Sousa Dias, O riso de Mozart, Música pintura cinema literatura - excerto

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Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, O Que ˇ izˇek, é Poesia?, Grandeza de Marx — por uma política do impossível e Z Marx & Beckett — e a democracia por vir.

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música, significação e sentido, o problema da expressão: inexpressionismo da música — o falso dilema figurativo/abstracto, abstracção/realidade, na arte — pintura, o visível e o invisível, o enigma da visibilidade — das maçãs cézannianas aos ready-made — o efeito-Duchamp e a anomia «pós-moderna» — violência psicomecânica, violência figurativa e violência estética da imagem cinematográfica: os poderes do cinema — a especificidade do cinema e a banalidade audiovisual — a literatura, a arte do romance, e a sua vocação analítica da existencialidade humana — pensamento, crítica e criação na época da cultura massmediática — vitalismo de toda a arte: fender o cérebro, fender os muros do impossível.

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© SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA), 2016 RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © SOUSA DIAS, 2016 © CAPA: ANTÓNIO GONÇALVES, PARA TODOS OS EFEITOS… (2015) 1.ª EDIÇÃO, JANEIRO 2016 ISBN 978-989-8834-05-8


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à memória de José Augusto Seabra


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A UTOPIA ÍNTIMA DA ARTE

Há uma utopia fundamental constituinte da arte, do fenómeno artístico. Uma utopia íntima, interior, consubstancial a esse fenómeno, e irredutível às variáveis representações da arte, da sua função e da sua destinação por cada época, por cada artista e por cada corrente estética. Trata-se de uma utopia espiritual instauradora, tão arcaica quanto moderna, as duas coisas ao mesmo tempo, e que é como que a arqui-razão da vontade de arte prévia a todas as razões e que faz comunicar todas as épocas da arte, da arte pré-histórica à contemporânea, na mesma insistente identidade dessa vontade e do sentido último, «supra-humano», da criação artística. Dessa utopia cada obra de arte, na sua vitalidade irredutível à historicidade, no seu sobrevoo das idades da história, é tanto uma objectivação como uma cintilação propriamente trans-histórica e o apelo à sua efectuação. Obscuro apelo desdobrado em todas as obras, apelo uníssono dessas «vozes do silêncio» (Malraux) a uma humanidade à sua medida, à medida da arte, utopia pois de um devir espiritual do homem como superior potência ou poder-ser do humano e apelo a esse devir, a essa potência. A medida da arte nunca foi em nenhuma época o seu tempo histórico, nem nenhuma determinação temporal, e muito menos a humanidade existente, profundamente separada do seu poder-ser, alienada do sentido da espiritualidade (drama do pintor «Andrei Rubliov» no filme de Tarkovski). Não há com efeito obra de arte que não exprima, desde os priO riso de Mozar t

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mórdios, desde as pinturas e gravuras rupestres, um desígnio de atemporalidade, uma resistência ao tempo. Mas também nunca houve criação artística, nos seus vários domínios, para a qual essa resistência não significasse em primeira instância uma reacção de cada criação ao seu próprio tempo histórico, uma ostensiva inactualidade, uma contraposição espiritual até quando se tratava de glorificar o espírito do tempo — que não fosse, em suma, a expressão de um «ainda não» como o tempo visado por essa criação. Uma relação necessariamente negativa, nesse sentido, da criação artística com o seu tempo e um nexo constitutivo com um tempo por vir. Mas não com um tempo histórico determinado e previsível, não com um Porvir anunciável ou sequer provável na sua vinda, mas ao invés com um Devir como movimento do humano, processo puro, exigência infinita da obra de arte. Isto é. Se a criação artística se faz em cada época a contratempo da época, se «a contratempo» é o tempo próprio da criação, não é só contra a sua época que a obra se insurge mas, mais profundamente, contra qualquer época em que as forças do espírito, as forças do homem para lá do homem, não possam infinitamente medir-se, libertas da alienante determinância social da vida material, com as forças da arte. Tal é a utopia trans-histórica da arte, a sua constitutiva exigência, a de uma comunidade humana espiritual, quer dizer, da humanidade como comunidade de homens livres. Toda uma destinação essencial, espectral, da arte, não ao mundo humano existente mas a uma outra humanidade capaz de acolhê-la e de lhe corresponder, à eventualidade de uma mutação espiritual geral exigida como seu correlato pela criação. À eventualidade, em suma, de uma superior possibilidade de vida, de uma infinita autotranscendência humana comum, de um devir supra-humano do homem. É dessa possibilidade e desse devir que cada

