Manuel António Pina, Dito em voz alta, Entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo - excerto

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DITO EM VOZ ALTA entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo organização de Sousa Dias

Manuel António Pina (1943-2012), Prémio Camões 2011, é um dos máximos nomes da poesia e da criação literária de língua portuguesa. A presente antologia recolhe as suas melhores entrevistas sobre literatura, «isto é, sobre tudo», nas quais se revela, como em nenhuns outros textos, o pensamento teórico e crítico do escritor.

LINHAS DE FUGA 11

DITO EM VOZ ALTA

A literatura nunca deixou de ser, na minha escrita, possível, mas a palavra literária (a palavra poética) ter-se-á esgotado excessivamente a convocar o ser e o mundo (a ser ser e mundo) e terá, a certa altura, caído em si, percebendo que talvez se tivesse negligenciado como instância, também, e mais modestamente, de nomeação do ser e do mundo, e experimentando então «saudades da prosa». Mas tenho, de facto, consciência de que, desde Cuidados Intensivos (ou, talvez antes, desde Farewell Happy Fields), existe na minha escrita uma espécie de reconciliação com a literatura (com a poesia), que passa tanto pela aceitação dos seus processos como da sua memória. Um dos últimos poemas que escrevi fala das «minhas últimas palavras», aquelas que, «por cansaço, por inércia, por acaso», foram ficando, e com quem, agora, «como velhos amantes sem desejo» desfio memórias. Manuel António Pina

Manuel António Pina

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DITO EM VOZ ALTA entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo

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DITO EM VOZ ALTA entrevistas sobre literatura, i st o ĂŠ, sob re t ud o (2000-2012)


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entrevistas de

Américo António Lindeza Diogo e Osvaldo Manuel Silvestre Ana Marques Gastão Anabela Mota Ribeiro Carlos Vaz Marques José António Gomes Luís Miguel Queirós Maria Augusta Silva Maria Leonor Nunes Sarah Adamopoulos Sérgio Almeida Sérgio Costa Andrade Sérgio Guimarães de Sousa


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DITO EM VOZ ALTA entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo (2000-2012) organização de

Sousa Dias

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© HERDEIRAS DE MANUEL ANTÓNIO PINA E ENTREVISTADORES, 2016 © SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B 1150-258 LISBOA 1.ª EDIÇÃO, JUNHO 2016 ISBN 978-989-8834-27-0 NA CAPA: MANUEL ANTÓNIO PINA, FOTOGRAFIA DE LUCÍLIA MONTEIRO REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 411889/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS SA RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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NOTA DO ORGANIZADOR

A presente antologia conheceu uma primeira publicação na Pé de Página Editores, de Coimbra, em 2007, com prefácio de Inês Fonseca Santos. Manuel António Pina (MAP) fez-me assiná-la como organizador, por a ideia ter sido minha e pela entusiástica cumplicidade na respectiva preparação, mas a verdade é que a escolha das entrevistas, os pedidos de autorização aos entrevistadores, o título e o subtítulo da antologia aqui retomados, foram todos da responsabilidade do próprio escritor. A mim coube-me apenas o mérito de convencê-lo, contra a resistência inicial ao projecto, do interesse público dessa recolha em volume de palavras suas dispersas. Insistiram entretanto comigo as filhas do escritor, a Ana e a Sara Pina, a quem agradeço a confiança que assumo como um privilégio na salvaguarda da memória do pai, para que republicasse esta antologia mas aumentada com as principais entrevistas ulteriores à edição original, portanto dos anos 2007-2012 (de facto, dos anos 2009-2012, por inexistência de entrevistas em 2007 e 2008). Não poderia recusar a solicitação, oportunidade de tributo póstumo, partilhado pelo editor, ao inesquecível Amigo, e tarefa de gratidão subscrita por todos os entrevistadores, que não só autorizaram ou reautorizaram sem condições a reprodução dos seus trabalhos como, nos casos em que foi necessário, colaboraram sem reservas com o organizador. A todos eles agradeço, assim como ao coordenador editorial da extinta Pé de Página Editores, Rui Alexandre Grácio, que quis cooperar também, cedendo sem contrapartidas o ficheiro informático da antologia de 2007. Nota do Organizador

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Limitei-me aqui a respeitar, à excepção de duas entrevistas que entendi excluir por me parecerem menos «antologiáveis» no contexto desta reedição alargada, a auto-antologia (que o foi deveras) do escritor na prévia edição e a sua organização refractária à cronologia e a juntar-lhe, por ordem cronológica, as mais importantes entrevistas posteriormente dadas por MAP e publicadas por escrito. No fim do volume encontrará o leitor a lista de referências aos entrevistadores e ao local e data da primeira publicação das entrevistas da antologia. Sousa Dias

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«À POESIA POUCO MAIS É DADO DIZER DO QUE O SILÊNCIO DO MUNDO» Américo António Lindeza Diogo e Osvaldo Manuel Silvestre Manuel António Pina, poeta, autor de literatura infantil e cronista, fala ao Ciberkiosk. Um tanto tarde, decerto (na medida em que, como aprendemos na sua obra, é sempre tarde na nossa irreal existência breve), Manuel António Pina começa a surgir aos seus contemporâneos como o autor de uma obra maior. Neste caso, e apesar de ser esse o núcleo irradiante da sua produção, não basta dizê-la maior no campo poético, já que o autor é homem de muitos ofícios literários, da literatura infantil em que é mestre ( O País das Pessoas de Pernas para o Ar, 1973; Gigões & Anantes, 1974; O Têpluquê, 1977; A Arca do Não É, 1979; etc., etc.: é favor ler os títulos em relação com as datas da nossa história recente) e à crónica, de que é cultor infelizmente bissexto (O Anacronista, 1994 ). Na poesia, tudo começou no ano dos milagres de 1974, com o livro Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde, a que se seguiriam, a um ritmo pausado e adensadamente «ruminante», mais 8 títulos. Refira-se a reunião a que procedeu da sua obra em 1992, no volume Algo Parecido com Isto da Mesma Substância, e a recente súmula da sua obra que é o volume Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, longamente analisado em texto incluído neste número de Ciberkiosk. (Nota: «Intimidade e estética», de Martin Strauss). Suspendamos a lição ética que a ponderada gestão desta obra comporta, num tempo em que os poetas se apressam em produzir-se sob as roupagens da Obra Completa, aos 40 anos. A centralidade discreta da poesia de Manuel António Pina na nossa cena actual, conquistada apesar de bastante esquecimento e descaso, poderá talvez pouco para inverter os rumos fátuos da poesia do período; mas nas suas menos de 300 páginas ela convida-nos a uma meditação exigente e sem tréguas sobre essa modalidade de declinação do ser a que damos o nome de poesia. Poesia do «ser no mundo» e da difícil gramaticalidade disso, a obra de Pina é também, muito consciente e cultamente, uma encruzilhada das dicções poéticas do século, entre o Novo e a conspiração dos plágios, entre Pessoa e Borges, enfim, entre o emperro e a música do verbo, esta última em regime frequentemente atonal. Razões mais

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do que suficientes para convocarmos Manuel António Pina a uma conversa com os leitores de Ciberkiosk, os quais poderão assistir nas linhas que se seguem a uma demonstração rara de inteligência e domínio da prosa (a entrevista foi realizada por escrito). O momento parece aliás acertado, coincidindo como coincide com a unanimidade crítica desencadeada pelo seu último livro de versos — de que Ciberkiosk se orgulha de ter apresentado uma sequência à data inédita, no seu número 3 (Setembro de 1998). Ao autor, que gentilmente acedeu a esta entrevista, o nosso muito obrigado.

O seu primeiro livro, editado no ano santo de 1974, tem o estranho e alongado título Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde. A que vem esta admissão de intempestividade? É o poeta que é tardio (em relação aos seus mestres modernos: Pound, etc.)? É a poesia que já não tem apetência pelo canto? É a revolução que vem fora de tempo? Importa-se de nos esclarecer? A história desse título é um pouco (ou um muito) prosaica. O livro chamava-se (e talvez ainda se chame) Duas Biografias. Ainda Não É o Fim, etc. era o título de uma das suas partes. O editor da 1.ª edição — «A Regra do Jogo» que Deus haja — achou que esse seria melhor como título. Fizemos a coisa a meias: saiu Ainda Não É o Fim… na capa e Duas Biografias no rosto. O livro tem, por isso, dois títulos. Quanto ao resto, ao sentido (ou, talvez antes, à significação) do título da capa, lamento não poder ajudar. Sentido e significação são, em poesia, assuntos excessivamente inseguros e privados, ou da memória privada, para que possamos propor-nos, sem risco de falta de seriedade, partilhá-los. Reparo no entanto, muitos anos e muitos livros depois, que expressões como «é tarde», ou «faz-se tarde», ou «está a fazer-se tarde», e congéneres, são frequentes na poesia que, desde esse primeiro livro, escrevi. Devo dizer que desconfio dos versos e dos poemas (e dos títulos…) cuja significação não me ofereça alguma

