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CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA EGEAC
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR
Joana Gomes Cardoso Lucinda Lopes Manuel Veiga
directora | curadora Sara Antónia Matos adjunta de direcção Graça Rodrigues conservação e produção Sara Antónia Matos Graça Rodrigues Pedro Faro comunicação Graça Rodrigues investigação Sara Antónia Matos Pedro Faro coordenação editorial Sara Antónia Matos serviço educativo Teresa Santos apoio ao serviço educativo Teresa Cardoso
apoio / parceria
serviços administrativos Isabel Marques Teresa Cardoso
Atelier-Museu Júlio Pomar | CML Rua do Vale, 7 1200-472 Lisboa Portugal Tel + 351 218 172 111
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CADERNOS DO ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR D O C U M E N TA
Caveiras, Casas, Pedras e uma Figueira Tratado dos Olhos Notas Sobre uma Arte Útil Parte Escrita I, 1942-1960 Da Cegueira dos Pintores Parte Escrita II, 1981-1983 Temas e Variações Parte Escrita III, 1968-2013 O Artista fala… Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro Incandescência
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INCANDESCÊNCIA cézanne e a pintura Tomás Maia apresentação
O MUSEU COMO ATELIER Sara Antónia Matos
CADERNOS DO ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR D O C U M E N TA
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© Atelier-Museu Júlio Pomar / Sistema Solar, Crl (Documenta), 2015 Textos © Sara Antónia Matos, Tomás Maia 1.ª edição, Maio de 2015 ISBN 978-989-8618-65-8
agradecimento André Maranha Paulo Pires do Vale textos Sara Antónia Matos Tomás Maia fotografia na capa Paul Cézanne au milieu des fougères dans la forêt de Fontainebleau Karl Bodmer, ca. 1893 design gráfico Manuel Rosa revisão Helena Roldão colecção Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar
Depósito legal: 393287/15 Este livro foi impresso na Europress Rua João Saraiva, 10 A 1700-249 Lisboa
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ÍNDICE
Apresentação ...............................................................
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Incandescência ........................................................... A lição de Cézanne .....................................................
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O M U S E U C O M O AT E L I E R R e l e n d o G l i c e n s t e i n , e m L’ A r t : une histoire d’expositions
O termo «atelier», com origem na língua francesa (ateliê), significa «lugar onde um artista trabalha». O conceito admite várias acepções, mas, regra geral, refere-se ao espaço onde se produz trabalho experimental. Não admira por isso que, após dois anos de actividade, surjam ainda algumas dúvidas entre os públicos que acorrem ao Atelier-Museu Júlio Pomar sobre se este é verdadeiramente o atelier do pintor. Talvez seja o momento para clarificar que o pintor não pinta aqui. É verdade que essa foi a ideia inicial, quando, em 2000, a Câmara Municipal de Lisboa adquiriu o prédio n.º 7 da Rua do Vale, um antigo armazém com uma área de 536 metros quadrados destinado a servir como local de trabalho do artista e, mais tarde, a integrar a estrutura de equipamentos museológicos do município. A obra de requalificação, com projecto de Álvaro Siza Vieira, que desde o início procurou conjugar esses dois destinos, prolongou-se por vários anos e, em 2010, o artista propôs abdicar do seu uso como atelier, tornando possível antecipar a inauguração do espaço como museu. O nome do equipamento que veio a ser criado — Atelier-Museu — transporta a memória do programa fundador e adequa-se às características funcionais do edifício. Assim, a decisão de integrar no nome deste museu a palavra «atelier» tem como base o programa museológico. Este, por sua vez, adoptou como princípio (lugar de partida), travessia e destino o trabalho de investigação. Quer dizer que este museu é pensado como um lugar de ensaio, proposições, reflexão, discussão, produção de discurso e enquadramentos, e portanto como um espaço de experimentação onde não se recusam 9
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as tentativas e a possibilidade de falhas — tudo aquilo que na acepção mais comum está votado ou se associa ao espaço de um atelier. Cabe então explicar como é que estas ideias se traduzem no âmbito museográfico e curatorial. A apresentação de obras de arte não se faz por si mesma. Segundo Jérôme Glicenstein, em L’Art: une histoire d’expositions: «não apenas não há neutralidade em matérias de museografia como não pode mais [pressupor-se] um olhar inocente da parte do espectador».1 Quaisquer exposições, mesmo as mais institucionais, mesmo aquelas com as montagens mais canónicas, não são senão montagens subjectivas submetidas a constantes reavaliações e alterações. E as chamadas exposições permanentes de museus mais ou menos reputados, com as suas colecções bastante estabilizadas ao nível da investigação e do enquadramento, não são verdadeiramente diferentes das outras, nomeadamente das temporárias, no que diz respeito a uma abordagem subjectiva e às consequentes modificações periódicas a que são submetidas. A história da museografia e da apresentação de obras está sujeita a transformações que alteram radicalmente os protocolos vigentes. Isto significa que as mudanças de paradigmas acontecem não apenas no terreno da produção artística, mas também nos da curadoria e da museografia. Aquele autor lembra que a proposição duchampiana2 da apresentação pública de um objecto do quotidiano como obra de arte anunciou uma ruptura de ordem imemorial no sistema artístico. «[E]sse gesto deve ser compreendido desde logo como um [acto] de transgressão sobre dois séculos de instituição artística, nomeadamente no seio dos museus» (Glicenstein: 2009, 10) e não apenas no que concerne à forma de fazer arte e às metodologias artísticas aplicadas pelos autores. Além de uma mudança no campo da produção artística propriamente dita, dá-se uma reviravolta consequente e irreversível no domínio da instituição-museu. Isto significa Jérôme Glicenstein, L’Art: une histoire d’expositions, Paris, PUF, 2009, p. 9. Artista a que Pomar também dedicou reflexões. Veja-se: Júlio Pomar, Então e a Pintura?, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002. 1 2
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que a escolha dos objectos que se propõem como arte, o modo de apresentação e o valor simbólico, mas também comercial, que lhes é atribuído não são operados de forma casual. Pode considerar-se que são fruto de jogos de apropriação, descontextualização, recontextualização, mediação, especulação, etc. Apesar de esta transgressão ter já um século, e de se saber que os modos de relacionamento com a arte dependem das formas de exposição, a maioria dos discursos dos críticos de arte, filósofos, artistas, curadores, historiadores da arte e outros ensaístas continuam a focar as suas abordagens na obra de arte em si. «Quer dizer que eles se concentram nos objectos, como se estes pudessem ser apreendidos em si mesmos, fazendo abstracção das condições de aparição, conferindo-lhes pouca importância» (Glicenstein: 2009, 10). O autor chega mesmo a lembrar que, em determinadas situações, os organizadores das exposições são felicitados por recuarem face às obras, deixando entender que a neutralização do julgamento estético faz parte do seu papel. Ora, estas premissas, a começar pela não-interferência no que é mostrado, não correspondem ao desempenho do trabalho curatorial, aconteça ele em que circunstâncias for. Não há neutralidade em matérias de exposição, e quando se fala de obras de arte não se fala senão de impressões obtidas no seio de uma exposição. Por um lado, esta envolve a materialização de um saber sensível e intelectual, que contribui para a construção de um discurso sem o qual os objectos artísticos ficam reduzidos a artefactos de decoração. Por outro lado, a construção de um discurso e de uma legitimação implicam a intervenção e a coexistência de vários agentes, nomeadamente instituições museológicas e profissionais. Vem tudo isto a propósito do programa artístico e curatorial do Atelier-Museu Júlio Pomar, museu monográfico dedicado à obra do artista, que tem procurado fazer jus à parte de «atelier» que constituiu este «museu». O programa museológico tem pensado as exposições como ensaios em si mesmos, proposições curatoriais, tendo-se criado também um con11