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obra de arte é objectivamente a intimação ou, antes, ela é já por si mesma esse devir e essa possibilidade realizada, a precursão dessa comunidade. Nunca a arte se dirigiu ao que somos, mas ao que ainda não somos, nunca ao homem existente mas a um homem que não existe ainda, ou que só existe, só preexiste à sua vinda, na arte, na criação. Faz-se arte para o futuro, para uma comunidade que falta, e como petição dessa comunidade: toda a criação se quer colectivamente apropriada, é feita para um destinatário colectivo, para uma colectividade inexistente a suscitar. Não há arte, não há criação estética, sem esse sentimento de uma falta, de uma ausência, e da necessidade de uma comunidade em potência de vinda como única justificação da arte. E nunca esse sentimento terá sido tão forte, nunca esse imperativo utópico tão necessário, como na nossa época dita do fim das utopias, ou em que as únicas cínicas «utopias» com que nos acenam são a democracia, a Europa ou a cidadania electrónica global. Porque nunca como nesta época se assistiu, ao contrário do que tantas vezes se diz, a tão despudorada homogeneização dos modos de existência, a tamanha compressão das condições de criação (cf. último texto deste livro) e das possibilidades de vida, a uma tão eficaz impossibilitação de uma ruptura revolucionária da vida humana com as suas obstruções e impasses. Criação significa repossibilitação, toda a criação é criação de possibilidades, relançamento dos possíveis, e a sua realização. Mas, precisamente, como criação que é, esses possíveis não preexistiam a essa realização, não existiam já idealmente como puras possibilidades. Pelo contrário: eram rigorosamente impossíveis, e sem essa criação jamais seriam, sequer, concebíveis. A obra de arte cria, ao mesmo tempo que a sua realidade, a sua própria possibilidade, e não há arte, não há critério da arte, fora dessa criação, dessa deslimitação, dessa extensão do horiO riso de Mozar t

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zonte do possível. A arte (como também, por outros meios, a filosofia, a criação conceptual) é de cada vez o afrontamento de uma impossibilidade e a realização do que, sem ela, teria permanecido não só irrealizado como impossível. De cada vez, e em cada domínio artístico, ela é a abertura, na ordem do sensível, de um inédito campo de sensações, de um campo não empírico de experiência, e assim o afastamento das fronteiras da sensibilidade, da emotividade e também da inteligência, o afastamento das fronteiras do humano. É neste sentido que a arte é impensável sem a não-arte, sem o apelo a um exterior que, todavia, lhe é interior, criado por ela, por ela possibilitado, impensável pois sem a sua intrínseca articulação com forças não artísticas que a efectivem, com forças de auto-superação humana ou com um devir revolucionário dos homens. É nesse sentido, em síntese, que a invenção estética por si mesma corporiza uma constitutiva dimensão utópica, a utopia de um povo que a aproprie, de uma comunidade por vir talvez impossível. Objectar-se-á que essa utopia é específica da arte moderna, ou que ela é a utopia da arte moderna, exclusiva. E de facto. É nesta época da arte que essa orientação da criação se faz ouvir, se torna manifesta ou, melhor, se torna o arqui-manifesto da modernidade estética, da pintura e da arquitectura à música, da literatura ao cinema. Espécie de ressonância transversal, de fundo unívoco de todos os manifestos modernistas, ela eleva-se como um verdadeiro grito (Klee: «falta o povo!») mesmo por sobre a nebulosa algazarra da desutopia dita «pós-moderna». No entanto, se tal utopia de uma comunidade revolucionária (humanamente revolucionária) como virtual destinatária da arte define a forma de autoconsciência da arte moderna, não nos parece ilegítimo recuperá-la objectivamente, aquém das consciências artísticas de si epocais e como origem não consciencial obs-

