Sousa Dias, Zizek Marx Beckett e a democracia por vir - excerto

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Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, Questão de estilo (colectânea de textos de teoria da literatura e da arte), O Que é Poesia? e Grandeza de Marx — por uma política do impossível.

ZˇIZˇEK, MARX & BECKETT

«Democracia» designa hoje na linguagem política um significante vazio, tão mais consensual quanto mais vazio, quanto mais inquestionado no seu conceito ou na sua substância, espécie de religião laica universal. O problema filosófico-político deste tempo não é a crítica do capitalismo, sobre a qual toda a gente está mais ou menos de acordo. É a crítica da democracia que nos vendem, a única a que nos dizem termos direito, como regime de poder inseparável da realidade capitalista dominante e modo ideal, e também o mais cínico, de legitimação sociopolítica dessa realidade. Uma crítica ciente de que a solução para os cada vez mais dramáticos problemas da humanidade suscitados pelo capitalismo global, para o presente estado pré-apocalíptico do mundo, não passa por esta democracia.

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Sousa Dias ZˇIZˇEK, MARX & BECKETT

Sousa Dias Zˇ IZˇEK, MARX & BECKETT e a democracia por vir

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LINHAS DE FUGA 5

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© SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © SOUSA DIAS, 2014 NA CAPA: ANTÓNIO GONÇALVES, DE QUE FORMA… (PORMENOR), 2013 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO DE 2014 ISBN 978-989-8566-73-7

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DEPÓSITO LEGAL 000000/14 IMPRESSÃO E ACABAMENTO EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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SUMÁRIO

Porquê Karl Marx ainda? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Zˇizˇ ek, Marx & Beckett . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A democracia por vir, com Jean-Luc Nancy . . . . . . . .

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Marx, capitalismo e impossibilidade . . . . . . . . . . . . .

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PORQUÊ KARL MARX AINDA?

Grandeza de Marx foi escrito em estado de urgência. Há muito tempo que desejava escrever este livro, que ele existia e insistia como projecto, como uma necessidade subjectiva absoluta, como, mais que todos, o «meu» livro. Escrever sobre Marx, destacar-lhe a actualidade, a apropriabilidade crítica dos seus conceitos e sobretudo do seu espírito práxico imperativo, aparecia-me como uma tarefa irrenunciável, uma reacção cada vez mais urgente contra o pensamento desta época, contra a «evidência» ou o «axioma» de um Marx ultrapassado, morto, julgado sem apelação possível pelo tribunal da história, fundador em Ideia dos Estados socialistas totalitários. Evidência que me surgia do lado da teoria como o cúmulo da irresponsabilidade filosófica e, para lá disso, como o signo mais do que nenhum expressivo do marasmo político e ideológico da época. Outros mais capazes — Derrida, Badiou, ˇizˇek… — iam entretanto levando a cabo, de formas várias, a mesma Z necessária tarefa. Mas em caso nenhum, a meu ver, suprindo a falta de uma tematização filosófico-política sistemática e não oblíqua da questão-Marx, de um ataque directo ao coração da coisa. Era essa decerto, imagino, a ideia de Deleuze para o anunciado último livro que não chegou a fazer e cujo título «herdei» por homenagem. A partir de 2008 a necessidade subjectiva do projecto confluiu com uma necessidade objectiva, suscitada pela primeira crise do capiPorquê Karl Mar x ainda?

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talismo imperial global, crise impossível segundo o evangelho neoliberal dos ideólogos do admirável novo mundo sem Cortinas nem Muros. Uma crise cujas réplicas sísmicas prosseguem — por exemplo, a crise em curso da zona euro, a situação de pré-falência de vários Estados dessa zona e o perigo de contágio dessa situação e de arrastamento crítico de outras zonas geoeconómicas — e que deixou clara, nas respostas políticas a essa crise, a conspiração maquinada pelo neoliberalismo, quer dizer, o modelo social regressivo em processo de implementação nas nossas sociedades pós-industriais. Ora tudo isso trouxe de novo o nome de Marx para a ribalta e fez do «retorno» de, ou a, Marx um tema mediático. No entanto a questão-Marx não é essa, não é a de um retorno a contratempo de um fantasma político hamletiano (ser ou não ser actual). Essa questão, nos termos da sua objectiva reiteração por esta crise e por este processo de neoliberalização, é pelo contrário uma questão que nos questiona a nós, que nos confronta com a presença de Marx ainda entre nós ou, melhor, com a nossa condição de seus contemporâneos ainda. Tanto mais que, de certo modo, estamos de volta ao século XIX, o século de Marx. De volta ao capitalismo mais selvagem, à sobreexploração de todas as formas de trabalho, à proletarização generalizada das populações, à mais cínica exasperação das desigualdades, à derrelicção de direitos. Com uma diferença decisiva. No século de Marx as expectativas iluministas de progresso, as grandes narrativas ideológicas optimistas sobre o futuro material e moral da humanidade decorrente do formidável desenvolvimento tecno-económico promovido pelo Capital, a crença sociopolítica nas virtudes civilizáveis do capitalismo e mesmo num capitalismo civilizado por vir, até as utopias anticapitalistas de toda a espécie, tudo isso tinha razão de ser justamente

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enquanto expectativas, tudo isso parecia prometido pelo dinamismo estrutural auto-revolucionário do novo «modo de produção». Ao passo que no nosso século tudo isso parece ter entretanto perdido sentido e surge-nos agora como ideologias caducas, ilusões cujo prazo de validade histórica prescreveu, e cuja perda deu lugar a um «realismo» conformista universal: já não acreditamos em nada, já não esperamos nada, perdemos toda a crença no futuro, no mundo, nos homens. Perdemos a crença em nós, no poder da nossa percepção colectiva do intolerável, no poder práxico do comum. Este real em que vivemos despojados de crenças, a sua apresentação finistórica, anti-histórica, como a única possibilidade que resta ou como apesar de tudo a preferível às possibilidades alternativas conhecidas, por conseguinte a identidade entre a realidade realmente existente e a realidade ideal possível, tornou-se pois a nossa única crença: o possibilismo, o realismo do possível, como «pós-ideologia». O capitalismo, de relação social histórica e como tal contingente, tornou-se assim hoje uma relação naturalizada, toda uma filosofia teleológica da história, toda uma «ontologia», todo o nosso pensamento social. E de facto, como o afirma ˇizˇek, hoje todos somos, nem que por resignação mais do que Slavoj Z por convicção, fukuyamistas: o capitalismo como o fim da história, Real sem Outro, identidade absoluta do Real e do Possível. Mesmo a esquerda política, a «nova esquerda», auto-convertida em consciência crítica do sistema, nada mais exigindo do que um capitalismo melhor, um devir «ético» do capitalismo, e elidindo na militância pelas causas culturais alegadamente fracturantes (direitos das minorias, casamentos homossexuais, questões ecológicas, etc.) a desistência da grande causa social revolucionária (a luta das classes). Citando ainda ˇizˇek: com esta esquerda quem precisa de direita? Z Porquê Karl Mar x ainda?

