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título original: cagliostro
© sistEMa solar, Crl (2021) rua Passos ManuEl, 67B, 1150-258 lisBoa tradução © aníBal FErnanDEs 1.ª EDiÇÃo, agosto DE 2021 isBn 978-989-8833-59-4 na CaPa: JEan antoinE HouDon, o conde de cagliostro (1786) rEVisÃo: Diogo FErrEira DEPÓsito lEgal 487378/21 iMPrEssÃo E aCaBaMEnto: aCD Print, sa rua MarQuEsa D’alorna, 25-19 2620-271 raMaDa
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É difícil falar de Baudelaire sem lhe acrescentarmos, em pensamento ou palavras, a autoria de as Flores do Mal; também é difícil passar por Walt Whitman sem lhe associarmos de imediato as suas Folhas de Erva. Quer isto dizer que há obras literárias subjugadas por um título; que não podem estender-se a outros textos sem os deixar numa implacável lateralidade, sem os deixar invadidos pelos ecos de uma poderosa e sonora sombra. o chileno Vicente Huidobro, menos célebre e menos central como voz da literatura, também é — quando vem à baila numa frase com mais especializado conhecimento da poesia universal — o autor de altazor, o seu longo poema com seis cantos e um Prefácio em prosa, exemplo de um movimento lírico (o criacionismo — as palavras pelo som, e muito menos pelo seu significado) posto a circular depois da primeira grande guerra mundial; onde o leitor e a personagem do poema se vêem arrastados por uma imaginação sideral de aerolitos, cometas e arco-íris: — sinto um telescópio apontado para mim como um revólver. a cauda de um cometa fustiga-me o rosto e ele passa, recheado de eternidade… os planetas giram à volta da minha cabeça, e despenteiam-me quando passam com o vento que deslocam. Foi em 1893 e na cidade de santiago que ele nasceu, mas pouco ou nada se lhe nota dos prestígios bancários e das raízes agrárias da sua família. com pouco chile na cabeça, bem cedo
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se deixou entusiasmar pelo mundo. ali ao pé havia a mais europeia Buenos aires, para onde Huidobro bem cedo começou a fugir do seu chile, imensa língua de terra entalada entre os andes e o mar, onde já havia uma gabriela Mistral quatro anos mais velha do que ele e a fazer versos, mas ainda longe de poder impressioná-lo com os sonetos de la Muerte e com Desolación; onde o menino Pablo neruda, onze anos mais novo, precisaria de mais uns tantos para chegar aos seus Veinte poemas de amor y una canción desesperada; onde José donoso só começaria a existir em 1924; onde roberto Bolaño esperaria por 1953 para chegar à luz dos seus dias… Vicente Huidobro pertencia à pije ou ao pituco (a alta classe chilena apontada com estas palavras na linguagem popular do seu país); tinha consigo o prestígio sanguíneo da casa real de la Moneda do chile e posses para fazer viagens na europa; para frequentar com comodidade Madrid e sobretudo aquele Paris que o dominou e fez escrever em francês um terço da sua obra literária. embora a europa o apaixonasse intelectualmente, foi chilena a decisiva paixão física que fez dele homem casado aos dezanove anos de idade. e desde 1911 (um ano depois do seu casamento) foi poeta publicado com Ecos del alma, acrescentado por la gruta del silencio e Canciones en la noche (ambos em 1913), por Pasando y pasando e las pagodas ocultas (ambos em 1914). Mas Horizon carré, de 1917, é publicado em francês e em Paris; e sucedem-se depois dele outros títulos com a chancela de editores franceses, espanhóis e chilenos, determinados pelo acaso das línguas e dos lugares. Huidobro chegou a Berlim e estocolmo; e procurou aí impor-se com o que ele chamava «criação pura», poemas pintados,
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inspiração poética com uma independência alheia ao idioma de cada país. Huidobro também argumentava que o homem, limitado nos seus primeiros tempos a ver, ouvir e pensar, captando apenas o seu universo de forma directa e pelos seus sentidos, tinha conseguido fixar mecanicamente a visão, inventando a fotografia; ouvir indirectamente e à distância, inventando o telefone; fixar a voz, inventando a grafonola; e chegar à complexidade sensorial do cinema… que acrescentava à fotografia animada um mudo «pensamento mecanicamente transmitido». em 1916 já o Huidobro-poeta, impressionado pelos documentários que mostravam a grande guerra aos espectadores do cinematógrafo, falava dessa nova ilusão: o sonho de Jacob realizou-se: abre-se um olho à frente do espelho E as pessoas que chegam à tela Deitam fora a sua carne como um casaco velho. a película mil novecentos e dezasseis sai de uma caixa E a guerra europeia Chove sobre os espectadores. sete anos depois, em 6 de Maio de 1923, o jornal de Paris l’Ère nouvelle anunciava que Vicente Huidobro, o poeta puro de Horizon carré e tour Eiffel, tinha terminado «o guião de Cagliostro1, um filme onde a acção era especificamente cinematográfica e visualizada com um agudo sentido do ritmo óptico-dinâmico.» 1
Ler Calhiostro.
