculariza), tinha perante Paludes cedido a uma benevolente apreciação — talvez porque se aproximava, na sua atitude de não-romance, do que ele próprio quis com a sua Nadja. Só muito mais tarde encontraremos uma entrevista com Nathalie Sarraute a este Paludes rendida: «É um verdadeiro novo-romance […] construído sobre nada, com sensações extremamente vivas; a forma de Gide é de uma elegância extrema.»; e também o que pensava dele Roland Barthes, registado em Le Plaisir du texte: «Nunca é de mais falarmos de André Gide. […] Há dele, pelo menos, um grande livro, e um grande livro moderno: Paludes, que deveria ser, sem dúvida nenhuma, reavaliado pela modernidade.»; e também Henri Ghéon, que foi profético: «Paludes deve ser consi-

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derado uma obra à parte; nada existe análogo na nossa literatura. […] Este livro está cheio de coisas que descobrimos novas a cada leitura, e outras que amanhã serão descobertas.» Gide publicou, depois de Paludes, as obras que iriam dar-lhe maior reconhecimento como escritor: em 1897 Les Nourritures terrestres; em 1902 L’Immoraliste; em 1909 La Porte étroite; em 1914 Les Caves du Vatican (a sua segunda sotia); em 1919 La Symphonie pastorale; em 1924 a edição corrente de Corydon (um ensaio que sublima a atitude homossexual, com o seu modelo na Grécia clássica, e alarga-a a animais irracionais); em 1925 Les Faux-monnayeurs (a sua única obra de ficção que pode considerar-se próxima de um romance, como ele é geralmente entendido), e a edição corrente da autobiografia Si le grain ne meurt. Com todos estes textos Gide singularizava-se no meio literário francês; sobretudo pela sua «invulgaridade» religiosa — ser protestante evangelista num país de fortíssima tradição católica, opção incutida pela sua mãe — e pela evidência de uma vida assombrada pelos antagonismos que a crença levantava ao seu espírito livre e à sua tendência homossexual. Há desta batalha uma expressão clara que hoje lemos numa nota de 1907 do seu Journal: Não passo de uma criança que se diverte, com vontade de suavizar esta luta, e com um duplo que é um pastor protestante. A sua obra literária — de um visível religioso perturbado por transgressões à sua fé — inspirou no mundo literário francês, como seria de esperar, uma animada divisão entre anuências e discordâncias. Depois de 1936 ainda mais extremada entre os escritores de esquerda, por ter feito uma entusiástica viagem à Rússia soviética, onde leu na Praça Vermelha (ao lado de Estaline) um emocionado texto sobre o recém-falecido Maksim Gorki (Gostaria de gritar

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bem alto a minha simpatia pela Rússia; e que o meu grito fosse compreendido, tivesse importância; gostaria de viver o bastante para ver o êxito deste enorme esforço; […] ver o que pode dar um Estado sem religião, uma sociedade sem família. A religião e a família são os dois piores inimigos do progresso) e pouco depois, já desiludido e confrontado com o que eram as inegáveis realidades soviéticas disfarçadas ou até ocultadas no Ocidente, ter escrito: De alto a baixo da escala social reformada, os mais notados são os mais servis, os mais cobardes, os mais vergados, os mais vis. Todos os que levantam a cabeça são ceifados ou deportados. André Gide, o evangelista assombrado pelo castigo divino, desfazia assim o que era cúmulo da sua excentricidade intelectual, deixando de ser o religioso que conseguia introduzir Deus nas negações do ateísmo comunista. Depois da sua relação matrimonial com Madeleine Rondeaux terminar, pontuada por acesas discussões e cartas rasgadas, André Gide teve uma filha com Élisabeth van Rysselberghe, que veio mais tarde a casar-se com Pierre Herbart (um jovem novelista roubado pelo escritor à esfera de Jean Cocteau). Esta união conferiu à história de Herbart a curiosa particularidade de incluir, na lista dos seus parceiros sexuais, o pai e a mãe da sua enteada. Não deixam de ser curiosas as palavras que este seu ex-amante-genro utiliza nas páginas que lhe definem o carácter: «Antes de mais, ele não é fiável. Não podemos fazer fé nas suas promessas, nem na sua lealdade, nem na sua discrição. Mas aqueles que o conhecem não conseguem querer-lhe mal por isso. Sabem que não é responsável (em parte porque a sua sensibilidade está tão intimamente ligada ao instante, que não o compromete para lá do imediato); sabem, enfim, que certas noções não têm para ele nenhuma existência. É, por exem-