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cura da própria vontade de arte, para toda a história da arte. Mais: é o próprio apelo explícito da arte moderna a um povo em falta que inspira uma releitura retrospectiva como sempre já um tal apelo silente de toda a arte do passado. Mesmo da arte clássica onde a ideia de povo está ausente. Mesmo da arte romântica que introduziu essa ideia mas para vinculá-la à de raiz, de enraizamento, de nacionalidade, de identidade nacionalitária (e não à de devir revolucionário). E até da arte antiga e da arte pré-histórica. É deste ponto de vista também, e não só do da parte de «eternidade» das obras irredutível à sua parte de historicidade, que nos parece lícito afirmar que todas as grandes obras de arte de todas as épocas são contemporâneas entre si, num tempo não cronológico em que moderno e antigo se co-respondem. O pintor Pomar acerca das imagens paleolíticas de Altamira e de Lascaux: «ali, houve e há qualquer coisa que ultrapassa a nossa temporalidade, uma espécie de inscrição de um arquétipo que está para além das épocas e que, por isso, torna a coisa sempre actual»1. A utopia espiritual da arte, essa objectiva solicitação de uma comunidade por vir, indica tanto uma contemporaneidade a nós da criação artística antiga e mesmo arcaica quanto uma intrínseca arqueologia da criação artística moderna. «Os historiadores da arte e da literatura sabem que há entre o arcaico e o moderno um encontro secreto, não só porque as formas mais arcaicas parecem exercer sobre o presente um fascínio especial como sobretudo porque a chave do moderno Júlio Pomar, O Artista fala…, Documenta, Lisboa, 2015, p. 44. Cf. Georges Bataille, O Nascimento da arte, 1955, tr. port. Sistema Solar, Lisboa, p. 16: «o “homem de Lascaux” criou do nada este mundo de arte onde a comunicação dos espíritos começa» (Bataille explicita a dimensão trans-histórica desta comunicação e a contemporaneidade dos espíritos na arte através dos milénios: «da nossa parte nada justificaria o sentimento de sermos maiores» do que os artistas de Lascaux). 1

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está escondida no imemorial e no pré-histórico»2. É que, como se disse, nunca a grande arte se fez sobretudo para o seu tempo. Até quando se concebeu como celebração do presente, ou em intenção de destinatários coetâneos, foi sempre para se erguer como um monumento desse seu tempo, ou seja, como um testemunho de qualquer coisa a salvaguardar, a conservar, a arrancar ao esquecimento e à morte, a arrancar à corrente do tempo, pela sua fixação na obra. Desde as origens não há arte, não há criação artística, sem esse carácter de monumento, sem essa vontade de monumentalizar. Pelo que, insistimos, não foi só na época moderna que a arte estabeleceu uma relação prioritária com um tempo trans-histórico, se produziu na expectativa de uma preservação, de um acolhimento do que nela se enviava, ou confiava, ao porvir, ou apelou pois, de modo objectivo, a uma humanidade espiritual receptiva. Não foi só com a modernidade que ela assim pretendeu a essa absoluta «inactualidade» em acepção nietzschiana, que se constituiu por essa temporalidade estruturalmente intempestiva ou acrónica, por essa sua dimensão extemporânea ou contratemporânea, diríamos, quase transcendental. Esse apelo a uma comunidade que ainda não existe pode ser o desígnio expresso da arte moderna, mas é também a secreta petição, mesmo que não consciente por parte dos criadores, da criação artística de todos os tempos. É a arte por si mesma, e não os artistas, que clama por um povo capaz de a acolher. É a arte, enquanto expressão de uma vida mais do que pessoal ou humana, de uma vida absoluta imanente, da vida como vitalidade criativa anónima da matéria ou da natureza, e não os artistas como elementos «mediúnicos» dessa vida que os atravessa e os excede. A utopia íntima da arte não é um apelo dos criadores 2

Giorgio Agamben, Nudités, 2009, tr. fr. Rivages, Paris, p. 34.