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Huidobro tinha-se fascinado com o expressionismo de imagens contrastadas e cenários demencialmente transtornados de o gabinete do Doutor Caligari; tinha apanhado um choque violento com as imagens nosferáticas de Murnau. e isto fazia-o sonhar com um misterioso cagliostro visto numa sala escura, com bem marcados brancos e negros, obediente às lições desse germanismo cinematográfico que acrescentava à realidade uma artificiosa e nunca antes vista dimensão de horror. o primeiro texto de Cagliostro (escrito em francês) submetia-se à forma guionista dos argumentos para cinema, e Huidobro chegou a contratar para o seu projecto um realizador romeno — Mime Mizu (também dançarino, actor de teatro e de pantomimas, que viria a ter uma carreira com — pelo menos — seis filmes, cinco alemães e um americano). Houve, segundo se sabe, filmagens; e também se sabe que este Cagliostro chegou em 1923 à fase de montagem, mas que Huidobro muito pouco lhe encontrou do caligarismo formal, sonhado para a obra onde o seu nome aparecia como argumentista e produtor; e que o desentendimento entre Huidobro e Mizu foi insanável. o filme nunca foi estreado e desconhece-se hoje o destino, provavelmente de chamas, que Huidobro determinou ao seu frágil e combustível celulóide. ao guião de Cagliostro coube, no entanto, um singular prolongamento que se estendeu até uma glória e um posterior mau acaso. em Julho de 1927, às páginas do new York times chegou o anúncio desta glória: «Vicente Huidobro, jovem poeta e novelista chileno, ganhou um prémio de dez mil dólares que a liga Por Um Melhor cinema oferece ao texto do ano com maiores possibilidades de ser adaptado ao cinematógrafo. o livro, ainda sob a forma de guião e entregue a editores de Paris, intitula-se Cagliostro e baseia-se
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na vida do muito conhecido mágico e místico do século XViii.» o mau acaso veio a acontecer nesse mesmo ano porque o Cantor de Jazz, um filme da Warner Brothers, inaugurava o cinema sonoro e punha de repente na prateleira muitos projectos e actores só pensados para se mostrarem na tela sem voz, para se imporem na representação com essa expressividade corporal intensa, característica do cinema mudo. o imprestável guião, porque hostil à novidade sonora e visual do cinema, foi convertido numa novela escrita em castelhano e publicada em 1934 como «novela visual». a sua edição em inglês (Cagliostro, Mirror of a Mage) foi antecedida por esta explicação do autor: no que respeita à forma deste livro, só quero dizer que podemos chamar-lhe uma novela visual, feita com uma técnica influenciada pelo cinema. Creio que o actual público, já com hábito adquirido do cinema, conseguirá interessar-se por uma novela com palavras que o autor escolheu pelo seu carácter visual e cenas idealizadas para serem compreendidas pelos olhos. […] a construção das personagens deve ser agora mais sintética, mais compacta do que era. a acção não pode ser lenta. os acontecimentos devem movimentar-se com maior rapidez. se assim não for, o público aborrece-se. no entanto, a leitura desta novela faz-nos compreender que houve uma adaptação do texto cinematográfico à literatura. a sua acção é «visual» mas literária; e é improvável que um guião pensado para o cinema mudo tivesse diálogos de página inteira, que exigiriam sucessivos intertítulos com extensas interrupções da imagem e que dariam um inevitável desequilíbrio do ritmo cinematográfico. o Cagliostro de Huidobro sucedeu tardiamente na literatura a outras obras mais e menos conhecidas, inspiradas por esta