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junto de acções paralelas de investigação, conferências, conversas, um projecto editorial, produção de ferramentas para o pensamento e a discussão, conservação e sistematização da colecção, serviço educativo, etc. Não sendo este o lugar de análise para cada uma das componentes do programa, é de realçar que o projecto arquitectónico (respondendo à tipologia de um edifício já existente e com uma espacialidade previamente determinada) potenciou fazer deste museu um atelier no sentido físico e conceptual. Ou seja, em parte, a ideia de atelier está no substrato programático do museu também devido às condicionantes físicas da estrutura arquitectónica, que não dispondo de escritórios ou zonas reservadas «obriga» os investigadores, os produtores e outros profissionais a trabalhar dentro do espaço expositivo partilhando-o com as obras. Além de a componente arquitectónica se revelar motivo de interesse para especialistas, foi-lhe dada relevância nos debates agendados para discutir as relações entre arte e arquitectura, esta e a curadoria. Digamos então que o equipamento se oferece também ele como caso de estudo e fornece matéria para o pensamento. Trata-se de assumir, mas sobretudo de pôr em prática, que o espaço físico determina as possibilidades e os modelos de exposição, as relações entre obras, entre estas e o espaço, a luz que sobre elas incide, o enquadramento, e os modos como as proposições e os discursos são recebidos pelo espectador. Tudo isto determina que a exposição seja um lugar de ensaio. As formas como se emolduram, se protegem as obras, afastando-as mais ou menos do público, a sinalética, os textos de apoio influem na recepção da arte. Acresce, como diz Glicenstein, que raramente se contacta com a obra sob ausência de toda a mediação, até porque raras vezes se encontram objectos artísticos no contexto de produção. Os comentários, disponíveis por exemplo em folhas de sala, em publicações, no sítio da Internet, ou mesmo o conhecimento da história da arte, longe de serem supérfluos, influenciam consideravelmente a relação com as obras. É neste seguimento que o autor questiona se é possível ter conhecimento de uma obra de arte independentemente das formas de mediação que a revestem, sejam elas media12
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das pelo artista, pelo curador ou pelo crítico. «Uma exposição pode ser “neutra” ou objectiva?» (Glicenstein: 2009, 11). Uma vez que a exposição envolve uma forma de mediação, pode responder-se que não. A exposição é uma entidade ambivalente que se perfaz de uma componente material, com uma proposição imaterial (uma ideia, uma proposta), que implica «um conjunto de relações entre objectos, entre estes um lugar e um público, e até os diferentes membros do público entre si» (Glicenstein: 2009, 11). Acresce que põe em jogo um contexto — político, social, económico, histórico —, e que mesmo referindo-se ao passado (podendo fazê-lo) o seu olhar e a sua tomada de posição é efectuada a partir do presente. Assim, a partir do momento em que são delineadas ou definidas as suas premissas aparecem inevitavelmente compreensões contraditórias. Estes antagonismos fazem parte da enunciação inerente à exposição, assim como as descobertas, as surpresas, os espantos, mas também as denúncias, o revelar de fraquezas e falhas — naturalmente próprias dos processos de criação e de investigação envolvidos numa exposição. Trata-se de, a exemplo do artista face à sua matéria de trabalho, assumir as condições e os efeitos induzidos pelo dispositivo expositivo, que é ele próprio mimetizado no processo de montagem assumindo as salas como um espaço de edição, organização, recomposição. Aí, a disposição das obras, a convivência dos meios, a formulação do discurso obedecem à lei de um processo aberto. Neste âmbito, fazendo uso dos termos de Jérôme Glicenstein, o museu abraça em pleno a exposição como ficção (1), como linguagem e dispositivo (2), como acontecimento e jogo social (3), ou ainda — poder-se-ia acrescentar — como um atelier. Relativamente ao Atelier-Museu, não se pretende simular através das montagens que ele é o espaço de trabalho privado do artista, mas reclamar para o seu programa fundador as componentes de ensaio e investigação introduzindo-as nos seus princípios de trabalho. É essencialmente essa a tarefa curatorial: investigar, desocultar, relacionar, pôr em perigo, arriscar, potenciar aberturas, criar discurso e pensamento, numa 13
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palavra: ensaiar. As exposições são de facto espaços de ensaio por excelência, não só para quem as concebe e monta, como para quem as vê, recebe, escreve sobre elas, critica, incluindo o próprio autor. E se é de uma proposição que se trata, a exposição deve lançar o rastilho para a discussão. Não será isso que também pretende sugerir Tomás Maia no seu texto quando diz que «a saída do museu de algum modo conclui — reabre — a lição»? Se na sua tipologia moderna os museus foram idealizados para mostrar produtos acabados, pode dizer-se que o Atelier-Museu, uma instituição de pequena dimensão, tendo em conta os enunciados atrás expostos, quer ser pensado também como atelier. Procura estar aquém e além das salas de exposição, sendo que nele o antes e o depois, as premissas de partida e de chegada, confluem. Aquém e além: a conservação e a guarda das obras, a investigação, o colocar de hipóteses, o abrir de portas e o ligar-se à vida, arriscar — alcances que o pintor, hoje com 89 anos de idade, traz na génese da sua obra e do seu modo de estar enquanto artista e sujeito político. Neste sentido, as palavras que Tomás Maia extrai da lição de Cézanne assentariam perfeitamente em Júlio Pomar: «No final, uma única certeza: a de ser um perpétuo aprendiz». Neste quadro, o Atelier-Museu tem dado grande importância às acções de reflexão e ao projecto editorial que decorrem em paralelo com cada exposição, no âmbito dos quais ocorreu a comunicação de Tomás Maia, artista e professor da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Esta comunicação aconteceu a propósito da exposição «Tratado dos Olhos», com curadoria de Paulo Pires do Vale, vindo ampliar a compreensão sobre a ideia de museu como atelier, isto é, como lugar de aprendizagem, de transmissão de conhecimento e sobretudo de propagação de uma chama que consome e simultaneamente irradia. Deste modo, a edição que agora se publica, bem como a entrevista ao pintor, O Artista fala…, e os catálogos de exposição dão continuidade à produção crítica de Júlio Pomar, reeditada em três volumes pelo Atelier-Museu, procurando fornecer ferramentas críticas e de pensamento — 14
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indispensáveis para que o museu assuma também a sua função de atelier, aqui entendido como lugar de criação de ideias, conteúdos, proposições. Sigamos as palavras de Tomás Maia e com elas os olhos do pintor. De Cézanne, sim, mas também de Pomar. Com eles aprendemos que o museu é um lugar que está em contiguidade com a vida, mas coloca-a sob diferentes prismas a fim de a problematizar, propondo novos modos de representação e possibilidades da realidade.