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A verdade é que a nossa presente consciência pós-ideológica é paradoxalmente a forma suprema de consciência ideologizada, mistificada, «alienada». É a reprodução por nós de uma ideologia de um novo tipo, já não como expectativa ou promessa, mas, ao invés, como não-expectativa, como impossibilidade de toda a espera, da vinda de um Outro (de uma outra realidade). Trata-se de uma ideologia que pode pois denunciar todas as ideologias sem excepção como falsas promessas, como «ilusões», uma ideologia vazia, forma pura, tanto mais eficiente quanto mais autoapresentada como não-ideologia, como consciência pós-ideológica do Real capitalista como o Real possível, sem alternativa «exterior», ou única alternativa a si mesmo. O neocapitalismo não nos pede outra coisa, não nos pede mais do que essa forma de consciência, essa nossa «desiludida» conformidade ao possível (ou seja, ao Real objectivamente dado), para levar a cabo com sucesso as suas estratégias internacionais de expropriação. Mas a situação pode estar em vias de mudar. Uma nova consciência também internacional, internacionalista, do poder do comum pode estar em vias de se constituir por reacção a essas estratégias e às suas consequências, à guerra social não declarada em curso. Estamos talvez no limiar de um novo estádio também globalizado da subjectivação revolucionária, da luta de classes. Assistimos presentemente em Portugal e em toda a Europa à instalação política de um novo modelo social (proletarização geral das populações, exacerbação das desigualdades, fim do Estado social) por ordem do poder financeiro. É uma guerra neocapitalista contra os povos, sem solução no interior das instituições políticas (democracias formais) existentes que pelo contrário a legitimam, e à qual os povos só podem responder com explosões de revolta que tendem a alastrar.

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Os administradores políticos desta guerra social estão bem cientes da maquinação em que participam e da contra-violência que ela pode provocar. «O que assusta o poder em Portugal e o poder na União Europeia é que as populações reajam de forma violenta à construção em curso de um novo modelo social imposto pelo poder financeiro. E que essa revolta expluda nas ruas, como aconteceu já na Grécia e em Inglaterra. O que o poder tem medo é de uma reacção violenta e descontrolada à guerra social e económica que o próprio poder abriu contra as populações europeias para baixar o nível de riqueza que é redistribuída pelo Estado na Europa. Uma guerra que tem como objectivo a concentração da riqueza na elite, nos donos do poder económico e na aristocracia empresarial e política que os serve»1. Essa guerra em curso é a prova da incorrigibilidade ética do capitalismo, do seu carácter associal ineducável, do capital como o único valor absoluto para o próprio capital. Mais ainda. A presente guerra neocapitalista contra os povos da Europa é a evidência de que, como o afirma o Comité Invisível francês, o capitalismo entrou definitivamente na época da sua derrota, do fim de todas as ilusões sociais (aquilo a que ele próprio chama o fim das ideologias), e da gestão infinita dessa sua derrota que é também o infinito diferimento do seu próprio fim. É a própria violência desta guerra anti-povos em curso que legitima o direito dos povos à violência, o seu direito ético-político a exigir o «impossível». Como se escreveu a propósito dos motins de Inglaterra em 2011, «entre o poder neoliberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão a semear o caos, a violência e o 1

São José Almeida, «Mitos salazaristas», Público, 20.08.2011.

Porquê Karl Mar x ainda?

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medo, e os semeadores dirão amanhã, genuinamente ofendidos, que o que semearam nada tem a ver com o caos, a violência e o medo instalados nas ruas das nossas cidades. Os desordeiros estão no poder e poderão em breve ser imitados por aqueles que não têm poder para os pôr na ordem»2. Exigir o impossível. Expressão contraditória? A ciência e a tecnologia — para não invocar também a arte — confrontam-nos a cada passo com o impossível, com exemplos de realização do impossível. Todos temos a percepção de que, em termos quer tecnológicos quer científicos, o impossível não existe, ou de que a impossibilidade de ontem é a realidade de hoje. Todavia recusamos bizarramente essa perspectiva em termos sociais, lá onde tudo depende apenas de nós, do nosso poder colectivo, da nossa vontade objectivada sem mediações expropriadoras como vontade comum, quer dizer, como soberania do demos, Democracia por vir (cf., adiante, texto com este título). Talvez um dia superemos essa distância que nos separa de nós, do nosso poder comum, da nossa força instituinte, e possibilitemos essa Democracia. Só nesse dia é que Marx o intempestivo deixará de ser nosso contemporâneo.

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Boaventura Sousa Santos, «Os limites da ordem», Público, 14.08.2011.

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ZˇIZˇEK, MARX & BECKETT

Raros pensadores contemporâneos têm insistido tanto como ˇZizˇek na actualidade de Marx. Actualidade essa que, sublinha Z ˇizˇek, não é a do Marx teórico sem ser, também, a do Marx político, ou seja, da Ideia de comunismo. O que, tendo em conta a experiência histórica, não pode deixar de parecer, ainda que sob o simulacro de tese filosófica séria, um arcaísmo ideológico e um anacronismo político. Ou, nos ˇizˇek, «um caso exemplar de narcisismo da causa termos do próprio Z perdida». De facto, e como todos sabemos, a insistência hoje na Ideia comunista faz-se contra toda a expectativa, a contracorrente do pensamento dominante e mais ainda, afirmar-se-á, do pensamento razoável, nesta idade pretensamente finistórica do capitalismo global. Idade, dizem-nos, por excelência pós-revolucionária, idade da perda de sentido da crença revolucionária no fim do capitalismo, idade imperial do capitalismo visto, na sua fórmula liberal-democrática, como sendo ele o fim, «fim da história», melhor sociedade possível, e horizonte pois da evidência da morte de Marx, da sua ultrapassagem teórica e política. Só que é precisamente esta evidência, esta percepção mesmo, esta forma ˇizˇek mais hoje praticamente consensual de autoconsciência social, que Z do que ninguém denuncia como uma poderosa mistificação, como a moderna forma, particularmente eficaz, de alienação. Este generalizado espírito fukuyamista, como diz o filósofo esloveno, constitui a grande Zˇ izˇ ek, Mar x & Beckett