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controversa personagem da história e do mito. lembremos apenas — numa lista que poderia ser extensa — a descrição que goethe faz de uma visita à mãe e à irmã de cagliostro, incluída na Viagem à itália (italienische reise) de 1816/17; que Count Cagliostro, o texto de thomas carlyle, é de 1833; que Joseph Balsamo, o extenso romance de alexandre dumas (primeira parte da série que continua com le Collier de la reine, ange Pitou e la Comtesse de Charny) é de 1853; que em 1874, camilo castelo Branco traduziu do italiano uma obra que teve o título português Compêndio da Vida e Feitos de José Bálsamo chamado o Conde de Cagliostro ou o Judeu Errante; e ainda que a competente prosa de o grande Cagliostro de carlos Malheiro dias é um romance de 1905, baseado na estada do «mágico» em Portugal, quando foi perseguido e vigiado por Pina Manique durante o reinado de d. Maria i; e que o capítulo «cagliostro» de Bram stoker, incluído em Famous imposters, é de 1910. Huidobro, ao contrário do que acontece nesta série de textos que descrevem cagliostro como um hábil e perigoso prestidigitador com acentuada vertente de burlão, sonha-o com os poderes mágicos necessários ao lado negro que caracterizou alguns dos altos momentos do expressionismo cinematográfico alemão. «Vemo-lo», na França, salvar através do pensamento duas personagens que na rússia distante correm o risco de cair num abismo; «vemo-lo» fazer crescer e florir instantaneamente plantas ressequidas pelo inverno; «vemo-lo», numa sucessão de cenas, com as possibilidades de um verdadeiro mágico. e «vemo-lo» sair da novela-filme com uma lorenza momentaneamente morta, indiferente às verdades biográficas do seu melancólico final.
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* Mas quem foi este cagliostro, inventado conde com um inventado nome inspirado no nome de um tio já morto? nasceu em 1743 na sicília, em Palermo, e era filho de um pouco abastado comerciante Pietro Balsamo. o baptismo chamou-lhe giuseppe (mas os mais íntimos Beppo): desde cedo criança gorda e perversa, pouco simpática entre os vizinhos, teve a significativa alcunha de Beppo Maledetto. depois de ser órfão de pai, um tio internou-o no seminário de são roque, uma reclusão entremeada por fugas que ele executava com exemplar regularidade. Já adolescente, entrou como noviço no convento de cartagirone, onde lhe foi dada a incumbência de guardar uma farmácia com frascos e retortas (os que talvez se gravassem na sua memória e chegassem ao papel decisivo que tiveram na sua carreira de falso médico e curandeiro). Mas giuseppe suportava mal o silício que lhe era entregue para punir os pecados da gula e os pensamentos do mundo; suportava mal os monges que comiam enquanto ele, de pé, era obrigado a ler-lhes em voz alta as páginas do Martirológio. giuseppe revoltou-se; sentiu-se farto do convento. lá fora, Palermo tinha agitações e excitações que o fascinavam; tinha os seus queridos fora-da-lei. Perante esta cabeça a voar para além dos muros do convento, os reverendos Benfratelli, com um consentimento maldisposto que só disfarçava um verdadeiro alívio, viram-se livres dele. restituído ao mundo, giuseppe começou por sentir-se pintor. Mas como a pintura poucos proventos lhe trazia, falsificou com esse mesmo talento bilhetes de teatro. também terá sido um assas-
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Lorenza Feliciani.
sino? Há suspeitas de que tenha morto um cónego. Foi várias vezes preso. e os seus intermitentes períodos de liberdade fizeram-no sentir, com irresistível força vital, que necessitava de largos horizontes. Bastante mais tarde, um homem da inquisição escreverá: «Fugiu de Palermo e percorreu todos os lugares do mundo.» É, claro está, um exagero: teve lugares que ficaram muito longe de ser «todos os do mundo», mas foram para a época um grande número. giuseppe começou por parar logo ali, em Messina, onde encontrou «o sábio» althotas que sabia (quis fazer-se crer) transformar a cânfora em seda. estiveram ambos no egipto; mas tempos depois já a sombra de Beppo pairava com má nota em roma, em nápoles, na calábria, acompanhado por althotas. este giuseppe de vinte e cinco anos de idade, marcado pela sorte com um físico de aparência sinistra — «pescoço de touro e face de cão» — conseguiu ainda assim casar-se com a bela lorenza Feliciani, uma jovem com dezanove anos, e partir com ela para as estratégias embusteiras que viriam a ser centro de um infindável mundo de aventuras.
