Paul-Jean Toulet «A Minha Amiga Nane»

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TÍTULO DO ORIGINAL: MON AMIE NANE

© SISTEMA SOLAR, CRL, 2021 RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, MAIO DE 2021 ISBN 978-989-8833-27-3 NA CAPA: EDGAR MAXENCE, MULHER COM ORQUÍDEA, 1900 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 483027/21 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ULZAMA


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O seu pai tinha um sangue africano misturado, à boa maneira colonial, com sangue francês da ilha Maurícia, aquela que ficava lá em baixo, no Índico, a dois meses de navios lentos que chegavam de Marselha sem atravessar o Suez. E o seu sobrenome crioulo, que parecia soar menos bem como Tulete, foi afrancesado até ao Toulet prestigiado por senhores de terras que só a gesto largo podiam dar ideia de um vasto poder em plantações onde crescia e morria, a perder de vista, uma imensidade de canas-de-açúcar. De um deles, casado com uma francesa da França que o afastava e aproximava com intermitências dos Baixos Pirenéus e de Béarn, é que nasceu Paul, segundo filho destinado a um contacto materno de poucos dias porque a sua mãe, entregue em Junho de 1867 a uma medicina provinciana e oitocentista, morreria das complicações de um parto que tudo teve para correr mal. O pai Toulet, com exigências sopradas de muito longe pela ilha Maurícia, viu-se obrigado a entregar a sua filha e o seu filho a parentes dispostos a sustentá-los. Coube a Paul a tutela de um tio que nunca lhe fez esquecer o vazio da mãe inexistente, do pai esfumado atrás do oceano, da irmã que vivia afastada de si. Mais tarde, por escrito, lembrou-se de que tinha vindo ao mundo num Béarn de formosas pedras; com um ar tão puro que se fazia uma volúpia, quase um perfeito sofrimento, bastando por vezes respirar o que descia das montanhas. Mas isto compensava


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mal o que era, para ele, uma dolorosa e central ausência. Flutuava à minha volta uma presença confusa que eu não distinguia bem da água que corre, dos animais, das instáveis nuvens. Logo que aprendeu a escrever assinalou-a por todo o lado em papéis, em paredes, em tudo o que a sua mão ainda mal treinada tocava, e o seu lápis podia riscar: Aqui jaz Emma Toulet, que morreu poucos dias depois de o Paul nascer. A esta incomodada alma infantil só soube o catolicismo surgir com mais enxofre do que água-benta; e o liceu de Bayonne, que se destinava a moldá-lo pelas normas da boa conduta cristã, viu-se impotente a dominar o rebelde. A carta que o seu tio recebeu era implacável: «Senhor, o seu pupilo, o jovem Toulet, tem tão má adaptação e em tão poucos dias se mostrou com uma tão constante rebeldia a todos os conselhos, deu tamanhos exemplos de insubordinação, que não posso aceitá-lo como aluno do liceu de Bayonne. Peço-lhe que o retire imediatamente daqui.» Foi o Instituto Charlemagne, ajudado por severas admoestações avunculares, que conseguiu retê-lo até ao bacharelato; a altura em que este adolescente com dezoito anos, já muito atento às sonoridades da língua, resolveu acrescentar-se com um Jean. Porque Paul Toulet seria, reduzido a iniciais, P.T., homófono do verbo que em francês nomeia um desagradável e sujo desabafo orgânico. Por razões escatológicas e fonéticas se decidiu, afinal, o nome de um futuro escritor francês, o que hoje antecede e dá autoria a Monsieur de Paur, a Mon amie Nane, a La Jeune Fille verte, a Contrerimes… — P.-J. Toulet. P.-J. nunca se sentiu homem de estudos nem de bibliotecas; fez-se erudito através de uma cultura à solta e apreendida sem ele querer denunciá-la por sintomas exteriores. (Mais tarde, quando