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resistência. O verso ou o poema hão-de ser suficientemente convictos e seguros de si mais do que eu deles. Com estas reservas, quer-me parecer que a «admissão de intempestividade» que tantas vezes recorre na minha poesia há-de, por aproximação, andar (mas que sei eu?) pela que desemboca nuns versos de Farewell Happy Fields: «Estava a fazer-se tarde e já ninguém vinha, / o melhor era irmo-nos deitar». Isto é, a de alguém esperando alguma coisa (não sei o quê; de qualquer modo, algo do domínio do psicológico mais do que do sociológico) que, no distante ano de 1974, ainda podia vir, e que, em 1992, data de Farewell Happy Fields, já é aparentemente certo que não virá. (Dir-se-ia entretanto que, apesar de tudo, a espera, mesmo desesperançada, prossegue. Num poema que um dia destes escrevi, intitulado «Quinquagésimo ano», lá consta ela de novo: «Começa agora a fazer-se tarde / de um modo menos literário do que dantes»…). Mais radicalmente, o seu último livro ( Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, 1999) vem sugerir que tudo é tardio — vida e palavras — em relação a um momento primeiro, insituável e só recuperável (?) como lembrança: «como diante de uma infância / inicial não embaciada / de nenhuma palavra / e nenhuma lembrança» (p. 52). À poesia estaria então cometida uma tão alta função necromântica, em confronto com a sua incapacidade para dizer outra coisa que não o silêncio? E como pôde pôr a falar, ao mesmo tempo, na literatura infantil, «uma infância inicial» que nenhuma palavra embaciou? Necromância ainda e afinal? Talvez toda a poesia, sendo memória, seja necromântica. E sendo feita e desfeita de palavras, e pois que as nossas palavras são tempo e incoincidência. A minha é decerto necromântica. Independentemente de à poesia pouco mais ser dado dizer do que o silêncio do «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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mundo (silêncio que é, na língua, abertura ao sentido e sentido aberto), ela pode constituir uma espécie de epifania sem revelação daquilo que talvez saibamos sem sabermos que o sabemos. «Na verdade, quem caminha sobre a cabeça tem o céu debaixo de si como um abismo» (Paul Celan). Porque isso que, da infância, nos não pertence através da memória e das palavras é a Infância, o sem-tempo da infância. Talvez a poesia e o seu inseguro silêncio possam, quem sabe?, dar uma forma ao desejo desse sem-tempo, dessa coisa nenhuma — que é, evidentemente, um desejo de morte. A infância, como a morte, são limites sobre dois escuros abismos fundamentais. Quem não tem medo do escuro? Parodiando Bataille, talvez seja então possível dizer: «Escreves porque tens medo». Vista daqui, a literatura infantil que escrevo há-de, pois, ser outro modo, talvez mais perverso, do mesmo desejo. Curiosamente, o último conto do meu último livro desse por assim dizer «género» é uma «História com os olhos fechados»… «Os tempos não vão bons para nós, os mortos» é o primeiro verso da sua obra. Este início tão literário faz-nos lembrar nebulosos autores alemães dados à metafísica (e à sua desconstrução) e à ontologia mortal do ser. Parafraseando Heidegger, poderíamos dizer que na sua obra a poesia e a metafísica são tão próximas como os cumes das montanhas distantes? Ou tão distantes como os cumes das montanhas próximas… Eu não penso muito a minha poesia, ela é tudo o que penso sobre ela. (Daí as dificuldades que tive — que tenho — em responder a esta entrevista…). De qualquer modo, a minha poesia será tudo menos a ilustração de um pensamento sobre a poesia. Em verdade lhe digo: acho que ela pode ilustrar tanto concepções românticas/surrealistas (ou heideggerianas: não falava eu, atrás, em «verdade»?) de «poesofia» como concepções mais ou menos formalistas, as mais dogmáticas

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tanto quanto as cépticas. Que, como se sabe, não se excluem necessariamente. A poesia é uma espécie de religião sem fé (a minha, acho eu, é), sendo provável que essa vocação de religação (que é, em sentido literal, uma vocação de «compreensão») a ponha diante de algumas intuições metafísicas e ontológicas. Daí a ser uma poesia metafísica vai um abismo. Ela não «quer» pensar nem exprimir nada (está, digamos assim, ocupada de mais a ser), o que não significa, claro, que não pense ou não exprima, se não como escritura como leitura. «A realidade é uma hipótese repugnante», afirma-se no seu último livro. Num poema de Aquele que Quer Morrer (1978), afirma-se, um tanto com Pessoa à espreita: «A ideia de isto cansa-me / em qualquer sítio fora de qualquer coisa / onde o meu cansaço é só um conceito». O seu idealismo é constitutivo ou foi-lhe revelado (ou intensificado) ao ler Pessoa? Como se relaciona hoje com o poeta multicéfalo? Eu li — mesmo que a correr, mesmo que só como visitante ocasional — os mesmos idealistas e os mesmos materialistas que todos leram. E li muita gente que os leu certamente melhor do que eu. Ao longo dos anos, fui lendo todo o tipo de coisas e sido atravessado pelas mais dispersas influências filosóficas e estéticas. Por algum motivo algumas foram ficando mais persistentemente do que outras, e algumas me foram conformando mais do que outras. De qualquer maneira, só a espaços (e às vezes com surpresa) dou conta de quais. Borges, por exemplo, como talvez também Pound, terão tido na minha literatura (e, em geral, na minha relação com a literatura) uma influência que é para mim mais clara do que a de Pessoa. E um e outro não apenas, nem sobretudo, por si mesmos, mas também por todas as inúmeras outras influências que nas suas vêm diluídas. Pessoa também; mas trata-se de uma situação distinta, porque, entre nós, Pessoa «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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é, frequentemente, o nome que se atribui à modernidade (assim tem sucedido com a minha poesia, onde se tem identificado como «pessoana» muita coisa, até a questão identitária, que é apenas moderna). Numa primeira versão desta resposta tinha começado por enumerar desordenadamente toda a balbúrdia de leituras (isto é, de influências) que poderiam ter conformado o meu “idealismo”. Para, finalmente, me interrogar sobre a possibilidade prática de distinguir, no resultado final, o que é constitutivo do que é constituído e sobre se tal distinção fará algum sentido. Mas recordei-me de um episódio passado há alguns anos. Eu estava como poeta residente em Villeneuve-sur-Lot, uma pequena cidade do Lot-et-Garonne, quando me telefonou Claude Rouquet, o editor de «L’Escampette», insistindo para que fosse a Périgueux, a uma sessão literária marcada para a biblioteca local, que tinha uma surpresa para mim. Na biblioteca, um poeta marroquino, Abdallah Zrika, lia poemas, em árabe e em francês. Era essa a surpresa: eram poemas, os de Zrika, meus que eu não tinha escrito! Até onde conheço a minha poesia, aquela poesia era, inquietantemente, a minha! E, pelos vistos, Zrika tinha tido exactamente a mesma impressão lendo, antes, alguns poemas meus editados por Claude Rouquet. E, no entanto, o poeta marroquino nascera e fora criado num bairro pobre da periferia de Casablanca, só aprendera a ler na adolescência, era um militante islâmico e passara uma boa parte da vida na prisão. Uma existência nos antípodas da minha gerara uma poesia igual ou consanguínea da minha! Terá o episódio alguma relevância em relação à questão das influências? Nós e as nossas circunstâncias? Mas voltemos a Pessoa. Acho eu que só por inacreditável infelicidade é que algum poeta português posterior não terá sido — por acção ou por omissão, por aceitação ou por denegação, mais ansiosamente ou menos ansiosamente — influenciado por Pessoa. A mim, marcou-me profunda-