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surgem os dois em Veneza, Marselha, Madrid, cádiz, lisboa, Bruxelas… Fazem uma peregrinação científica até à Vestefália, para se encontrarem com o charlatão saint-germain (que lhe comunica a fórmula do «elixir da longa vida», capaz de dar ao homem uma vida de dois mil anos); vão, com ares de magia (católica) a são tiago de compostela e a notre-dame de lorette. nesta época, já Beppo se dá a conhecer como marquês de Pellegrini, como conde disto e daquilo, ao sabor dos dias, embora acabasse por preferir que lhe chamassem conde alessandro cagliostro, o título que fez pomposamente soar até ao fim da sua vida. (ela, a lorenza Feliciani, acompanhava o conde como condessa seraphina). Hábil charlatão e competente escroque, conseguiu meios materiais para se hospedar em excelentes hotéis e mostrar-se numa carruagem de quatro cavalos, com bem vestida criadagem e bolsa farta. a tentação de se exibir nesta opulência entre aqueles que o conheceram pobre, fê-lo regressar a Palermo. Mas a Justiça siciliana, com boa memória, prendeu-o por antigos delitos. diz-nos goethe que um dos mais ricos príncipes sicilianos, sensível aos encantos de lorenza resolveu proteger este insinuante casal. «Balsamo foi posto em liberdade», afirma o poeta alemão, «sem se encontrar qualquer acta que mencione como foi libertado, que pessoa deu esta ordem e de que forma foi executada.» em 1772 está na inglaterra; no entanto, como é forçado a dedicar-se à pintura por os seus dotes de mágico não lhe renderem o necessário para «uma vida de conde», deixa de ter este título e desce à banalidade de um simples signor Balsamo. Mas em 1776, num regresso à ilha britânica, volta ao seu querido título. desta vez possui filtros de amor, varas divinatórias, e levanta com cantáridas ânimos velhos e cabisbaixos. tudo lhe corre bem,
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com excepção dos dias em que negócios obscuros o levaram até ao cárcere de King Bench. a partir daqui é difícil e tortuoso acompanhar as deslocações do mágico, onde a beleza de lorenza se revela uma importante fonte de recursos materiais. cagliostro incita-a a ceder aos seus apaixonados; e a estratégica aparição do marido em momentos culminantes é sempre perdoada e mantida em segredo com o contributo de avultadas somas, tão necessárias ao que ele precisa para o seu prestígio de conde. registem-se nestas movimentações a rússia, onde caiu no agrado da imperatriz catarina por se mostrar com uma competência divinatória só muito mais tarde igualada pelo místico e visionário rasputine; a França de luís XVi, onde fascinou como mágico a corte de Versalhes e foi um dos acusados do célebre roubo do colar da rainha Maria antonieta. Quando a monarquia foi anulada pela revolução, cagliostro foi republicano (e até se diz que é dele a célebre divisa «liberdade, igualdade, Fraternidade»). o seu desastre final e irremediável aconteceu na itália. cagliostro já tinha fundado em Haia o ritual egípcio da Franco-maçonaria; e tinha passado depois para roma, onde uma loja idêntica funcionava sob a sua direcção. Mas Francesco de san Maurizio, um capuchinho infiltrado e espião do santo ofício, apresentou provas suficientes para a inquisição levar cagliostro a julgamento «por blasfémias contra o senhor». com algum espanto — ou talvez não — os depoimentos de lorenza foram essenciais para o incriminar. em 1791 cagliostro foi condenado pela inquisição à morte; era herege, bruxo e maçónico; mas a clemência papal livrou-o dessa fatalidade comutando-lhe a pena para prisão perpétua. começou
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Cagliostro numa das suas sessões de magia.