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publicou o seu primeiro livro, houve quem se espantasse: «O quê! Ele sabe escrever?») Antes, muito antes, surgiu-lhe a tuberculose pulmonar que premiava nesses dias todas as desregras; e para a contrariar levou-se num navio até ao clima quente da ilha onde o seu pai era grande proprietário. O senhor Toulet contava fazê-lo interessar-se por actividades agrícolas; mas como… se aquela natureza excessiva perturbava até ao êxtase os olhos e o corpo, e se pouco ou nada queria Paul-Jean saber de agriculturas? (Para esses deslumbramentos visuais recorde-se a frase de Mark Twain que decide uma curiosa prioridade desconhecida do Génesis: «Deus criou a ilha Maurícia e a seguir, copiando-a, o Paraíso.») Eu tinha a intenção de trabalhar — disse Paul-Jean a querer justificar a sua fraqueza — mas as mulheres meteram-se à minha frente, e graças à convivência com o grupo de teatro só fizemos durante mês e meio uma festa não interrompida, o mais estafante que é possível e onde chegou em certo momento a entrar o bacará. Com o clima que a Maurícia tem, sinto-me feliz por ele só ter conseguido deixar-me mais embrutecido. Tudo leva a crer que a sua tuberculose, mesmo para as possibilidades medicinais da época, nunca andou associada a qualquer sentença que o impedisse de frequentar um curso universitário. Mas as persuasões familiares só conseguiram dele uma curta frequência de aulas de Direito, e um pouco mais de Letras. A sua maneira de estar na vida pedia-lhe liberdade, os seus pulmões pediam-lhe calor. A humidade dos Pirenéus era nefasta à sua saúde, e muito mais protegido estaria num clima africano — que o havia francês e a dois passos, como o de Argel. Paul-Jean resolveu passar uma temporada entre franceses e árabes colonizados, numa ame-


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nidade que ele sentia distante das exigências críticas e invejosas da França europeia, onde talvez se mostrasse pela primeira vez contista, poeta, dramaturgo… E na verdade tudo isto ele foi, principiante e entusiasmado naquele norte de África; chegou a ver-se representado no Théatre des Nouveautés de Argel, e a sentir-se cronista em jornais de acaso, onde nunca se chamou Toulet, mas Jemand, ou apenas Juan, ou Jean de Maurice. No dia 19 de Novembro de 1889 regressou a Béarn; estava com vinte e dois anos de idade e tinha uma confortável herança à sua espera: era proprietário da herdade de Haget. Tenho horror ao dinheiro, diz numa carta a René Philipon, e horror em falar dele, em pensar nele. E esclarece: Nem sequer sei do que o meu pai morreu. […] Foi um homem que sempre fez o que a sua cabeça lhe dizia. De resto, a minha infância pouco o conheceu, e não muito mais a minha adolescência. Andava sempre por fora, ocupado com agriculturas, política, negócios, mil coisas inúteis e dispendiosas. Esta folgança material num jovem «com horror ao dinheiro», deu no entanto origem ao Paul-Jean livre e rico, vestido com roupa cara, generoso para com os seus amigos, visto com frequência em mesas de roleta e bacará. Memórias desta época notam-lhe singularidades de temperamento, a capacidade de surpreender com rasgos de uma inquietante inteligência. Louis Martin, por exemplo, que esteve nestes dias muito perto dele, recordou-o assim: «Mostrava um gosto muito vivo pelo mundo; levado por vezes até ao macabro, com aquilo a que chamarei, à falta de termo mais adequado, “graça contrastada”. Tinha por hábito dizer enormidades… com um ar sério que desconcertava, e temos mesmo de confessar que o seu “dente afiado” fazia-o ultrapassar a medida, apesar de ela ser, no


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fundo, um dos traços do seu carácter.» Outro seu amigo, Dartiguenave, ainda é mais explícito quanto aos incómodos exigidos mas perdoados pela sua intimidade: «Se alguns começavam por ser agressivos perante os afoitos discursos de Toulet, todos acabavam mais ou menos por lhe ceder. Temos de concordar que havia generosidade na sua graça afectada, embora não tenha impedido que a memória viva dos seus amiguinhos broncos enchessem, sob diversos pseudónimos, os seus poemas e os seus romances.» Pode no entanto concluir-se, extraindo um sentido mais preciso a estas desenvolturas de linguagem e costumes, que havia nele os incómodos de uma existência não realizada nos seus propósitos. São dele estas palavras: O meu dia não me satisfaz. Parece que não ganhei para as despesas, que deixei uma desagradável impressão em muitas pessoas. Além disso, as mulheres aborrecem-me, o que raramente me acontecia. Duas delas seriam minhas, se eu quisesse, mas só pensar nisso me enoja. Gostaria de ter uma mais distante, mais rara, mais difícil, que me obrigasse durante muito tempo a andar de rastos, antes de me dar os seus dedos a beijar. A sua bem alimentada vocação de amante oscila entre fascinações e misoginias que a mulher fácil lhe inspira e terá forma no singular exemplo literário que ele deu ao mundo com a criação de Nane. Toulet vive dez anos (os suficientes para desbastar as folgas materiais da sua herança) numa vertigem de doce vida amarga, a rodar entre mulheres e mesas de jogo, a fumar ópio, a desbaratar talentos literários num vazio de noites perdidas e de imaginados textos por escrever. A escassez de dinheiro chegou, depois dos bons tempos em que foi perdulário, e fê-lo trocar a base dos Pirenéus por Paris. Paris era