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impostura ideológica do nosso tempo, e tanto mais ideológica quanto se apresenta, enquanto consciência «reconciliada» com o real e o possível, como não ideológica ou, mais exactamente, como pós-ideológica. Com efeito, é como reacção a este espírito «realista» e possibilista da época, a esta nova ideologia branca (não assumida como ideologia), que se determina a tematização pelo filósofo da actualidade de Marx e da Ideia comunista. Tematização essa que representa uma das vertentes fundamentais do pensamento ˇzizˇekiano, sem dúvida uma das filosofias maiores deste tempo. Trata-se, por um lado, e para resumir, de fazer a análise crítica desmistificadora do «núcleo utópico» dessa ideologia capitalista assim como dos seus múltiplos avatares de esquerda (multiculturalismo, ecologismo, etc.). Ou seja, de analisar no seu modo de reprodução polimorfo o processo ideológico predominante de naturalização do capitalismo liberal-democrático como a utopia possível, sem alternativa preferível, sistema infinitamente perfectível por solução gradual dos seus próprios problemas e antagonismos, identidade pragmática final do ideal e do real. Por outro lado, e correlativamente, trata-se de mostrar a necessidade absoluta, a urgência, de uma consˇizˇek, ciência neomarxista (e paradoxalmente, como veremos, para Z neo-hegeliana), como expressão anti-sistema da exponenciação em curso no capitalismo global desses antagonismos e problemas, alguns dos quais, por exemplo a desigualdade económica, insusceptíveis de reprodução infinita, irresolúveis no interior do sistema e da sua forma de democracia porquanto não meramente acidentais mas estruturais. Por outras palavras, trata-se de contrapor à política mesmo esquerdista do possível uma política revolucionária do impossível como a nossa única possibilidade face ao desastre, ou a única hipótese de contrariar, nestes «tempos do fim» como lhes chama o filósofo, o apocalipse que vem.

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Ao Marx defunto, trespassado, ultrapassado do pensamento doˇizˇek com um Marx não só inultrapassado como, minante responde Z num certo sentido essencial, inultrapassável. Não fomos nós que com a experiência dos comunismos históricos e através dela com as famosas «lições da história» ultrapassámos Marx. Marx é que, pelo contrário, nos ultrapassa ainda a nós, nos ultrapassou sempre já, e, inactual ou intempestivo na acepção nietzschiana, nos espera no porvir. Ou seja. Não somos nós que, obnubilados pelo sucesso do liberalismo económico e pelo fracasso dos comunismos históricos, podemos interpelar a actualidade da Ideia comunista. É essa Ideia marxiana, espectro de uma exigência socioética irrevogável e não fantasma extemporâneo de um espírito morto, que nos interpela a nós, que interpela o nosso presente, o nosso impasse teórico e prático. Com efeito, a verdadeira questão acerca de Marx e do comunismo, tal como a formula ˇizˇek, não é a questão «oportunista» habitual, e oportunista porque Z acomodada à época, porque questão que pela sua tópica pôs já fora de questão, pressupõe como inquestionável ou axiomática, a evidência da morte do comunismo e de Marx. Ou seja, o nosso problema com Marx e o comunismo não é o de saber se há ainda algo de útil, de utilizável por exemplo como modelo de análise, na Ideia comunista, subentendendo que essa utilidade, a existir, é tudo o que resta de uma Ideia ou ideologia impraticável em si mesma, objecto de arqueologia política. É antes o problema exactamente inverso de determinar como é que se perspectiva o nosso marasmo actual do ponto de vista dessa Ideia, ou segundo que forma de reapresentação da Ideia comunista viver a nossa contemporaneidade1. Significa isto, por um lado, ˇ izˇek, Après la tragédie, la farce!, 2009, tr. fr. Flammarion, Paris, p. 15, e À tra1 Slavoj Z vers le réel, Lignes, Paris, 2010, pp. 91, 144.

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que é a nossa presente situação, ela própria, que torna ineximível a sombra de Marx entre nós, a sua copresença espectral, a sua actualidade teórico-política. Com efeito não há análise sociopolítica crítica do presente sem Marx e muito menos contra Marx, contra o espírito imperativo da sua Ideia. A história do capitalismo desde o século XIX de Marx não prova a caducidade da Ideia comunista como alternativa, pelo contrário, prova a caducidade das «promessas» do próprio capitalismo, a impossibilidade de esperar dele uma «vontade» de superação ou pelo menos de atenuação das desigualdades, e o comunismo, a auto-apropriação socioeconómica do comum, como a única alternativa. O fim dos Estados ditos comunistas não representou o triunfo universal do capitalismo como capitalismo neoliberal, mas, ao invés, e pela exasperação das desigualdades, das exclusões e das violências, a sua entrada num estádio pré-apocalíptico de mera gestão infinita da sua ˇizˇek, o capitalismo está presentemente própria derrota. Como diz Z como nos desenhos animados de Tom & Jerry, quando o gato chega ao precipício e continua a andar sobre o vazio, ignorando o facto de não ter nada sob os pés. E só começa a cair quando olha para baixo e percebe que não há nada. O capitalismo está a mover-se em roda livre sobre o vazio, e a prolongar indefinidamente com a sua agitação essa suspensão. Por outro lado, falar de forma contemporânea de reapresenˇizˇek partilha com Badiou, signitação da Ideia comunista, tema que Z fica também que o marxismo ˇzizˇekiano não é o marxismo clássico. E com efeito afirmar a actualidade da Ideia comunista não equivale a afirmar a actualidade do marxismo na sua versão clássica, longe disso. A actualidade do comunismo é a actualidade da Ideia igualitário-emancipadora de Marx e da sua «eterna», imprescritível, imperatividade, mas não a da sua posição ou forma de apresentação no próprio

