DA CEGUEIRA DOS PINTORES
parte escrita ii 1981-1983
Júlio Pomar
DA CEGUEIRA DOS PINTORES pa rt e e s c r i ta i i 1981-1983 tradução de
Pedro Tamen
CADERNOS DO ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR D O C U M E N TA
CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR
presidente António Costa
directora artística e executiva Sara Antónia Matos
vereadora da cultura Catarina Vaz Pinto
comunicação e coordenação do site Graça Rodrigues
director municipal de cultura Manuel Veiga
produção Paula Nascimento apoio à curadoria e à produção Pedro Faro investigação Sara Antónia Matos Pedro Faro coordenação editorial Sara Antónia Matos serviço educativo Teresa Santos secretariado Isabel Marques montagem de exposições Laurindo Marta João Nora design de comunicação Paula Prates parceria Fundação Júlio Pomar
Atelier-Museu Júlio Pomar | CML Rua do Vale, 7 1200-472 Lisboa Portugal Tel + 351 218 172 111
A pintura começa onde já não se pode falar dela, onde as palavras fracassam e vogam à deriva. Júlio Pomar
INTRODUÇÃO
A publicação Da Cegueira dos Pintores, Parte Escrita II faz parte da compilação dos textos críticos de Júlio Pomar, que o Atelier-Museu e a editora Sistema Solar (Documenta) trazem a público em três volumes: Notas Sobre uma Arte Útil, Parte Escrita I (1942-1960); Da Cegueira dos Pintores, Parte Escrita II (1985); Temas e Variações, Parte Escrita III (1968-2013). Repondo nas mãos do público um conjunto de ensaios irrepetíveis sobre pintura, sobre a actividade artística e sobre a própria natureza do olhar, este segundo volume reveste-se de um teor literário e estético que coloca a actividade artística, particularmente a pintura, ao nível do pensamento filosófico. Deste modo, o volume desperta ainda uma reflexão sobre a componente ensaística que marca o percurso de alguns artistas, nomeadamente o de Júlio Pomar. A partir dele, surgem questões relativas à escrita sobre arte, aos textos e às publicações, mesmo quando os artistas, cada vez menos envolvidos na produção de material ensaístico, optam por deixá-lo a cargo dos profissionais ligados à curadoria e à reflexão. Não é o caso de Júlio Pomar e não será o caso de outros artistas que, possivelmente, consideram indispensável recorrer ao uso da voz própria, fazendo radicar a sua actividade numa relação indissociável entre prática e reflexão. Os que exercem a sua voz parecem assumir a produção reflexiva, os ensaios e as publicações, não apenas como uma componente acessória da obra material, mas como parte integrante – um locus de ensaio, em que se testam, reinventam e ampliam os sentidos da arte. Se nada substitui o carácter presencial da obra e a sua experiência in loco, também se torna evidente que algumas produções artísticas da actualidade levantam problemas de leitura e de significação que, em parte, podem ser resolvidos com textos, livros e catálogos. Estes, por sua vez, fornecem ferramentas críticas, Introdução
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permitindo ao público compreender a actividade do artista, quebrando a distância entre ele e a obra de arte. Foi também este o contributo de Pomar ao produzir uma componente escrita. A reflexão que nela está contida não evita deslizes de sentido e algumas opacidades na obra de arte, na exposição efectuada ou nas práticas artísticas dos autores. Não será esse, de todo, o seu propósito. Pelo contrário, a escrita sobre arte não conduz a uma descodificação integral da obra. Antes lhe atribui novos horizontes de sentido, por vezes focalizando ambiguidades e pontos cegos, para, a partir daí, abrir o seu âmbito de compreensão e experiência. O que leva artistas, como Pomar, a escrever? Antes disso, em que consiste ter uma prática de escrita? A escrita sobre arte envolve ela mesma um processo prático, decorrente da realização do texto e do trabalho estrutural da linguagem. Esta prática de especificidades próprias parte do objecto artístico, sendo este caracterizado por uma componente sensível, não verbal, que afecta inevitavelmente a escrita. Num movimento de vaivém, ora partindo da obra para a periferia, ora desta para o corpo sensível da obra, aquele que escreve sobre arte procura abrir os âmbitos de significação daquela, inevitavelmente gerando novos intervalos e hiatos de sentido. A escrita sobre arte decorre do modo como se interrogam as componentes concretas da obra, da exposição e do espaço, do modo como se permite que a obra dialogue com a escrita e a interpele, não só o inverso. Então, como abordar a componente sensível da obra recorrendo à linguagem verbal, se ela se caracteriza precisamente por extravasar o domínio da linguagem? Procurando transferir para o texto escrito a componente sensível da obra, a «abertura» que ela comporta em si e que não é possível prender em palavras. Isto é, proteger, não violentar, o espaço indeterminado aberto pela obra. O acto crítico (próprio da escrita) interroga a obra, desintegrando-a, mas reinstalando-a concomitantemente. Quer dizer que uma das funções da escrita sobre arte pode ser a de proporcionar «pontes» e «portas de entrada» para o espectador se relacionar com a obra. Não significa que a decifre à exaustão, pois isso seria abafar a ambivalência de sentidos da produção artística. Estabelecer «pontes» e «portas de entrada» serve para desencadear formas de relação a construir pelo receptor. 10
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Os impactos da escrita na recepção são, todavia, difíceis de aferir. Procurando perceber a sua extensão, o Atelier-Museu procedeu a uma recolha da fortuna crítica realizada à época da publicação Da Cegueira dos Pintores, em 1986. Encontraram-se algumas recensões, que se juntam no final do volume. Tendo corolários efectivos no encontro do público com as obras, e sobretudo na estruturação das práticas artísticas vigentes e em emergência, importa pensar a escrita sobre arte, não apenas como um discurso suplementar (exógeno e ilustrativo) mas complementar à obra. Isto é, um texto e um pensamento que desconstroem, reinventam e ampliam a própria prática, fazendo parte dela. É isso que se encontra nos textos de Pomar e terá sido isso que o levou a escrever. À construção da Parte Escrita II não terá sido alheio o pensamento de carácter epistémico, que absorveu das leituras de Deleuze, Lévi-Strauss (de quem pintou um retrato), aproximando-se, a ele e à arte, da filosofia. O carácter filosófico repercute-se nos textos como uma problematização referente à própria actividade artística: à sua natureza epistémica, política e social. Arte e escrita sobre arte não são a mesma coisa, mas podem reinvestir-se mutuamente, ao mesmo tempo que participam ambas na construção do mundo. Enquanto a obra (por princípio) adquire uma existência tangível, o pensamento inerente ao discurso mantém-se na linguagem, podendo adquirir existência na forma de texto. Este demonstra-se e fala-se segundo certas regras, ou contra certas regras, como muitas vezes o faz Pomar. O texto contém uma força subversiva que resiste a classificações, sendo precisamente esse poder subversivo uma das suas funções sociais, leia-se: política. Resistir a classificações hierárquicas é uma forma de reacção a uniformizações e isso detectamo-lo constantemente na escrita e na obra plástica de Pomar. Para além das conotações semânticas que a palavra possui, é necessário ter em conta as suas conexões imagéticas, porque as palavras não têm apenas o significado que é descrito no dicionário mas também aqueles que advêm das imagens que cada um lhes sobrepõe. Pomar — construtor de imagens verbais e pictóricas — sabe disso. A arte caracteriza-se por não ilustrar palavras, e estas por não corresponderem às imagens, porque quando ambas coincidem a produção artística torna-se estéril. Os textos, tal como as obras, produzem realidades, performatizam acções, geram conexões e associações, sendo portanto irredutíveis a um sentido fechado. Introdução
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Nesta medida, pode considerar-se que a (de)composição envolvida na escrita sobre arte põe a descoberto precisamente aquilo que não aparecia na obra. Muitas vezes, a escrita destapa as imagens inéditas e os fundamentos que dão origem à actividade do artista. Se quisermos dizer de outro modo, põe a nu os fundamentos que constituem a cegueira do pintor — a razão da sua busca e, simultaneamente, a interdição que a alimenta. A escrita sobre arte, o ensaio, tece de facto outras ligações, outras montagens, sobre as obras de arte e as exposições, expondo através do texto associações encobertas ou que ainda não existiam. Assim, também a escrita sobre arte abre para uma paisagem inédita do visível. Ao interrogar as zonas obscuras das obras, os sintomas que elas acusam, a razão da produção ensaística é estabelecer associações inesperadas e preservar um campo de deslize na sua leitura e interpretação. Assim, sem pretender ser uma história da arte, mas contribuindo para o seu enriquecimento, os diversos fragmentos ensaísticos, hoje produzidos por artistas, curadores e críticos a propósito de obras e exposições, podem evidenciar questões que as obras e as linguagens plásticas comportam — sem comprometer o potencial que as mesmas possuem para suscitar outras associações, isto é, a capacidade para as obras falarem por si. Deste modo, a escrita sobre arte não substitui a produção artística, mas «dialoga» com ela e, a seu lado, abre portas para novos entendimentos, formas de agir e de pensar. A tarefa daquele que escreve sobre arte, nomeadamente o artista, é também pensar as consequências da representação, incluindo a sua dimensão ideológica. Sobre este aspecto talvez fosse de dizer que, através da escrita produz-se simultaneamente teoria, combate crítico e prazer — porque o prazer também deve ter um lugar. Ele estrutura as formas de olhar, sentir, posicionar no mundo. Com certeza, Pomar teve prazer ao escrever, como tem ao pintar, e sobretudo tem consciência de que através de ambas participa na construção do mundo onde habita. Pensada deste modo, a produção escrita e ensaística não é apenas produto de um saber teórico, mas um processo prático que envolve um movimento de vaivém, da teoria para a prática e desta para a teoria. Este processo não é rígido, 12
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alicerça-se no próprio fazer. Nele, conteúdos e forma, argumentos e gramática podem ser trabalhados como uma matéria plástica, por sua vez transportando tons, cargas afectivas, sentidos conceptuais e metafóricos. Do que ficou dito, pode depreender-se que, tanto na prática artística como no ensaio crítico, o exercício dá substância à representação produzida. É isso que se procura mostrar ao trazer a público os textos críticos de Pomar. O pensamento que dá substância à escrita é o mesmo que irrompe entre a expressão plástica, mesmo quando aquele parece passar ao lado «em silêncio». Assim, também a escrita sobre arte, envolvendo o seu processo desconstrutivo, de desmontagem e recomposição, pode significar mais do que aquilo que está dito: um sentido acrescentado que deriva da componente metafórica do texto. A escrita sobre arte gera um espaço não resolvido que não violenta, esgota ou preenche na totalidade, deixando-o em aberto para a reinvenção do espectador. É o lugar para indagar aquilo que a obra emudeceu, os espaços que abriu, os vazios que deixou por preencher – espaços que toda a representação deve gerar. Acompanhemos Pomar ao longo Da Cegueira dos Pintores, Parte Escrita II, sem esquecer que a arte, a escrita, o ensaio devem ser encarados também nas perdas de sentido envolvidas nos seus enunciados. Com esse enigmático título, talvez Pomar nos queira lembrar que a verdadeira cegueira é não admitir que toda a existência envolve um estrato de perda de conhecimento e de visão. Talvez nos queira dizer que a função dos artistas, com linguagens próprias, é trazer constantemente ao de cima essa dimensão de incerteza e desconhecido, reafirmando que ela é parte constituinte de nós — como constituinte a parte escrita é da parte pictórica. Relativamente ao volume Da Cegueira dos Pintores, Parte Escrita II, agradece-se a Pedro Tamen, que concedeu os direitos de tradução do respectivo texto, convertido do francês para o português em 1986, para a edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Sara Antónia Matos Directora do Atelier-Museu Júlio Pomar
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Discours sur la cécité du peintre, Collection «Essais», Éditions de La Différence, Paris, 1985, 200 pp. Trad. port. de Pedro Tamen, Da Cegueira dos Pintores, Colecção «Arte e Artistas», Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1986, 142 pp.