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uma cidade «difícil» mas cheia de convivências, de amigos; encontrou lá Claude Debussy, o grande afecto de todo o resto da sua vida, e também Toulouse-Lautrec, e Giraudoux, e o Léon Daudet que nos seus Souvenirs littéraires o relembra assim: «Toulet — pronuncie-se Tulete — autor de Monsieur de Paur, Mon amie Nane e vinte requintados contos, peca às vezes por um excesso de elipses e contradições. É um homem que conhece e ama a língua francesa. Encontramo-lo na casa de Weber, franzino e trocista, debruçado sobre o seu copo de uísque com soda, com um cintilante olhar de soslaio a observar a existência, a dar voltas à barbicha e a crispar as mãos finas como se fosse espreguiçar-se. Gostamos dele por ter horror às multidões, aos preconceitos democráticos, à difusa ingenuidade da gente importante. Exprime-se com frases curtas, secas, peremptórias, luzidias e que cortam. Tem resposta pronta e dente duro.» A vida de Toulet em Paris socorre-se de um trabalho «de negro» que retoca e completa livros alheios, da tradução de uma novela de Arthur Machen (The Great God Pan and the Inmose Light), de textos que em La Vie Parisienne assina como Maxy ou M.A. Nane. A droga e o álcool arrastam-no por esplanadas e por bulevares. «Quantas vezes o fiz sair da cama às três horas da tarde», deixou escrito Léopold Bauby. «Encontrava-o sempre metido debaixo de mantas, com as cortinas corridas, a maior desordem a reinar no quarto onde se empilhavam quarenta livros com um préstimo que nunca imaginávamos, porque nenhum de nós pensava que Toulet trabalhasse, e foi com espanto que em 1898 soubemos da publicação de Monsieur de Paur.» P.-J. Toulet fez-se finalmente escritor publicado. Monsieur de Paur, homme public é um catálogo heteróclito das perversões do século, ácida fantasia exposta numa complexidade de cartas (duas falsas,


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de Stendhal), poemas, citações e aforismos. Era diferente de tudo, era uma boa surpresa de língua francesa. Mas os seus mil e duzentos exemplares foram-se vendendo com uma lentidão que desanimava o autor. Les Tendres Ménages surgiu sem ruído em 1904; e Mon amie Nane apareceu em 1905. Com Nane, P.-J. Toulet era um fauno a contar uma história de demi-mondaine belle époque, irmã mais frívola de Naná, de Manon, de Albertine a Desaparecida. Não construía à sua custa uma trama rica em peripécias, e preferia mostrá-la num compêndio de situações diferentes que acrescentavam, novos a novos traços, o pormenor do seu retrato. Era, nos excessos brilhantes de 1900, uma estranha e paradoxal batalha de açúcar salgado. Mas oiçamos Fredéric Martinez, um dos seus biógrafos: «Está escrito numa prosa saturada de adjectivos, que nos faz lembrar um apartamento de cocotte atravancado por relógios e caixas, estatuetas e esmaltes; entramos lá em ponta de pés, com os braços bem pendurados ao longo do corpo, com medo de partir qualquer coisa. Também nos falta o ar. O capitoso perfume dos advérbios e dos boleios de frase preciosos fazem alguma dor de cabeça; a coisa é bonita de mais para ser honesta. Quer-se mal a Toulet por ele ser desagradável. Deploramos-lhe a misoginia galopante, o assumido anti-semitismo. Gostar-se-ia que o grande estilista fosse um grande homem. Toulet desagrada, e é isto o que nos diverte.» Todas estas frases de Martinez procuram definir o incómodo de um objecto insólito; um estranho corpo que surgia a contrapelo do que era previsível na onda do romance oferecido aos leitores dos primeiros anos do século XX. Toulet não levava a sério as regras que o romance tinha estabelecido pela mão de grandes escritores. Era indiferente à continuidade lógica da narrativa, dava a esco-