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sem ser, mais profundamente, um apelo da própria criação como imanência a si de uma vida que «se quer a si mesma» (Nietzsche). Seria preciso levar a teoria da arte, para lá da simples análise estética, até ao seu encontro com uma teoria da vida como criatividade natural imanente, liberta da sua estrita determinação biológica, lá onde cada uma delas, vida e arte, pudesse aparecer como um ponto de vista privilegiado para a outra. Seria com efeito preciso atingir uma concepção vitalista da arte, reintegrar a vontade de arte, toda a criação artística, na corrente de vida imanente, e como seu prolongamento, como sua afirmação «humana». A arte, criação de possibilidades, de mundos possíveis. Mas é a vida que é, por essência, essa criação, esse combate às impossibilidades, essa expansão do possível que prossegue na arte ou que, através dos homens, dos artistas, ela prossegue também pelos meios da arte. É uma tarefa necessária da filosofia, talvez a sua tarefa hoje mais imperativa, pensar a vida como vitalidade «não orgânica» dos seres (segundo um conceito de Gilles Deleuze inspirado nas teses estéticas de Worringer), como movimento imanente auto-afirmativo e autodiferenciante, pura compulsão natural evolutiva ou de superação de limiares irredutível à sua organização em formas orgânicas e às subjectividades constituídas, à vida biológica e à vida psíquica. Não é a vida que se define como atributo dos organismos e dos sujeitos e da faculdade destes de a reproduzir, ou pela propriedade de através deles se auto-reproduzir, porque a vida não é essencialmente reprodução mas criação, e porque são os sujeitos e os organismos que se dizem, como formas já transcendentes, dessa vida imanente da qual são tanto expressões como limites e que os atravessa abrindo através deles novas linhas de fuga para si mesma, novas linhas de vida, novas auto-ultrapassagens. A arte é criaO riso de Mozar t

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ção de vida, criar é criar vida, mas é a vida como criatividade imanente universal que, pela arte, abre a si mesma formas de expressão mais afirmativas, a hipótese de um devir-afirmativo dos homens, a hipótese-homem propriamente dita: a arte como apelo a um devir supra-humano do homem, a uma comunidade de homens livres. Não é o homem que faz a arte. É a arte que faz o homem, que produz a superior sensibilidade ou contemplatividade sem a qual não há homem, sem a qual o homem, como humanidade espiritual liberta, não terá passado de uma hipótese errante, jamais realizada. Escreveu Deleuze algures que não é o cérebro inteligente que está no homem, mas o homem que está no cérebro inteligente, como uma possibilidade nele inscrita. É o homem, na sua própria possibilidade, que é função do cérebro inteligente, não o inverso. Mas é a arte que, com a ciência e a filosofia, com o pensamento, desenvolve esse cérebro e aí esculpe esse possível, aí cinzela sucessivos traços de espiritualidade, fendas de liberdade, a hipótese de uma realidade humana como afirmatividade da vida, das forças supra-humanas reprimidas pela humanidade subsistente. É neste sentido que a arte é revolucionária, objectivamente revolucionária, ou que ela tem necessariamente a ver com um povo ou uma comunidade a constituir, e não com um público constituído. A arte não é comunicação. Comunicar é comunicar com um público como entidade dada, actual, preexistente. Ao passo que a arte convoca um povo que não está aí, que está em falta, e que há que fazer existir pela arte. A grande arte descomunica em relação aos públicos que já existem, tanto quanto se dirige a uma comunidade por vir ou, para utilizar neste contexto termos de Agamben, a «uma comunidade que vem». A arte antecipa por si mesma a revolução, é a revolução prefigurada, anunciada, exigida. Como dizia Adorno, é por não

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haver progresso no mundo que a arte progride, tem de progredir, de prosseguir: à espera do progresso do mundo, e como sua precursão. A grande arte é por natureza anti-mercado, uma resistência ao mercado, ao domínio do mercado. Há um comércio das artes, mas não há arte comercial: o artista criador não produz para o mercado, o seu trabalho não é produção de mercadorias (mesmo que tenha de passar depois pelos circuitos mercantis do capital), mas, pelo contrário, criação de um excedente, de um excesso de ser como produto de um trabalho liberto. É por esse seu estatuto de livre acção criadora, de trabalho autónomo instituinte — ontologicamente instituinte —, que a arte de si solicita uma libertação colectiva, ou que ela é a antecipação de uma comunidade ou de uma forma social do ser-com humano em processo de auto-apropriação do seu poder de instituição ontológica. Como diz Negri, a arte é «multidão em acto», a obra de arte é uma singularidade mas que quer ser fruída por todos, é um singular-comum. Assim pois, se a arte é desde já a efectivação da vida humana como actividade livre, ou se a revolução como única oportunidade do homem só pode ser a utopia de um destino de libertação, então a arte é tanto a voz sempre renovada dessa utopia como já a sua realização, já a reconstrução do mundo como comunidade de homens livres. «Nesta radical operação, a arte antecipa-se ao movimento global do humano. É um poder constituinte, uma potência ontologicamente constitutiva. Através da arte o poder colectivo da libertação humana prefigura o seu destino. E é difícil imaginar o comunismo à margem da acção prefiguradora desta vanguarda de massas que é a multitudo dos produtores de beleza»3. 3