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mente, sobretudo na juventude. Aos 16 anos ganhei, num concurso literário do Liceu de Aveiro, as suas obras editadas pela Ática. «Apanhei» então alguma daquela poesia, principalmente a de Alberto Caeiro e a do ortónimo, como se «apanha» uma doença. Cheguei a escrever um volume (um «falso verdadeiro», dir-se-ia hoje) de Novos Poemas de Alberto Caeiro… Actualmente, a minha relação com a multidão pessoana é mais saudável. Até porque, entretanto, fui «apanhando» mais doenças, e tão ou mais graves (logo a seguir, e ainda nos tenros anos adolescentes, o Mário de Sá-Carneiro e o Camilo Pessanha…). Mas não estou completamente imunizado. Por isso frequento Pessoa com moderação. Há poetas e poesias com uma força de gravidade excessivamente grande para a minha pouca massa. Pessoa é um desses poetas (Eliot, por exemplo, é outro); confesso que tenho algum infantil temor de, deixando-me ir, poder esmagar-me contra as suas superfícies. Em Cuidados Intensivos (1994) a questão da morte surge acompanhada do tema «nobre» da morte de Deus. Por exemplo: «os antigos invocavam-se a si próprios, / nós mandámos dizer que não estávamos» (p. 13). Contudo, esta questão surge também abordada, no mesmo livro, numa óptica radicalmente secular: «Porque é tão difícil, Paulina, morrer em tom menor, / sem tragédia e sem justificações, / sem procurar inutilmente a salvação / da vida». A tragédia é o luxo dos Antigos e nós os ausentes a si mesmos? A poesia — a Arte — não compensa da morte de Deus? A uma vida em tom menor ou em tom único (monotonal) deve corresponder uma poesia «intrigantemente monótona», como da sua dizia em tempos Óscar Lopes? «Os antigos invocavam-se a si próprios, / nós mandámos dizer que não estávamos» é uma inocente paródia, en passant, de Álvaro de Campos: «Os antigos invocavam as Musas. / Nós invocamo-nos a nós «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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mesmos». Desde logo na impertinência de pôr aqueles «nós próprios» no lugar de «nós mesmos» (que é como quem diz pôr as coisas no seu lugar, pois é sabido pelo próprio Pessoa que Campos era dado a lapsos, «como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”»), há em tal paródia um desolado afrontamento do excesso de modernidade, isto é, do excesso de antiguidade. Os Modernos, se bem se lembra, também não estavam; a diferença é nós aparentemente coincidirmos com a nossa ausência, «vagueando / por palavras alheias e infernos alheios». A tragédia é, de facto, o luxo dos Antigos como o dos Modernos. Morto Deus, seria preciso que morresse o Homem (o Homem moderno?) para que, enfim sós, pudéssemos ficar diante de nós mesmos como ausência de nós, espécie de nietzscheanos «últimos dos homens», em que a vontade de nada se tivesse tornado nada da vontade. A poesia é apenas, citando um verso do mesmo livro, «uns grandes olhos que em isto tudo há». Um dos seus poemas mais notáveis é aquele que começa por «Apaga a luz. Guarda-me os óculos. Obrigado», em Cuidados Intensivos, e em que se refere a morte como um «erro de paralaxe». O poema pode ser lido como uma paródia da (suposta) paródia pessoana das palavras finais de Goethe. Da luz deste passaríamos aos óculos de Pessoa e às dioptrias insuficientes da personagem do seu poema, que por via disso não chega mesmo a saber se está vivo ou morto. O poeta seria, então, um vidente trôpego e a poesia uma declinação das sombras platónicas? Lembramos-lhe que ainda assim, e um tanto contraditoriamente, o poeta vê que outrem — os leitores? — vê mal. A paródia à obviamente suposta paródia pessoana de Goethe é também suposta. Embora a ideia, enquanto acaso objectivo, me agrade, tanto mais que do que se trata no meu poema é justamente da

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morte. O poeta não vê apenas que outrem — os leitores, como diz — vê mal; do «ângulo de inclinação da sua existência» (P. Celan), e tirando os óculos para ver, o poeta vê-se cegamente também como vidente (leitor) de si mesmo, como uma sombra. Mas isso é, agora, uma suposição minha… No poema «Tat Tam Asi», de Aquele que quer morrer, deparamo-nos com uma formulação radical da literatura como cânone e deste como uma entidade transcendental: «Aqueles que afirmam tudo / existem já na eternidade / conquistaram a imobilidade e o silêncio / com sábia indiferença são sidos por tudo». Em que medida é que o cânone nos é? Ou seja, de que modo é que os auctores nos são? Imagina os seus autores assim silenciosos nas alturas — e imagina-se à conversa com eles? Os poemas de Aquele que Quer Morrer radicam, fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao Te King e A Gaia Ciência, de Nietzsche (lida numa edição francesa com um prefácio por Klossowski que passou, para mim, a fazer também parte do livro). Os volumes da colecção de poesia de «A Regra do Jogo» em que saiu Aquele que Quer Morrer tinham no início um cromo; o meu foi o único livro da colecção sem esse ornamento gráfico, porque o João Botelho fotografara um velho exemplar de A Gaia Ciência da «Guimarães» abandonado em cima de uma cadeira, e aquilo pareceu-me então grosseiramente óbvio… O poema que cita reporta-se, tal como o escrevi, ao modelo taoísta de sabedoria «e(x)tática» e passiva, de coincidência consigo e com o mundo. De «nesciência» que é ciência suprema. Aliás, como se sabe, todo o livro se excede, até à mais «intrigante monotonia», em vozes passivas, pleonasmos, repetições… De qualquer maneira, não imaginando certamente os meus autores nas alturas, e antes em algum nenhum lugar vazio algures, isso não impede, antes «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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facilita, que vá conversando com eles e eles uns com os outros. Provavelmente, aliás, eu não sou outra coisa senão toda essa conversa. Os nossos autores são, em grande parte, isso mesmo: nossos autores. Escrevem-nos. Tanto quanto, provavelmente, os escrevemos nós a eles. O Bilhete de Identidade de um escritor é, na realidade (não me lembro onde é que li isto), o seu Bilhete de Alteridade. Esta formulação do cânone como máquina transcendental esvazia os escreventes, como podemos ler no poema «Literatura» do seu primeiro livro: «Literatura incrível esta / que a si própria se escreve». Tanto mais que, como se dirá em «O último dos homens», de Aquele que Quer Morrer, «Já fiz tudo, já aqui estive, já li tudo!». Nesse mesmo poema diz-se-nos da «difícil solidão» do escriba, que «atravessa o deserto às costas do melhor amigo. / Tem que se lembrar de tudo / pequenas frases, umas primeiro outras depois». A literatura, nestes seus inícios, é colagem, técnicas mortas, pleonasmo, repetição. Ainda o é hoje? Já agora, o que é feito da «ansiedade da influência» de quem assim formula cânone e escrita? Não sendo ela visível, deve-se isso a muita prática da rasura? A literatura — já uma vez o escrevi — é uma arte de ladrões que roubam a ladrões. Se a constatação se aplica facilmente à colagem enquanto processo literário, aplica-se também, no entanto, à generalidade dos outros processos e à própria literatura enquanto tal. Diz Eliot que os poetas fracos copiam e os poetas fortes roubam. Independentemente de ser uma questão de força ou de fraqueza, não se trata aqui, com efeito, de copiar, mas de, consciente ou inconscientemente, roubar. E quase em estrito sentido técnico-jurídico: de se apropriar de algo de outrem disso fazendo coisa sua. Coisa sua… Quando se rouba conscientemente, e publicamente, o próprio roubo se constituindo

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como processo literário, estamos no domínio da colagem, da alusão, da paráfrase. Mas o roubo, em literatura, decorre, acho eu, da sua própria natureza de identidade-alteridade. Se tudo está eternamente escrito, isto é, eternamente em Quito (aí estão elas, alusão e citação), então a literatura é provavelmente um ramo especial da Tautologia. A verdade é que os cânones nos conformam, nos são. Mesmo sem os lermos, andam por aí no ar e na cultura que respiramos, como um fluido em que estamos permanentemente mergulhados; a sua presença em nós opera-se naturalmente, quanto mais não seja por osmose. Posso nunca ter lido Shakespeare ou Goethe, mas leram-nos aqueles que eu li, ou aqueles que foram lidos por aqueles que eu li. Escreve-se sempre com e contra o passado. A minha poesia não escapa a essa regra, nem, certamente, à da «ansiedade da influência». Acontece porém que, ao longo dos anos, fui construindo uma relação muito paciente com a minha poesia, dela não esperando hoje o que ela me não pode dar, uma identidade. E para que raio precisaria eu de uma identidade? Ou de um destino? Quando calha (e muitas vezes calha) vislumbrar a influência à espreita num verso ou num poema, faço normalmente por abrir-lhe a porta e acolhê-la com fraternal complacência. Sei que não adianta fechar-lhe a porta, ela entrará pela janela. Mas não lhe abro os braços apenas por isso, por não poder deixar de recebê-la. A maior parte das vezes ela é, real e sinceramente, bem-vinda. Só aqui e ali é que alguma eventual impertinência precisa, de facto, de rasura. Dizia o outro que escravo que sabe que é escravo é já meio liberto. Em literatura, a única liberdade que nos é dado alcançar é a de conhecer (mais do que a de escolher) as próprias servidões. Uma das muitas personagens do seu primeiro livro, Clóvis da Silva, teria afirmado, segundo uma outra personagem: «A littratura morreu. Eu «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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e Flávio lhe faremos o emperro». Seria isto um resumo da sua obra — ou da primeira fase dela? Não o enterro mas o emperro da literatura? E este emperro, mais as proclamações milenaristas e chocarreiras, devem-se ainda aos avôzinhos do século, entre Tzara e Breton? Já agora, a contracultura poderia fazer um ménage com aqueles dois senhores nesses seus primeiros livros? Clóvis da Silva é alguém que eu (não tenho melhor palavra à mão do que «eu») vejo a escrever algumas coisas que escrevo. Não um heterónimo, talvez antes um ortónimo da literatura ela-mesma (isto é, da outra). Porque, repare-se, é alguém que, justamente, anuncia a morte da «littratura» (e o Littré é a metáfora aparente de uma literatura canónica), e se propõe enterrá-la, ou «emperrá-la», com a colaboração de um outro que, sendo Flávio dos Prazeres, é também Plágio dos Fazeres… Alguém que, aliás, morrerá da mais banal e ordeira morte possível antes de levar a cabo o seu desmesurado e inútil propósito literário. Tão inútil e desmesurado como os de Breton ou de Tzara (e, sim, também o da chamada contracultura), que acabaram, de uma forma ou de outra, na omnívora barriga do Littré. A poesia daquilo que classifica de minha «primeira fase» vive, com efeito (acho eu, que sou hoje apenas um leitor dela), de alguns propósitos desmesurados (culpa das más influências, das referidas e de outras…) e, simultaneamente, da consciência da inutilidade — e despropósito — deles. Esta gramática emperrada, para o que muito contribui a gramática do Pessoa ortónimo (a passiva, o reflexo), não é reconhecível na literatura infantil que pela mesma época começa a publicar. Ajudou-o esta última a desemperrar na sua poesia — desemperro mais nítido nos anos 90? Em que condições a intrigante monotonia coexistia, pois, com as notáveis diabruras da sua literatura infantil? Eram