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Marx. A reafirmação contemporânea da Ideia comunista, tendo em conta o presente estado de coisas, só pode ser crítico-ideológica antes de poder tornar-se, de modo consequente, prático-política, daí a XI ˇizˇek, inversa da de Marx, segundo a qual a actual tarefa filoTese de Z sófica não consiste em transformar o mundo mas em reinterpretá-lo. ˇizˇek, passa pelo recoMas essa reafirmação da Ideia, destaca também Z nhecimento da tradicional apresentação marxista da Ideia como um obstáculo a essa reafirmação. A fidelidade contemporânea à Ideia de comunismo passa pois por essa assumida infidelidade, pela consciência de que a posição marxista clássica da Ideia é insusceptível de reanimação. Os partidos comunistas tradicionais, marxistas-leninistas (mas veˇizˇek), como o PCP, o PKK remos que há também um leninismo de Z grego, etc., e todos os nostálgicos do «socialismo realmente existente» (expressão ˇzizˇekiana), soviético ou chinês, estão mortos, e bem mortos, politicamente, ideologicamente, como de resto esse socialismo. São partidos zombies, partidos mortos-vivos, vivos que não sabem que esˇizˇek, que só ainda estão vivos tão mortos ou, nas palavras do próprio Z porque se esqueceram de morrer. O que significa afirmar que uma Ideia permanece actual ainda que desactualizada na sua formulação ou apresentação original? É uma questão válida para todas as grandes criações do pensamento, e desde logo para as da filosofia, e não apenas para a Ideia de Marx. No grande pensamento o Novo não se opõe ao Antigo, essa oposição só existe para o pensamento medíocre. O Antigo, se de grande pensamento se trata, excede desde sempre a sua própria «antiguidade», por uma parte de si excedeu já no seu tempo o próprio Tempo, revela diversamente em tempos sucessivos essa sua parte de «Eternidade». ˇizˇek invoca também, pelo seu lado, esta dialéctica, como lhe chama, Z Zˇ izˇ ek, Mar x & Beckett

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do Antigo e do Novo. E explica que só o que é Eterno no Antigo permite apreender o Novo, distinguir na actualidade, no tempo que é o nosso, o realmente Novo da falsa novidade. Não há apreensão do Novo, diz o filósofo, sem ser pela objectiva do Antigo, da parte de ˇizˇek, «eternidade» do Antigo. Ou ainda, e na linguagem hegeliana de Z uma sublime Ideia filosófica nunca é verdadeiramente abstracta, nunca uma universalidade abstracta, mas antes uma universalidade concreta, ou seja, uma Ideia susceptível de se reapresentar sob diferentes modos ou figuras em função de condições históricas diferentes, de se repetir diferentemente e de fazer dessa repetição a sua forma de universalidade. Repetição propriamente dialéctica, repetição «hegeliana» ˇizˇek, constituinte do segundo a paradoxal visão do hegelianismo por Z que se repete, da «eternidade» do que se repete. A Ideia não se repete por ser universal, ou «eterna», antes o contrário, é o seu poder de repetição inovadora que a faz aceder ao Eterno, à «verdadeira universalidade» (Hegel). A Ideia só é verdadeiramente universal na medida, portanto, em que é também singular, singularidade universal, quer dizer, a sua universalidade, em vez de dada nela à partida de forma abstracta hipostasiada, só se constitui, na sua própria dimensão universal, pela sua repetição singular, pela sua sucessiva reinvenção concreta em cada ˇizˇek, da Ideia comunista. «Se o época. Caso, tematizado por Badiou e Z comunismo é verdadeiramente uma Ideia “eterna”, então funciona como uma “universalidade concreta” hegeliana: é eterno não no sentido em que se trataria de uma série de características universais abstractas aplicáveis por toda a parte mas no sentido em que tem de ser reinventado em cada situação histórica nova»2. É ainda neste sentido 2

Slavoj Zˇizˇek, Après la tragédie, la farce!, p. 15.

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que o comunismo pode ser dito um «espectro», uma Ideia-espectro, ˇizˇek, não como Ideia utópica ou ilusão, trata-se anmas, atenção! diz Z tes de um espectro real, insistente, repetente, constituindo-se através dessa repetição, de fracasso em fracasso, até à sua realização3. Voltaremos a isto no fim do texto. Em vez de conceber a Ideia como ideal, há pois que pensar o real da Ideia. A Ideia comunista na sua formulação clássica é o comunismo-solução. É o comunismo como telos histórico necessário, é a concepção teleomessiânica do comunismo como necessidade ou tendência objectiva da história e como realização dessa tendência, dessa evolução dialéctica escatológica, portanto como a grande ruptura revolucionária inscrita no próprio desenvolvimento do capitalismo e das suas contraˇizˇek, é o comunismo dições. Em suma, e nos termos lacanianos de Z como o «grande Outro» do capitalismo, solução de uma História contraditória que estaria «do nosso lado». Ora, o devir do capitalismo depois de Marx tornou obsoleta esta concepção do comunismo. Sabemos hoje que não há grande Exterior ou, na linguagem de Deleuze ˇizˇek investe contra as teses deleuzianas, que não há desterritoriaque Z lização absoluta revolucionária do capitalismo, porque o capitalismo é já a sua própria desterritorialização absoluta, a sua própria revolução permanente infinita e, nesse sentido, sistema sem Exterior. Não há ˇizˇek, o «grande Outro» com que contar ou a esperar, excepto, diz Z grande Outro do desastre apocalíptico (demográfico, social, ecológico, biotecnológico), de tal modo a nossa situação é objectivamente desesperada, fechada a toda a espera ou «promessa» favorável, muro de impossibilidades que nos instiga a identificar o possível com o real exis3

Slavoj Zˇizˇek, À travers le réel, p. 87.