Sara Antónia Matos directora do atelier-museu júlio pomar
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INCANDESCÊNCIA cézanne e a pintura To m á s M a i a
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Nam habet ea quidem in se vim admodum divinam non modo ut quod de amicitia dicunt, absentes pictura praesentes esse faciat, verum etiam defunctos longa post saecula viventibus exhibeat, ut summa cum artificis admiratione ac visentium voluptate cognoscantur. É que a pintura tem em si uma força inteiramente divina que não somente, como se diz da amizade, lhe permite tornar presentes os ausentes, mas ainda faz surgir após muitos séculos os mortos aos olhos dos vivos, de tal modo que são reconhecidos para grande prazer daqueles que olham com a maior admiração pelo artista. Leon Battista Alberti, De pictura, II
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Incandescência
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O presente texto é a versão ligeiramente ampliada e modificada de um opúsculo publicado por ocasião da apresentação do livro com a tradução portuguesa dos diálogos entre Paul Cézanne e Joachim Gasquet: Paul Cézanne, por Élie Faure seguido de O que ele me disse…, por Joachim Gasquet, tradução de Aníbal Fernandes, Lisboa, Sistema Solar, 2012. A sessão, complementada com o visionamento do filme Cézanne, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (filme baseado na primeira e na terceira partes do texto de Gasquet), ocorreu a 27 de Abril de 2013 na Livraria Assírio & Alvim / Sistema Solar (Chiado).
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«Quero morrer a pintar…» Que tem esta coincidência — a incidência do morrer no pintar — que ver com a pintura de Cézanne, e mesmo, talvez, com toda a pintura? — É o que tentarei ver, ou entrever, brevemente aqui. ——— Esta coincidência inscreve-se, de forma mais ou menos consciente, sobre um fundo histórico. «Quero morrer a pintar…» é um dito que parece extraído de Frenhofer, o pintor heróico de Balzac. Todavia, Frenhofer levou longe demais a identificação que fascinou — que terá sempre fascinado — o pintor (ocidental): a identificação da luz com o desejo (e mesmo, desde Platão, com o extremo do desejo…). Frenhofer foi longe demais: confundiu a Pintura com Vénus e foi incapaz de fazer obra — de dar forma ao magma caótico das cores. Destruiu o que restava da obra queimando-a, literalmente, no fogo venéreo; desapareceu em apoteose mortal (ou sacrificial). A este respeito, o Romantismo mais consequente consuma a arte cristã: a obra suprema é o próprio artista identificando-se (rivalizando) com a figura de Cristo. Hegel não se enganou quanto à afinidade profunda entre o cristianismo e a pintura (moderna): se a religião cristã interioriza definitivamente o divino, é porque este transcende doravante o mundo e reside na espiritualidade consciente de si. O pintor moderno (segundo Hegel) é aquele que exprime a alma individual através da insig23
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nificância do mundo e da contingência do momento. Qualquer pintor, uma vez atingido este limite, seria crístico (sem ser necessariamente cristão) ao fazer transparecer a vida íntima do espírito numa aparência qualquer, ou ao ser ele mesmo a fonte que ilumina a matéria sensível. Mas é possível pensar a luz na pintura sem a rebater sobre a expressão de uma subjectividade; é possível pensar aquela mesma afinidade — a afinidade entre o cristianismo e a pintura moderna — desprendendo-a da filosofia hegeliana da história, ainda que tenha sido assim que Hegel indicou a essência da matéria pictural, ou seja, e como veremos, uma certa obscuridade luminosa. A partir deste mesmo limite (que a arte moderna expõe), pensar então, não o fim, mas a origem da pintura. Eis a que nos convoca Cézanne. ——— Cézanne — é a sua grandeza — não cedeu a qualquer heroísmo. Morrer a pintar não exprime o desejo de nenhum sacrifício. É um voto de humildade: uma obra feita não é mais do que um sinal para outra obra a fazer que indica, por sua vez, um não-saber irredutível do pintor. «Eu poderia pintar cem anos, mil anos, sem parar, e continuaria a parecer-me que não sabia nada… Os Antigos, esses, santo Deus, não sei como faziam para despachar quilómetros de trabalho… Eu cá devoro-me, mato-me para cobrir cinquenta centímetros de tela… Não faz mal… É a vida… Quero morrer a pintar…»1 ——— Além de ser uma figura de identificação (e um destino sacrificial), Cristo é igualmente, se não primeiramente, luz. É assim que ele se anuncia no Evangelho de S. João: «Eu sou a luz que ao mundo vim, para que 1 O que ele me disse…, op. cit., pp. 148-149. Cada vez que me reportar a este livro, indico doravante o número de página entre parênteses rectos directamente no corpo do texto.