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lher alternativas para a mesma situação, recusava-se ao final de acordes bem marcados, e achava que num sorriso de mulher pode adivinhar-se todo o segredo do seu corpo. Nane define-se nas entrelinhas do que nos é dito por este sorriso e parece muitas vezes menos importante; oferece-se e furta-se ao sabor daquele que a julga impiedosamente com uma «sensibilidade magoada», para utilizar uma expressão de Claude Debussy. Estes momentos de amor cru vistos por um olhar não isento de snobismo, embrulhados numa prosa de bom ouvido e amor às palavras, destinou-se a perdurar sob desconfiados olhares de esguelha que não souberam evitar-lhe um garantido lugar de «clássico marginal». P.-J. Toulet, a deambular numa cidade que o atrai e o repele, faz-se desiludido e amargo. Numa carta à sua irmã ficou esta confissão: Estou a tornar-me gagá. Tenho a cabeça cheia de mulheres; e apesar de eu dever ligar tanto às suas opiniões como às dos cães ou dos cavalos, o que pensam de mim inquieta-me. Porque não é possuí-las o que eu quero, mas possuí-las sob certas condições de dandismo e prestígio. Reconheço o meu ridículo, ele dói-me, e à minha vaidade acrescenta-se a mania da perseguição que sangra, tornando-me mais sensível. O meu dia roda sobre umas quantas horas em que posso ver […] e, de acordo com a qualidade da saúde ou do sorriso que elas me dirigem, me encho de alegria ou de tristeza. As suas outras obras literárias hoje apreciadas são póstumas. O romance La Jeune Fille verte é de 1920, publicado logo a seguir à sua morte; o seu livro de versos Contrerimes, um perito desequilíbrio de ritmos e rimas, só muito mais tarde foi admirado. À sua saúde, cada vez mais exigente em cuidados, calharia bem uma esposa vigilante e sofredora, que aliviasse um peso às obrigações


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dos seus familiares. Dez anos antes de morrer, o seu desespero de vida descolorida e marginal já era insuportável. Metido numa casa dos subúrbios de Paris, gritava à sua irmã: Não tenho vontade de sair daqui. E não tenho, também, vontade de aqui continuar. Não tenho vontade de nada, de viver e ainda menos de morrer. Adeus. Estou triste com estes jardins de subúrbio onde só crescem cacos de garrafa. O que me resta fazer, senão casar-me?, diz em 1902 numa carta. Desde há várias horas penso nisto; gostaria de casar-me com uma viúva, porque uma mulher esclarecida vale por duas, o que me dispensaria, pelo menos uma vez, de a enganar. Em 12 de Junho de 1916 casa-se com Marie Vergon, que mostra nesse noivado a sua grande vocação para esposa-enfermeira. Instalado finalmente em Guéthary, na Aquitânia junto dos Pirenéus Atlânticos, foi-lhe concedida a companheira tardia e destinada a uma viuvez, se não com data marcada, pelo menos próxima. A senhora Debussy teve numa carta direito a esta acidulada franqueza: Farta de tratar de mim, a minha família casou-me; havia na Rafette qualquer coisa parecida com uma capela ou um oratório que nunca tinha servido para nada daquele género, e um padre jesuíta desocupado. […] Todos estavam com um ar de pessoas satisfeitas. Fazia um tempo de Junho muito agradável; e as senhoras choravam decentemente na prédica de circunstância. O seu amigo ópio, uma penumbra de cortinados corridos, uma desarrumada companhia de jornais, livros e papéis, a gata Ubu-Reine e a grande vontade de mais um livro que se chamaria Le Meuble d’ébène acompanharam-no durante quatro anos. A hemorragia cerebral matou-o ao meio-dia de 6 de Setembro de 1920.


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Em Paris havia nessa época um Marcel Proust horizontal, rodeado de cadernos marginais à obra onde ele procurava incansavelmente ressuscitar a memória de um tempo perdido e onde anotava o que lhe era ditado pelos fait-divers quotidianos. «Faz-se um grande ruído à volta de Toulet, que acaba de morrer», escreveu num desses momentos distraídos do seu centro; «de facto, todos os seus amigos afirmam, e julgo que sem esforço, que ele era uma criatura deliciosa. Os gentis versos seus que ouvi recitar, muitas vezes graciosos, chegam a ter uma verdadeira eloquência.» Marcel Proust alimentava os seus «cadernos» com uma vocação de diarista que nunca chegou a nenhum Diário. E é provável que no seu quarto forrado a cortiça, no seu leito ciosamente vigiado por Céleste Albaret, depois destas palavras de circunstância, dedicadas a um desaparecido que nunca tinha encontrado no bordel nem no salão, tenha voltado à procura da nova forma de uma frase que assim, ou muito modificada, viria a pertencer ao seu próximo livro Le Côté de Guermantes. A.F.