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tente. Já não podemos contar com a história mas só connosco, com a nossa própria acção aqui-e-agora, só podemos esperar o que pelo nosso voluntarismo soubermos fazer vir ou acontecer e que sem ele não contrariará a necessidade apocalíptica do sistema, não interromperá esse Outro que está «contra nós». Nestas condições, e como é óbvio, a Ideia comunista tornou-se eminentemente problemática, torˇizˇek e Badiou, o nome de um problema. nou-se, como escrevem Z «Mais do que uma solução para os problemas com que hoje nos confrontamos, o comunismo é ele próprio o nome de um problema: um nome para a árdua tarefa que consiste em libertarmo-nos do quadro contingente da estrutura estatal-mercantil»4. Tarefa para a qual não há solução preestabelecida, fórmula pronta a aplicar. Ao comunismo-solução dos séculos XIX e XX sucede, pois, o comunismo-hipótese, a «hipótese comunista» na expressão de Badiou, como forma contemporânea de apresentação da Ideia de Marx. Por um lado, a exasperação dos antagonismos estruturais do capitalismo faz cada vez mais urgente, mais actual, a reapresentação teórica e política dessa Ideia, da alternativa comunista. Mas, por outro, o comunismo, em vez de poder reapresentar-se como uma Ideia messiânica em trânsito necessário para a sua realização, propõe-se agora como uma hipótese contingente, como Ideia do impossível, da impossibilidade a fazer sobrevir, a possibilitar e a realizar, ou seja, como um problema sem resolução antecipável. Precisamente este problema: como sair de um sistema (capitalismo) sem saída, sem Exterior porquanto procedendo por integração das próprias revoltas e de todos os movimentos de exteriorização nas suas regras de funcionamento ou «axiomática» (Deleuze), 4

Slavoj Zˇizˇek, Après la tragédie, la farce!, p. 201.

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como revolucionar um sistema cujo princípio mesmo é a permanente ˇizˇek, tudo deauto-revolução? Mas se, como dissemos, e como diz Z pende de nós, do nosso voluntarismo, se não há «grande Outro» emancipador pelo qual esperar, é exactamente porque a história não é necessidade mas radical contingência. Não há «necessidade histórica», a história é, por essência, contingente, processo aberto. O que ˇizˇek, abandonar a perspectiva dialéctica não significa todavia, para Z desse processo mas, em vez disso, contrapor a boa à má dialéctica, repor Hegel contra Marx, fundar a reformulação da Ideia comunista menos no marxismo do que no hegelianismo. Zˇizˇek comunista afirma-se mais hegeliano do que marxista! Como entender esta aparente bizarria do filósofo? Fukuyama invocava já Hegel contra Marx, o triunfo histórico do idealismo dialéctico de Hegel sobre a dialéctica materialista de Marx, e anunciava, na sequência do colapso do comunismo «realmente existente», a vinda do fim da história hegeliano na forma do capitalismo ˇizˇek concorda que o futuro será deveras hedemocrático universal. Z geliano, só que muito mais radicalmente do que Fukuyama o pensa5. O Hegel de Fukuyama é o Hegel tradicional, conservador, arauto filosófico da efectuação final necessária do sentido da história numa pós-história em que a particularidade de cada Estado ou espírito de um povo concorre para a realização de um Universal como ordem «racional» mundial, essa particularidade já nada mais sendo portanto do que a expressão de facto de um Estado (liberal) universal de diˇizˇek, há um outro Hegel, uma outra leitura antireito. Ora, afirma Z tradicionalista possível da filosofia de Hegel. Uma leitura na qual o 5

Ibidem, pp. 228-229.

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idealismo hegeliano, contra a clássica imagem dessa filosofia, se revela paradoxalmente, num certo sentido decisivo, mais materialista do que o materialismo anti-hegeliano de Marx, materialismo esse que, pelo seu lado, no seu conceito historicista de uma necessidade objectiva motriz do curso histórico, de certo modo se revela mais idealista do que o idealismo de Hegel. Não se trata de negar a existência da necessidade e até mesmo de uma teleologia na visão hegeliana da história, mas de mostrar que essa necessidade não tem a determinância que lhe atribui a leitura clássica de Hegel (por exemplo a leitura de Hyppolite e de Kojève em França) e que essa teleologia não vem antes, como movimento necessário do Espírito na história, mas, pelo contrário, depois, sempre depois, sempre constituída ou reconstituída a partir do presente. Para este inesperado Hegel ˇzizˇekiano, não é a contingência que é função da necessidade na história, mas o inverso, é a necessidade que decorre por retroacção, por alteração do passado, do contingente. A contingência não seria pois afirmada como mera exterioridade da Ideia e só para ser ultrapassada na sua imanente necessidade, na interioridade da Ideia que se realiza através dessa exteriorização. Ela antes seria o que se afirma de si e por si e que, ao afirmar-se, cria retroactivamente o seu nexo de necessidade, o seu reencadeamento «lógico» com contingências passadas modificando, por esse reencadeamento, o sentido do próprio passado. Seria sempre a contingência, o acontecimento contingente, a criar, por efeito retroactivo, a sua própria necessidade, uma «totalidade» teleológica na qual essa contingência se auto-interioriza, se «necessita». A necessidade, nesta perspectiva, nada mais seria do que essa auto-interiorização, a auto-reflexão da contingência na imanência de um Todo. ˇizˇek acerca de Hegel é precisamente esta: Hegel seria A tese nuclear de Z afinal, não o pensador da necessidade absoluta da história mas, ao in-

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vés, o mais radical pensador da contingência histórica, da contingência como contingência. Dito de outro modo: não seria só, ou não tanto, o filósofo da necessidade da contingência (imagem tradicional, inclusive marxista, do hegelianismo) mas, mais ainda, o filósofo da contingência da necessidade. O filósofo para o qual a necessidade, essa famosa necessidade hegeliana, existe sem dúvida, mas apenas como necessidade ou determinação retroactiva, e não como primeira, não numa autopoˇizˇek, o contrário da concepção sição como princípio. Exactamente, diz Z dialéctica historicista de Marx e do marxismo. É o «materialismo histórico» que neste sentido, e portanto do próprio ponto de vista hegeliano, se revela como idealista, uma vez que, para o Hegel ˇzizˇekiano afirmativo da contingência radical da história, é impossível percepcionar sob a série das contingências históricas uma «tendência objectiva» como sua razão proactiva e realizável. Para «este» Hegel, ao invés de Marx (ou, pelo menos, do Marx do marxismo), não há História mas apenas história. ˇizˇek peca por demasiado Claro que a nossa exposição aqui do Hegel de Z sumária e abstracta. Mas cremos que basta para manifestar a extrema ˇizˇek do hegelianismo assim reinimportância para o pensamento de Z terpretado. A dialéctica hegeliana, como «aceitação de uma contingência irredutível no próprio cerne da necessidade»6 do Conceito, assume numa reviravolta crítica a função tradicional do «materialismo dialéctico» (em vez de Marx leitor de Hegel, uma espécie de Hegel leitor de Marx). Reveza-o na fundamentação teórica (filosófica) de uma Ideia-hipótese comunista nestes tempos de pretenso fim capitalista da história e contra a necessidade e a insuperabilidade desse fim. ˇ izˇek, Menos que nada — Hegel e a sombra do materialismo dialético, 2012, 6 Slavoj Z tr. port. Boitempo, São Paulo, p. 105.