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todo aquele que em mim crê, em treva não permaneça.» (12,46). E é como imagem que S. Paulo o pôde definir: «a imagem do Deus invisível, o Primogénito, anterior a qualquer criatura» (Cl 1,15). Sobre esta verdade relativa a Cristo (Cristo é um ser de luz ou uma imagem), o Concílio de Niceia fundará nada menos do que a doutrina ocidental da imagem: ao estabelecer que o Filho é consubstancial ao Pai, o Credo Niceno estava no fundo a determinar a natureza icónica de Deus. Para a espiritualidade cristã, Cristo — como «luz da luz», no dizer do Credo — é assim a primeira imagem. Cristo enquanto imagem (a imagem que é o seu corpo) tem a mesma natureza de Deus. Ora, consubstancialidade não é o mesmo que confusão (entre o Pai e o Filho), e é uma tal diferença dentro da identidade que encontra o seu paradigma na relação entre o pintor e a pintura. Deus é um pintor invisível e Cristo é a sua pintura genérica (ou mundana). Deus é invisível porque é o fazer-se luz da própria luz (o facto de que há luz) colorindo-se ou matizando-se infinitamente nos corpos. É esse o sentido da expressão que define o corpo de Cristo (no Credo): φῶς ἐκ φωτός, phos ek photos: luz nascida da luz, clarão saído do clarão. Proponho que a nossa tradição pensou — quer tenha sido ou não crente — a pintura como meio de ressurreição dos corpos. E proponho que Cézanne pensou a pintura como divina, não porque lhe tivesse atribuído a função de representar qualquer divindade, mas porque o que é pintado é a carnação de Deus. Cézanne só pintou corpos, poderia dizer-se, porque anulou a diferença entre as coisas e os seres: tudo passa a ser visto pela sua natureza luminosa, e tudo pode ganhar corpo através da cor. No sentido preciso da expressão cristã, a cor será para Cézanne o corpus de Deus. «As cores», terá ele confiado a Gasquet, «são a carne brilhante das ideias e de Deus.» [87] ———
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A pintura de Cézanne não é (temática ou figurativamente) cristã, mas pensa a luz a partir da espiritualidade cristã. E se Cristo não é uma figura de identificação para o pintor, mas a personificação da matéria da pintura — se Cristo é primeiramente luz, mas uma luz extraída da luz e portanto de algum modo já obscurecida —, então talvez possamos compreender umas das declarações mais profundas de Cézanne: «a vida da arte» — «vida meio humana, meio divina» — é «a vida de Deus.» [64] Deus não é uma figura (com a qual o pintor se identificaria) mas um fazer luminoso (análogo à pintura): «fazer viver e fazer homens é a única forma de sermos Deus.» [75] A única forma: os humanos vivem, os divinos fazem viver (através das obras e dos filhos). O divino é a excrescência da vida que não cessa de (se) fazer. De ex-crescer. ——— A excrescência não é um excedente supérfluo à vida; pelo contrário, é a essência — sem substância — da mesma vida: o movimento da vida que se excede. Vida que produz a vida fora de si, excedendo-se como vida. Será possível fixar o ponto — eternamente volúvel e propriamente atópico — da excrescência (da vida)? — Tal é precisamente o repto (paradoxal) da arte. A esse ponto, anterior à vida por formar, posterior à vida já formada, o ponto em que a vida literalmente ex-cresce (eclode: sai de nada), dou o nome de origem. A origem é uma eclosão — e o problema de Cézanne — como de toda a grande arte — é assim eminentemente temporal. A sua questão pode ser enunciada: qual é a luz que fixa — sem fixar — a eclosão? Mais estritamente: qual é a luz da pintura? ——— 26
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Se o divino designa o que perpetuamente dá vida, tal implica em pintura uma mimese do Sol. É que o Sol — como Cézanne terá também lido no mesmo texto de Balzac — é «esse divino pintor do universo».2 O divino irradia-se materialmente do Sol: «Tudo, seres e coisas, não passa de uma maior ou menor quantidade de calor solar armazenado, organizado, uma recordação de sol, um pouco de fósforo que arde nas meninges do mundo.» [68] O Sol existe morrendo (consumindo-se) a pintar (o universo). Mas o próprio Sol — tal como a morte — requer um mediador, um representante (o Sol e a morte, como declarou La Rochefoucauld numa das suas Máximas, não podem ser vistos de face ou fixamente). É essa a descoberta a que chega Cézanne: o Sol não se deixa reproduzir, e é necessária outra coisa para representá-lo — uma outra coisa que dá pelo nome de cor. Fazer a mimese do Sol significa então: na impossibilidade de o representar, pinta-se (um quadro) como o Sol pinta (o universo). O pintor — o pintor da pintura divina, aquele que faz a mimese do Sol — só pode existir morrendo a pintar. Não como quem se sacrifica diante de um astro, mas como quem devolve o dom que é o Sol. ——— Se Cézanne lesse Aristóteles — o Aristóteles que escreveu sobre o génio no seu Problema XXX —, talvez tivesse dito que procurava pintar a ekphysis (que proponho traduzir por «excrescência» ou «eclosão»). Mas Cézanne não era filósofo nem falava grego: o seu elemento pensante não era (primeiramente) a língua. «Cézanne» é precisamente o nome de um pensamento único em pintura. Ele aproximou-se, tentou aproximar-se o mais possível da impossibilidade da pintura: pintar — sem mediação — 2 Honoré de Balzac, A obra-prima desconhecida, tradução de Silvina Rodrigues Lopes, Lisboa, Vendaval, 2002, p. 49.
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a própria luz. Pintar a imediação do Sol. Quando Cézanne descobre que tal não é possível, ou que isso implica uma experiência mortal ou cegante, simultaneamente reduz a pintura ao seu elemento mediador: à cor. «A cor — como ele disse e gostava de repetir Klee — é o lugar onde o nosso cérebro e o universo se encontram.» [68] Não é pois o emprego de tintas que define a pintura (aquelas são um dos veículos para a mediação da luz); a pintura é algo de mais geral do que a tintura. A pintura é o nome genérico de um dom feito ao Sol; mais exactamente: é o dom que devolve a luz ao universo. É o contradom do Sol (dom que o próprio Sol repercute em nós). Que haja luz (em vez de obscuridade total), que haja visível (e não só audível, táctil, etc.), eis o dom com o qual alguém — um pintor — nunca se conforma. Dom que excede tudo o que é dado (toda a forma visível) e que leva assim alguém — o mesmo pintor — a repetir esse dom sob uma forma eterna. A pintura eterniza o dom universal da luz. ——— A questão de Cézanne precisa-se. Se o pintor eterniza o dom que é a luz, é porque ele mostra, não a luz (efémera) que incide sobre as coisas, mas a luz (eterna) que emana de cada coisa. É essa a essência do mundo segundo Cézanne: tudo o que existe é uma «recordação de sol» [68], e o pintor é justamente aquele que vê essa recordação em todas as coisas, vivas ou inanimadas. A tarefa do pintor consiste em lembrar uma recordação esquecida, em fazer eclodir a luz que está encerrada em tudo. Em libertar a essência luminosa do mundo. A pintura: aletheia photos. Sim, chamemos pintura ao gesto que mostra a incandescência de qualquer coisa. ———
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O que é um pintor? Alguém que vê — e que por isso põe — o mundo a incandescer. Pintável é aquilo que incandesce, e o que está a incandescer é o que olha — sem olhos — para o pintor. Ser pintor é ver que se é visto por um ponto de incandescência, e ser visto pelo que não tem olhos não é outra coisa senão ver a incandescência. É esse o nome da reversibilidade do visível, quando o visto se torna vidente e qualquer corpo devém luminoso. De cada vez que encontrava o seu motivo, Cézanne olhava-o imóvel, fixamente; os seus olhos dilatavam-se. Por vezes, enquanto pintava, uma hora podia passar entre duas pinceladas. Cézanne via a incandescência do mundo. ——— Mas como é que ele procedeu, exactamente? Passando pelo Impressionismo — mas distinguindo-se deste rápida e deliberadamente. Sobre o sentido desta distinção, julgo que não é necessário insistir muito depois do que Merleau-Ponty escreveu: «A supressão dos contornos precisos em certos casos, a prioridade da cor sobre o desenho não terão evidentemente o mesmo sentido em Cézanne e no Impressionismo. O objecto não é mais coberto de reflexos, perdido nas suas relações com o ar e com outros objectos: ele é como que iluminado surdamente do interior, a luz emana dele, e daqui resulta uma impressão de solidez e de materialidade.»3 Tal é a invenção propriamente cézanniana: a «irisação da terra» [83] — é uma expressão sua para caracterizar a pintura de Monet — mas sem diluir o objecto no ar irisado, sem dissipar o corpo na luz atmosférica. A incandescência é dos corpos, não de vagos clarões. 3 Maurice Merleau-Ponty, «Le doute de Cézanne», in Sens et non-sens [1966], Paris, Gallimard, 1996, p. 17.