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Magis amica veritas. N. … A verdade, a minha melhor amiga.


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«Quæ est ista, quæ progreditur ut luna?» (Cantic, cantic.) Que jovem é esta, que se aproxima de mim e tem feições que não anunciam uma viva inteligência?

Esta amiga que desejo, ó leitor, mostrar-te debaixo da sua roupa ou bem ataviada com enfeites que eram como uma segunda imagem da sua beleza, mais não foi do que uma mulher da vida com alegrias — e tristezas. De facto, se apenas souberes ouvir as coisas expressas pela linguagem, a minha amiga não te fará oferta de nenhum sentido; e talvez a tenhas julgado estúpida. Porque era frequente as suas palavras — que a mais pura embriaguez ditava — nada significarem, parecidas com os guizos que uma mão de carnaval agita; e o seu cérebro era como essa espuma que vemos nas ardentes rochas do Verão transformar-se em pó. E caminhou no entanto à minha frente como se o meu pensamento, desposando os números a que está submetida a beleza, tivesse vestido um glorioso corpo. Sendo ela própria um enigma, revelou-me por vezes um pouco do Grande Enigma: só me aparecia então como um microcosmo; porque os seus gestos figuravam aos meus olhos a verdadeira ordem e a razão escondida destas aparências em que nos movemos.


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Com ela compreendi que uma coisa contém todas as outras e está dentro delas contida. Tal como na alma aromática de Cerné, que um pequeno saco mantém prisioneira, pode adivinhar-se num sorriso de mulher todo o segredo do seu corpo. Os mais discordantes objectos — Nane ensinou-me isto — são correspondências: e o ser é todo imagem desse infinito e desse múltiplo que o oprimem chegados de todos os lados. Não foi a carne, onde tantos artistas e voluptuosos saborearam a alegria, que mais me seduziu em Nane a bem modelada. As curvas do flanco ou da nuca, que me parecem obedientes ao polegar de um irrepreensível oleiro, a delicadeza das mãos e a testa orgulhosamente abaulada, tal como as suas singulares carícias que inventavam uma mais viva volúpia em pleno centro da volúpia, podem ser noutras pessoas descobertas. Mas bem mais do que isto era Nane; era um sinal escrito no muro, o verdadeiro hieróglifo da vida; nela julguei que contemplava o mundo. Não; nem as ondulações do rio Oceano nem os nós da víbora embriagada de calor, que dorme ao sol completamente negra, são mais pérfidos do que os seus abraços. Que fruto do mais belo pomar da França e do mais belo Outono saberia refrescar tanto como os seus beijos que ao meu coração matam a sede? Ficarás ainda a saber que a arquitectura dos seus membros mostra toda a audácia de uma requintada geometria; e, se observei com cuidado o ritmo do seu andar ou dos seus abandonos, foi para abraçar as leis do bom senso. Aqui está, ó leitor, como eu as apresento debaixo dos três vestidos da palavra, idênticas a cativas de alto preço. Descobre-as, e com elas o segredo deste livro. Vai, não pares perante a triviali-


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dade das fábulas, o vazio das palavras, nem perante aquilo a que chamamos a ironia das opiniões. Levanta um véu e mais outro; há sempre debaixo de um símbolo outro símbolo. Mas fá-lo só para ti, que já sabias esta verdade ensinada aos homens, embora eles já a trouxessem na alma. Mas se te for aborrecido penetrar tanto, poderás divertir-te com as coisas que ao amor dizem respeito. Não fiques pelo menos a acreditar que seja digno de desprezo aquele que amou, assim tão simplesmente, a minha amiga. Porque, tanto no fundo do amor como no fundo do saber, há uma religião. E a volúpia tem em si mesma os seus mistérios. Se não quiseres por acaso alinhar nisto, em tua honra evocarei — durante uma tarde de Agosto, enquanto o sol brilha e devora a sombra azul na base dos muros — a alcova onde a minha amiga, cansada de raios de sol e cansada de amar, repousa no silêncio. Às vezes levanta as pálpebras; e então verás a luz dos seus olhos palpitar como um relâmpago de calor no fundo da noite.