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O «fim da história» que nos vendem como tautologia capitalista liberal do Real e do Possível ou identidade tendencial do Real e do Ideal não se apresenta evidentemente como a esconjuração dos antagonismos e exclusões sociais mas antes como a sua resolubilidade ou geribilidade no contexto do próprio sistema e da democracia formal existente, exaltando-se agora essa democracia como promessa cosmopolítica do capitalismo. O que quer dizer que o capitalismo seria o único futuro possível do próprio capitalismo, que qualquer alternativa melhor ao Real-dado capitalista, qualquer Real-outro, será sempre um «outro» capitalismo, por exemplo um capitalismo «ético», ou «verde», ou «multicultural», ou simplesmente democrático universal. O mundo «mundializado», globalizado, do neocapitalismo contemporâneo com a sua tendência democratizante seria o nosso Real uni-total destinal, o Real finistórico sem exterior, sem Outro, porque permanentemente o seu próprio Outro, a sua própria alternativa, reduzida esta pois a mera alteração ou alternação do Mesmo numa sua possibilidade própria. A mesmidade «outra» do Mesmo é aliás a «alternativa» de todos os reformismos políticos, inclusive de esquerda, de todo o jogo político nas democracias liberais. Foi tendo em conta este sentido pragmático limitativo das alternativas sociopolíticas como determinações do possível sobredeterminadas pelo Real dado e como único sentido «sério» do termo que Zˇizˇek declarou algures numa entrevista que a chantagem com que o sistema dominante pretende silenciar as vozes anti-sistema consiste em dizer-nos «ou apresentas uma alternativa ou então cala-te». O possibilismo é a ideologia finistórica do capitalismo, travestida de consciência pós-ideológica, e politicamente transversal. Mas o capitalismo, por natureza, não cumpre as promessas que faz, o capitalismo é ineducável. Assim, o admi-

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rável mundo novo neocapitalista prometeu uma progressiva universalização da democracia liberal, dos valores democráticos ocidentais. ˇizˇek, é pelo conOra aquilo a que presentemente assistimos, salienta Z trário uma progressiva extensão europeia do capitalismo autoritário à asiática, uma Europa cada vez mais asiatizada, regida por «valores asiáticos», convertida ao modelo asiático de democracia. O que, como observa o filósofo, não resulta de uma qualquer «vontade» da Ásia, não é culpa da Ásia mas antes uma tendência do capitalismo europeu a ver nos valores liberais um entrave à eficácia económica e por conseguinte a «suspender» a democracia mantendo no entanto os quadros formais democráticos. É aquilo a que pela nossa parte chamámos, noutro texto, pós-democracia. E com efeito estamos a entrar, na Europa, na idade política pós-democrática do capitalismo: é isso, para o dizer com ironia, o capitalismo «pós-moderno» europeu. Não se trata de não-democracia ou de antidemocracia, de interrupção ditaˇizˇek, de detorial das democracias. Trata-se antes, na expressão de Z mocracia «descafeinada», como a coca-cola sem cafeína, a cerveja sem álcool ou os cigarros sem nicotina: uma democracia formalmente preservada mas esvaziada de qualquer substância ou efectividade, reduzida ao seu formalismo ritual eleitoral, e com função de legitimação popular, por intermédio dos agentes políticos eleitos, dos verdadeiros poderes sem rosto, não eleitos, não elegíveis, que no seu exclusivo interesse fazem a gestão biopolítica dos povos. Uma democracia em que se escolhe apenas os representantes executivos nacionais dos efectivos decisores políticos internacionais, os «mercados» financeiros, não controláveis democraticamente. Ou em que as pessoas já não escolhem propriamente, só confirmam, ratificam, o que os «especialistas» lhes dizem para escolher. «Sois livres de escolher, desde que façais a escolha Zˇ izˇ ek, Mar x & Beckett

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certa» (cf. a reacção dos governos da UE à votação do povo da Irlanda contra a Constituição europeia: pedir a repetição do referendo até o povo, finalmente iluminado, fazer a escolha conveniente). É a demoˇizˇek, segundo a forma «democrática» dos diálogos de cracia, escreve Z Platão em que a personagem principal, quase sempre Sócrates, fala o tempo todo e a outra só diz de vez em quando «de acordo», «sem dúvida», ou algo assim. Em suma, o capitalismo ocidental, europeu, está em vias de descobrir na democracia um obstáculo ao seu desenvolvimento e de reagir em conformidade, de romper com os valores democráticos como sua armação ideológico-política «natural» tão-só conservando a forma vazia, um simulacro autoritário de democraticidade. O que é a prova por excelência de que o capitalismo não tem valores mas apenas interesses. Por outro lado e ao mesmo tempo, e ainda quanto às promessas meramente estratégicas do capitalismo, está em curso também na Europa a destruição do chamado Estado social. Com a derrocada do comunismo «realmente existente» o capitalismo perdeu o temor e tremor do Espectro vermelho, perdeu todo o pudor, desatou a sua ganância, a sua estrutural selvajaria. O sul da Europa, em particular os países sob programas de «assistência financeira», como a Grécia e Portugal, é neste momento o espaço geopolítico de uma estratégia que visa, a prazo, a Europa inteira. Uma estratégia que faz passar por medidas decorrentes de uma lógica económica neutra decisões que são em primeira instância políticas, económico-políticas no sentido de Marx, tomadas contra as populações e implicando o seu programado empobrecimento e a perda dos «direitos sociais». Porque não tenhamos ilusões sobre o que está a acontecer-nos, sobre o nosso presente e, pior, sobre o nosso futuro, já em instalação. A chamada crise das dívidas soberanas, não obstante ser um facto, é sobretudo um pretexto, a opor-