OS MEUS TIGRES
Cá estou de regresso a Paris, depois de ter sacrificado ao culto das férias — essas migrações cegas em que toda a gente se lança em datas fixas, por razões todas confessadas salvo uma: o horror de não «alinhar». Se o caríssimo leitor ainda não suspeitou de que as ditas férias são na liturgia de hoje, tal como as farsas eleitorais, o que ontem eram peregrinações e carnavais, tenho muito prazer em sugerir-lho. Antes da minha partida, tinha arrumado o atelier, para no regresso não voltar a encontrar os salvados do trabalho interrompido a contragosto. Mas o que aqui vejo agora apenas me produz um efeito estranho, como o contacto com os alimentos retirados do congelador, inodoros e duros. Dou comigo, é certo, numa aparência de ordem, no meio das minhas queridas armas e bagagens. A minha toca dá-me os mimos do seu silêncio, da quase-nudez das suas paredes, da ordem viva dos utensílios, da profusão de telas brancas ou só começadas, nesse percurso que às vezes só vai desembocar num impossível: o de fixar uma aparência ou então mudá-la. Falta-me sempre o ar no ferro-velho habitual dos ateliers de artistas: a sobrecarga de objectos heteróclitos dá-lhes muitas vezes um aspecto de refugo ou até de lixeira pública. Deixara em casa apenas um estudo por cavalete, e o vazio em torno destas armações transformava-as em forcas, onde facilmente os quadros fazem o papel de enforcados. Ao olhar para eles neste momento, não pensava no traseiro poeirento das telas que Duchamp ridicularizou, mas em faces macilentas: o atelier soava a oco, e o encontro falhara. Veja-se O Triunfo da Morte de Brueghel: parece-me que se pode encontrar lá o que eu senti — só que o flamengo não puxava ao sentimento. Os Meus Tigres
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Na cruz que segura a grade em que a tela está esticada, vejo um expositor: se, na imaginária religiosa, a cruz é o sinal da paixão, a verdade é que serve também de expositor do Cristo. Na cruz da minha grade desenrola-se outra espécie de paixão: nela coexistem e caminham inquietações, dúvidas, fragmentos de crenças, pequenas satisfações, ilusões de conquistas, projectos irrealizados ou desviados, surpresas, charadas — enfim, tudo o que, na melhor das hipóteses, nos aproximará dessa carne enigmática de que são feitos uma pedra, uma palha, a brisa, quando entram em relação com a curiosidade e a disponibilidade de alguém que contempla. Curiosidade e disponibilidade: não estou muito satisfeito com estas duas palavras. Mas, apesar de tudo, pergunto a mim próprio se não poderíamos, no fim de contas, denominar assim as virtudes susceptíveis de nos manterem despertos e deslumbrados ao longo deste calvário, cujo número de estações varia, em que a nossa solidão por vezes resplandece daquilo a que alguns chamam iluminação e outros vazio. Com a ajuda das circunstâncias, olhava as minhas imagens com olhos frios. Via-as como um intruso. Se a pintura existe graças à distância, eu carregava nesse instante o peso de tal distância. Lisa como um espelho. É uma velha obsessão dos pintores, esta ideia, para não dizer imagem, do espelho: buraco fantasma, gelo dos pólos dos nossos desígnios contraditórios1. A busca de uma unidade para os nossos desígnios não faz mais do que lamber a ferida provocada pelo cheio-de-mais dos dias, por muito vazios que fossem. Ora, das minhas imagens tinha-me eu afastado. Como não as tinha revisto, tinha-as esquecido. E ei-las a porem-me questões que dois meses antes teria achado ociosas. «Que fazem aí esses tigres?» Dizer «esses tigres» é já um abuso ou uma precipitação, e sempre um vício de forma: no quadro que ali tinha à minha frente, o que se 1 O único espelho verdadeiro é, para Bachelard, o espelho das águas que Narciso atravessou: e o que distingue do espelho natural o espelho produzido pela indústria, espécie de concavidade vítrea que mancha as nossas paredes, e aquilo em que assenta o parentesco deste com o quadro, é efectivamente a lesão que produz com a ofensiva presença dos seus limites, com a separação nítida entre o que pertence ao domínio da imagem e o real ambiente. Introduzir numa sala um espelho ou um quadro é praticamente fazer uma colagem em que se matam reciprocamente dois mundos sem escala comum: o meio que nos rodeia e em que nos deslocamos e esta aparência de janela, de buraco ou de poço onde espreitamos surpresas e confirmações e que, se nos atrevemos a tocá-lo, nos remete, despaisados, para uma superfície cega.
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podia ligar à aparência de um tigre só ocupava na verdade uma pequena parte da superfície total e quase se reduzia à apresentação da cabeça do animal recortando-se contra um cinza-prateado. Eu disse «cabeça», no singular, e no entanto aquele sinal era duplo. Tratar-se-ia de um animal de duas cabeças (como é de uso nos brasões) ou, muito simplesmente, de um casal de feras? Pouco importa. Mas tudo ao lado era desprovido de redondeza, achatado, como aquelas peles estendidas ou penduradas para enfeitar, diz-se, o pavimento ou as paredes. Do mísero troféu saíam as cabeças numa bossa redonda, de boca e olhos bem abertos. No meu quadro, o pêlo às riscas, despojo ou destroço de contornos indecisos, não existia: em seu lugar abre-se — ou desfaz-se? — um guarda-chuva acinzentado, cuja seda de reflexos metálicos ocupa toda a largura da tela e cujo cabo se mostra sem equívocos, na sua redonda magreza. Abrigadas sob esta paródia de cúpula, três mulheres nuas caminham com passos miúdos. As pernas parecem a colunata daquela arquitectura instável, junção incoerente que recompõe o plano da tela — e mais adiante, não é que este se entreabre ou, antes, se rompe, para libertar um bando de elementos de geometria cortante? Acabo de contar o meu quadro, como um autor dramático se demora em pormenores quanto ao cenário ou à qualidade das personagens antes de dar livre curso às paixões e aos fantasmas. O leitor ou o espectador ganhará algo por dispor desta espécie de sinais particulares ou de bilhetes de identidade que, como todas as formas convencionais de fichagem, apenas consignam as aberturas públicas dos obscuros embustes de cada um? E agora lá vêm as questões que tantas vezes me puseram: «Porquê esses tigres?», «que fazem eles aqui?» Este tipo de questões aborrece-me. É o mesmo que perguntarem-me porque é que estamos no Inverno… Se, no lugar de um tigre, eu tivesse pintado uma couve-flor, ninguém se espantaria com isso. Uma pequena correcção: substituam a couve-flor por um limão ou uma maçã. Se me sujeitar aos usos, se respeitar a norma, ninguém me achará extravagante. As maçãs, tal como os quadrados, pertencem ao repertório dos pintores. A minha insistência na couve-flor já seria tomada como sinal de uma aberração ou de uma obsessão duvidosa, a não ser que eu tivesse nascido Os Meus Tigres
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na terra das couves-flores. Toda a gente aceitou que em determinada época da minha vida eu tenha produzido quadros em que se podiam ver corridas de touros ou de cavalos, isto é, assuntos classificados, e honrosos porque classificados. Não pretendo ir desencantar santos e senhas nas práticas das Igrejas de serviço — como as farmácias onde podemos encontrar à noite ou ao domingo com que acalmar dores de dentes, angústias, etc. — para insinuar que sonho com copular com belas poldras, ou para dizer que os testículos do touro associados às tetas da mãe amamentadora são uma rememoração inconsciente da cena primitiva e fornecem definitivamente a chave dos meus sonhos2. Se me tivesse deixado ficar na música dos quadrados, então gozaria seguramente da paz absoluta, só que, como autêntico burguês podre, recusaria participar na luta de classes ao lado do proletariado. Pai Jdanov que estás no Céu… Todos os meus «assuntos», encontrei-os ao acaso dos dias. E acho que o assunto em pintura (o que é representado) acaba por ser mais o lugar em que se joga do que a própria finalidade do jogo. O que não quer dizer que se escolha arbitrariamente (tal como não são arbitrários o lugar onde se faz amor, o próprio objecto desse amor, etc.). O que se passa entre o pintor e o que ele torna visível ao nível do assunto apenas desvia a atenção do que esse pintor faz produzir-se sob o campo do representado. O que é comestível no caracol acha-se e distribui-se no interior da casca. E ainda é preciso cozê-lo e temperá-lo com alho e as convenientes especiarias. Sobre a mesa de dissecção, que é para mim o plano da tela em que pinto, teve efectivamente lugar o encontro de um tigre com um guarda-chuva. Vejo neste felino a grande máquina de des-coser que vai desencadear inúmeras associações — o que sinto ao mesmo tempo como uma violação e como uma exibição. Passemos, pois, da grande máquina de des-coser ao meu guarda-chuva, morcego mecânico de ventre vazio. Porque havemos de admirar-nos de que esta «máquina celibatária» que anda pelas ruas se venha acoitar aqui? Quanto a mim, é problema que não se me põe, tendo como tenho uma certa experiência e até o gosto dos encontros imprevistos. Mas é problema que me puse2
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Por Igrejas entendo os discípulos de Marx, Freud & C.ª, que não têm culpa nenhuma…
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ram e que me hão-de pôr; por isso é que me sento à secretária, por isso é que me disponho, de caneta em punho, a forjar o meu escudo. Ao acaso das palavras, irmão do acaso das formas, onde o inominável, feudo do pintor, se deixa apanhar na armadilha. Irmãos gémeos talvez, mas que receberam educações diferentes e têm dificuldade em dialogar para além das fórmulas de cortesia. «E que tem aqui o tigre que ver com o guarda-chuva?» Se outros atributos, dos mais sedutores da feminilidade, viessem em auxílio da minha imagem em formação, a norma estaria salva: a operação aparentava-se com as rimas de dicionário, com as metáforas mais socializadas, com os sonhos de menos feitiço. Entre a rigidez e a fragilidade do guarda-chuva e a força e a flexibilidade do tigre, eu não imagino qualquer relação — para além do facto de toda a proposição atrair a sua contrária. Toda a cor projecta sobre o que a rodeia o halo da sua cor complementar, e foi isto a alegria e o detonador da pintura impressionista. O guarda-chuva, falo enluvado, tem a dignidade presa por um fio, a ponto de a metáfora ameaçar mudar-se em atestado. Basta um golpe de vento para lhe desmanchar a geometria — presa, não por alfinetes, mas por várias… varetas —, e o mais elegante dos guarda-chuvas transforma-se no pára-quedas do palhaço, objecto de riso. A regularidade das riscas do tigre, ou antes, se olharmos bem, a sua impressionante irregularidade, desenha à mão levantada o comentário da sua estrutura formidável. Este comentário ondulante, espécie de discurso gráfico que combina diferenças e semelhanças, tira a sua lei do ritmo pautado pela ossatura, onde mergulha a omnipotente elasticidade dos músculos, sob a pele flutuante. Pelo contrário, as nervuras do guarda-chuva erguem-se, rígidas, à flor da pele: bastaria um quase-nada para deixarem para sempre a fina membrana cuja tensão regulam. A sua geometria radial solda-as ao eixo ao longo do qual hão-de deslizar. O guarda-chuva tem que ver com o desenho geométrico, cujo utensílio é, por excelência, o tira-linhas. O tigre verdadeiro dir-se-ia caligrafado por um desses flexíveis pincéis chineses, concebidos para receber e enriquecer o gesto aéreo do punho e do braço. O pintor ocidental inventou o «tento» — uma vara cuja ponta, que toca no quadro, é coberta Os Meus Tigres