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parentes as duas, ou a segunda um parêntese e apenas literatura infantil? Em qualquer dos casos, como pôde essa tipografia abrir venda de gelados na infância ao lado? Digamos que a minha literatura infantil, por ser infantil, sempre pôde ser mais «irresponsável» (às crianças desculpa-se tudo…) do que a minha poesia, e passar alegremente ao lado do princípio literário da realidade (ou do princípio da realidade literária), e da sua, da poesia, angustiada vontade de dar consigo mesma, ou com algo parecido consigo mesma, num mundo povoado de sombras alheias. Além do mais, a literatura infantil praticamente não tinha à volta passado nem presente, senão um vago e distante cónego dado a passeios de barco com meninas. Isto é, não havia gramática que a emperrasse, só um deserto onde todas as diabruras eram, sem pecado, possíveis. Mais do que parentes, ou parênteses, uma da outra, poesia e literatura infantil eram então (e se calhar continuam a ser) uma e a mesma coisa literária, em versão, respectivamente, dias úteis e fim-de-semana… No entanto, no meu primeiro livro infantil lá está também, em lugar de óbvia e (des)respeitosa notoriedade, Alberto Caeiro… Com o passar dos anos, acho que espero cada vez menos da literatura e cada vez menos do que a literatura pode esperar de mim. Talvez isso, sim, vá ajudando a algum «desemperro» da minha poesia. Em Aquele que Quer Morrer (1978), «literatura» é ainda uma designação sem referente: «(Chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto)». Mais tarde, em O Caminho de Casa (1989), nada parece existir fora da literatura: «No quarto ao lado as filhas falam alto. / E dou comigo procurando rimas. — E a alma? — Mas por esta altura / já tudo e eu próprio somos literatura…». Na sua obra não parece cobrar pertinência a distinção radical entre Literatura e Poesia, trabalhada pelos românticos «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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e mais tarde pelos simbolistas e surrealistas. Ou estamos errados? Não há saída da literatura na medida em que esta seria aquele discurso que, porque ilusório, nos diz justamente a ilusão do ser e do mundo? Sim. Nunca tinha pensado as coisas desse modo, mas sou levado a concordar. Acho que é Blanchot quem se refere à literatura como ilusão. A literatura partilharia então da mesma natureza ilusória do ser e do mundo, na medida em que ela própria é ser e mundo. Não está tudo (desculpe-se-me se me repito) eternamente escrito? Não está tudo em qualquer sítio da estante, ou a caminho da estante? Nos exemplos que cita, o termo «literatura» é, indistintamente, «poesia» no sentido mais amplo e mais profundo. Não, evidentemente, «romance» ou «folhetim», texto destinado a dizer, a narrar ou a exprimir, susceptível de ser resumido e parafraseado, porque não existindo autonomamente em si enquanto forma (enquanto «instauração da verdade», diria Heidegger). Do mesmo modo, «prosa» é, no meu último livro de poesia (onde há, mesmo, um poema intitulado «Saudade da prosa»), não «romance», ou «ficção», mas antes secularização, «despoetização», da poesia, reencontro, talvez, da poesia com o mundo. Na segunda fase da sua obra (grosso modo, os seus dois últimos livros), a literatura volta a ser possível e a memória é apenas intertextualidade. O escriba já não atravessa o deserto às costas do melhor amigo e a memória não emperra, mas antes ajuda a desemperrar? A literatura nunca deixou de ser, na minha escrita, possível, mas a palavra literária (a palavra poética) ter-se-á esgotado excessivamente a convocar o ser e o mundo (a ser ser e mundo) e terá, a certa altura, caído em si, percebendo que talvez se tivesse negligenciado como instância, também, e mais modestamente, de nomeação do ser e do mundo, e experimentando então «saudades da prosa». Mas tenho, de

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facto, consciência de que, desde Cuidados Intensivos (ou, talvez antes, desde Farewell Happy Fields), existe na minha escrita uma espécie de reconciliação com a literatura (com a poesia), que passa tanto pela aceitação dos seus processos como da sua memória. Um dos últimos poemas que escrevi fala das «minhas últimas palavras», aquelas que, «por cansaço, por inércia, por acaso», foram ficando, e com quem, agora, «como velhos amantes sem desejo» desfio memórias. «Como velhos amantes sem desejo»… É o desejo, acho eu, que emperra. O desejo alimenta a esperança que emperra e o medo que emperra. O «nec spe nec metu» estóico seria a bem-aventurança absoluta de qualquer obra literária. Até lá chegar, no entanto, a minha ainda tem muito que penar. «agora lês saramagos & coisas assim» é um verso de Um Sítio Onde Pousar a Cabeça (1991). Tem ele alguma coisa a ver com aquilo a que Joaquim Manuel Magalhães, já nos idos de 80, chamou a «bertrandização» (hoje talvez a FNACização) das nossas letras? Como se vai dando com a instituição literária? Tem razões de queixa? Sob capa Assírio & Alvim, sente-se sido por tudo? Como eu o leio, a esse verso, sim, tem que ver com a «bertrandização» (ou a FNACização) da literatura, com a mercantilização do desejo. E, também, com a passagem do tempo sobre o desejo, com a sua rarefacção em fórmulas e simulacros, com o esvaziamento da Utopia na desolação democrática e na medíocre-idade. Quanto às minhas relações com a chamada instituição literária, elas foram sempre sendo, nos afectos como nos desafectos, pouco mais que medíocres. Não tenho da instituição literária grandes razões de queixa nem de gratidão. A recepção (raio de palavra!) dos meus livros foi sempre ficando, sobretudo, pelas suas franjas. No entanto, a instituição, não me prodigalizando entusiasmos por aí além, também nunca me deu ostensivamente «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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com os pés. A instituição é, como se sabe, uma verdadeira e discreta senhora… Mas a pergunta traz alguma malícia: é verdade que o meu último livro, publicado pela «Assírio & Alvim», teve algum ruidoso acolhimento crítico. Mas, como antes disse, nunca tive particulares queixas da crítica literária. Ter-se-á, sei lá, pensado que seria efectivamente o último e saudou-se efusivamente o acontecimento, ou então, o livro levará, de facto, alguma diferença dos anteriores. Evidentemente que na capa (e quem tem capa sempre escapa). Mas eventualmente, e cumulativamente, também no tal «desemperro». Quem disse, no entanto, que estas coisas têm explicação bastante? Dos autores portugueses, os mais presentes na sua obra são decerto Pessoa e Cesariny. O primeiro percebe-se. Importa-se de nos explicar o porquê do segundo? A Obra? A Vida contra a Obra? Como posso saber? E Mário de Sá-Carneiro? E Ruy Belo? E Alexandre O’Neill? Acho que, de um modo ou de outro, todos, e muitos mais, hão-de estar na minha poesia. Têm que estar, pois estão na minha memória da própria poesia. Por alguma viciosa e circular razão, pois, se essa memória me faz, também eu próprio a vou fazendo a ela. Cesariny dava a sensação de se mover com muito desembaraço e humor por entre as formas e consistências da portugalidade e da cultura portuguesa. Simultaneamente longe e perto. A julgar pelo Anacronista, o seu humor nestas matérias parece desenvolver ou ficcionar uma afinidade com o que nessa cultura (em sentido antropológico) seria simpática e irremediavelmente chocho. O ser português é a Saudade e o Senhor Oliveira de Figueira? A saudade não sei o que seja, mas o Señor (com ñ) Oliveira de Figueira é certamente uma expressão autêntica e expedita do ser portu-