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plo, amoral; não por escolha ou gabarolice, mas por não compreender literalmente do que se trata. Também o vemos com frequência recorrer no seu julgamento a normas da mais banal convenção. […] As suas repugnâncias são de ordem física ou artística, raramente intelectuais e nunca morais.» Mas Herbart também diz isto: «A grandeza de Gide está noutro lado. Tinha tudo quanto era necessário para chegar à esterilidade, ao desespero. A sua aventura excepcional foi conjurá-los, abraçando muito estreitamente o objectivo que tinha fixado: a obra — que não é possível ser dissociada disto. E no seu desígnio buscava a força de uma auto-perfeição que lhe permitiria alcançá-lo. O seu êxito é um milagre de fé na omnipotência do homem. Só ela podia dar-lhe a serenidade com que o vimos morrer.» André Gide, contestado e admirado no seu país (não podemos ser ao mesmo tempo sinceros e parecê-lo, tinha muitos anos antes avisado nas páginas do seu L’Immoraliste) mas sempre visível na luta contra a religião puritana, as hipocrisias burguesas, os totalitarismos políticos, as diferenças sexuais, ganhou em 1947 o Prémio Nobel da Literatura. Foi, com esta distinção, alvo de ironias; as que se repetiram um ano depois da sua morte, na altura em que o Osservatore Romano tornou pública a maior glória da sua carreira literária, dando a conhecer um decreto do Santo Ofício que punha toda a sua obra literária no Index, proibindo-a a leitores católicos, sensíveis às censuras do Vaticano. Morreu no dia 19 de Fevereiro de 1951, por não resistir às consequências de uma congestão cerebral, e foi esta a última frase que escreveu: A minha posição no céu, relativamente à do sol, não deve fazer com que eu ache a aurora menos bela. A sua morte não moderou aqueles que o não suportavam. Jean Cocteau, que nunca soube perdoar-lhe o «roubo» de Herbart, dei-

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xou escrito em Le Passé défini: «Gide nunca sentiu a doença do vasto. […] As suas doenças só lhe chegam do pequeno, da relação entre os poucochinhos. Nenhuma bondade. Curiosidade de botânico. De lente na mão.» O católico Mauriac também se lembrou dele nas suas Mémoires intérieures: «Gide levou até à perfeição o sistema que consiste em extrair glória de tudo o que difama uma vida.» E Paul Claudel, outro católico (sobretudo em versos), ainda foi mais duro: «Se a moralidade pública ganha muito com a sua morte, a literatura não perde grande coisa.» Não ficará mal rematarmos tudo isto com as linhas que Julien Green escreveu no seu Journal:«Foi grande o riso, por causa de um telegrama que Mauriac recebeu poucos dias depois da morte de Gide e que estava assim redigido: “Não há inferno. Podes gozar à farta. Previne o Claudel. André Gide.”» Valeu-lhe Jean-Paul Sartre no seu texto «Gide savant» de Les Temps Modernes: «Julgaram-no sagrado e embalsamado: morreu e descobrimos como continua vivo; o incómodo e o ressentimento que transparecem sob as coroas fúnebres que lhe são contrariadamente tecidas, mostram que ainda desagradava e continuará durante muito tempo a fazê-lo; soube congregar contra ele a união dos ortodoxos de direita e de esquerda, e basta-nos imaginar a alegria de algumas augustas múmias […] para avaliarmos o peso que este homem de oitenta anos, que já não escrevia, ainda tem sobre as letras actuais.» Mais longe, quando este livro termina, iremos ler: E nós construímos em mangais perecíveis catedrais. A.F.

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Para o meu amigo Eugène Rouart escrevi esta sátira de algo.

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Dic cur hic (A outra escola)

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Antes de explicar aos outros o meu livro, espero que outros mo expliquem. Querer explicar, começa por restringir-lhe o sentido; porque se soubermos o que queríamos dizer, ficamos sem saber se dissemos apenas isso. — Dizemos sempre mais do que isso. — E acima de tudo me interessa o que eu lá meti sem o saber — essa parte de inconsciente a que eu gostaria de chamar a parte de Deus. — Um livro é sempre uma colaboração, e quanto mais valor o livro tiver, mais pequena é a parte do escriba e maior será o acolhimento de Deus. — Aguardemos que chegue de todo o lado a revelação das coisas; do público, a revelação das nossas obras.