a cumpri-la ali, no centro de roma, nesse castelo sant’angelo que hoje visitamos como pacífico museu mas foi prisão de reis e refúgio de papas. como tentou fugir, foi transferido para outra prisão mais severa, o castelo-fortaleza de san leo na província de Pesaro e Urbino. Morreu aí quatro anos depois, em 26 de agosto de 1795, com cinquenta e dois anos de idade. lorenza também foi condenada a prisão perpétua; cumpriu-a no convento de santa apolónia de Florença, e morreu em Maio de 1810. * em 1925 (dois anos depois do fracassado filme Cagliostro) Vicente Huidobro está de novo no chile e a sentir muito fortemente que é cidadão com grande responsabilidade nos destinos do seu país. Funda um periódico de carácter político, ao qual deu o nome de acción, que incita com veemência à «purificação nacional», ou
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seja, à união do Paraguai, do Uruguai, da Bolívia e do chile; encerrado pelo governo, faz-lhe suceder outro na mesma linha mas mais comedido, que surgiu com o nome la reforma. o seu casamento de dezasseis anos começa a correr mal; Vicente Huidobro é demasiadamente volúvel para a serenidade de Manuela Portales Bello, descendente de uma respeitável família venezuelana onde existe o prestígio do poeta e diplomata andrés Bello, e mãe dos seus quatro filhos; o inevitável divórcio é de 1926 e já feito com a perspectiva de outro casamento, este com Ximena amunátegui, alheio às tradições católicas do seu meio e consagrado pelo ritual muçulmano. em 1931 passou a ser autor do famoso poema altazor, que começa por este anúncio: nasci com trinta e três anos, no dia da morte do Cristo; nasci no Equinócio, por baixo das hortências e dos aeroplanos do calor… altazor fez de Huidobro um reconhecido poeta chileno; e o seu papel, como director de polémicos jornais, continuou também a mostrá-lo como incansável activista político. Foi nesta última fase literária que Huidobro intercalou na bem alimentada prestação poética seis ficções em prosa — três publicadas em 1934: Cagliostro; la próxima (Historia que pasó en un tiempo más); Papá o El Diario de alicia Mit; — em 1939 sátiro o El Poder de las Palabras; em 1935 tres inmensas novelas (estas em colaboração com o dadaísta Hans arp) e em 1929 o romance chamado Mio Cid Campeador. a sua actividade literária, muito de vento em popa, foi enfraquecida pela segunda guerra Mundial; o poeta esmoreceu a favor de outro Huidobro, o jornalista chileno que se fez correspondente de guerra em Paris.
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a paz de 1945 devolveu-o ao chile; deu-lhe a direcção de mais uma revista que se chamou actual, e levou-o a um segundo divórcio que teve como principal motivo o seu relacionamento amoroso com raquel señoret guevara, trinta anos mais nova do que ele. em tudo isto Huidobro mostrava uma intensa actividade física e intelectual que não lhe prenunciava o inesperado fim: — em 2 de Janeiro de 1948, aos cinquenta e cinco anos de idade, quando não pôde resistir às consequências de um derrame cerebral. Foi enterrado em cartagena, Valparaiso; e, de acordo com a sua vontade, num túmulo onde «pudesse ouvir-se o ruído do mar». Vicente Huidobro foi um poeta insatisfeito com a sua poesia; depois de tudo o que escreveu, de o celebrarem por altazor, pela elasticidade de Equatorial, pela graça dos Poemas árticos, pelo vigor de tout à coup, pelo «aceso claro-escuro» de El ciudadano del olvido, viu-se nesta frase melancólica: — um poema é uma coisa que nunca é, mas que devia ser. a.F.