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guês, ou do que dele vai penosamente sobrevivendo à voracidade globalizadora. A simpatia que as minhas crónicas de jornal nutrem pelo Señor Oliveira de Figueira, e por outros espécimes congéneres que continuam a habitar as cada vez mais escassas franjas da economia de mercado e da cultura de massas, está, no entanto, ferida do pecado da distância e da soberba. Temo, de facto, que as minhas crónicas se lhes dediquem apenas com a mesma amável e enternecida curiosidade do patologista debruçado sobre uma lamela de dispersa bicharada afadigadamente entregue à enormidade da existência… A outra face dessa simpatia é o desprezo por outra expressão, igualmente expedita, do ser português: o «sabido», em especial nas versões «político» e «empreendedor». E igual desprezo pela imensa e informe caterva de economistas e aparentados, fabricados nos sórdidos lugares universitários onde se estuda e ensina a usura, e de lá saindo convictos de que compreenderam o mundo (meu Deus, e se calhar até compreenderam!). E pela malta da «sociedade da informação», da gestão cultural e coisas semelhantes. É certo que «tudo isto é Portugal, tudo isto é fado». Mas não vejo Tintin, que é um coração puro, a dar-se de amizades com gente desta. A cidade do Porto, onde vive, historicamente especialista em identidade sua dela e nossa, é mais cultura portuguesa ou (já) Porto cultural? A cidade do Porto continua, em boa medida, a ser o «grande aldeão» garrettiano. O Património Mundial propriamente dito não deu trabalho nenhum, já estava feito, era só pegar nele e levá-lo à Unesco. A Capital Cultural, como é para fazer e, principalmente, porque há dinheiro para isso, despertou em tudo o que é empreiteiro e mestre-de-obras irreprimíveis ânsias culturais. A larga fatia orçamental que lhes coube está já em cobrança, e essa cobrança vai espraiar-se pelos próximos tempos em ruas de pantanas e custos de freio nos dentes, «À Poesia Pouco Mais É Dado Dizer do Que o Silêncio do Mundo»

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multiplicando por aí ucranianos, moldovos, romenos, cabo-verdianos e angolanos, que em matéria de salários baixos («competitividade», dizem eles) os «empreendedores» da construção civil não têm preconceitos de raça ou de cultura. Paralelamente, algumas dezenas de luzidos exemplares da vária espécie dos «programadores culturais» instalaram-se há meses no orçamento da Sociedade Porto 2001 a produzir organigramas, «projectos» e «iniciativas». Não me digam que tudo isto não é identidade cultural portuguesa da mais idêntica que há! Depois da auditoria do Tribunal de Contas, já se sabe que, afinal, a Expo 98 foi um desastre à grande e à portuguesa. O Porto 2001 dos políticos e dos empreiteiros (que, no Porto, não são coisas muito diferentes) é já, em matéria de identidade, Portugal no seu melhor. Sem precisar de auditorias para o provar. Costuma dizer que o jornalismo é para ganhar a vida e a poesia para a salvar. Mas em que medida é a sua uma poesia salvífica? Ou, pelo menos, de salvação? E em que medida poderiam ser as suas invenções de infância a dar(-nos) a salvação? Menos gloriosamente, costumo falar apenas de tentar salvar a vida. Salvação é uma maneira de dizer (aliás, é tudo uma maneira de dizer). Há um verso de Fernando Lemos onde se explica que (talvez não sejam estas exactamente as palavras) «salvar a vida não é aprender a nadar». Isso é praticamente tudo o que nos é dado saber sobre o que a salvação da vida seja. Mesmo que aprender a nadar, em certas circunstâncias, possa constituir uma ajuda. A minha poesia não é, na verdade, salvífica nem de salvação. Uso a expressão em sentido mais corriqueiro, como quando se fala de «salvar» uma relação, ou de «salvar» um casamento. No caso talvez a relação com a minha própria existência. Também costumo dizer que passava bem sem poesia. No en-

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tanto, a minha vida seria, então (acho eu), outra coisa. Talvez, como diz uma psicanalista minha amiga, eu fosse o seu melhor cliente; talvez, sei lá, me tornasse, como o outro, num serial killer; ou talvez, mais modestamente, fosse apenas infeliz. Porque, como Bobby Robson disse do futebol, a poesia não é uma questão de vida ou de morte, é muito mais importante que isso…1 A infância, em sentido nietzscheano, poderia ser, de facto, uma hipótese de salvação. Mas como ser infans e sabê-lo? Com que nenhuma palavra e com que nenhuma lembrança? Não certamente as da literatura infantil… Como vê o panorama actual da nossa poesia? Três ou quatro muito bons poetas, uma quantidade razoável de bons ou razoáveis poetas no estilo do período e algumas glórias e gloríolas de circunstância, ou nem por isso. E excessiva vozearia… Nada que não tenha sucedido antes nem nada que não vá acontecer depois. Já agora, como se sente guilhotinado por Paulo da Costa Domingos (referimo-nos à recente edição de Judicearias)? Tinha preferido a fogueira, era mais vistoso…

A frase não é de Bobby Robson mas de William «Bill» Shankly, lendário treinador escocês de futebol do Liverpool F.C. (1959-1974). (N. do O.) 1

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«A AUTO-IRONIA É AFASTAR-ME DE MIM, DEIXAR-ME DESAMPARADO» Luís Miguel Queirós

Passavam alguns minutos da uma hora da manhã quando abri a porta a Manuel António Pina. Por volta das cinco, quando o mais recente galardoado com o Prémio Camões regressou a casa, não posso dizer que me sentisse inteiramente seguro de que o que tinha no gravador fosse uma entrevista. Confiava que seria, ao menos (ou ao mais), algo parecido com isso, da mesma substância. O que se passou nessas quatro horas descreve-o o ensaísta Osvaldo Silvestre, por antecipação, num artigo que assina no último número da revista Ler: «A retórica da conversação procede em Pina por circunlóquio e anexação: de um tópico inicial e supostamente central o conversador passa a outro e outro e ainda outro, deixando o ouvinte na dúvida sobre se alguma vez o tópico inicial será retomado (por vezes sim, mas nem sempre)». Mas, note-se, Silvestre começa por esclarecer que «é um privilégio ouvir Manuel António Pina discorrer, ao seu modo, sobre um assunto». Nesta conversa, Manuel António Pina fala da sua relação com a modernidade, e com Pessoa em particular, confessa ter-se alvoroçado quando lhe sugeriram que era pós-moderno, admite que se resignou à Literatura e explica que muitos dos seus livros de poemas nasceram da leitura de ensaios. Isto para dar só um apanhado breve. Também revela, por exemplo, os primeiros versos que escreveu, confessa ter despachado, com grande lucro, as obras completas de Eça de Queiroz, transforma um soneto de Antero num filme erótico e aperfeiçoa, em plena entrevista, um poema que anda a escrever. Quanto ao prémio Camões, tem apenas um desejo, e é o inverso do que Paulo Futre ambicionava para o jogador que pretendia impingir ao Sporting: «Só espero que não “vá vir” charters para me ver jogar». Não sei se o leitor vai ler uma entrevista, mas espera-se que fique com uma ideia bastante aproximada do que é o privilégio de passar uma noite à conversa com Manuel António Pina.

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Publicaste O País das Pessoas de Pernas para o Ar no final de 1973. Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, saiu o teu primeiro livro de poemas, Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde. Seguiram-se Gigões & Anantes (1974), O Têpluquê (1976) e mais um livro de poemas, Aquele que Quer Morrer (1978). Hoje parece óbvio que, desde o início, optaste por navegar em dois rios paralelos, a poesia e a literatura dita infantil. Foi uma coisa programada? Não tinha muita consciência disso. A literatura infantil era uma coisa que eu fazia com, digamos assim, honestidade, mas que encarava com menos seriedade do que a poesia. Os quatro contos de O País das Pessoas de Pernas para o Ar foram escritos em Novembro de 1973 e o livro saiu em Dezembro. Mas o primeiro livro de poemas já estava a ser escrito em 1965. Até há lá um poema que se chama «4 de Julho de 1965» e que é uma colagem de decassílabos perfeitos que encontrei nos jornais desse dia. Ainda tenho em casa o original, com os recortes colados. Acho que o nascimento da minha filha Sara, em 1970 — a Ana só nasceu em 1974 —, terá tido alguma importância para eu começar a escrever literatura infantil. Mas a poesia vinha muito de trás. Desde os seis ou sete anos que escrevia poemas, que depois a minha mãe guardava. As mães são seres admiráveis. Ainda me lembro do início do primeiro que fiz, que era sobre o milagre das rosas: «Nasceu um dia em lua-de-mel uma princesa chamada Isabel. // Casou depois porque quis / com um príncipe chamado Dinis.» A infância… Deixa-me contar-te uma coisa engraçada. A minha mãe fazia versos para eu ler às visitas que iam lá lanchar nos dias em que o meu pai, que era secretário de Finanças, jantava com o tesoureiro da Fazenda