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Para dar essa impressão de solidez, Cézanne aliava à chamada touche constructive 4 um uso insólito da perspectiva aproximando esta o mais possível da visão natural. E tudo isto confluía para um ideal de pintura que pode resumir-se com aparente simplicidade: pintar como se vê. Sim, tudo se passava para Cézanne como se ainda ninguém tivesse pintado como os olhos vêem, como se ninguém tivesse aceitado pintar o próprio acto de olhar. Para o fazer, paradoxalmente, foi preciso pôr os olhos nas pontas dos dedos ou, como isso é impossível, foi preciso pintar como pintaria um cego: por toques sucessivos, tacteando o invisível que desponta. Aquele que vê a incandescência corre o risco iminente de ser encandeado. E pintar nessa iminência — simultaneamente suscitando e evitando o clarão cegante — é ver cada corpo a bombear-se, como se tudo pudesse tomar a forma de um olho (as maçãs de Cézanne…). Se Giorgio Colli nos autoriza a traduzir physis por «nascença», a ek-physis pode designar o que rompe ou o que desponta: o ponto extremo do que está a nascer. ——— Ora, se o problema de Cézanne é pintar a própria visão (e só secundariamente o que se vê), percebemos que a sua questão — qual é a luz da pintura? — só teria uma resposta quando ele afrontasse a realidade do tempo. Há assim uma primeira ordem de consequências na sua invenção: tudo pode tornar-se um corpo pintável porque tudo é uma «recordação de sol». Cézanne submete-se àquilo a que podemos chamar o corpo-qualquer: uma cabeça humana ou um fruto que vai apodrecer, a superfície de uma toalha ou o lago de Annecy. Mas há uma segunda ordem de consequências. É que a sua invenção luminosa era realmente uma resposta ao problema do tempo, de tal maToque e, mais especificamente, pincelada construtiva: Gustave Geffroy, in Conversations avec Cézanne, vol. colectivo organizado por Michael Doran, tradução do inglês por Ann Hindry, Paris, Macula, 1978, p. 183. 4
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neira que a distância relativamente ao Impressionismo também se pode enunciar assim: enquanto este procurava — por meios pictóricos — reproduzir o instante fotográfico (isto é, o instantâneo como ideal da fotografia), Cézanne tenta inventar o instante propriamente pictural. O que é então o instante pictural? O instante que dá a ver primeiramente a visão (e não o que se vê)? É aquele em que um corpo não se encontra modelado por uma luz incidente, constantemente variável, mas modulado por uma luz imanente, que se eterniza. Cézanne não cessou de opor estes dois termos: a modelação — que depende de uma fonte de luz exterior (determinando uma relação de claro-escuro) — e a modulação, baseada na sensação pura de cor que estrutura internamente o objecto segundo contrastes tonais. O instante pictural não captará assim nem um momento determinado do dia nem, tão-pouco, uma época do ano: ele não depende de nenhuma luz extrínseca aos corpos pintados. Por isso Cézanne não vai reproduzir o movimento através da captação de um instante privilegiado (como fez toda a pintura pré-moderna) ou através da sucessão de vários instantes equivalentes entre si (como fará, por exemplo, o Futurismo). Se Cézanne procura o instante pictural, é porque ele supõe que a pintura é portadora de uma nova percepção, a começar pela percepção do movimento: a percepção, não de um só instante (que a fotografia fixa e a cronofotografia multiplica), mas do intervalo entre dois instantes. Do intervalo, pode mesmo dizer-se, entre todos os instantes, seja qual for o momento do dia ou a época do ano. É a isso que Cézanne chamava pintar a realidade do tempo — um problema aparentemente irresolúvel para a pintura. «Está a passar um minuto do mundo. Pintá-lo na sua realidade!» [70] Há assim uma correspondência flagrante — e mesmo uma coincidência histórica — entre o pensamento pictórico de Cézanne e o pensamento conceptual de Bergson. A realidade do tempo (cézanniana) corresponde à «duração pura» (bergsoniana), ou seja, não às posições sucessivas de uma forma numa sequência temporal, mas ao fluxo irredutível dessa mesma forma atraves31
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sando todas as posições.5 O fluxo implica a irredutibilidade da passagem (da forma) a qualquer uma das posições ocupadas. Deste modo, com a descoberta de que tudo é um corpo pintável enquanto «recordação de sol», não há somente um esbatimento da distinção entre uma coisa e um ser; pintar a realidade do tempo teria igualmente de conduzir a uma destituição do objecto e a uma anulação da vontade do sujeito. ——— A montanha Sainte-Victoire é o emblema da destituição do objecto. Eis um maciço que oferece, simultaneamente, a solidez de um corpo (que se mantém uno) e a realidade do tempo (que fluidifica tudo). Sainte-Victoire desaparece como objecto para reaparecer como corpo irradiante. A montanha pintada presentifica o tempo, a passagem que não se fixa a nenhuma posição, e a tela é o lugar da trepidação interna a cada forma (e a cada instante). A tela abre — dilata e planifica — o instante pictural. Ela é a pele dos corpos ressurrectos, o exacto reverso de La peau de chagrin (esse outro extraordinário livro de Balzac sobre o desejo — e que Cézanne tanto admirava). Ali, na vida, a pele não cessa de minguar na proporção inversa dos desejos realizados6; aqui, na tela, a pele dos corpos excresce — e a vida — a vida desejante — vai sempre além de si mesma. Na tela, uma outra vida eclode do corpo mortal. ———
5 Cf. Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris, PUF, 1927 (edição «Quadrige», 2011). — As últimas linhas do parágrafo precedente são devedoras das aulas de Deleuze sobre Bergson, audíveis em: Gilles Deleuze, Cinéma, Paris, Gallimard (colecção «à voix haute»), 2006, CD 1 e 2. 6 Honoré de Balzac, La peau de chagrin [edição de Maurice Allem], Paris, Garnier, 1967.