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de uma substância macia. O punho tem de apoiar-se nessa vara protectora para evitar as surpresas e dissimular os vícios da mão quando esta enfraquece. O pintor ocidental descansava no «tento» como o padre vai beber ao breviário. A propósito da caligrafia ou da pintura zen, utiliza-se em francês a expressão hasard contrôlé. Trata-se, quero crer, de um erro de tradução: uma palavra cristaliza uma ideia, mas uma ideia que já não está ligada à mão produtora. Ora, tenho dificuldade em imaginar algo que menos se situe no espírito zen que a imagem do pintor sentado numa torre de controlo, guiando como lhe convenha a aterragem do acaso. A verdade é que este nem se controla nem se regula. O mais que podemos é aceitá-lo ou não, e faremos corpo com ele se dispusermos da sabedoria ou da inocência necessária e suficiente para deixarmos aparecer todas as virtualidades. Um quadro nasce sempre de outro quadro: Picasso gostava desta frase e fazia largo uso dela. Também eu poderia encontrar para a minha associação insólita um antepassado: a enorme umbrela com que Bacon cobriu alguns dos seus açougues — ele que sabe, e com que abundância, tirar proveito da representação dos objectos esquecidos pelos pintores: lâmpadas solitárias, pontas de cigarro, mobiliário metálico. Ou, então, poderia também remeter o espectador para debaixo da cúpula de S. Pedro, guarda-chuva da catolicidade. No meio deste meu quadro, na parte superior, para a direita, está incrustado um hexágono azul. É estável, sólido, nítido. Estabelece simultaneamente a íntima ligação e a distância entre as duas cabeças de tigre e, situando-se na horizontal, torna-se a chave da abóbada da arquitectura incoerente que o quadro abriga. Os lados oblíquos do hexágono seguem as diagonais do quadro, no qual ele é o elemento mais colorido. O seu peso cromático é contrariado pelo amarelo-ácido da forma que se perfila em quarto de círculo, atingindo o meio do bordo esquerdo, precisamente onde partem os quadrados voadores. Pergunto a mim próprio muitas vezes porque é que nos meus quadros ditos eróticos — que foram agrupados sob o título geral O Espaço de Eros, Teatro do Corpo3 ou (e claro que a troca era inevitável) Teatro de Eros, Espaço do Corpo — 3 Foi Roger Munier quem deu ao texto que escreveu para a primeira apresentação desses quadros o título L’Espace d’Eros.
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o rosto não é nunca tão nitidamente figurado como os atributos do corpo. E eis que de há dois anos para cá a maioria das minhas telas tem por núcleo a imagem de uma ou várias cabeças em forma de máscara deste animal-alvo: o tigre; e isto, com o fim evidente de agarrar o olhar do espectador (segundo um processo semelhante ao que levou De Kooning a colar sobre a tela um pedaço de cartaz com os lábios de Marilyn Monroe, para fixar o olhar que hesitava diante do frenesim gestual; ou então, muito antes dele, os cubistas a usarem caracteres de imprensa). Parecendo auxiliar o espectador, oferece-lhe uma história conhecida, peça de caça que leva ao engano (e ridiculariza, ou macaqueia) o que dá a reconhecer. No meio dos polígonos voadores pode ver-se um pedaço de cauda, cuja curva será miniaturizada mais adiante pelo cabo do guarda-chuva. Foi talvez na sequência de uma dessas operações (de aproximação e de afastamento, de ampliação e de miniaturização) que a cauda de um tigre se metamorfoseou em cabo de guarda-chuva. E, uma vez realizada esta metamorfose, ter-me-á acudido o desejo de preencher o espaço que ficava vazio com a cúpula portátil que o guarda-chuva é. Passados meses ou anos (mas poderia dizer igualmente dias, ou até horas), se tento inventariar o que de perto ou de longe tem que ver com os meus trabalhinhos de pintor, nunca posso garantir que a forma como conto essas cristalizações de factos seja autêntica, nem a ordem pela qual essas formas foram chegando à superfície dos meus quadros. O enigma é uma coisa, a chave é outra. Se nos propusermos reunir o enigma e a chave, passamos em silêncio a prestidigitação e suas malícias. Para completarmos um puzzle, frustramos a sua fragmentação; ora, a fragmentação é a natureza — ou razão — do puzzle. Uma forma que identifico com a origem da cauda opõe-se à geometria dos polígonos voadores (geometria que estabelece um campo em profundidade). A sequência das riscas, por seu lado, interrompe-se no exacto momento em que parecia que iria continuar. Como se tivesse sido rasgada para deixar aparecer a sequência dos três pares de nádegas, onde se inicia a imagem das três mulheres que caminham com passos miúdos. O cabo do guarda-chuva retoma, miniaturizando-a, a curva da cauda do tigre. Esta relação entre rabo e cabo será retomada noutras telas. Assim, no Os Meus Tigres
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quadro a que chamei… Nunca!, o arco descrito pelo cabo do guarda-chuva ocre-alaranjado, que voa e vai agarrar-se à borda esquerda do quadro, inscreve-se num ritmo helicoidal que o liga à cauda esbranquiçada, também ela unida a uma figura feminina, vista de perfil, que se inclina para a direita. Ao longo do mesmo lado, no canto direito do quadro, enrolam-se as volutas de uma grande cauda isolada. Quanto ao primeiro plano do quadro, é ocupado pelo traseiro feminino para onde se vira o focinho de um felino, ao qual outro guarda-chuva serve de fundo ou de auréola. Tudo isto se recorta contra uma cortina cor de borra de vinho que fecha o espaço liso deste teatro. E eis, de novo, a bocarra de um tigre, mas desta vez vista de perfil, que, parecendo cair, se segura no lado superior do quadro, indicando displicentemente o vazio central da cena. Comprazo-me em deslindar, post mortem, esta intriga, uma vez que a minha intervenção nesta tela terminou há muito. Vítima do destino, como em toda a tragédia clássica, o herói pergunta a si próprio: «Porque é que fiz tudo isto?» Tinha começado por chamar a este quadro Os Gregos… Nunca! — e acabei por despedir os Gregos (cuja comodidade é sempre grande nas fábulas sobre a actualidade que nos escapa) para conservar apenas a tranquilizadora imprecação… Nunca! * Palhaço aterrador, o tigre. Dir-se-ia talhado para os jogos e para a luxúria do circo. O que faz a alegria, e do mesmo modo é causa profunda da perturbação do circo, é a presença, risível ou angustiosa, do que ultrapassa o possível ou, pelo menos, finge ultrapassá-lo. O possível: ameia da muralha que nos é própria. O impossível, esse, sendo o que não deve ser arriscado, guarda um vago sabor a apólice de seguros. Mas é de gosto que se representa no circo. E o que se representa é o apesar de. O circo é o reino do disfarce: os seus atavios ultrapassam e contrafazem os equilíbrios convenientes, e é do seu excesso que tira vanglória. No circo, tudo é demais, e este demais pertence ao domínio da ambiguidade, do qual é ao 22
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mesmo tempo paródia, para rir e para assustar: paródia absurda dos fundamentos geminados do vivido e do visível. Quando o visível vive o desnudar dos eternos celibatários que o artifício do círculo de luz acasala. Se os palhaços e os funâmbulos escolheram o circo, o animal, esse, é levado para lá à força. Para eles, o circo é o espaço, o próprio corpo da sua malícia. Mas o animal, cujo espaço continua a ser sempre a jaula, está sempre lá coagido. O domador, para afirmar bem os seus poderes, dá uma gala para festejar essa coacção. A evidenciação das dificuldades do amestramento é obrigatória no circo. É preciso mostrar a ferocidade das feras e recordam-no-la a todo o instante. No ritual muito codificado do circo, para que o tigre possa ter ademanes de gatinho no fim do número, é preciso, antes de mais, obrigá-lo a rastejar pela jaula e passeá-lo entre as grades, fazer silvar o chicote, exibir o tigre rugindo e rangendo os dentes e provocar as suas formidáveis patadas. No fim do espectáculo, palhaços e funâmbulos abandonam os seus disfarces, retiram a maquilhagem, desembaraçam-se das tintas que acentuaram ou inventaram a sua anatomia da noite. São outra vez, finalmente, Senhores Fulanos. O tigre, esse, nunca. Passeia, à paisana (e o à-paisana do tigre de circo é bocejar na jaula), as suas vestes luxuosas, o pêlo listrado de duplo forçado. Único verdadeiro palhaço, sem outra identidade além da que imita em cena, o seu rosto é inseparável da máscara, e o seu corpo da amplíssima veste. Todo o peso do tigre se faz de veludo quando se desloca. A flexibilidade do seu movimento é a contrapartida da máscara, onde o mínimo sinal é pesadamente sublinhado. Como no rosto dos actores no tempo do cinema mudo: o silêncio ou a ausência de palavra vai de par com o carregado dos traços. Mas que relação é esta, tão evidente, entre as riscas de pêlo e as grades da gaiola? Só conheço os tigres enjaulados, no circo ou nos jardins zoológicos — já que ninguém me convidou ainda a ir aos países onde vivem em liberdade. O mecanismo das riscas será a premonição, a sombra, a marca ou a queimadura das grades? Literatura. Mas olhe-se para a fotografia a preto-e-branco de um tigre na jaula — pois é ela que me parece a mais perturbadora, a mais próxima da terrível evidência da luz sobre as coisas; a fotografia a cores ficou até agora mais próxima, para mim, do calendário dos Correios do que da arquiOs Meus Tigres