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Pública, o sr. Marnoto. Eu lia os poemas atrás da porta, porque tinha vergonha. Quando o meu avô morreu, a minha mãe insistiu comigo para eu fazer um poema à morte dele. «Não faço nada, não faço nada», e não fiz. Um dia a minha mãe disse-me: «Sabes uma coisa tão bonita que eu encontrei na tua mesinha-de-cabeceira? Aquele poema que fizeste à morte do avô». Tinha sido ela a escrevê-lo, mas queria convencer-me de que tinha sido eu. Já eu era adulto, e ainda continuava a insistir naquilo. A infância é um tópico central na tua poesia… Acho que é na de toda a gente. Borges diz que o amor e a morte são os grandes temas. Eu acrescentaria o tempo. Georges Bataille, num livro chamado Madame Edwarda, observa que uma grande parte do humor é sobre o sexo e sobre a morte, e diz: «Ris-te porque tens medo». Medo do sexo, que está ligado à origem do ser, e medo da morte, que é o seu desaparecimento. É o medo do antes e do depois, os dois grandes abismos. A arte é provavelmente uma forma de lidar com o medo. Num poema teu… Ted Hughes [poeta e escritor de livros infantis britânico, 1930-1998] diz que à terceira estrofe a morte já se tornou numa questão de estilo. Os meus pais não me deixavam ter a luz acesa à noite, e eu descobri um truque para não ter medo. Escrevia num papel os pesadelos que tinha. A primeira vez, devo tê-lo feito para contar o sonho à minha mãe, no dia seguinte. Depois descobri que, ao escrever, começava a ter necessidade de encontrar palavras. E a morte, o medo, tornava-se uma questão de estilo. A linguagem afastava-me do medo. Ao escrever, tudo se transforma em literatura. «A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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Num poema teu, a infância é um estranho a bater à porta. E quando lhe perguntas «quem é?», responde: «— É a mãe morta — são coisas passadas / — não é ninguém». Sabes (sabes no que escreves) que não é verdadeiramente possível lembrar a criança que foste, e que até este «foste» é uma concessão gramatical. Escreveres para crianças é também um modo de tentares recuperar ao menos a ilusão dessa irrecuperável «(…) infância / inicial não embaciada / de nenhuma palavra / e nenhuma lembrança»? A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância — a palavra «infância» e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância — é, julgo eu, a melancolia da «primeiridão», de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, «não embaciados de nenhuma palavra / e nenhuma lembrança». Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana «segunda e mais perigosa inocência», uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência. Neste último sentido, talvez haja na minha literatura para crianças — nunca pensei muito nisso — algo como uma tentativa não de recuperação, mas de vivência segunda, ou tosco sucedâneo, dessa inocência, e muito em particular da inocência linguística, que é a que mais me interessa. Essa impossibilidade de aceder à infância cruza-se com um tema recorrente na tua poesia que é a ideia de que a origem nos está vedada. A antologia pessoal que acabaste de publicar na Assírio & Alvim, Poesia, Saudade da Prosa, abre com uma «Arte Poética» que, justamente, parece abordar essa impossibilidade de remontar à fonte.

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Começas por exortar o poema a que procure «a voz literal que desocultamente fala / sob tanta literatura» e, no final, perguntas: «E todavia / sob tanto passado insepulto / o que encontraste senão tumulto, / senão de novo ressentimento e ironia?». É que mesmo que ele encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, «pelo caminho das interpretações e dos sentidos». E não pode olhar para trás, porque se não jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos Quatro Quartetos, o T.S. Eliot escreve: «Para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase». Acho até que cito isto em Aquele que Quer Morrer. Em 1974, quando publicaste o teu primeiro livro de poemas, Gastão Cruz reunia a sua obra poética em Os Nomes, Joaquim Manuel Magalhães publicava Consequência do Lugar e António Franco Alexandre dava-nos a ler Sem Palavras Nem Coisas. Se reparares, são todos títulos altamente programáticos. Como é que te situavas, então, nas encruzilhadas da poesia da época, se é que a questão se te punha? A questão não se me punha. Não lias outros poetas? Nessa altura, as minhas leituras de poesia portuguesa contemporânea eram fundamentalmente o O’Neill e o Ruy Belo. Mas esse teu livro de estreia já tem referências expressas ao Cesariny. Tens razão. Comprei a Poesia, uma recolha de vários livros dele. Interessavam-me os surrealistas. O Alexandre O’Neill, lia-o desde os «A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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13 ou 14 anos. Havia aquelas bibliotecas da Gulbenkian, e eu ia lá requisitar os livros. Lembro-me de ter levado para casa um do O’Neill e outro do Tomaz Kim porque estava convencido de que eram poetas ingleses. Ao mesmo tempo, lia o Augusto Gil. Era uma misturada. E recordo-me agora que também já tinha lido o João Cabral de Melo Neto. E o Jorge de Sena. Seria estranho que não tivesses lido bastante, porque, desde o início, a tua poesia está cheia de citações. Lia muita coisa, mas ao acaso. No 6.° ano, no liceu de Aveiro, ganhei um prémio literário e recebi 500 escudos. Comprei tudo o que havia do Pessoa na Ática, e as obras completas do Eça de Queiroz, da Lello, que depois vendi por dez contos numa altura em que precisava de dinheiro. Esse meu primeiro livro tem uma nota, no fim, assinalando diversa colaboração citada e não citada. Até refiro os Beatles, embora não haja nada dos Beatles em poema nenhum. E também não há nada de outros autores que cito, como o Giambattista Vico. E talvez deixes alguns por citar. Há um poema que termina com o verso «Conto estas aventuras extraordinárias». Ocorreu-me que pudesses ter sacado a expressão de um livro do Poe, que se chama, na edição portuguesa, As Aventuras Extraordinárias de Gordon Pym. Não me lembro, mas, inconscientemente, é capaz de vir daí. Também lá aparece uma referência ao «Palácio da Ventura» do Antero. Tenho, aliás, uma teoria sobre esse soneto. É dado como sendo poesia filosófica, mas acho que é erótica. Ora repara: «Sonho que sou um cavaleiro andante. / Por desertos, por sóis, por noite escura, [com as mãos vai apontando no seu próprio corpo as partes da anatomia feminina a que Antero se estaria metaforicamente a referir] / Paladino do amor

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busco anelante [interrompe para emitir sons arquejantes] / O palácio encantado da Ventura.» E vê como continua: «Quebrada a espada já, rota a armadura…». E a seguir: «Abri-vos portas d’ouro ante meus ais!». E vê como acaba: «Abrem-se as portas d’ouro, com fragor… / Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão — e nada mais!». Está-se mesmo a ver que é uma queca que acabou mal. Ainda a propósito das tuas leituras. Um aspecto que sempre me intrigou na designação daquilo a que os espanhóis chamam poesia da experiência é a aparente pouca conta em que é tida, nessa «experiência» do poeta, a percentagem dela que é dedicada à leitura. Dado que os poetas tendem a ser grandes leitores, parece ser de presumir que boa parte do seu «real» se componha de livros alheios. Dir-se-ia que a tua poesia é particularmente irrigada por essa parte do teu real que é a leitura. Estás de acordo? Inteiramente de acordo. E digo-o em resultado daquilo a que posso chamar a minha própria «experiência», ou, talvez mais rigorosamente, a sua memória, já que se escreve — falo naturalmente de mim — não propriamente com a experiência, mas com a memória dela. Mais sobressalto menos sobressalto, sempre tive uma vida burguesmente pacata; algumas lágrimas, alguns remorsos, alguns sonhos, solidão q.b., medo q.b.. As emoções mais fortes e mais complexas que experimentei foram colhidas em livros e em filmes, ou ouvindo música, e a sua memória é, em mim, permanentemente atravessada pela memória de outros livros e outros filmes, ao mesmo tempo que se confunde com a memória da minha existência por assim dizer «real». Mas mesmo esta última é, tenho consciência disso, frequentemente contaminada por memórias literárias: cada uma a seu modo, todas as despedidas são Heitor despedindo-se da mulher e do filho, todos os «A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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regressos o de Ulisses. Talvez até, quem sabe?, todas as obras literárias fundamentalmente sejam, como pretende Raymond Quéneau, ou uma Ilíada ou uma Odisseia. É mais a leitura de poetas, ou os ensaios também te servem de gatilho? Servem muito. O livro que gerou Os Livros foi uma colectânea de conferências de Borges sobre literatura inglesa. O Farewell Happy Fields foi escrito enquanto ia lendo A Angústia da Influência de Bloom. Aquele que Quer Morrer resultou da influência de dois livros: a Gaia Ciência, de Nietzsche, e o Tao Te Ching, de Lao Tsé. Também me inspiro na Bíblia, no budismo, no xintoísmo, em livros de ciência. Vou apontando coisas nuns caderninhos. Tenho aqui um [saca do bolso um pequeno caderno de capa «bordeaux», da Moleskine], mas este ainda vai no princípio. [Folheia as páginas e vai citando:] «Derrida: não há começos»; «Só as certezas envelhecem»; «A retirada da palavra como a deserção de deus da criação»; «estante da Ana: 90 cm de largura». Estás a ver? Tenho aqui tudo… E isto aqui [mostra uma página] é um poema começado, que resultou de uma leitura do Hofmannsthal. Tinha piada pô-lo na entrevista. Eu leio: «Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras, nas suas caves, nos seus infindáveis corredores; / pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja, / na ausência das palavras calar-se. / Não, com palavra nenhuma [ faz aqui uma pausa e acrescenta: tinha mudado isto, mas é capaz de ser melhor voltar a pôr «com nenhuma palavra»] abrirá a porta, / nem com o silêncio, nem com nenhuma chave». E ainda tenho aqui uma coisa que não sei se hei-de aproveitar: «A porta está fechada na palavra porta».