Antonio Negri, Arte y multitudo, 1990, tr. esp. Trotta, Madrid, p. 62.

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No final do filme «Amadeus» (Milos Forman, 1984), concluída a confissão de Salieri que constitui o todo do filme, ouve-se por uma última vez a insolente gargalhada de Mozart. Mas somos nós, os espectadores, que a ouvimos, somos nós e os nossos ouvidos que a percepcionamos, e não as personagens presentes nessa derradeira imagem do filme. Somos nós que no tempo histórico ulterior que é o nosso intersectamos a intemporalidade ou supra-historicidade que é a dessa gargalhada apoteótica. As personagens «medíocres» da imagem, como aí as qualifica e se qualifica Salieri, já não são contemporâneas desse riso ou, antes, esse riso aparece agora fantasmaticamente na sua gloriosa extemporaneidade, pairando sobre elas e inaudível por elas, pairando sobre a própria imagem, como se estivesse já num outro plano ou tivesse passado para uma outra dimensão extra-imagem, para um outro tempo que não o tempo diegético da imagem. E precisamente, essa gargalhada que tantas vezes ao longo do filme vimos Mozart soltar como um signo da infantilidade e até da vulgaridade pessoal do compositor já não vem, nesta sua última ocorrência, a bem dizer do interior da imagem, do campo visual ou sequer de uma contiguidade não enquadrada do campo dessa imagem posterior à confissão de Salieri e por conseguinte à «presença» de Mozart. Com efeito Mozart já morreu há mais de trinta anos quando o filme começa, o presente do filme é o da loucura de Salieri — «perdoa-me, Mozart, fui eu que te

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matei, perdoa o teu assassino» — e da subsequente confissão. Se vemos Mozart durante todo o filme é por causa dos sucessivos flashes-back em que se traduz a confissão de Salieri. Todas as imagens de Mozart em «Amadeus» estão no passado ou, o que vem a dar no mesmo, no presente da evocação salieriana desse passado. Mas a gargalhada final, ao contrário das outras gargalhadas do compositor recorrentes no filme, não vem nem do passado evocado nem do presente da imagem em que a ouvimos, não vem de dentro da imagem mas de fora, de um fora não enquadrável: vem de algures, som off espectral, riso puro descarnado, já sem corpo por condição, tanto mais insolente. Riso etéreo que já não é do mundo visto no filme ou até «deste» mundo, que já não é do seu tempo porque já não é propriamente de tempo nenhum, riso do génio criador que excedeu a sua originária historicidade, riso intempestivo que vem já do futuro, ou da eternidade. Alegria pura, puramente espiritual, afecto já não pessoal do espírito criador, afecto eterno de toda a criação: é esse — e não uma narrativa tanto quanto possível verista da vida de Mozart — o genuíno objecto do filme e já da peça teatral de Peter Shaffer que ele adaptou. Recordemos então o filme. Nome intermédio de Wolfgang Mozart, Amadeus significa, etimologicamente, o amado por Deus. E de facto poucos homens terão sido tão divinamente queridos, tão milagrosamente inspirados, e, a crer na lenda, tão sem motivo: indisciplinado, boémio, venal, uma espécie de criança crescida que, por virtude de um ininteligível dom dos céus, ou da natureza, compunha a mais sublime música. Rigoroso na reconstituição da época, o filme de Forman dá-se porém o direito de preferir a lenda à realidade, ou de encenar de forma realista a lenda. O Mozart e o Salieri do filme, assim como as suas insinceras relações pessoais e artísticas aí mostradas, O riso de Mozar t