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Terça-feira. Por volta das cinco horas o tempo arrefece; fechei as minhas janelas e pus-me de novo a escrever. Às seis horas o meu grande amigo Hubert entrou; vinha da equitação. Disse: — O quê! Estás a trabalhar? Respondi: — Estou a escrever Paludes. — O que é isso? — Um livro. — Para mim? — Não. — Muito erudito?… — Aborrecido. — Visto isso, por que razão o escreves? — De outra forma, quem o escreveria? — Mais confissões? — Quase nenhumas. — Então o quê? — Senta-te. — E quando ele se sentou: — Li em Virgílio dois versos:

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Et tibi magna satis quamvis lapis omnia nudus Limosoque palus obducat pascua iunco. Traduzo: — É um pastor que fala com outro; diz-lhe que o seu campo está, sem dúvida, cheio de pedras e charcos, mas é para ele bastante bom; e que muito feliz deve sentir-se por ele lhe agradar… Quando não podemos mudar de campo poderá haver, não dirás isso?, mais sensato pensamento?… O Hubert nada responde. Continuo: — Paludes é principalmente a história de alguém que não pode viajar… Virgílio chama-lhe Títiro… Paludes é a história de um homem que possui o campo de Títiro e não faz nenhum esforço para sair de lá; pelo contrário, contenta-se com ele; nem mais… — Faço o relato: — No primeiro dia verifica que se contenta com aquilo e pensa: o que poderei aqui fazer? No segundo dia, como passa um bando de pássaros, mata de manhã quatro patos-negros ou cercetas, e à noite come dois que pôs a cozer numa magra fogueira de silvas. No terceiro dia distrai-se a construir uma cabana com grandes juncos. No quarto dia come as duas últimas cercetas. No quinto dia destrói a sua cabana e esforça-se por construir uma casa mais elaborada. No sexto dia… — Basta! — diz o Hubert. — Já compreendi; meu caro, escreve então isso. — E foi-se embora. Está uma noite de breu. Pus em ordem os meus papéis. Não jantei nada; saí; por volta das oito horas fui à casa da Angèle. A Angèle ainda estava à mesa, a acabar de comer fruta; sentei-me ao pé dela e comecei a descascar-lhe uma laranja. Vieram os doces, e quando voltámos a ficar sozinhos:

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— Hoje o que fizeste? — perguntou a Angèle enquanto me preparava uma tosta. Como eu não me lembrava de ter feito nada, respondi: «Nada», só para dizer qualquer coisa; e logo depois, com medo das digressões psicológicas pensei naquela visita e num tom vivo respondi: — O meu grande amigo Hubert foi visitar-me às seis horas. — Acaba de sair daqui — acrescentou a Angèle; e a seguir, trazendo novamente à baila antigas discussões sobre este tema: — Ele, pelo menos, faz qualquer coisa, preenche o seu tempo — disse ela. Eu afirmara que não tinha feito nada; fiquei irritado: — O quê? O que faz ele? — perguntei. A Angèle foi por ali fora: — Uma porção de coisas… Começa por montar a cavalo… e depois, como bem sabes, é membro de quatro companhias industriais; dirige com o seu cunhado uma outra companhia de seguros contra o granizo: acabo de me filiar nela. Assiste a aulas de biologia popular, e na noite de todas as terças-feiras faz leituras públicas. Sabe o suficiente de medicina para se tornar útil quando há acidentes… O Hubert farta-se de praticar o bem: cinco famílias indigentes devem-lhe o facto de estar ainda vivas; coloca operários sem trabalho junto de patrões a quem eles faltam. Manda crianças enfezadas para o campo, para onde há estabelecimentos adequados. Fundou um estúdio de empalhamento de cadeiras, para dar ocupação a jovens cegos… Enfim, caça aos domingos… E tu? Tu o que fazes? — Eu! — respondi um pouco incomodado. — Eu escrevo Paludes.

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— Paludes? Mas o que é isso? — perguntou. Tínhamos acabado de jantar. Esperei até estarmos na sala para continuar a conversa; e quando ficámos os dois sentados ao pé do fogo: — Paludes — comecei a dizer — é a história de um celibatário numa torre rodeada de pântanos. — Ah! — disse ela. — Chama-se Tityre. — Que nome horrível. — Nada disso — continuei — existe no Virgílio. Além do mais, não sei inventar. — Celibatário porquê? — Oh!… Para ser mais simples. — Só isso? — Não; conta aquilo que faz. — E ele o que faz? — Olha para os pântanos… — E tu, por que é que escreves? — acrescentou depois de um silêncio. — Eu?… Não sei… provavelmente para actuar. — Hás-de ler-me isso — disse a Angèle. — Quando quiseres. Tenho precisamente no bolso quatro ou cinco folhas. E tirando-as logo a seguir de lá, com toda a desejável atonia eu li:

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DIÁRIO DE TITYRE

ou paludes Quando levanto um pouco a cabeça, vejo da minha janela um jardim que até agora não tinha observado com atenção; à direita, um bosque perde as suas folhas; para lá do jardim, a planície; à esquerda um pântano de que voltarei a falar. Outrora, o jardim estava plantado com malvas-rosas e ancólias, mas a minha incúria deixou as plantas crescerem de acordo com as suas possibilidades; por causa do pântano vizinho, os juncos e os musgos invadiram tudo; os caminhos desapareceram sob a erva; para eu caminhar só resta a grande álea que liga o meu quarto à planície, e que um dia tomei quando fui passear. À noite, os animais do bosque atravessam-na para ir beber a água do pântano; por causa do crepúsculo só distingo formas pardas; e como a noite fica depois cerrada, nunca os vejo regressar.