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Acho que deves aproveitar. [Fica um ou dois minutos calado, sem ouvir.] «A porta está fechada na palavra porta para sempre». Tem bom ritmo. Fica assim. Espera aí, desculpa lá, deixa-me só tomar nota disto. Na homenagem que te prestaram na Guarda, Eduardo Lourenço fez uma intervenção de improviso… Ele ter dito aquilo tudo espontaneamente, sem estar a ler, foi incrível. Segundo Lourenço, levaste ainda mais longe do que Pessoa a morte do «Eu», transformando-o numa espécie de buraco negro que nenhuma ilusão, nem a ilusão do poder reparador da palavra poética, pode aspirar a suturar. E Osvaldo Silvestre, num depoimento prestado após teres recebido o Prémio Camões, diz que a tua poesia seria impensável sem o precedente da metafísica pessoana. Pessoa é um ponto de partida essencial? Há uns anos participei, no Salão do Livro de Paris, num debate inquietantemente intitulado «Faut-il oublier Pessoa?». Como se fosse possível esquecer. Pessoa ou o que quer que seja… Pessoa é algo de irremediável. Pode fazer-se de conta que o arquipélago pessoano nunca existiu, mas o seu vulto está necessariamente presente, até na denegação dele, em toda a poesia portuguesa posterior. Se não como ponto de partida ou de chegada, ao menos como ponto de passagem. Mesmo um poeta que, por mera e surpreendente hipótese, nunca tivesse lido Pessoa, teria decerto lido outros que o leram. No caso da minha poesia, até onde posso sabê-lo de forma consciente, diria que a sua relação com a modernidade passa, não em exclusividade mas em boa parte, pelo Pessoa ortónimo (que li intensamente na juventude) e, talvez de forma menos evidente, também por Caeiro. «A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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A instabilidade do «Eu» na tua poesia, muitas vezes sublinhada por via sintáctica — «a minha vida é uma multidão onde, não sei quem, em vão procuro / o meu rosto» — é, como dizes, uma herança da modernidade. Rimbaud, também ele forçando a gramática, escreveu «Je est un autre». Pergunto-me como seria este verso traduzido em «pinês». Talvez «Eu (quem?) é um outro (qual?)»? Ou talvez: «Eu (o quê?) é um outro (quem?, qual?)». Ou ainda: «Eu (isto é, palavras falando) é um outro (palavras escutando)». Ou: «Eu (isto) é um outro (algo, outra coisa)». Talvez prefira a versão do meio. Devo no entanto observar, em defesa da honra do «Eu» na minha poesia, que ele, o «Eu», tem andado um pouco mais estável nos últimos livros. Provavelmente, mas que sei eu?, por cansaço. Isso leva-me a outra pergunta. A auto-ironia, a sabotagem da eloquência, são marcas que atravessam toda a tua poesia. Ainda assim, não te parece que os teus últimos livros têm uma intensidade declarativa que pareces ter evitado nas obras iniciais? Penso no poema «It’s All Right, Ma…», de Cuidados Intensivos (1994), que acaba com uns versos nos quais a ironia não apenas não atenua, mas acentua a pungência: «Que não se perturbe nem intimide / o teu coração, / estou só a morrer em vão.» Ou no final do poema «Extrema-Unção», que fecha o livro seguinte: «Tínhamos levado as crianças de casa, / feito os telefonemas, escolhido os dizeres. / O quarto fora arrumado, a cama mudada / com roupa lavada. Só faltava morreres.» Não te parece que, nos teus primeiros livros, dificilmente correrias tão sérios riscos de comover o leitor? Estou a ir-me abaixo, é da idade. Tens razão, houve uma altura em que me resignei à literatura. Confesso tudo. Dando como testemunha abonatória das boas intenções poéticas desses meus últimos

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livros, no que toca a comover, o velho Rudolfo Agrícola, para quem a literatura serve «ut doceat, ut moveat, ut delectet», que é como quem diz: «para ensinar, para comover, para deleitar». [02h55. A mulher de Pina, Fátima, telefona-lhe, a pedir-lhe que confirme, antes de se deitar, se algum dos gatinhos não terá ficado preso numa gaveta de um móvel recém-adquirido no Ikea. «Está descansada que eu vou ver, e não te preocupes, que há lá ar que nunca mais acaba. Lembra-te que fui eu que montei isso».] Estávamos a falar de quê? Estava a sugerir que a auto-ironia, que usavas para sabotar a eloquência, era agora posta ao servigo da emoção. A auto-ironia pode ser muito pungente. Nos meus primeiros livros é gozosa, mas nos outros é mais melancólica. Por isso é que tenho medo dela. A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado, entregue à bicharada, é ir para o meio da bicharada ajudar a multidão que me cospe em cima. A ironia é uma coisa triste e a auto-ironia é tristíssima. Por acaso sei exactamente onde começou essa mudança que observas. Foi num poema do livro Nenhum Sítio [I984], quando escrevi pela primeira vez a palavra «pétala». Fiquei assustadíssimo. Percebi que era um risco enorme, que nunca tinha ido tão longe. Nunca antes poderia ter escrito a palavra «pétala», pelo menos a sério. [O poema em causa fecha com os versos: «Coração, sombra de uma sombra, / na pétala mais funda da noite»]. A propósito de mudanças de registos. Na última parte de Farewell Happy Fields (1993), intitulada «Aos Meus Livros», escreves: «Um bancá«A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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rio calculava que tínheis curto saldo / de metáforas». Referes-te — desculpa se revelo informação interna — a uma recensão feita ao teu primeiro livro, que, segundo o recenseador, pecava por escassez de metáforas. Se hoje seria quase inimaginável que um crítico censurasse um poeta por insuficiência metafórica, a tua resistência à metáfora podia de facto ser vista, nesse contexto dos anos 70, como uma marca distintiva. Já num poema de Os Livros (2003), escreves: «(…) Ah sim, claro, o real. Pelos olhos dentro / e pelo coração dentro, tão perto e tão lento / que basta estar atento que decerto / algum sentido há-de fazer ou algum sentimento. // Eu sei, também tenho ido a bares e outros lugares / igualmente reais. E tenho tido / Uma vida ou mais. (…)». É difícil não ler aqui uma farpa dirigida a alguma poesia recente que, justamente, se caracteriza por um deliberado abandono da metáfora. E parece-me inegável que a tua poesia é hoje bastante mais metafórica do que o foi na sua primeira fase. Gostas de ser um poeta em contra-ciclo? Não, não há nisso que chamas de contra-ciclo qualquer deliberação. Aliás, reconhecendo a pertinência das observações que sustentam a pergunta, só agora me apercebo disso. Acontece que, sendo leitor de poesia, tenho uma ideia da que se vai fazendo à minha volta, da poesia, digamos assim, minha contemporânea, ou da poesia contemporânea da minha. E, com efeito, há em alguns poemas meus ocasionais alusões a essa poesia. Mas não escrevo em função dessa contemporaneidade, escrevo em função de muitas coisas mas dessa certamente que não, e muito menos para alinhar ou desalinhar deliberadamente o passo com ela. Nunca tive estratégia alguma desse género, de conformidade ou de desconformidade. Para falar verdade, estou-me nas tintas para a contemporaneidade poética; quero dizer: uma poesia, ou um processo poético, não me interessam pelo facto de serem ou não meus contemporâneos mas por razões decerto menos objectivas e mais obscuras.