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tectura real das cores. Ora bem, as riscas, as grades e a sua sombra intrincam-se a tal ponto que é preciso fazer um esforço para dizer a que sistema de listras se refere cada elemento deste triplo jogo de paralelas. * Incapaz, mesmo se me esforçar por isso, de desenhar as grades na sua regularidade, também não consigo conservar no meu quadro o mínimo de sinais destinados a sugerir o pêlo listrado. Também não consigo contabilizar o que é repetitivo. Nem cem estágios numa dessas escolas especializadas da Jugoslávia ou de outros lugares fariam de mim um desses pintores a que se chama naïfs e que debitam a retalho os cabelos de uma cabeça ou as folhas de uma árvore. Talvez seja como compensação que multiplico o que deveria ser um. Por gosto pela síntese, multiplico. Este mal afligia já Cézanne, que deslocava as estilhas dos contornos à medida que a análise do que via progredia no tempo. O quadro é sempre mais ou menos atravessado por chegadas sucessivas de notações e de acontecimentos. Se o mercado da realidade é a tela principal, o quadro é campo e amostra dessa realidade. Uso talvez a repetição porque desejo refazer uma operação: para a redefinir, para melhor apreender o seu sentido fugidio, que é a marca própria do que é vivo. E parece-me que estas repetições não são nunca os elementos anónimos ou todos semelhantes de um sistema de quadriculação do espaço, elementos que viriam alojar-se num xadrez de grelha antecipadamente traçada. Não. Cada um deles é um nó. Tem a função de uma vértebra nessa espinha que é a nossa deambulação no coração do vivido. Coração: palavra arbitrária. Poderíamos dizer carne — deixando-nos conduzir pelas redundâncias que são os ossos e os nervos da expressão herdada. Poderíamos rasurar a imagem, tentar endurecer a palavra. Imagens e palavras: esforços — atrasados — para atenuar a distância que nos afasta do vivido.
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* Como as putas e os restaurantes McDonald’s, as minhas imagens estão na rua. Mais uma vez, o que no atelier parece incongruente, nada mais faz do que retomar o folclore miúdo do domínio público. O acasalamento da fera e do guarda-chuva, acabo eu de o notar no cartaz de um banco, e já me rói a suspeita de o ter visto antes — o que é muito provável, visto que este banco não fica longe da minha casa, num sítio onde passo muitas vezes. O cartaz apresentava a caricatura de um felino oferecendo à arraia-miúda a protecção de um guarda-chuva. A linguagem publicitária nasce selectiva: só se apodera da imaginária comum. A linguagem dos políticos é do mesmo modo selectiva. Os lugares-comuns andam num vaivém constante entre estes dois discursos. Recorrendo à operação-chave da mecânica do humor, estas linguagens, para serem eficazes, tiram o seu efeito do salto que abrevia de uma só vez a distância entre situações distantes. No entanto, a diferença entre um discurso eleitoralista ou publicitário, de um lado, e o do humor mais ou menos negro, por outro, particulariza-se pela escolha da linha de meta, onde se situa a conclusão que se pretende impor, e essa escolha determina a cor do escorço: o humor irrompe da vertigem da queda, desvelando o absurdo na sua quotidianidade, enquanto a publicidade, como o discurso político, tem de tranquilizar as pessoas, amontoando-as no interior de uma categoria de consumidores. O tigre, metáfora do poderio: «meta um tigre no seu motor». O guarda-chuva, prótese tranquilizadora. Tudo isto pode também ter lugar entre as antinomias do tipo faca-maçã, mesa-parede, na gaveta onde o pintor arruma os instrumentos das suas naturezas mortas. As vacas prosaicas comem as alfaces do poeta; e nós untamos com a sua bosta o invisível ornamento de circunstância que se usa nessa ausência de festa que é o casamento ou a prostituição do quotidiano. É pela escolha da imagem que o poeta ou o pintor usa o quotidiano. E o destino da imagem torna-se outro, des-neutraliza-se, e daí o espanto das pessoas que nela já não reconhecem o que é de todos os dias. E não estão enOs Meus Tigres
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ganadas. Rápido olhar ou fixação no quotidiano, a imagem abre-o ou volta-o contra si próprio, na medida em que é o reverso do inesperado. Este quotidiano, tido por neutro, ou nulo, e cuja banalidade já não detém a atenção, torna-se então peça e lugar de arquitectura, trama que vem do fundo do tempo e que se lança para o desconhecido — esse desconhecido com o qual o homem sempre tem de conformar-se.
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PISAR O MESMO CAMINHO
Passado o impulso inicial, muitas vezes me sinto desarmado diante da tela já não virgem e que patinha nos pântanos do meio do caminho, sem saber para onde hei-de orientá-la. Quando penso nos bons trinta anos passados neste ofício, com os seus hábitos e os seus sobressaltos, o único benefício que creio poder ter retirado deles é efectivamente o de já não sofrer angústias semelhantes à que nos provoca um teatro sem saídas. Ousaria até acrescentar: oxalá continue assim. Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. E lá me encontrei: situação sem conforto, de que há que partir. Isto vale para a pintura e para o resto. Assim amanhamos coragem para nos convencermos de que agarraremos um dia o que temos a impressão de ter perdido. É falso. O que perdemos está perdido, e aí ficamos. Do que foi perdido, desperdiçado, destruído, já não há nada a esperar. De acordo com a moral das famílias, foi aliás exactamente para isso que se destruiu, se desperdiçou, se perdeu. Para que não volte mais? Monólogo simplório. O traço que apagamos armazena-se nesse entreposto que é a memória. De lá irá sair talvez, um dia, se um acontecimento imprevisto mas concreto, da ordem do pouco que o acaso traz consigo, o empurrar para a frente. Eu disse talvez: nada nos garante, nada nos segura contra o fracasso ou a perda. É um quadro nada tranquilo esta clara imagem que fazemos da arte, prática obscura. Pisar o mesmo caminho. Em todo o caso, este intervalo, mesmo que acabe de repente ou sirva de escala para outras «demarcações», é um dos hábitos do pintor. Mas não deve ser confundido com o artifício que está na origem de um Pisar o Mesmo Caminho
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certo estilo «artista», de Salão, quando os falsos repentirs simulam os achados: ser hábil na inabilidade, alegria de circo. No atelier faço e refaço — por vezes sem sequer me dar ao trabalho de desfazer. Não só para fazer melhor. Mas também por necessidade de destruir, de remastigar uma dada experiência que não me matou a fome. Para investir, agredir, questionar, estar dentro (dentro do jogo?). Para encontrar a minha imagem na verónica que o instante, como um toureiro, colhe. Não para viver em memória, como se vive fechado em casa, mas para, fazendo, aguentar o presente. Estaria eu a estender a minha pintura de uma ponta à outra da tela sem me interrogar? O meu trabalho não consiste em acrescentar, dia após dia. Não segue um esquema preestabelecido, como o que serve para a construção de uma casa: as paredes depois das fundações, o tecto depois das paredes. O meu trabalho alimenta-se daquilo que despedaça. Depois de ter engolido os filhos, Saturno rói as unhas. E depois o coto. Procedo por destruições sucessivas. Rasuro. E estou em crer que a rasura dá o (não) sentido à frase, dá o nervo à forma, dá a vertigem ao espaço. * Pinto, recorto, junto, repinto ou raspo, arranho, pulo, aliso. Para depois não fazer mais, talvez, do que re-recortar, re-juntar, repintar outra vez, e tudo o resto. O meu trabalho passa pela lavra da matéria. Mas esta lavra só episodicamente é busca da matéria em si própria, por muito obsediante que esta possa ser. É certo que acontece conseguir-se uma qualidade de pele que desafia o tacto, cobrir-se toda a gama que vai da areia rugosa ao polido do esmalte, do áspero pano de juta ao mate do veludo, da transparência à espessura. Mas ainda que, num caso extremo, a matéria pictórica se defenda com um contraste brutal com matérias verdadeiras como o metal, a madeira, a pele, ainda que ela se mantenha na primeira linha, ainda que seja sedutora ou excite o olhar do espectador — pobre matéria!, ficará sempre a ser o que ali fica na tela: vestígios, marcas de errâncias e de erros, traços de uma acção passada, registo 28
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do tempo gasto, de mutação em mutação, atrás do engodo ou da esperança de uma relação deveras. * Mas se é certo que a matéria que a tela consegue conservar é apenas, a bem dizer, o que permanece, à flor do visível, de toda a lavra do quadro, a verdade é que, porém, ela exerce sobre mim uma atracção indesmentível. Para tocar deveras a carne da minha pintura, preciso de um contacto de pele a pele — e a palma da mão entra-me por vezes no jogo, como a do estampador de talhe doce: ferramenta insubstituível para aquele toque final que porá o cobre em condições de receber o papel dúctil e húmido e descarregar nele todo o seu conteúdo. E quando, bem recentemente, me apeteceu retomar a pintura a óleo na sua prática mais tradicional, dei comigo a modelar com o polegar para conferir à massa untuosa ou ao esfregaço a densidade pretendida, para retirar o que estava a mais, para esfumar, para alisar ou para descobrir as camadas inferiores nos lugares onde a articulação dos espaços se torna aresta crua ou assinala abismos. * A pintura é táctil, é um convite à mão. Quer o quadro tenha que ver com imagens conhecidas, com um «visto» anterior, quer a profundidade seja simulada ou dada por alusões, a matéria da pintura impõe-se como realidade principal. Por muito ilusionista que seja a representação, o corpo do representado só será visto depois da pele da superfície. A espessura ou a transparência do óleo, o mate do fresco, a consistência da parede ou o grão da tela: esta escassa realidade basta para pôr a nu a ambiguidade das núpcias do olhar e da mão. A epiderme da pintura atrai o tacto, ao contrário do que se passa com a fotografia. Janela imaginária, esta impõe-nos o obstáculo de uma distância, uma espessura gelada. O meio em que se insere a pintura é um corpo oco, habitado pelo espectador que se desloca. Pisar o Mesmo Caminho