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tunidade agarrada pelo Capital europeu e internacional para desarticular o modelo social-democrático do capitalismo da Europa do pós-guerra e substituí-lo por um modelo pós-democrático e anti-social. Está em curso uma violenta reformatação social determinada pelas exigências do capitalismo financeiro pós-industrial. Um novo mundo «menos negociado, um mundo em que se esgotou o esforço do capitalismo industrial por ter uma cara cordata e conviver em democracia com as exigências de vida digna dos trabalhadores, um mundo em que a harmonia “fordista” não existe mais, nem é desejada. Um mundo em que o operariado está a ser substituído pelo precariado»7 (o trabalho precário como nova condição proletária generalizada). ˇizˇek na actualiE com isto voltamos à insistência filosófica de Z dade da Ideia comunista, na sua reanimação suscitada pela própria exacerbação dos antagonismos e dos disfuncionamentos sistémicos e que, como necessidades estruturais do sistema em vez de meras desregulações acidentais, não são solucionáveis por políticas reformistas ainda que de esquerda, não têm solução no interior do sistema. O capitalismo é estruturalmente irreformável, é incorrigível na sua lógica antagónica, pelo que a Ideia de comunismo, essa Ideia de ruptura social e de emancipação radical que nos dizem ser utópica ou impos7 São José Almeida, «Fim de época», Público, 28.01.2012. Um artigo publicado no Jornal de Notícias, suplemento «Dinheiro vivo», de 21.06.2014 diz tudo sobre o verdadeiro sentido das políticas de combate à crise financeira do Estado português, a partir dos cálculos de um economista catedrático da universidade de Coimbra e antigo director do departamento de contabilidade do INE (Instituto Nacional de Estatística): «Entre o início da crise financeira de 2007/2008 e o final de 2013 assistiu-se, em Portugal, a uma transferência de riqueza do factor trabalho para o capital de grandes proporções (…) em termos nominais, o factor trabalho (no qual já está contabilizado o enorme aumento de impostos dos últimos anos) conseguiu perder 3,6 mil milhões de euros. Já o excedente de capital engordou 2,6 mil milhões de euros».

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sível (mas a história da humanidade é, nos diversos domínios, a história da realização voluntarista do impossível), permanece a boa hipótese, contra todos os cínicos possibilismos, contra todas as políticas mesmo socialistas do possível. Não são os partidários dessa Ideia que são uns sonhadores, irrealistas ou irresponsáveis, promotores de ficções. Sonhadores são os que pensam que a violência capitalista sob todas as suas formas, este estado já hoje pré-apocalíptico do mundo, pode continuar indefinidamente por recurso a liftings sem fim do sistema, a inesgotáveis reformulações cosméticas. A Ideia comunista não é uma loucura, loucura é o movimento de fuga em frente e sobre o vazio do sistema, como se viu com a derrocada dos mercados financeiros em 20088, a verdadeira loucura é a da ideologia do mercado. Também A crise de 2008, a primeira crise do sistema na era da sua mundialização, que apanhou de surpresa todos os decisores políticos e económico-financeiros internacionais e que era mesmo impossível na perspectiva da eufórica ideologia neoliberal surgida com a queda do Muro (como impossível era o 11 de setembro de 2001), tem sobretudo um valor sintomático. Mostra como a lógica do sistema na sua idade pós-industrial «imaterial», a lógica neocapitalística recentrada na especulação financeira e já não na economia real (produção e circulação de mercadorias), essa espécie de grande casino universal como nova essência «dinâmica» do sistema, escapa já no seu automovimento às intenções, decisões e previsões dos «gestores» internacionais, escapa ao controlo dos próprios mercados e Estados. A derrocada de 2008 denuncia o acesso do Capital como Capital «abstracto» a uma assustadora autonomia ou «solipsismo» irredutível a todas as instâncias económicas e políticas de decisão, o acesso a um funcionamento em roda livre de consequências incontroláveis, a um autismo ou esquizofrenia absolutos que ultrapassa, ultrapassou sempre já, todos os discursos e práticas dos poderes, todas as formas de gestão política e financeira do sistema (os Doutores Mabuse tornaram-se títeres do seu próprio Jogo), e que determina, como nunca antes, o destino das populações e do planeta. «A sorte de uma parte inteira de uma população — e por vezes de um país inteiro — pode ser decidida pela dança especulativa e “solipsista” do Capital que prossegue a sua busca desenfreada do lucro ostentando uma completa indiferença pelo modo como estes movimentos vão influenciar a realidade social. É aí que reside a violência fundamental sistemática do capitalismo, bem mais perturbante do que a violência das sociedades pré-capitalistas: com efeito, esta violência não é imputável a indivíduos concretos, a más intenções; é puramente objectiva, sistemática, anónima. Reencontramos aqui a diferença lacaniana 8

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jamais faltarão vozes críticas à esquerda para dizer que a revolução, ah, sim, pois, mas ainda é cedo, não é para já, é para mais tarde, sempre para mais tarde, porque ainda não há circunstâncias pré-revolucionárias e consciência revolucionária, ainda não existem condições objectiˇizˇek, o «momento certo» em que vas e subjectivas. Ora, como afirma Z a situação esteja pronta para a ruptura social nunca virá, nunca essa ocasião surgirá por si, nunca será dada em simultâneo «em si» e «para si». Estar passivamente, messianicamente, à espera dessa ocasião, da oportunidade vinda por si mesma de revolução, é condená-la a não vir nunca, a nunca chegar. Toda a acção revolucionária é sempre, neste sentido, prematura, anterior às condições objectivas «ideais», porque é ela que cria subjectivamente, e só ela pode criar, essas condições. ˇizˇek, uma vez que não há História mas apenas históComo diz ainda Z ria, contingência pura, as revoluções não se fazem quando o extremar crítico dos antagonismos os abisma numa ruptura objectiva inevitável mas antes, sempre, contra toda a expectativa, a contracorrente das condições dadas, nos interstícios da história. Uma revolução — todas as revoluções passadas e por vir — faz-se explorando uma oportunientre a realidade e o Real: a “realidade” designa a realidade social na qual as pessoas interagem no quadro do processo produtivo material; o Real designa a lógica inexorável, espectral e abstracta que determina a cena da realidade social» (Slavoj Zˇizˇek, Fragile absolu, 2001, tr. fr. Flammarion, Paris, pp. 27-28, sublinhado nosso). Esta lógica ou máquina abstracta, esta violência anónima objectiva do sistema, não surgiu pois com o neocapitalismo financeiro, é congénita ao sistema capitalista, é a sua violência original, estrutural. Só que essa «espectralidade» do próprio Capital como movimento abstracto autoengendrado, autodeterminado, que tudo «decide» ou destina e que de tudo dispõe por si e para si, atingiu entretanto no capitalismo contemporâneo uma tão monstruosa dimensão, uma tal determinância sobre o rumo dos povos e uma tão absoluta independência de qualquer preocupação humana ou ambiental, que se tornou inexoravelmente movimento apocalíptico, espectro do apocalipse. Seria interessante, talvez, confrontar esta perspectiva com o tema heideggeriano da Gestell.