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No teu primeiro livro surgem estes versos: «Já não é possível dizer mais nada mas também não é possível ficar calado». Vinte anos depois, em Cuidados Intensivos, escreves: «A impossibilidade de falar / e de ficar calado / não pode parar de falar, escrevi eu ou outro». Essa ideia de que chegamos tarde e de que já está tudo dito, mas que temos de continuar a falar, é um dos mais persistentes tópicos da tua poesia. A estratégia que adoptaste foi a de te deixares impregnar pelas vozes de todos esses que falaram antes de ti… Um livro que me influenciou muito foi o ABC of Reading, de Pound. O conselho que ele dá aos jovens poetas é o de que não procurem ser originais e se deixem atravessar por todas as influências possíveis. A originalidade, depois, vem ou não vem. E cumpriste à risca. Pois foi. Aceitei as influências todas. Nunca me deu para enfrentar, para ter uma relação edipiana com os antecessores. Os teus livros estão, de facto, enxameados de citações e alusões, ao mesmo tempo que a auto-ironia te vai servindo para sabotar o que poderia haver de trágico nessa consciência de que estamos condenados a ser uma espécie de Plágio dos Fazeres, para citar uma personagem do teu primeiro livro, também referida como Flávio dos Prazeres. Apesar da persistência da herança modernista na tua poesia, não te parece hoje que ela sempre mostrou algumas das marcas que viriam a ser consideradas constitutivas do pós-modernismo? Quando pela primeira vez vi a minha poesia referida como «pós-moderna» — acho que foi num texto crítico de Américo António Lindeza Diogo —, fiquei tão alvoroçado como Monsieur Jourdain quando soube que falava em prosa. Corri a comprar O Pós-moder«A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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nismo Explicado às Crianças de Lyotard, que tinha saído por essa altura, acho que na D. Quixote, e não fiquei muito tranquilo. Conta-se que Getúlio Vargas se vestia particularmente mal e que, um dia, a filha lhe entrou agitadíssima gabinete dentro com uma revista de moda na mão: «Papai, Papai, a moda pegou finalmente você!». O que senti foi uma coisa do género, embora menos (muito menos) eufórica. A tua poesia inicial tem marcas nítidas do surrealismo, uma influência que depois parece ter-se atenuado bastante. Qual é a tua relação com o surrealismo? Seria de esperar que te identificasses com o seu propósito de fuga da Literatura, mas que já tivesses mais dificuldade em partilhar da sua crença romântica numa espécie de poder demiúrgico da palavra poética. Dava-me jeito poder discordar uma vez ou outra do que dizes. Com efeito li muito alguns surrealistas, em particular os mais heterodoxos. Tenho uma certa inclinação por heterodoxos. E, embora seja naturalmente desconfiado em relação a «movimentos» e congéneres, talvez do surrealismo possa dizer algo semelhante ao que disse antes a propósito de Pessoa: não é possível fazer de conta que o surrealismo nunca existiu. O surrealismo foi um momento charneira (se há tal coisa) da história literária e artística do século XX. Mais do que qualquer outra vanguarda, multiplicou-se em estirpes inumeráveis (e, às vezes, inomináveis) e contaminou as próprias noções de literatura e arte. Mais do que aquilo que chamas de «crenças» centrais dos diferentes surrealismos, as suas marcas na minha poesia julgo que resultam não só da memória da leituras de poetas, como, por exemplo, Cesariny — o escritor, já antes o disse, é um ladrão de túmulos, nada do que escreve lhe pertence, roubou-o a outros e outros lho roubarão —, mas principalmente do recurso, mesmo que diluído, a processos

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poéticos que o surrealismo fez seus. Por exemplo, o das associações livres. Liberdade, na parte que me toca, condicional; mas até nisso vislumbro a sombra do «abandono vigiado» de O’Neill. E poetas recentes, lês? O Borges dizia — acho que é uma boutade — que só lia livros com mais de 50 anos, porque o tempo já tinha feito metade do trabalho. Eu leio livros recentes, mas não muitos. Acho que o mais recente de quem li a obra toda será o Ruy Belo. E gosto muito do António Franco Alexandre. Os Quatro Caprichos é um livro extraordinário. Publicaste o teu primeiro livro de poemas há 37 anos, mas não achas que essa consagração que agora culminou no prémio Camões só começou realmente a acelerar quando chegaste à Assírio & Alvim, em 1999, ano em que saiu Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança? É verdade. Foi o Hermínio que, ainda antes de o livro sair, o andou a entregar a uma data de gente, a tentar que se interessassem por aquilo. Lembro-me de ter saído uma crítica do Eduardo Prado Coelho, uma coisa exageradamente elogiosa, e de o Osvaldo [Silvestre] me ter mandado um mail a dizer: «Sim senhor, quem tem capa sempre escapa». O Hermínio já me tinha convidado muitas vezes a publicar na Assírio, mas eu estava convencido de que era só por simpatia. Nunca te levaste excessivamente a sério, pois não? Não, nem nunca me valorizei muito. E sou muito autocrítico. Mas a questão não é bem essa. Tenho um lado nietzschiano, mas que em mim não é uma questão ética, é temperamento. O Zaratustra pergunta-se muito se terá feito batota. Eu também. Quando soube do prémio Camões, perguntei-me: terei feito batota, terei enganado «A Auto-Ironia É Afastar-me de Mim, Deixar-me Desamparado»

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aquela gente toda? O António Guerreiro escreveu que eu sou humilde. Mas não sou nada. Calhando de ganhar, quero ganhar é com mérito, não me basta ganhar. E isso não é humildade, é orgulho. A minha mulher, que é uma crítica dos diabos, às vezes diz-me: «Lá estás tu a pôr-te em bicos de pés». E normalmente tem razão. Eu recuo logo, vejo que estou a levar-me muito a sério. Mas, às vezes, ela, que me conhece como ninguém, também me diz: «Como é que escreveste uma coisa destas?». Eu próprio, às vezes, lendo uma coisa antiga, pergunto-me: como é que escrevi isto? Não acredito na inspiração, mas há momentos em que escrevemos coisas que não sabemos de onde vêm. Ou seja, acreditas na inspiração. É verdade que tenho uma grande desconfiança dos poemas que compreendo perfeitamente, nos quais sei a origem de tudo. Os poemas com os quais tenho melhor relação são aqueles em que não alcanço bem o que quero dizer, mas sinto, instintivamente, que aquilo é verdade. Os outros têm pouca autonomia face a mim mesmo, não têm vida própria, são inteiramente alcançáveis pela razão. Acho que é por isso que muitos artistas usaram as drogas, para a razão patinar. Eu prefiro a mecânica quântica. Quase me esquecia da pergunta mais importante: o que é que o Prémio Camões mudou na tua vida? Perturbou-me mesmo o quotidiano. Logo no primeiro dia, dei sete entrevistas. Uma delas, para a RTP1, foi feita ao pé de uma piscina e agora toda a gente pensa que eu tenho uma casa com piscina. E se dantes, nas sessões de autógrafos, assinava 10, 15 livros, agora são 100 ou 200. Só espero que, como disse o outro, não «vá vir» charters da China para me ver jogar.

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Já entrevistei alguns amigos e, no papel, trato-os sempre por você. Mas estou tentado a abrir uma excepção, porque talvez seja preferível que se perceba que estás a falar com alguém que conheces. Acho bem, faz como o Groucho Marx: «Nunca me esqueço de um rosto, mas vou abrir uma excepção para o seu».

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ÍNDICE

Nota do organizador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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«À poesia pouco mais é dado dizer do que o silêncio do mundo» . .

9

O refúgio da poesia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

28

«Não temos senão palavras». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

54

[«Talvez a única idade verdadeiramente real seja a do espanto»] . .

60

«Gritaria mediática atinge a literatura» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

85

[«Escrever um livro de versos deveria agravar o IRS»] . . . . . . . . .

93

Literatura & cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 «Escrevo, acho eu, para mim, isto é, para os outros» . . . . . . . . . . 112 Toda a verdade sobre os gatos, o cão, o Pooh e o Pina . . . . . . . . . 118 Crónica de uma «servidão» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 «Tudo acaba na campa rasa do esquecimento» . . . . . . . . . . . . . . 148 «Condenado» à poesia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 De A a Z, em discurso directo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 «Foi no Porto que me nasci a mim mesmo» . . . . . . . . . . . . . . . . 164 «A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado» . . . 177 «A poesia é uma porta para reconhecer que não há porta nenhuma» 194 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 Índice

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linhas de fuga

Lógica do Acontecimento – Introdução à filosofia de Deleuze, Sousa Dias O Cinema da Poesia, Rosa Maria Martelo O que é Poesia?, Sousa Dias Capa de Ilda David Geografia Imaterial, João Barrento Fotografias de Maria Etelvina Santos Žižek, Marx & Beckett – e a democracia por vir, Sousa Dias Capa de António Gonçalves Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 3.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz A Imagem-Tempo. Cinema II, Gilles Deleuze Tradução de Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 4.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz O Riso de Mozart – música pintura cinema literatura, Sousa Dias Capa de António Gonçalves Os Nomes da Obra – Herberto Helder ou O Poema Contínuo, Rosa Maria Martelo


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DITO EM VOZ ALTA entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo organização de Sousa Dias

Manuel António Pina (1943-2012), Prémio Camões 2011, é um dos máximos nomes da poesia e da criação literária de língua portuguesa. A presente antologia recolhe as suas melhores entrevistas sobre literatura, «isto é, sobre tudo», nas quais se revela, como em nenhuns outros textos, o pensamento teórico e crítico do escritor.

LINHAS DE FUGA 11

DITO EM VOZ ALTA

A literatura nunca deixou de ser, na minha escrita, possível, mas a palavra literária (a palavra poética) ter-se-á esgotado excessivamente a convocar o ser e o mundo (a ser ser e mundo) e terá, a certa altura, caído em si, percebendo que talvez se tivesse negligenciado como instância, também, e mais modestamente, de nomeação do ser e do mundo, e experimentando então «saudades da prosa». Mas tenho, de facto, consciência de que, desde Cuidados Intensivos (ou, talvez antes, desde Farewell Happy Fields), existe na minha escrita uma espécie de reconciliação com a literatura (com a poesia), que passa tanto pela aceitação dos seus processos como da sua memória. Um dos últimos poemas que escrevi fala das «minhas últimas palavras», aquelas que, «por cansaço, por inércia, por acaso», foram ficando, e com quem, agora, «como velhos amantes sem desejo» desfio memórias. Manuel António Pina

Manuel António Pina

Manuel António Pina

Manuel António Pina

DITO EM VOZ ALTA entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo

D O C U M E N TA


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