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Uma pintura começa por ser uma matéria real; enquanto imagem, torna-se miragem. A fotografia, essa, antes de mais nada, relata um acontecimento, dá contas de um «visto». O que faz a grande popularidade da fotografia cobre com um véu de poeira tantas pinturas!… «Os quadros têm teias de aranha no traseiro» (Duchamp). As fotografias, não. O código é um seguro. A arte é coisa de vertigem. O código tranquiliza. A arte é perturbação. Daí o êxito das artes que simulam o mistério de forma tão evidente que o espectador logo o desmonta e sossega: pinturas de salão, vanguarda de todas as modas, brinquedos fornecidos com chave, puzzles termináveis. * Lavrar a tela. Como se diz lavrar um campo. O camponês: inconsútil duplo mítico do rato das cidades. Mas todos os mitos são duplos, é da sua própria natureza. O número 2: a economia do duplo, a avareza. Ora, a avareza leva à ruína. Mas deixemos os seus ratos a quem de direito e voltemos antes a esta ideia que faço do papel desempenhado pela matéria no meu trabalho de pintor. Vejo essa matéria sobretudo como os estigmas da paixão que inscreve sobre a tela, na superfície da tela, o meu caminho tacteante. Para discernir os poderes do visível. Para encontrar as relações entre as tensões e o peso da cor que procura a sua forma, a da forma vitalizada pela assunção da cor. * A paixão do pintor: quotidiana partida do mundo (partida no sentido de pregar partidas?). Rito solitário, festa, mistério. Calvário, droga, bebedeira. Merda para os pintores aplicados (eu incluído). «Devo-vos a verdade em pintura», exclamava Cézanne — e toda a sua obra se aninha nesta dobra que envolve «verdade», palavra fugidia. Na via dos Orfeus pinta-monos, a voz mata: a maldição não atinge aqui o olhar rebelde — terreno do pintor —, mas a formulação do apelo, o próprio acto de dar nome ao objecto da procura. Eurídice, nome de resistência da ver30
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dade. O que faz com que esta descida aos infernos não acabe nunca é a chegada dos nomes e das palavras e o seu coito interrompido com o olhar fascinado. Entre o que abre a imagem e a palavra que a cerca, a pintura, acto de violação, explode. Explodir: pôr-se a viver. E um espectáculo inesperado se impõe, ao lado e além do espectáculo preparado. Veja-se «milagre» no dicionário ou onde se quiser. * Se o desenho guia tudo o que se põe numa tela — e esse tudo reduz-se a massas e campos de energia —, podemos arriscar que a cor (no sentido em que com ela se joga e com ela se goza) é também uma questão de desenho. Todo o desenho produz uma cor, disse-o Matisse e provou-o. O que ponho sobre a minha tela (tentando viver com isso, domesticá-lo, libertá-lo ou ser confundido com) explicita-se ou afirma-se se o que ponho sobre consegue estar dentro. Então o quadro começa a fazer-se, a ter uma vida, a sua vida própria: a partir do momento em que a pintura faz corpo com a superfície, quando ela se mostra na tela e a mostra a ela, tela, como realidade ou existência outra, que acabamos de descodificar ou de alicerçar. Nesta liga, cópula, soldadura entre pintura e suporte, nasce o espaço do quadro, a sua razão de ser. * O quadro é o engodo do pintor. Como o objecto engoda o desejo (Lacan), vale mais a caça do que a presa (Pascal). Casar curvas de mulheres com ombros de colinas (Cézanne). * Vá-se lá saber porque é que o meu período de retratos (1968-1976) se afoga em naturezas-mortas. E a verdade é que nunca me apetecera tentar o género. Atrevia-me até a brincadeiras de algum mau gosto: «Não sou pintor de Pisar o Mesmo Caminho
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naturezas-mortas.» Decerto para encher vazios de conversa, ou outros, acentuava, ainda que ao de leve, a palavra «mortas» e, como um alforge, esta palavra devia conter uma espécie de auto-retrato pintado segundo ideias feitas. Verdade se diga, porém, que, à esquerda-baixa do coração, uma admiração sem limites por Chardin sempre me entusiasmou diante das suas pirâmides de fruta e da carne miraculada dos seus utensílios — ditos humildes, segundo infectas rotinas. Relacionava também facilmente os seus belos vazios com aqueles tempos tão densos que Morandi assinala entre os frascos e as cafeteiras anónimas. Nessa altura (seria para teimar, para seguir noutra direcção ou para ganhar distância?), precisava de uma espécie de terreno neutro. A neutralidade — duplo desígnio. Sempre menti tocado de perto pela face humana. Embora para um pintor o discurso psicologicamente não passe de uma bagatela, nem por isso um rosto deixa de ter dois olhos que nos olham. Quanto ao corpo, porque havia de ser menos personalizado que a cara? Comecei, pois, por deixar entre parênteses a ideia de retrato, e deixei a cor para depois. Eu queria o neutro, não o andrógino. A mim próprio proibia excessos. Com um branco nem quente nem frio e um cinzento semelhante, deixando em baixo, à guisa de pedestal, uma franja de tela crua, tentei construir uma imagem a partir de uma recordação de Belle-Île-en-Mer: alguns rochedos emergindo do mar. A paisagem impressionara-me, tomara apontamentos desse motivo e trouxera bilhetes postais. Fiz e desfiz este quadro, até já não poder vê-lo. Entretanto, ocorrera-me a ideia de substituir esta vista, onde os rochedos se apresentavam como objectos que se recortavam inteiramente sobre o fundo liso, por uma verdadeira natureza-morta, um quadro já pintado. Foi então que a lembrança de Chardin começou a mexer em mim. Iniciei um estudo a partir de La Raie (mais um rosto!), e outro a partir de Le Chaudron de cuivre. Seguiu-se Le Pot d’étain. A partir de Juan Gris, arrisquei as duas telas que foram mais tarde distinguidas com o título Table des matières. Vivia então uma espécie de purga. Escolhera os simples e confiara aos seus poderes o cuidado de disciplinar a libertinagem, enquanto o olhar desperto guardava as suas distâncias. O rigor pretendia-se impermeável ao tremor 32
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da mão. Uma geometria cortante. Dei comigo a fabricar quadros que pareciam ter sido paridos por luvas assépticas. Nenhum sinal de temperamento na pincelada, a escrita artística eliminada deliberadamente, nenhuma subtileza de feitura, tréguas na transparência. Tudo se pretendia exacto, seco, impessoal. A violência, essa, passava por outro lado. A cor era levada ao máximo da sua brutalidade, era saturada, o chicote dos contrastes simultâneos feria a retina. Os timbres, pretendia-os tão altos, brigando tanto consigo próprios, que a fronteira entre transparência e opacidade não fosse mais discernível; pretendia esses timbres tão irradiantes dos seus poderes que já não houvesse lugar para outra luz além da que jorrava dos pigmentos, previamente escolhidos pela sua pureza. Frieza, despersonalização do acto de pintar: precisava de chegar aí, de estar em pleno ali dentro, para tentar não perder o sentido do que depois se enunciaria como uma busca do vazio, como uma procura do caminho onde campeia a ausência. * Pintura que parte da coisa para se tornar pintura do vazio, do vazio como coisa; pintura da coisa grávida do seu vazio, da coisa chamada ausência, da coisa semelhante à sua ausência. Pintura que apresenta o vazio que a forma deixou, contra o vazio que a teria rodeado. A forma era assinalada como ausente, no vazio que teria habitado. O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença. Na Nature morte au chaudron de cuivre, a verdadeira plataforma de partida seria esta espécie de toalha verde-pistácio que se agarra ao lado superior do quadro, como roupa a secar numa corda (ou uma bandeira em farrapos). Esta forma de contornos definidos, e meticulosamente executados nos mínimos pormenores, não passa de um vazio onde se apresenta o tema. Mas esse vazio, que se propõe como forma, apresenta-se esvaziado: como se os objectos que se encostavam a ele o tivessem abandonado, não lhe deixando por herança mais do que os sinais da sua ausência; ausência chãmente dada pela ausência de cor sobre a preparação branca no interior dos contornos. A ausência marca tamPisar o Mesmo Caminho
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bém a tela crua, virgem de qualquer mácula, que assinala o fundo do caldeirão, a cujo bojo dera, sem pensar nisso, a cor azul, cor, também ela, da distância. O quadro monta-se e desmonta-se assim, de ausência em ausência. Só apela para o vazio e, além disso, para o vazio que se esvazia1. Sublinhar a escolha de materiais desprovidos de qualquer volúpia imediata: tela crua, branco da preparação, um verde industrial, o azul rude. Este estudo dir-se-ia votado a demonstrar a maneira como comecei a desfolhar o malmequer do vazio. E, ainda por cima, tecia a minha teia a partir da obra de um pintor obcecado pelo lado carnal da presença: Chardin. Também Cézanne o venerava, nunca abandonando a polpa do visível — e a dependência de que se alimenta a carne do «visto». Dando o volume (a presença) através da cor e arquitecturando-o de forma a que o quadro se componha no ponto exacto em que, entre ver e querer, começa a oscilar a balança. Por ironia ou por acaso, o único objecto que, uma vez inscrito no meu quadro, conservava a sua presença, o seu volume, o seu peso simulado de coisa real, era uma faca. Após o acto, Jack o Estripador esquece-se da arma no local do crime, e esta entrega-o. Caricatura que assina o quadro, pelo lado da anedota: aquele quadro, tinha-o eu esventrado e, com o que arrancara às suas entranhas, continuava a esventrá-lo. * Postas de parte as atracções específicas que caracterizaram cada período do meu trabalho, sempre uma imagem deu origem a outras imagens, e sempre o «Articular o vazio pelo vazio, estruturá-lo enquanto vazio, retirando-lhe a estranha irregularidade que sempre desde o início o especifica como vazio: é assim que os sinais de espaço — pontuação, acento, escansão, ritmo (configuração) —, preliminares de toda a escrita, fazem o jogo da diferença e entram no jogo. Não que sirvam para traduzir esse vazio ou para o tornar visível, à maneira de uma notação musical: pelo contrário, longe de reterem o escrito ao nível dos vestígios por este deixados ou das formas que concretiza, o que lhes é próprio é indicarem nele o rasgão, a rotura incisiva (a traça invisível de um traço) pela qual o dentro regressa eternamente ao fora, ao mesmo tempo que nele se aponta ao poder de dar sentido e, como sua origem, a distância que sempre dele o distancia» (Maurice Blanchot, L’Entretien infini). 1