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nunca existiram. Só que a reconstituição realista das personagens, ao invés da da época, não faria aqui nenhum sentido, pois seria contraditória com o desígnio do filme. Porque o que o move não é Mozart, a «verdade» sobre Mozart, mas o génio, o mistério do fenómeno da genialidade. Daí a notável opção de Forman: tudo dar a ver do ponto de vista de Salieri, o compositor da corte imperial de Viena nessa época, homem de grande talento, incansável trabalhador, com uma vida completamente sacrificada à glorificação de Deus pela música e com isso à obstinada perseguição da imortalidade pela arte. E que no filme se confronta, para sua frustração e desespero e por fim inútil vingança, com Mozart, quer dizer, com o «instrumento de Deus» como ele diz e através deste, por último, com o próprio Deus que lhe nega a ele, apesar do seu sacrifício, o que sem mérito concede ao Seu obsceno, lascivo e frívolo eleito. Como diz ainda Salieri no filme, a música mozartiana, pela sua espontânea sublimidade, só pode ser a «voz de Deus» e por sua vez a gargalhada insolente de Mozart não é senão o júbilo ventríloquo de Deus, é o riso de Deus que ri dos não-eleitos que se Lhe sacrificam e em particular do próprio Salieri. Porque o génio não é o talento mas um atributo incomensurável, não nasce do trabalho e do sacrifício embora possa talhar-se neles, é um indecifrável enigma, um acontecimento absolutamente inexplicável, impossível e todavia efectivo, puro «milagre». Um sopro ou inspiração sem justificação humana, um dom, uma dádiva divina. Se existe, Deus é injusto: escarnece os que O amam e para outros, sem razão, reserva a Sua graça. A referida opção perspectívica do filme, a visão do génio do ponto de vista do mero talento, essa narração subjectiva, torna muito mais sensível do que o faria uma narrativa impessoal objectiva essa «injustiça», essa incomensurabilidade ou abismo, essa

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«imoral» grandeza do génio e a sua inexplicabilidade. Não é outro o tema do filme, os insondáveis caminhos da criação, a imoralidade ou amoralidade desses caminhos, a criação como a única moral do génio criador, para lá de bem e mal. Como afirmava o poeta Eugénio de Andrade do pintor Giorgio Morandi que era intratável e quase só saía de casa para frequentar bordéis, «se ele precisava disso para depois pintar como Vermeer ou Chardin, abençoadas sejam todas as putas do céu e da terra». É isso o que mostra «Amadeus», essa insolência ética da criação, essa «virtude que prodiga» (Nietzsche) sem medida moral, e é isso o que no filme nos diz, na sua mesma desmesura, a gargalhada de Mozart. De Aristóteles a Descartes, de Pascal a Kant, de Hegel a Schopenhauer, para citar apenas estes nomes, não faltam na história da filosofia teorias sobre o riso. Mas o riso, nessa tradição, é sempre de uma maneira geral o riso cómico, o riso provocado pelo cómico, em suma, o riso do risível e do ridículo. Bergson foi sem dúvida o autor da mais importante e sistemática tematização filosófica desse fenómeno especificamente humano (só o homem ri e só ele é risível, só rimos dos animais por analogia comportamental com os homens). Também ele, no entanto, focou essa tematização exclusivamente no cómico ou, como ele diz, nos «processos de fabricação» do cómico nos seus variados géneros, nos comportamentos, nas situações, nas palavras, etc. Pelo que não se pode criticá-lo por não ter em conta outros tipos de riso exteriores ao seu objecto de análise, dos mais baixos ou como expressão patológica (o riso dos loucos, o riso histérico, etc.) ao riso mozartiano do filme de Forman, ou seja, como expressão da «grande Saúde» de que falava Nietzsche. Por outro lado poucas filosofias permitem como o bergsonismo teorizar esse riso de Mozart, esse gáudio nem patológico O riso de Mozar t