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Para desobjectivar a pintura (conquanto a sua nunca tenha sido abstracta), Cézanne tinha de dessubjectivar o pintor: suspender a sua vontade de domínio e a sua imaginação subjectiva. É nesse sentido que ele chega a comparar o pintor a uma «placa sensível» (como neste passo a que Straub e Huillet, no seu filme Cézanne, deram uma ressonância inaudita): «Toda a sua vontade [a do pintor] deve ser de silêncio. Deve fazer calar dentro dele as vozes de todos os preconceitos, esquecer, esquecer, fazer silêncio, ser um eco perfeito. Nessa altura toda a paisagem se inscreverá na sua placa sensível.» [64] A arte é anterior à subjectividade porque o puro acto de ver não projecta sobre o mundo um sentido, um julgamento ou um sentimento do sujeito; o pintor não exprime as suas vivências de forma mais ou menos dissimulada: ele ex-prime o tempo, quer dizer, pressiona a tela para que desponte a visão nascente. Por isso mesmo a arte também é anterior à objectividade, porque assim se dá a ver, por toques aproximativos, aquilo que nunca permanece diante — e que no entanto não se desintegra imediatamente. Uma vez mais, Cézanne pinta, não o tempo da realidade (objectiva ou subjectiva), mas a realidade do tempo, a própria visão temporalizada. A obra exprime esse ponto em que a vida sai de nada repetindo a sua diferença íntima. Vida da vida, ex-crescência. ——— Podemos responder à questão cézanniana: qual é a luz da pintura? Não é natural (pois o pintor não representa dados já visíveis), e também não é sobrenatural: o pintor não se ocupa de nenhum dado invisível. Se a pintura mostra o dom que é a luz — se a pintura é uma mimese do Sol —, e se ela se serve de qualquer corpo, então a sua luz é intranatural: luz que eclode da diferença interna da natureza (diferença entre um dado visível e o próprio dom da visibilidade). Ver o mundo a esta luz é ver em cada corpo arrefecido a combustão do Sol. 33
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De forma consequente, e com perfeita lucidez histórica (basta ler as suas digressões pelo Louvre), Cézanne dirá: «A pintura, aquilo que se chama pintura, só nasce com os Venezianos.» [97] Queria ele certamente dizer: só nasce no momento em que a cor deixa de servir a linha tornando-se ela mesma no elemento construtivo da forma. Veronese é a primazia definitiva da cor, Monet leva esta ao limite da irisação; entre os dois, Caravaggio — embora Cézanne a ele nunca se tenha referido — inventa a luz imanente dos corpos.7 Mas a irradiação luminosa, em Cézanne, não é baseada na cor preta (na ausência de cor) nem no branco (na ausência de diferenciação cromática). Se a forma pictórica se constrói necessariamente pela cor, podendo a pintura até tender para o preto ou para o branco, a construção de um corpo é todavia apenas possível através de diferenças tonais. O que significa que mesmo o branco ou o preto, quando Cézanne inicialmente a um deles recorreu, já tenha sido «tratado unicamente enquanto cor, não enquanto contraste».8 Seja como for, o preto e o branco foram progressivamente evitados porque, enquanto cores isoladas ou exclusivas, negariam — de forma inversa — a incandescência: o preto porque priva um corpo de luz própria, o branco porque lhe impõe a luz solar sem mediação. ——— E é aqui que Hegel — e o seu pensamento sobre a matéria da pintura — teria encontrado Cézanne. Hegel insiste sobre a oposição entre o peso da matéria (fechada à sua unidade) e a leveza da luz (que é a primeira idealidade ou a primeira relação da natureza consigo mesma). Mas a pintura ultrapassa esta oposição tornando diáfana a matéria (ou materializando a própria luz). Se na arÉ a tese convincente de Carlos Vidal: Deus e Caravaggio, Lisboa, Vendaval, 2011. A expressão é de Rilke numa das suas cartas sobre o pintor endereçadas a Clara (tentando descrever-lhe Nature morte: pain et œufs, de 1865): Rainer Maria Rilke, Lettres sur Cézanne, traduzidas do alemão por Philippe Jaccottet, Paris, Seuil, 1991, p. 82. 7 8
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quitectura e na escultura a visibilidade das formas é devida a uma luz exterior, a pintura é regida pelo princípio da luz interior. Inspirando-se no Tratado das cores de Goethe, Hegel quase que sugere que o princípio pictural é a incandescência. «Na pintura» — afirma — «a matéria, em si mesma obscura, tem em si mesma o seu interior, o seu ideal, a luz; ela é em si mesma atravessada pela luz, e precisamente por isso, a luz é obscurecida em si mesma.»9 Na pintura, a matéria ilumina-se em si mesma e a luz obscurece-se. Ora, à unidade interpenetrante (ou trespassante) da luz e da matéria, Hegel — exactamente como Cézanne — dá o nome de cor. «A luz obscurecida, enredada deste modo em si mesma, mas que da mesma maneira atravessa e trespassa de luz a escuridão, dá o princípio da cor como o próprio material da pintura.»10 Entre a identidade opaca da matéria e a identidade transparente da luz, tem lugar a cor cuja natureza ideal é revelada pela pintura. Mas enquanto Hegel pensa esta idealidade como expressão da subjectividade do pintor, Cézanne vê — sente-se visto — aquém da oposição entre um sujeito e um objecto (enquanto entidades que não pertencem à realidade do tempo). E onde Hegel procura atribuir ao pintor a tarefa de captar o brilho momentâneo, Cézanne destitui a oposição entre a sucessão (a arte do tempo) e a fixação do momento (a arte do espaço); a tela é o espaço do tempo, a representação do instante pictural que simultaneamente precede e sucede a todas as horas. ——— O que procuro chamar «incandescência» — designando a um tempo a invenção luminosa de Cézanne e a origem da pintura — não está longe, embora se distinga, da «cintilação» tal como Pontévia a articulou. 9 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik II, Werke 14, Werke in 20 Bd., Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe, Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, p. 260. — A tradução desta (e de uma ulterior) passagem é devida a Bruno C. Duarte, a quem muito agradeço. 10 Vorlesungen über die Ästhetik III, Werke 15, op. cit., p. 33.