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meu quadro se fez — ou se desfez! — de sucessivos encaixes ou desencaixes. E muitas vezes se faz à medida que as imagens se desfazem. Dotado de pouca vontade, deixo-me fazer pelo quadro, e sofro frequentemente as exigências das pequenas coisas insidiosas que procuram impor-se a todo o custo. Deixar fazer, trabalho invisível. Mas a obra, por natureza, dá ao visível o que lhe pertence. Na fruição desse visível, o pôr a nu, tornado utilização, torna-se, também ele, obra. Obra que vive da tensão entre o que é conhecido e o que acaba de ser realizado e lhe escapa. * Nos anos 60 a forma começou a desfazer-se e, a pouco e pouco, a figuração dissolveu-se. Restava de pé o arabesco sincopado que cria o sistema de irrigação da superfície e lhe serve de estrutura, soldando na mesma rede barroca as linhas de força do quadro e o esqueleto das figuras. A tensão das curvas que inscrevem os volumes (no estado de destroços) alimenta-se a cada passo de conjunções e de roturas. O ritmo permanece sempre marcado, a escrita fragmentada. É ainda possível fazer, em diferido, a leitura do espectáculo, sem hiatos no espaço e no tempo da acção. Mas, nos anos 70, as formas despedaçadas já não se recompõem, pelo menos no quadro estrito de uma visão instantânea. Eu já não fazia explodir (a partir de dentro?) as minhas formas, para depois apanhar os restos e recompor mais ou menos a imagem inicial. Todo um trabalho em lentidão, para um olhar fetichizado, ia substituir o registo do espectáculo dinâmico. No plano vertical da tela, o vazio afirma-se como o campo da memória, onde se depõem algumas recordações e onde invento outras. A tela torna-se um écran de onde emergem pormenores mais ou menos exactos, sinais do rosto, emblemas do corpo, ao lado de geometrias ambíguas, farsas mecânicas. O quadro já não é a batalha, e menos ainda a sua representação: é antes a sua panóplia. A caligrafia mais ou menos gestual desaparece: os entrelaçados, até aí abundantes, tornam-se raros, e vemo-los apenas reaparecer no jogo dos contornos cuidadosamente preparados. Pisar o Mesmo Caminho
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* Como se me tivesse esforçado por agarrar sem escolha prévia os vestígios de uma imagem sobre outros sinais; como se tivesse esboçado, sobre os acidentes da tela, ao acaso do que o olhar apreende, ora uma semelhança tão perfeita quanto possível, ora uma afinidade provável com sinais particulares, mas que nunca se definiriam na sua totalidade. O corpo, o aspecto, a forma de aparecer, de parecer, de parecer ser: tão particularizados como as feições do rosto — essa tradicional identidade do imediato. À maneira do passageiro que encontra no ruído neutro do comboio as cadências de uma canção conhecida, remendamos o que se propõe como recordação, apoiamo-nos em coincidências que só existem como projectos ou nas feridas do corpo, de coração aberto. A memória regista um certo olhar mais depressa do que a forma dos olhos; antes da precisão dos contornos impõe-se o aspecto do corpo, o arco da cintura, o movimento das sobrancelhas, o que passa no ar quando alguém se deita, se senta, recomeça a andar. E, paralelamente, há manhas que surgem. Algumas pequenas personagens (serão personagens?) chegam de repente: entre um bico de seio e de sexo, caricaturam, à sua maneira de não terem pés nem cabeça, outros comportamentos, novos olvidos. Em pequenos lugares, no canto de uma mesa, na esquina de duas paredes, na fenda das cortinas, entre um objecto e outro, vêm colar-se emblemas. Em vez de se entregar na sua integridade, a imagem chega aos pedaços. «Cheios» e «vazios», estes compõem, num espaço delimitado, o encadeamento tranquilizador que (por vício?) exigimos seja respeitado por coisas, cidades, seres, acontecimentos. É a história de escrever a história… inevitavelmente depois dos acontecimentos. Mas propomo-nos ordená-la segundo uma linha contínua. Por muito flexível que seja, a linha que passaja o tempo, num golpe de varinha mágica, dá efectivamente sinal de partida para a mutação do que se vive em vivido, anuncia sobranceiramente o fim do acontecimento, essa carcaça que é o nosso pão quotidiano. É a esse balcão de padeiro que vamos comprar seja o que for para enganar a fome. 36
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Cioso da minha tela quase centímetro por centímetro, sempre tive dificuldade em separar-me dela, isto é, em aceitar o fim da minha sessão de trabalho. Procuro a fenda onde mergulhe e permaneça, lambendo ou raspando — adiando sorrateiramente a partida para novas plagas. A imagem fixa assinala a ausência do tempo, mais do que a sua paragem. «A imagem fixa não tem repouso» (Blanchot). Repouso que é alegre simulação da morte, tranquila beleza. * Um quadro nunca está acabado. É impossível acabá-lo (Motherwell). À falta de uma convenção exacta, o fim do quadro, na medida em que este é concebido como um processo aberto, depende da cortina imaginária que virá pôr termo à acção do pintor. Uma fractura, um acontecimento qualquer ou o simples esgotamento limitam muitas vezes o tempo de produção do quadro, talvez à maneira do enquadramento desleixado de uma fotografia de amador, o que acrescenta ainda mais arbitrariedade à arbitrariedade do quadro. A razão penetrante de Duchamp encontrou a bela fórmula «definitivamente inacabado» para o passaporte da Mariée.
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Alguma for tuna crĂtica sobre Da Cegueira dos Pintores, de JĂşlio Pomar
Júlio Pomar: «A pintura é táctil, convida a mão» Bernardo Pinto de Almeida A edição recente do livro Discours sur la cécité du peintre, de Júlio Pomar (Éditions de la Différence), que anuncia já um álbum de desenhos do artista, Catch, serviria de motivo (se motivo tivesse de arranjar-se) para a entrevista que a seguir se publica em que, sobretudo, se não fala do livro. Esse falará por si, e bem, com algum sarcasmo, numa inteligente reflexão sobre o que a pintura possa ser — não só a própria mas, de modo geral, a própria pintura —, não enquanto História mas como modo de produção de imagens não vistas, através da reflexão lúcida sobre obras de artistas como Cézanne, Matisse, Bacon e muitos outros. Reflexão que toca (e não retoca, como o dirá Pomar) a questão essencial de Heiddeger na Origem da Obra de Arte (aliás citada), e que reconduz a uma vasta meditação de que manifestações assaz contemporâneas parecem querer voluntariamente alhear-se (veja-se a recente polémica entre Lyotard — Flash Art de Fevereiro / Bonito Oliva — Catálogo da Nova Bienal de Paris). Livro de saborosa leitura — de que se aguarda necessária tradução portuguesa —, em que há lugar para a intervenção de uma rede de saberes que, da poesia à psicanálise (Lacan sobretudo, mais presente do que uma ou outra citação poderia deixar supor), contribuem para uma mais ampla clarificação. Abundantes ilustrações — a que falta, hélas, a desejável qualidade de reprodução — completam a obra que se cita, a título de convite uma breve passagem: «A pintura é táctil, convida a mão. Que o quadro se referencie a imagens conhecidas, a um visto anterior, que a profundidade seja simulada ou dada através de alusões, a matéria do pintado impõe-se como realidade primeira. Por ilusionista que seja a representação, o corpo do representado não será visto senão depois da pele da superfície. Espessura ou transparência do óleo, matizado do fresco, consistência da parede (do mural) ou grão da tela, essa fina realidade basta para pôr a nu a ambiguidade das núpcias do olho e da mão» (p. 33). […] Almeida, Bernardo Pinto, «Júlio Pomar: “A pintura é táctil, convida a mão”», in Jornal de Letras, 20 de Agosto, 1985, p. 17
Alguma Fortuna Crítica
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Pintura, ouro e pólvora segundo Júlio Pomar Eduardo Prado Coelho Júlio Pomar escreve muitas vezes como pinta quando descreve a sua experiência diária de pintor, interroga a sua concepção de pintura ou fala da fotografia e da literatura DA CEGUEIRA DOS PINTORES
Júlio Pomar 1. Sabemos que o pintor pinta sobre a tela, até porque esta começa por assumir a função de suporte. Mas Pomar explica que o quadro só começa a fazer-se (e nesta fórmula se vislumbra já a súbita indeterminação do sujeito) quando, diz-nos, «o que ponho sobre consegue estar dentro». Assinala-se aqui o ponto de inversão do processo. O que pode passar por duas fases. Primeiro, o desenho, traçando os contornos, as fronteiras, as redes produtoras de identidades. Depois, a cor. Como diria Walter Benjamin, primeiro, os sinais, as linhas gráficas, demarcando o fundo e a superfície, balizando espaços. E só em segundo lugar, acrescenta Benjamin, nesse texto admirável1, as manchas, sempre absolutas, energias soltas, massas em expansão. Mas este esquema é, afinal, inexacto. Ele reconstrói analiticamente o que na prática se processa doutro modo. Porque, como diz Benjamin, um quadro é sempre mancha, «pois a pintura é um médium, uma mancha tal, que não conhece nem fundo, nem linha gráfica». Júlio Pomar não afirma outra coisa. Mostra-nos como Matisse «liberta o diálogo entre desenho e pintura». E este diálogo é possível sempre que o pintor, deixando de pintar sobre a tela, «trabalha a partir de dentro, o desenho e a cor. Não enche de pintura os espaços delimitados por uma linha antecipadamente fixada: é a expansão das massas coloridas que vai fixar os seus limites. Melhor: a periferia das superfícies torna-se vibração, marca das tensões que condensam ou fazem estalar os objectos e as formas». Se o desenho ainda mantém uma razão de ser, é apenas para «colocar a acentuação gráfica» que escapa às atribuições da cor. Esta viragem é fundamental, porque é a partir dela, no movimento interminável que ela imprime, que se vão esbatendo, ou mesmo abolindo, as dicotomias prévias: deixa de haver um sobre e um dentro, porque tudo aquilo que se pinta sobre a tela é impulsionado pelas «pulsões das formas» que vão emergindo da própria tela; deixa de haver um suporte e uma pintura, porque «a pintura faz corpo com a superfície» e é assim que nasce a dinâmica de um quadro; mas, mais importante do que isto, deixa de haver um sujeito e um objecto, porque no momento em que a cena se desregula e «torna-se 1 O texto de Walter Benjamin intitula-se «Pintura e Artes Gráficas. Sobre a pintura ou sinal e mancha», e aparece traduzido em português no número 4 da revista Análise, acompanhado de um importante comentário de Maria Filomena Molder.