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i. as sirenes

«At tuba, terribili sonitu, taratantara dixit.» (Ennius, Anal.) Eram gritos que nos faziam continuar espantados; um bronze acre que ressoava e em plena noite fazia: Huuuu.

Nessa época, a minha amiga Nane era-me quase desconhecida, bem longe de me pertencer como coisa minha. A bem dizer, mesmo depois disto nunca procurei ter o monopólio da sua ternura. Não terá sido egoísmo? Além do mais, era preciso ter meios. Nessa época Nane passava por ser propriedade exclusiva de Bélesbat, o dono de altos-fornos. Este industrial que esmagava debaixo de si, com o peso de números e planos, os mais endurecidos engenheiros; com uma alma toda aritmética que seria capaz de reduzir às quatro operações a beleza, o heroísmo e até o ódio, nem sempre sentia desdém por adquirir coisas graciosas apesar de inúteis. De facto, Nane tão pouco valia para ele como um matagal de rosas, uma rede de dormir, uma habanera; e haveis sempre de ignorar por que mantinha uma empregada tão cara. Talvez este vegetativo ídolo, que enlanguescia sob a casca das sedas e das pedras dos seus colares bárbaros, o consolasse por ele próprio se encontrar tão febrilmente mal vestido. Talvez gostasse de ver reluzir-lhe nos olhos de um castanho-


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-avermelhado os inestimáveis reflexos do ouro; e talvez a tivesse alugado simplesmente como insígnia da sua riqueza. Não era, pelo menos, o seu principal cuidado, como lhe foi mostrado quando um dia partiu de repente no seu iate La Méduse para visitar a Terra do Fogo, onde tencionava instalar colónias agrícolas. Os asilos nocturnos fornecer-lhe-iam os primeiros colonos. Foi assim que Nane ficou livre, embora não soubesse dizer com exactidão por quanto tempo. Começou por mostrar algum desgosto por não a terem levado; imaginava a Terra do Fogo como um país muito quente com lianas, ananases de sumo natural, borboletas grandes como biombos; e, sem dúvida, com um qualquer casino onde era possível dar largas a toilettes excêntricas à frente de pessoas de cores diversas e vestidas com smoking: uma coisa do género dos negros do Quartier Latin. Ele teve de explicar-lhe que embora este distrito da América, fértil sobretudo em blocos de gelo, com os seus destroços de grande cidade pudesse passar visto de longe por uma Arcádia, não era vilegiatura favorável aos jogos das nossas cortesãs. Nane muito depressa se consolou por não ser mais do que uma amante solitária, metida na sua pequena moradia da rua de Seythéris, e por Bélesbat já não vir gesticular no meio das suas mesas frágeis, ou com voz acre reclamar contra as lentidões do serviço. De facto, o que mais apreciava nele não era a sua presença. Não estava nas intenções de Nane mostrar-se na viuvez mais fiel a Bélesbat do que lhe era habitual. Continuou portanto a enganá-lo, embora com menos prazer desde que ele andava por longe, e fê-lo sobretudo com Jacques d’Iscamps.


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índice

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII. IX X. XI. XII. XIII.

As sirenes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Como nos amamos . . . . . . . . . . . . . . . . . . O aperitivo na casa da marquesa. . . . . . . . . A mãe feliz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A tarde estética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um dia no meio de outros . . . . . . . . . . . . . Nane ao espelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Veneza sentimental . . . . . . . . . . . . . . . . . . O indiferente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As asfaltites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As caridades de Nane . . . . . . . . . . . . . . . . . Nane pensa que vai morrer. . . . . . . . . . . . . As núpcias de Nane . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O Capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco O caso Kurílov, Irène Némirowsky A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal O rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones


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Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan Derborence, Charles Ferdinand Ramuz O farol de amor, Rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière A minha vida, Isadora Duncan Rakhil, Isabelle Eberhardt Fuga sem fim, Joseph Roth O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans Tufão, Joseph Conrad Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud Eu, Antonin Artaud A morte difícil, René Crevel A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry Balkis (A Lenda num Café), Gérard de Nerval Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud Riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes Entre a espada e a parede, Tristan Bernard A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen Os meus Oscar Wilde, André Gide As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw Meu irmão feminino — «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz O filho de duas mães, Edith Wharton A armadilha, Emmanuel Bove Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès



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