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A cintilação é o momento em que a luz cessa de ser um médium (de toda a visibilidade) para aparecer enquanto tal: para se dar a ver. Pontévia acentuou o carácter instantâneo, ofuscante e suspensivo da cintilação quando a luz faz desaparecer o objecto, «encoberto pelo seu próprio brilho».11 E este desaparecimento, para Pontévia, significava a prefiguração da morte: na cintilação, revela-se que «tudo o que pode ser mostrado pode também ser retirado».12 Sem dúvida que a incandescência contém estes traços da cintilação — e, num certo sentido, se ainda for possível, extrema-os. Mas a incandescência diz algo que o conceito de cintilação não diz primeira ou explicitamente: a reversibilidade do visível. A incandescência denota a possibilidade de um corpo, privado de luz, se iluminar em si mesmo e aos outros. O mesmo é dizer que ela denota a possibilidade de um corpo, privado de olhos, nos lançar um olhar: um ponto de incandescência é sempre visto como um olho, pelo menos virtualmente, pois o nosso próprio olhar encontra nele a possibilidade do visível. Nesse ponto incandescente, no ponto em que o visível se torna reversível (e reversível como resposta à irreversibilidade do tempo), aí afloramos o vazio abissal da nossa visão. Cézanne tê-lo-á dito frente às Bodas de Caná: «É isto que um quadro deve começar por dar-nos, um calor harmonioso, um abismo onde o olhar penetre, uma surda germinação. Um estado de graça colorida.» [102] A pintura é um dos meios propícios para fixar a reversibilidade do visível. Sentir-se potencialmente visto por tudo o que existe não é um delírio óptico do pintor; é a condição da incandescência. ——— A formação do olho é a consequência milenar (e, neste sentido também, a recordação) da sensibilidade da matéria à luz. É o momento — Jean-Marie Pontévia, La peinture, masque et miroir. Écrits sur l’art et pensées détachées I, Bordéus, William Blake and Co. Édit., 1993, p. 28 (segunda edição). 12 Ibid. 11
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incandescente — da reversibilidade do visível: o que estava apagado acende-se, o que não via passa a ver. A pintura repete esse momento em que o visível se torna vidente. O que procuramos na pintura é o instante evidente. Cada instante pictural repete a aparição do olho. E toda a grande pintura devolve-nos a virgindade do olhar porque, antes de mais, dá a ver o surgimento da visão, o visível originando-se. Repetição interminável do primeiro momento; passagem, não do invisível para o visível (como quiseram todas as metafísicas da pintura), mas do invisual (da ausência de visão) para a visualidade (para a possibilidade da visão). Repetição do momento que ninguém viu. A pintura é o nosso (primeiro) mito óptico. ——— Se o pintor pinta no lugar de ninguém, a incandescência designa rigorosamente a coincidência entre morrer e pintar. O ponto de incandescência é o olhar do morto antes de nascermos. É o olho que nunca veremos — senão através de um corpo incandescente. É essa a força divina da arte — e não há outra: vermo-nos (ficcionarmo-nos) desde sempre mortos faz-nos renascer; vermo-nos (imaginarmo-nos) no lugar de nada é a condição para fazer tudo. O divino é o corpo na arte. «Quero perder-me na natureza — terá dito Cézanne —, voltar a nascer com ela, como ela, possuir os teimosos tons da rocha, a obstinação racional do monte, a fluidez do ar, o calor do sol.» [87] ——— Os corpos divinos, no passado, distinguiam-se pela auréola: oval, circular, um halo ou um nimbo. Um esplendor que circundava ou planava sobre a cabeça sagrada. A auréola é o vestígio histórico da incandescência. 37
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Mas se tudo o que existe é «uma recordação de sol», na pintura só há corpos divinos. (Quando todos os corpos são iguais perante o Sol — e tal é a verdade elementar da pintura cézanniana —, já nenhum é aureolado.) É assim que a arte se liberta — definitivamente — da religião: expondo-se como o único lugar divino. Mostrando que a religião é que sempre dependeu da arte — como ficção: como lugar da matéria morta que perpetuamente dá vida. ——— Só a arte pode mostrar a luz intranatural. Luz anterior à vida por formar e posterior à vida já formada. Mas luz que a natureza, por si só, é incapaz de dar a ver (estou praticamente a citar de novo Aristóteles — desta vez, o célebre texto da Física B, 199 a). O pintor procura arrancar essa luz à natureza — ou procura «forçar o arcano da natureza», como dirá Balzac (ainda nutrido da suspeição ou mesmo da convicção — ausente em Cézanne — de que a natureza guardaria um segredo).13 Mas o que é que leva o pintor até ao mais fundo da natureza? Qual é a origem da reversibilidade do visível? Se a incandescência, na realidade física, se deve a certas propriedades de um corpo submetido a alta temperatura, qual é a sua origem na realidade psíquica (de um pintor)?
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A obra-prima…, op. cit., p. 37.
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Esta questão já não pertence a Cézanne, pelo menos nestes termos, embora tenha sido ele — a sua pintura — a possibilitar uma tal formulação. Um outro pintor formulou-a (sonhou-a) assim: Estou em Tomelloso, diante da casa onde nasci. Do outro lado da praça há umas árvores que nunca cresceram ali. À distância reconheço as folhas escuras e os frutos dourados dos marmeleiros. Vejo-me entre essas árvores junto dos meus pais, acompanhado por outras pessoas que não logro identificar. Até mim chega o rumor das nossas vozes. Conversamos calmamente. Os nossos pés estão afundados na terra barrenta. Ao nosso redor, presos nos seus ramos, os frutos rugosos estão cada vez mais tensos. Grandes manchas vão invadindo a sua pele e no ar imóvel apercebo-me da fermentação da sua carne. Do lugar donde observo a cena, não posso saber se os outros vêem o que eu vejo. Ninguém parece notar que todos os marmelos estão a apodrecer sob uma luz que não sei como descrever, nítida, embora sombria, que tudo converte em metal e cinza. Não é a luz da noite. Nem a do crepúsculo. Nem mesmo a da aurora…14 … «nítida, embora sombria, que tudo converte em metal e cinza.» Luz do fogo que jaz nos corpos. Luz — dir-se-ia — ela mesma em cinza. 14 Sonho do pintor Antonio López, narrado em El sol del membrillo, de Víctor Erice (Espanha, 134’, cor, 1992).
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Luz sob a qual tudo já apodrece. Não é a luz da aurora nem a do crepúsculo, sem ser a da noite que precede a aurora e sucede ao crepúsculo. É a luz da noite que não passa. Para pôr o mundo a incandescer, é preciso ver o dia a essa luz, é preciso ver a noite que luz! A luz da pintura — a luz intranatural — é isso mesmo: o dom luminoso inseparável da obscuridade abissal. Julgo que foi isto que Nietzsche viu quando comparou os heróis de Sófocles a imagens luminosas projectadas numa parede escura: passamos pela experiência súbita de um fenómeno que tem uma relação inversa com um outro conhecido fenómeno óptico. Quando insistimos em olhar de frente o Sol e desviamos o olhar, encandeados, vemos pequenas manchas escuras que têm como que um efeito terapêutico para os olhos. Inversamente, aquelas imagens luminosas do herói da tragédia de Sófocles — em suma, o elemento apolíneo da máscara — são necessariamente criações de um olhar projectado para o mais fundo e mais terrível da natureza, como se fossem manchas luminosas destinadas a curar o olhar afectado por uma noite aterradora.15 A incandescência tem um «efeito terapêutico» — para não dizer já, com mais rigor, catártico, como o contexto obrigaria. Fomos tocados — irremediavelmente — por um terror desde a noite dos tempos. E a arte não cura (como provavelmente queria Nietzsche) mas cuida disso: de um trauma que é crónico. A arte são os sinais luminosos que incrustamos na abóbada da noite sem fim. Não saímos da caverna. ——— 15 Este fragmento, do Nascimento da tragédia, é uma tradução inédita de João Barrento, a quem muito agradeço a colaboração amigável: Friedrich Nietzsche, Die Geburt der Tragödie. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, ed. Colli/Montinari. Vol. I. Munique: dtv / Berlim: Walter de Gruyter, 1980, p. 65.