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ceia», o que importa é, na sequência desse «excesso já sem nome», a partilha do vinho e do pão, da carne e do sangue, em que pintor, formas, telas, palavras, títulos, traços, manchas, memórias ou desejos são apenas pedaços desgarrados de uma matéria em explosão. O ouvir-dizer da palavra 2. O que eu gostaria de insinuar é algo que todo o livro de Júlio Pomar dificilmente aceita – mas o próprio livro, enquanto explosão de escrita, desmente a tese que (às vezes) sustenta. Isto é, Pomar avança para o espaço da literatura com uma evidente suspeição. Posta em confronto com a matéria pictórica, a palavra é sempre um recurso pobre. Tem quando muito uma função negativa de abrir caminho e evitar embaraços, precisamente aquilo que no texto se designa como «a função da bengala do cego: protegendo a marcha do indivíduo, ajuda-o a afastar-se dos obstáculos em que poderia tropeçar». As palavras, na melhor das hipóteses, vêm depois para contar a história impossível do que foi o absoluto de uma presença. Como já não têm a brutalidade de facto, há sempre nelas algo que se aproxima da mundanidade impotente, da frivolidade tagarela. Daí que Pomar possa dizer em certos pontos do texto com uma quase impaciência: «Basta de palavras. Quando predomina, a matéria pictórica explode, expondo a sua brutalidade de facto. Poisando francamente sobre a tela nua, o gesto do pintor afirma-se no movimento que espalha a cor, na pasta amassada como massa, nas formas que se percorrem segundo uma disciplina cruel cujo rigor não suporta a frivolidade.» Tudo nesta frase respira saúde: a explosão, a força que envolve um predomínio, a brutalidade que se requinta até à crueldade, o poisar «francamente» sobre uma tela que se diz «nua», o gesto que se afirma interminavelmente no movimento. E Pomar vai mais longe quando, nas linhas derradeiras do seu livro, confronta o ver do pintor (tema, aliás, complexo, que passa pelo engodo da vista, pelo visto e pelo imprevisto, pela etapa da cegueira, até à descoberta do que está ali, «não a sintaxe das coisas que nascem e morrem, mas a sintaxe das coisas que estão ali») com o «ver» do desenhar, que já se aproxima de uma narratividade literária, na medida em que é «fazer ressaltar da memória o que ali permanecera de uma experiência anterior», e sobretudo com o «ouvir-dizer da palavra». E aqui a desproporção é terrível: porque, com todos os seus embustes preliminares, o ver é sempre um acto de rigor e comprovação, enquanto o ouvir-dizer traz consigo a vaguidade e gosto de boataria que correm por esse fútil mundo fora. O que se intromete, ao que parece, neste dizer para (se) ouvir, ou neste ouvir para (se) dizer, é precisamente o vivido. Por isso, «o ver tem um tempo, é o presente. As palavras, essas, escravas do vivido, nascem sempre depois». E, por isso mesmo, «a abordagem do visto através da palavra é como a imaculada conceição: é preciso acreditar nela – o que nunca consegui». Alguma Fortuna Crítica
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Nestas circunstâncias, não espanta que Júlio Pomar adopte sempre um tom algo disfórico para falar do empreendimento que é este seu livro. Se o escreveu, se se abalançou a este «palavreado», foi, sem dúvida, por uma espécie de fraqueza, uma lassidão imperdoável para que se deixou arrastar movido por uma «metafísica de empréstimo» e uma «poesia endomingada». Quando muito, o projecto não lhe apareceria como falhado se o autor tivesse conseguido ater-se à mera descrição, numa brutalidade de termos que nos soam mais ou menos exuberantes ou exóticos, «da experiência diária do pintor». Isso dá-nos as magníficas páginas finais, sintomaticamente intituladas «Mil desculpas», e que aparecem, segundo nos diz nos moldes mais produtivistas, como «a prosa da minha fábrica». Aqui a positividade das palavras é espectacularmente contagiante: são os «papéis do Japão», «os mates», «os grumos», «o sulco da espátula», os «pincéis de pêlo de marta», as «cerdas de porco», os «esfregaços, velaturas, escorridos», o «abrasivo ou lixa» ou ainda «a borracha de Giacometti», para passarmos pela «plombagina, o carvão, o lápis gordo» até chegarmos a «uma sementeira à toa de pontos, de linhas, de manchas». Mas mesmo aqui Pomar desconfia de que até na pura descrição corremos o risco de ver «a matéria da palavra a seduzir o acto de escrever, assim como a memória que lhe serve de suporte», e que isso apenas acalenta a preguiça do olhar naqueles que já são de má vista. No entanto, o livro está ali a dizer o contrário. Não é que Júlio Pomar escreva bem (e que Pedro Tamen, o excelente tradutor, traduza bem). Nada disso. Se assim fosse, não sairíamos do puro decorativismo. O que sucede é o contrário. Qualquer leitor que seja sensível à dicção de um dizer apercebe-se de que Pomar escreve muitas vezes como pinta: isto é, deixa que se desregule, sintáctica ou semântica ou fonologicamente, a cena das palavras, e envolve-se num excesso sem nome a que por vezes se dá o nome de pintura e noutras o nome de literatura. Mas, de certo modo, sempre que a cena passa a ceia, podemos dizer que pintura ou literatura são apenas os nomes arbitrários com que se procede a uma partilha provisória de lugares e de poderes. 3. Tracemos então um balanço que até se poderá condensar numa só frase: o mais empolgante deste livro é, sem dúvida, o modo como Júlio Pomar pensa a pintura naquilo que ela tem de descritível e pensável, e sobretudo pensa o impensável da pintura através dessa forma inabitável de pensamento que é a literatura; o mais discutível é o modo como a valorização da pintura se faz muitas vezes à custa da desvalorização da fotografia, do cinema ou da própria literatura. A fotografia e o cinema 4. Os confrontos são, no entanto, sempre estimulantes, apesar de tendencialmente injustos. 124
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Júlio Pomar diz-nos, em relação à fotografia, que esta «antes de mais nada, relata um acontecimento, dá contas de um “visto”». Estatuto que a tornaria popular, ou popularizável, uma vez que o código de decifração está ao alcance de todas as bolsas. Por conseguinte, «não há fotografia sem o acontecimento por ela registado. O acontecimento é rei: a ousadia do fotógrafo não faz mais do que veicular essa soberania». E uma tal soberania torna-se fatídica, na medida em que imprime «a recordação do visto no gelo de uma imagem redutora, e até mortífera, o que nada tem que ver com o órgão sintetizador que o olhar é». Por conseguinte, o confronto é fácil de efectuar, e opera em prejuízo da fotografia: «A fotografia entrega a coisa vista, ou encontrada ali, a pintura entrega-se enquanto coisa.» Verifica-se assim que Pomar reduz a fotografia a uma imagem que reproduz um acontecimento, que veicula mecanicamente um visto, na medida em que nos entrega algo de semelhante a ele. Escapa-lhe, portanto, tudo aquilo que constitui a magia da fotografia e lhe restitui a aura da presença única: o facto de a fotografia ter estado em contacto com o irrepetível do acontecimento e ser por isso mesmo a perduração ilimitada desse acontecer. Não há código que a domestique porque o real tem sempre uma vibração que resiste a todas as codificações. A fotografia não entrega o acontecimento como um dócil carteiro nos entrega uma carta, porque a fotografia entrega-se-nos como o inverosímil e improvável acontecer de um acontecimento que não cessa de acontecer. A fotografia não veicula uma semelhança, veicula um contacto, e isso garante a perdurabilidade da presença nessa relíquia que toda a imagem fotográfica é. Em relação ao cinema, a rejeição (e crítica) de Júlio Pomar é ainda mais contundente. Para ele o écran do cinema é o «lugar por excelência do tudo para ver, como do nada para ver. Lugar por excelência da não-opção, da escolha condicionada, onde a imagem se vinga da sua sujeição ancestral à palavra. […] Impondo o seu caudal de imagens, o écran de cinema vai ao encontro da nossa preguiça, isto é, da nossa recusa de ver, porque a exercitação do ver (como todos os exercícios) impõe um esforço. O cinema satisfaz o nosso desejo absoluto e recalcado de não actuar». O que não se deixa pensar Poderá haver alguma verdade nisto, mas todas as artes têm um nível de acesso que favorece a passividade. O que importa é descobrir como esta aparente passividade é, não a fraqueza, mas a força do próprio cinema. Ninguém melhor do que Gilles Deleuze, em L’Image-Temps, nos explica este processo. De facto, as concepções primitivas do cinema viam nele um automovimento da imagem que suscita do lado do espectador uma atitude de autómato espiritual: o choque das imagens atinge directamente o sistema nervoso e cerebral de cada indivíduo, e desencadeia nele uma forma de pensamento que não passa pela subjectividade. É por isso mesmo que o cinema surge como Alguma Fortuna Crítica