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nem explicável pelo cómico, por abrir a possibilidade de conceber, para lá do âmbito meramente antropológico do riso, uma significação propriamente ontológica dessa forma superior de alegria, uma sua correlação objectiva com as forças da vida e da criação, uma sua expressividade como signo da auto-afirmação dessas forças. O que se trata de aqui observar em termos sumários é esse sentido ontológico, extra-humano, do tipo de afecto humano exemplificado pelo riso de Mozart, essa face metafísica da pura Alegria, o júbilo do espírito como afecto do ser. Uma referência, ainda que demasiado breve, à tese bergsoniana sobre o riso facilitará pois, por contraste, essa observação. Para Bergson há riso, comicidade, seja em que género for, sempre que há intromissão de um automatismo na vida, insinuação de um autómato no vivo, intrusão do mecânico no vital. O riso, na famosa fórmula do filósofo, é «du mécanique plaqué sur du vivant»1. O cómico, o risível, é sempre nesta perspectiva o corpo comportando-se mecanicamente (tropeção nas escadas, ziguezagues do bêbedo…), a pessoa reduzida a coisa, a alma traída pelo corpo (por exemplo o lapsus linguae). É sempre, nas palavras do próprio Bergson, o «automatismo instalado na vida», «a inflexão da vida na direcção do mecânico». Essa placagem do vital pelo mecânico é forçosamente involuntária e por vezes até inconsciente: ninguém é voluntariamente ridículo e ninguém é ridículo para si mesmo. É cómico, portanto, tudo aquilo que aparece como uma «distracção» da vida2, cómica é a deformação da vida pela mecânica da matéria, é a vida a imitar, distraída de si, a rigidez dos comportamentos da matéria (o lapsus linguae como distracção da linguaHenri Bergson, Le Rire, 1900, P.U.F., Paris, pp. 29, 38, 44 (pp. 405, 410, 414 da Ed. do Centenário das Oeuvres de H.B. num único volume). 2 ibidem p. 66 (Oeuvres p. 428). 1

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gem, tropeção nas palavras). Em suma, o cómico decorre da interferência de um mecanismo na vida, nas formas exteriores da vida humana, na fenomenalidade empírica desta (acções e reacções, gestos, palavras, etc.). O cómico é a mecanização da vida, é a vida, vista de fora, procedendo como um mecanismo. «O cómico é esse lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, esse aspecto dos acontecimentos humanos que imita (…) o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, o movimento sem a vida»3. A teoria bergsoniana do riso permite talvez como nenhuma outra, até pela sua relacionação do cómico com a vida, explicar o riso sem motivação cómica de Mozart. O riso cómico surge sempre segundo essa teoria, e como acabamos de ver, como reacção ao acto mecânico, ao acto vital falhado, à distracção ou desatenção prática da vida. Não como riso do próprio sujeito do acto, mas como o de um observador ou o de observadores desse acto (comportamento, palavra, situação…). O cómico é-o sempre para o outro, é-o sempre do ponto de vista do outro e não do do involuntário sujeito cómico, este só se ri do seu acto, só se ri de si, na medida em que num segundo momento se coloque real ou mentalmente na posição do outro, como observador do seu próprio acto ou de um acto idêntico. O riso cómico vem pois em qualquer caso de fora, procede de uma causa exterior, ri de um espectáculo ou, melhor dizendo, dá-se como reacção fisiológica a um lance em falso da vida observado ou imaginado (por exemplo a situação descrita por uma anedota). Tendo em conta a natureza sempre involuntária do riso, e involuntária tanto para quem cai no risível como também para quem ri, poderia afirmar-se que, já 3

ibidem.