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O pintor vê no fruto a sua fermentação, na montanha o fogo que a formou, nos corpos a centelha que os consome. «Olhe para esta Sainte-Victoire. Que impulso, que sede imperiosa do sol e que melancolia, à noite, quando todo este peso volta a cair… Estes blocos eram fogo. Ainda há fogo neles. Durante o dia a sombra parece que recua arrepiada, por sentir medo deles; lá no alto fica a caverna de Platão». [68-69]
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nas páginas anteriores: La Montagne Sainte-Victoire vue des Lauves, 1902-1906, óleo sobre tela, 65 x 81,3 cm La Montagne Sainte-Victoire vue des Lauves, 1904-1905, óleo sobre tela, 60 x 73 cm
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A lição de Cézanne
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As páginas seguintes retomam e prolongam as notas de apresentação do filme Une visite au Louvre, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, textualmente baseado na segunda parte do livro O que ele me disse…, de Joachim Gasquet. Essa segunda parte, intitulando-se «O Louvre», é uma digressão ficcionada de Cézanne pelo Museu. A sessão ocorreu a 17 de Julho de 2014 no Atelier-Museu Júlio Pomar, graças ao amável convite de Paulo Pires do Vale.
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A «lição», no sentido antigo e estrito do termo, significa leitura (lectio). Cézanne lê a pintura continuamente no Louvre, e é aí que volta para dar uma lição de pintura. «Sim, o Louvre é o livro onde aprendemos a ler.» [107] Se o museu é o lugar onde se aprende a ler o livro (da pintura), no atelier este é escrito e reescrito. Ora, ninguém escreve sem primeiramente saber ler, e tal é a razão pela qual todo e qualquer atelier contém em si mesmo um museu; todo e qualquer atelier é, pelo menos implicitamente, um atelier-museu. Inversamente, Cézanne visita o museu como se frequentasse um atelier, lembrando-nos que todo e qualquer museu provém de um atelier — ou que o museu, para o artista, é necessariamente um museu-atelier, pelo menos em potência (quando não o era em acto, precisamente ao longo do século XIX, com a abertura por toda a Europa das colecções privadas). ——— Se, no museu, se aprende a ler, isso possibilita escrever (fazer) a história: encontramo-nos então no museu-atelier. Quando nos retiramos do museu — e procuramos esquecer tudo (e procuramos libertar-nos, como dirá Cézanne) —, reencontramo-nos no atelier-museu. ———
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Escrever (inscrever) manifesta o saber-ler porque, na realidade, ler já é escrever (sem inscrição). A leitura é uma escrita que não deixa rasto: escrita plenamente interior ou apenas sussurrada. Só por essa razão — e não por qualquer reverência suspeita — se deve fazer silêncio num museu: alguém, ao nosso lado, pode estar a escrever interiormente. O museu é um atelier latente, e no atelier reabrem-se todos os museus — podendo daí surgir, manifestamente, um outro museu. ——— O museu — que causará, para Adorno, tanto a mortificação da cultura como o ressurgimento da obra1 —, o museu é simplesmente ainda, para Cézanne, o lugar onde se aprende a ler, quer dizer, a pensar : a ler-escrever. O lugar onde se lê (uma pintura) e se escreve sem rasto (uma outra pintura). Pensar é saber ler o que não foi escrito — e que pede para ser inscrito — no já-escrito. Mas pensar é também saber apagar o que pede para ser silenciado. De uma e de outra maneira, não há pensamento sem escrita, e a possibilidade de uma inscrição (mesmo branca) provém sempre do saber-ler. Cézanne dá a pensar a inseparabilidade entre museu e atelier, a relação primeira e vívida entre os dois termos. Primeira e vívida porque nos deve reconduzir àquilo a que Cézanne (também Cézanne) dá o nome geral de «natureza». De resto é por isso que na natureza, principalmente na natureza, assentará o atelier de Cézanne, assim como o Louvre — o Museu universal da arte (pelo menos até ao início do século XX) — será a principal escola de Cézanne. «No fundo penso que o artista, no Louvre, acaba por aprender a pensar. Na natureza aprende a ver.» [107] ——— São os dois pólos através dos quais Theodor W. Adorno analisa, em 1953, a oscilação do museu: «Valéry Proust Musée», in Prismes, traduzido do alemão por Geneviève e Rainer Rochlitz, Paris, Payot, 2010. 1
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Numa lição, dá-se a ler (um autor, uma obra, um acontecimento); Straub e Huillet revisitaram o Louvre para dar a ouvir e a ver a lição de Cézanne. Quem a profere ou a professa é uma voz feminina: é a voz, provavelmente, que dita a lição a Cézanne; voz áspera da pintura que, no final do filme, declara: Je suis Cézanne.2 Sim, é a pintura que dá a lição em Cézanne e, se dúvidas restassem, leia-se um pouco antes no testemunho de Gasquet (uma frase omitida mas subentendida ao longo de todo o filme): La peinture… c’est moi… Esta frase não significa: toda a história da pintura converge até mim ou resolve-se em mim; mas antes: «eu» não sou mais do que «a pintura» — e se a pintura, como tal, não existe, ela acontece porém tão completamente nalguns seres que estes têm de se anular como sujeitos (mais rigorosamente: como subjectividades conscientes ou presentes a si mesmas). Não é Paul Cézanne quem pinta, é a pintura que se pinta através de «Cézanne». Heidegger dirá (numa palavra): o artista é «quase como uma passagem [Durchgang] que se destrói a si mesma no criar».3 Cézanne, obstinadamente face à montanha Sainte-Victoire ou diante do mar de L’Estaque, indiferente ao calor ou ao frio, leva-me a agravar aquele dito: «Cézanne»: pura passagem para que a pintura se pinte (precedendo qualquer intenção ou julgamento do sujeito — qualquer permanência do objecto). ——— Aos acontecimentos em que a pintura se pinta, Cézanne dá o nome de «mestres». A lição de Cézanne adensa-se em torno dessa palavra:
2 Une visite au Louvre (França, versão I / 48’, versão II / 47’, cor, 2003; a voz feminina é de Julie Koltaï). 3 Martin Heidegger, «A origem da obra de arte», in Caminhos de floresta, tradução de Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 36.
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