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dade, um desses momentos, muito breves em geral, em que o sistema dominante entra em pane, avaria, e ainda não recompôs as forças. Tudo isto nos coloca já no âmbito temático do leninismo não ortoˇizˇek, que o aparta de outros filósofos contemdoxo mas assumido de Z porâneos marxistas mas antileninistas como por exemplo Negri, e que remete para questões prático-pragmáticas de estratégia, de organização, de relações entre o Estado e a Revolução, do «dia seguinte» das revoluções, e até mesmo para a apologia do Terror revolucionário. Um ˇizˇek designa como o de um Lenine becketleninismo que o próprio Z tiano. (Beckett é no nosso texto como a cartuxa de Parma do romance ˇizˇek de Stendhal: está no título mas só aparece no fim). Com efeito Z gosta de citar uma fórmula literária de Worstward Ho de Beckett. «Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor» (try again, fail again, fail better)9. É a fórmula exacta, segundo o filósofo, do processo revolucionário e a sua expressividade da Ideia comunista como universalidade concreta. Vimos já o significado ˇzizˇekiano desta concepção da Ideia: Ideia universal embora não como síntese de características abstractas invariantes à maneira das Ideias de Platão, mas antes uma Ideia variável em função das condições históricas da sua reapresentação, caracterizada pois por um poder inerente de heterogénese, Ideia heterogenética por essência. A Ideia universal concreta é por conseguinte inseparável da sua repetição, no sentido em que Kierkegaard utiliza o termo no seu pensamento teológico, ou seja, de uma insistência ou, na linguagem hegeliana, de uma «exteriorização» sempre singular que ˇ izˇek, Après la tragédie, la farce!, pp. 136, 195, e À travers le réel, p. 86. A 9 Cf. Slavoj Z fórmula parece-nos estar em ressonância com as derradeiras palavras de uma outra obra de Samuel Beckett, O Inominável, 1953, tr. port. Assírio & Alvim, Lisboa, p. 189: «tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar».

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constitui quer o seu modo de existência quer o seu próprio movimento de universalização. A Ideia comunista, Ideia universal concreta por excelência, não é, nem deve reconceber-se como, uma espécie de Ideia «reguladora» na acepção de Kant, como um puro ideal irrealizável, como Ideia injuntiva com simples função ética, ético-política, de uma justiça social exigida pela razão mas inefectuável na história, em si mesma impossível. A injunção da Ideia de Marx não é uma injunção ética sem correlativamente ser injunção à sua própria realização, injunção à acção. Nunca a Ideia comunista representou um mero ideal universal mas abstracto, antes significou sempre um movimento de efectiva transformação do mundo social por reacção aos seus antagonismos estruturais. Daí o sentido «leninista» ˇzizˇekiano da fórmula de Beckett. A Ideia injuntiva de Marx, a Ideia práxica comunista, traz em si a pulsão da sua repetição, mas repetir a Ideia não significa, nem em termos teóricos nem em termos práticos, repetir a «mesma» Ideia, segundo o mesmo modo, na mesma forma da sua prévia apresentação. Essa é a falsa repetição, a repetição abstracta, que se diz do Mesmo e como retorno do Mesmo. Não se trata portanto de repetir o movimento comunista marxista-leninista clássico, os modelos falhados do «comunismo realmente existente», essa perversão totalitária absoluta da grandiosa Ideia de Marx. Trata-se antes, e muito mais radicalmente, ˇizˇek, e conforme o espírito da fórmula de Beckett, de como explica Z repetir-lhe o começo, de começar de novo a partir do começo, de regressar ao ponto de partida, de re-partir do zero, uma e outra vez, até à realização da Ideia. É nesse ponto, ou nesse impasse, que estamos hoje, é essa a nossa actualidade, mas também a nossa tarefa, a nossa única «hipótese» perante o desastre, a nossa trágica condição beckettiana. «Em termos kierkegaardianos, um processo revolucionário não Zˇ izˇ ek, Mar x & Beckett

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implica uma progressão gradual mas antes um movimento repetitivo, um movimento consistindo em repetir o começo uma e outra vez. Ora, é exactamente aí que estamos hoje, depois do «desastre obscuro» de 1989, do fim definitivo da época que se iniciou com a revolução de Outubro. Há por conseguinte que rejeitar qualquer continuidade com aquilo que a esquerda pôde significar no decurso dos dois últimos séculos. Mesmo se sublimes momentos como o paroxismo jacobino da Revolução francesa e a revolução de Outubro ocuparão para sempre um lugar de eleição na nossa memória, o quadro geral tem de ser ultrapassado e tudo deveria ser repensado, comeˇizˇek, esse ouçando a partir do ponto zero»10. Bem entendido, para Z tro começo não pode ser senão a hipótese (em sentido experimental) comunista, ainda a Ideia de comunismo.

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ˇ). Slavoj Zˇizˇek, Après la tragédie, la farce!, p. 136 (sublinhado de SZ

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Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, Questão de estilo (colectânea de textos de teoria da literatura e da arte), O Que é Poesia? e Grandeza de Marx — por uma política do impossível.

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«Democracia» designa hoje na linguagem política um significante vazio, tão mais consensual quanto mais vazio, quanto mais inquestionado no seu conceito ou na sua substância, espécie de religião laica universal. O problema filosófico-político deste tempo não é a crítica do capitalismo, sobre a qual toda a gente está mais ou menos de acordo. É a crítica da democracia que nos vendem, a única a que nos dizem termos direito, como regime de poder inseparável da realidade capitalista dominante e modo ideal, e também o mais cínico, de legitimação sociopolítica dessa realidade. Uma crítica ciente de que a solução para os cada vez mais dramáticos problemas da humanidade suscitados pelo capitalismo global, para o presente estado pré-apocalíptico do mundo, não passa por esta democracia.

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Sousa Dias ZˇIZˇEK, MARX & BECKETT

Sousa Dias Zˇ IZˇEK, MARX & BECKETT e a democracia por vir

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LINHAS DE FUGA 5

D O C U M E N TA


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