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nesse riso, já no cómico, não são os sujeitos mas através deles a vida que ri, mas essa vida ridente é, aí, uma vida que ri dos seus próprios lapsos, das suas súbitas distracções, dos seus tropeções na matéria, seja esta a matéria propriamente dita ou, por exemplo, a matéria da linguagem: o cómico é neste sentido uma auto-irrisão da vida e, na concepção de Bergson, com função social «correctiva». O contrário, em absoluto, do riso de Mozart. Com efeito esse riso, não só na espectralidade da sua última aparição no filme de Forman como nas anteriores ocorrências que são como que a expressão ainda personificada dessa gargalhada espectral final, não decorre da percepção de algo cómico. Ou, se decorre, já não se explica apenas, no seu excesso, pela comicidade do percepcionado. Essa insolente gargalhada ou, na perspectiva de Salieri, esse escárnio «de Deus» por meio do Seu humano instrumento já não indicia tanto uma queda do vital no mecânico como, pelo contrário, uma exuberância, uma plenitude, um sucesso de uma vida mais do que pessoal. O riso de Mozart não significa já uma coacção da vida pela matéria mas, ao invés, a libertação da vida de uma coacção, de uma limitação, de uma impossibilidade que neste caso não é propriamente material mas espiritual. A pura alegria mozartiana: não o signo de um bloqueio da vida e da sua autonomia, das suas auto-regulações correntes, por um automatismo (matéria), mas de um seu desbloqueio criativo, da sua transposição de um novo limiar «ontológico», de uma sua elevação extra-matéria (espírito). O signo, em suma, de uma vida ascendente triunfante, auto-afirmativa, da superação vital de um impossível e, como tal, da criação pela vida de novas possibilidades para si mesma. O riso de Mozart, esse riso excessivo, inexplicável pelas suas causas cómicas imediatas, e que parece vir menos do corpo do que da

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alma, é deveras em certo sentido um riso ventríloquo, como Salieri à sua maneira o intui. É o sintoma humano de uma vida não humana do homem, de uma vida não biológica do corpo e de uma vida não psicológica do espírito, de uma vida como ímpeto, poder ou «vontade» não humanos. Esse riso é expressão dessa vida a vencer os seus limites quer materiais quer espirituais, a afirmar-se de forma criativa contra a sua placagem por esses limites, a impor-se como força metamórfica infinita contra as suas cristalizações e impossibilidades. É a vida que ri no riso de Mozart, é ela o «sujeito» desse magnífico riso, e que ri não da sua auto-negação por imitação da matéria mas da sua auto-afirmação por criação do espírito. O além-imagem de onde sobrevém de modo fantasmal esse riso no fim de «Amadeus» não é o além-túmulo, não é o não-lugar da morte pessoal de Mozart, mas antes o fora-de-campo absoluto da vida supra-histórica da sua criação musical genial, o tempo não cronológico, a forma de imortalidade ou de eternidade, dessa criação espiritual. O riso de Mozart é a Alegria pura, mesmo quando não pessoalmente extrovertida, de todos os excepcionais criadores em todos os domínios, a sua sensação de transcendência da vida biopsíquica pessoal numa vida não pessoal do espírito que não morre com a morte do criador. A espectralidade desse riso na sua derradeira aparição não é metáfora, o cinema não se faz com metáforas, é a imagem sonora exacta, absolutamente literal, dessa vida do espírito que se eleva dos corpos, que se desprende da finitude dos sujeitos, e fica.

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ÍNDICE

A utopia íntima da arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O riso de Mozart . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A sublime frivolidade da música. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O que é o abstracto em arte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Da génese da arte moderna à condição contemporânea da arte . Ozu e a essência do cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A violência da imagem cinema e pensamento . . . . . . . . . . . . . . A literatura e o princípio de razão insuficiente . . . . . . . . . . . . Três fórmulas de Proust sobre o estilo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Glenn Gould pianista, não: pensador apresentação da filosofia de Carlos Couto S.C. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Crítica e arte: a função da crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Índice

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Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, O Que ˇ izˇek, é Poesia?, Grandeza de Marx — por uma política do impossível e Z Marx & Beckett — e a democracia por vir.

LINHAS DE FUGA 9

O RISO DE MOZART

música, significação e sentido, o problema da expressão: inexpressionismo da música — o falso dilema figurativo/abstracto, abstracção/realidade, na arte — pintura, o visível e o invisível, o enigma da visibilidade — das maçãs cézannianas aos ready-made — o efeito-Duchamp e a anomia «pós-moderna» — violência psicomecânica, violência figurativa e violência estética da imagem cinematográfica: os poderes do cinema — a especificidade do cinema e a banalidade audiovisual — a literatura, a arte do romance, e a sua vocação analítica da existencialidade humana — pensamento, crítica e criação na época da cultura massmediática — vitalismo de toda a arte: fender o cérebro, fender os muros do impossível.

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