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uma arte de massas. É também por isto mesmo que o cinema pode surgir (e é essa a perspectiva que se insinua em Júlio Pomar) como uma forma de adormecimento das massas, capaz de se articular com fenómenos de hipnose de grupo, manipulação de consciências, alienação do trabalho estético, propaganda do Estado, fascismo generalizado, máquina de guerra. É aqui que Deleuze, retomando, com admirável sagacidade, certas formulações de Artaud, procura mostrar que esta passividade do pensamento que o cinema induz é aquilo que precisamente permite ao cinema aproximar-se do cinema enquanto funcionamento do próprio pensamento. Porque não há pensamento capaz de pensar que não tenha atravessado o impoder de pensar que existe no cerne do pensamento. O surrealismo, através da escrita automática e do relato de sonhos, tenta apreender o pensamento no interior desse automatismo de pensar, mas Artaud considera que esta solução é ainda demasiado fácil. É preciso ir mais longe nesse confronto do pensamento com a impossibilidade de pensar. Como escreve Gilles Deleuze, «a imagem cinematográfica, desde o momento em que assume a sua aberração de movimento, opera uma suspensão do mundo, ou afecta o visível de uma perturbação, que, longe de tornar o pensamento visível, se dirige pelo contrário ao que se não deixa pensar no pensamento, como ao que se não deixa ver na visão»2. Por isso o cinema só tem como equivalentes, não a participação imaginária ou o sonho, mas o negro ou a insónia. Fenomenologia do processo pictórico 5. Afinal, Júlio Pomar não diz outra coisa em relação à sua concepção de pintura: basta que onde Deleuze fala do «negro» ou de «insónia» a gente leia «cegueira» no sentido que este livro promove desde o próprio título: Da Cegueira dos Pintores. Na deslumbrante fenomenologia do processo pictórico que Pomar nos dá, convocam-se múltiplos temas de incidências subtis e ramificadas: temos a recusa dos códigos e das máquinas redutoras, a valorização do fragmentário e da pintura como «máquina de des-coser», temos a noção de verdadeiro e de real (que Pomar retoma com colorações heideggerianas e lacanianas que desembocam na noção do Aberto do Mundo), temos a concepção do quadro como definitivamente inacabado (nos termos genialmente certeiros de Duchamp), temos a metáfora do teatro como instrumento do falso para atingir o verdadeiro, temos a noção de estrutura associada à ordem que (se) desordena, temos a essência do visível condensada na ideia do a-aparecer, temos a ideia de beleza como «o máximo de relações possível», tal como temos o sentido do volume em Cézanne, o sentido da profundidade em Matisse, o sentido do tempo em Duchamp ou o valor dos espaços circulares e das formas tubulares em Bacon. E teríamos ainda algumas figuras mágicas regularmente mobilizadas no texto como a do tigre ou a do ovo («o quadro fecha-se sobre si mesmo como um ovo»). 126
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Mas retomemos um pouco este «ovo» inesperado para concentrarmos melhor os temas mais provocatórios deste livro. De certo modo, se nele se fala de cegueira, é porque o quadro não tem objecto. Por outras palavras, o que se vê no quadro é algo que está lá apenas para nos levar ao engano. A maçã de Cézanne não é uma maçã vista por Cézanne e re-vista por nós. Quanto ao cachimbo de Magritte, também já estamos informados: «ceci n’est pas une pipe». Então o que é? É um ceci. Ou, como diria Pomar, é um ali. É um a-parecer que nos corta a respiração e nos tolhe a palavra. É um irromper da verdade: «Chamo verdadeiro a tudo o que revela, introduz, instala os poderes do real.» Portanto, «a pintura, arte do verdadeiro, é a arte do a parecer, sendo o quadro – o que fica do acto de pintar – o objecto a parecer». Neste plano, e para além de todas as reservas formuladas em relação às igrejas psicanalíticas, Pomar é estritamente lacaniano: «a relação do olhar com aquilo que se quer ver é uma relação de logro. O sujeito apresenta-se como um outro que ele não é e o que lhe é dado para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olhar pode funcionar como objecto a, isto é, ao nível da falta»3. Em Pomar, o tema é modulado de diversos modos em torno sobretudo da noção de engodo ou isca. É-nos dito que «o representado, se existe, se apresenta como engodo do visto, como duplo, como escrínio do que é mostrado». E a formulação é mesmo generalizada: «persisto em ver nos factos que compõem anedotas e narrativas apenas o isco da tragédia, tal como se considera o objecto desejado o isco do desejo». Por isso, «ver, para o pintor, é já desregrar o que é suposto ser visto». O desejo do pintor é um desejo de perturbação e desregramento – nada mais. Manter a cicatriz viva. Evitar a sutura em que a realidade se volta para a acomodação de si mesma. E fazer passar em contrabando os inacessíveis objectos de um desejo inobjectivável: esses valores não declarados que são «veneno e mel, ouro e pólvora». É este o enigma dos espelhos que o texto celebra: repetindo o real, cada espelho armadilha-o até à vertigem; insinuando a queda ou o grito, confronta-o com a infinita mudez das superfícies4. Coelho, Eduardo Prado, «Pintura, ouro e pólvora segundo Júlio Pomar», in Expresso, supl. «Actual», 6 de Setembro, 1986, pp. 32-33
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Gilles Deleuze, Cinéma 2: L’Image-Temps, Minuit, Paris, 1985, p. 219.
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Da cegueira dos pintores Osvaldo de Sousa Um pintor que se dirige ao público, não para lhe apresentar as suas obras, mas para lhe revelar algumas das suas ideias sobre a arte de pintar, expõe-se a numerosos perigos. Matisse
Mais um livro da colecção «Arte e Artistas», em que o pintor Júlio Pomar se apresenta no «comércio das palavras: recorro a ele aqui para desbravar a selva do ver, para me aproximar do lado perturbador e perturbado da visão; para desempenhar, portanto, a função da bengala do cego: protegendo a marcha do indivíduo, ajudo-o a afastar-se dos obstáculos em que poderia tropeçar». Não é fácil o autor falar da sua própria pintura, mesmo olhando-a «com olhos frios», como um «intruso», já que, segundo o pintor-escritor, «a pintura começa onde já não se pode falar dela, onde as palavras fracassam e vogam à deriva». Este livro não é a resposta à pergunta nunca feita («E que pensa você de si mesmo?») mas uma deambulação, ou preferencialmente «uma ruminação no vazio», que é a decomposição das imagens pela palavra. A palavra é a sedução do desejo, o desejo dos objectos pictóricos, o «ser» ou «dizer», é um quadro «atravessado por chegadas sucessivas de notações e de acontecimentos», é o assunto encontrado «ao acaso dos dias», é um «jogo» entre as imagens presas ao «não-lugar» pictural, o universo pintura que o artista tenta construir, e o quotidiano em que se recortam as imagens. Partindo da sua obra, a «imagem deu origem a outras imagens» em «sucessivos encaixes ou desencaixes», até atingir as raízes da arte contemporânea. Passando por Bacon, para dissecar Matisse e Cézanne, o pintor-escritor escapa do vazio da palavra-discurso, para analisar «o diálogo entre o que o pintor quer e o que o pintor faz». Neste itinerário literário, o artista expôs-se a numerosos perigos, mas, tal como um «herói da ficção», escapou ao perigo da autocontemplação, ou ao deserto da análise-vazio-estético. E tudo termina bem quando reconhece «a paixão do pintor: quotidiana partida do mundo (partida no sentido de pregar partidas?). Rito solitário, festa mistério, calvário, droga, bebedeira. Merda para os pintores aplicados (eu incluído)». Sousa, Osvaldo de, «Da cegueira dos pintores», in Diário de Notícias, supl. «Cultura», Lisboa, 16 de Novembro, 1986, p. VIII
3 Jacques Lacan, Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Seuil, Paris, 1973, p. 96. 4 Cf. Umberto Eco, Sugli Specchi e Altri Saggi, Bompiani, Milão, 1985.
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Agradecimentos Alexandra Prado Coelho, Alexandre Pomar, Ana Barata, Antonia Gaeta, Arlete Brito (Galeria 111), Bernardo Pinto de Almeida, Biblioteca Municipal do Porto, Biblioteca Nacional, Catarina Rosendo, Diário de Notícias, Filipe Pacheco, Fundação Júlio Pomar, Hemeroteca Municipal de Lisboa, Impresa, Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira, Osvaldo Macedo de Sousa, Pedro Tamen, Sophie Hederlin
ÍNDICE
Introdução, Sara Antónia Matos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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DA CEGUEIRA DOS PINTORES
Os meus tigres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pisar o mesmo caminho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Teatros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A imagem e o quadro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do campo do visto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O celibatário, ele mesmo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O voyeur-visto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mil desculpas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
15 27 39 53 67 87 97 111
Alguma fortuna crítica sobre Da Cegueira dos Pintores, de Júlio Pomar . Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Índice
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© Edição: Atelier-Museu Júlio Pomar / Sistema Solar, CRL (Documenta) Colecção: Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar Texto: Júlio Pomar Tradução: Pedro Tamen Apresentação: Sara Antónia Matos Organização: Pedro Faro Transcrição de textos: Graça Rodrigues, Isabel Marques, Beatriz Brito (estagiária) Design Gráfico: Manuel Rosa Revisão: São José Sousa e Helena Roldão Imagem da capa: Júlio Pomar, 1979 © Vítor Pomar / Arquivo Fundação Júlio Pomar 1.ª Edição: Abril de 2014 ISBN 978-989-8566-43-0
Depósito legal: 371884/14 Este livro foi impresso na Gráfica Maiadouro, SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686 – Vermoim 4471-909 Maia
P_Pomar_Temas e variações_3ºvol.qxp:arte 29/09/14 12:22 Page 4