— A mim, metia-me medo — disse a Angèle — mas continua… está muito bem escrito. Eu tinha ficado muito constrangido com o esforço desta leitura. — Oh! É quase tudo — disse-lhe eu — o resto não está acabado. — Notas! — exclamou ela. — Então lê-as! É o mais divertido; muito melhor se vê nelas o que o autor quer dizer, e não tanto naquilo que depois escreverá. Por isso continuei — de antemão decepcionado e, pior ainda, tentando dar às frases uma aparência de qualquer coisa por terminar:

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— Das janelas da sua torre, Tityre pode pescar à linha… — Digo uma vez mais que são apenas notas… — Vá lá! — Melancólicas expectativas de peixe; insuficiência de iscas, multiplicação das linhas (símbolo) — ele, por necessidade, nada consegue pescar. — Mas porquê? — Para haver a verdade do símbolo. — Mas se ele acabar por pescar qualquer coisa? — Tratar-se-ia então de outro símbolo e de uma outra verdade. — Deixa de haver qualquer verdade porque manobras os factos como te dá jeito. — Manobro os factos de forma a torná-los mais conformes à verdade do que à realidade; é excessivamente complicado para agora te explicar, mas temos de convencer-nos de que os factos são apropriados aos temperamentos; é isso que faz os bons romances; nada do que nos acontece se destina a outra pessoa. O Hubert já teria feito ali uma pesca miraculosa! O Tityre não pesca nada; é uma verdade psicológica. — Olha… está bem. Continua. — Prolongamento sob a água dos musgos da margem. Indecisão dos reflexos; algas; passam peixes. Evitar que se lhes chame, falando deles, «assombros opacos». — Espero bem que sim! Mas qual a razão dessa nota? — O meu amigo Hermogène chama isso às carpas. — Não acho uma expressão feliz. — É pena. Continuo? — Se me fazes esse favor; as tuas notas são muito divertidas.

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— Ao alvorecer, Tityre vislumbra cones brancos erguerem-se na planície; salinas. Desce para ver trabalhar. — Paisagem inexistente; taludes muito estreitos entre dois pântanos salinos. Enorme brancura das tremonhas (símbolo); só consegue ver-se isto quando há nevoeiro; óculos de vidro fumado preservam das oftalmias os trabalhadores. Tityre mete no bolso um punhado de sal, e depois volta para a sua torre. — E mais nada. — Mais nada? — É tudo quanto escrevi. — Receio que a tua história seja um pouco aborrecida — disse a Angèle. Houve um dilatado silêncio — e depois exclamei, muito emocionado: — Angèle, Angèle, peço-te que me digas quando vais compreender qual é o tema de um livro… O que pretendo descrever é a emoção que a minha vida me causou: tédio, vaidade, monotonia… a mim tanto me faz, porque escrevo Paludes… mas a vida de Tityre não existe; e garanto-te, Angèle, que as nossas vidas ainda são muito mais baças e medíocres. — Eu cá não acho — disse a Angèle. — Porque não pensas bem nelas. É esse, justamente, o tema do meu livro; Tityre não está descontente com a sua vida; sente prazer em contemplar os pântanos; uma mudança de tempo altera-os… Mas olha para ti! Olha para a tua história! É tão pouco variada! Desde há quanto tempo vives neste quarto?… Rendas baixas! Rendas baixas!… E não és a única! Janelas a darem para a rua, para os pátios; vermos à nossa frente paredes ou outras pessoas a olharem para nós… Mas

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vou lá envergonhar-te pelos «vestidos» que tens… Acreditas realmente que nos soubemos amar? — Nove horas — disse ela. — Esta noite o Hubert faz a sua leitura, e permite-me que vá ouvi-lo. — Ele o que vai ler? — não pude evitar a pergunta. — Tem a certeza de que não será Paludes! E saiu. Quando voltei para casa, tentei pôr em verso o começo de Paludes — e escrevi a primeira quadra: Da minha janela eu vejo Levantando um pouco a testa A orla de um pequeno bosque Que nunca se viu em festa. Depois deitei-me, com o dia acabado.

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