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prefácio
Já toda a gente ouviu, sem dúvida alguma, falar de Cagliostro. um homem tão misterioso, rodeado por uma vida tão misteriosa, não pode deixar de interessar às pessoas, e sobretudo aos que sentem curiosidade por coisas curiosas. Quem era Cagliostro? se procurarmos o seu nome num dicionário enciclopédico, por exemplo o larousse, encontraremos as seguintes palavras: «Cagliostro. Hábil charlatão, médico e ocultista italiano (ao que parece) que nasceu em Palermo e morreu (ao que se diz) no castelo de san leon perto de roma (1743-1795). teve um grande êxito na corte de luís XVi e na sociedade parisiense desse tempo; desempenhou um grande papel na franco-maçonaria, andou metido em vários affaires e no famoso affaire do Colar. Depois mudou-se para roma, onde foi condenado à morte pela inquisição; a pena foi-lhe comutada por prisão perpétua.» outras enciclopédias dizem que nada se sabe ao certo sobre a sua origem, nem mesmo sobre a sua morte. outras acrescentam que se fazia passar por mágico e dizia que fabricava ouro, possuía receitas maravilhosas para aumentar o volume das pérolas, dos brilhantes e de outras pedras preciosas, e também conhecia o elixir da longa vida. De acordo com alguns, levou a sua audácia ao ponto de garantir que podia adivinhar
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os números de qualquer lotaria. Em determinada ocasião afirmou com ar sério que vivia na terra há mais de três mil e quatrocentos anos, e outro tanto tinha para viver. Para nada faltar à sua lenda, chegou a ser dito que Cagliostro se achou capaz de ressuscitar os mortos. segundo estes autores, o extraordinário poder deste homem deve atribuir-se ao facto de ser um hábil charlatão, um prestidigitador de primeira ordem; as maravilhas que a seu respeito se contam devem ser atribuídas, dizem eles, à sugestão colectiva, porque este homem conheceu antes de quaisquer outros (há aqui uma pequena concessão) certos fenómenos de hipnotismo e magnetismo. Quer isto dizer que este mágico charlatão, que este mágico prestidigitador realizava verdadeiros milagres apenas devidos à sugestão colectiva; não eram, portanto, verdadeiros milagres, mas falsos milagres, milagres fingidos. Fazia crer que fabricava ouro, fazia crer que possuía a pedra filosofal, fazia crer que aumentava o volume das pedras preciosas, etc. Curioso argumento este, que ao querer desacreditar feitos maravilhosos explica-os com outros não menos maravilhosos. Que recusa um extraordinário em nome de outro extraordinário. Porque é inegável que um homem com o poder de sugestionar toda uma colectividade, para fazer ver o que deseja que ela veja, seria pelo menos tão extraordinário como o homem que fabricasse ouro, que dilatasse a vida ou fizesse pérolas crescer, facto tão maravilhoso como os outros. Estes falsos homens de ciência, da geração de há uns trinta ou quarenta anos, que nada querem aceitar além de que comemos e digerimos, e se insurgem contra qualquer fenó-
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meno dotado de alguma estranheza, e ao tentar explicá-los embrulham-se e enredam nas palavras e nas razões, acabam por dizer disparates que nada explicam e dariam vontade de rir, se não metessem pena. não se acredite com isto que eu seja impressionado por milagres e creia em todos os prodígios contados pelas beatas de aldeia. nem pouco mais ou menos. apenas me parece que há fenómenos ainda desconhecidos; e quando não podem ser explicados de forma inteligente, mais valerá não serem explicados e declararmos com franqueza que não podem por enquanto explicar-se. Parece-me uma atitude mais digna e menos ridícula do que darmos explicações medíocres. Por que havemos de achar impossível que os alquimistas de outros tempos tenham fabricado ouro? Por ser demasiado extraordinário? não estamos rodeados de extraordinário? não é de igual forma extraordinário pormos um disco numa grafonola, e essa espécie de prato de massa ou celulóide reproduzir a voz humana? E a telegrafia sem fios? E a televisão? E todos os fenómenos da electricidade? será, por acaso, pouco extraordinário um débil fio poder transmitir, desde um dínamo distante, a força necessária para pôr centenas de eléctricos a correr numa cidade? Perguntar-me-ão: se alguns alquimistas conseguiram fazer ouro, por que motivo hoje não o fazem? Bem pobre problema isto é sabendo, como todos sabemos, que um invento pode perder-se. Hoje não sabemos com precisão absoluta como é que arquimedes queimou à distância as naves inimigas. além disto, houve entre os ocultistas fórmulas que não passavam de mão em mão como as que hoje passam entre os homens de ciência. Essas
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fórmulas eram expressas com símbolos intencionalmente obscuros, e só os grandes iniciados podiam descobrir-lhes o segredo. Por outro lado, não acho muito difícil admitirmos que um homem tenha inventado qualquer coisa, tenha-a apresentado a alguns amigos e depois morrido sem nunca dar explicações sobre as suas experiências. ninguém negará que isto pode acontecer, e pode ter acontecido. nem que não possa ser Cagliostro esse homem, ou um desses homens. Quem poderá afirmar, e em nome de quê, que Cagliostro não fabricou artificialmente ouro, não aumentou o volume a diamantes, não adivinhou números de lotarias e não curou doentes que outros médicos consideraram perdidos? isto equivaleria a sustentar que em todos os homens a ciência terá de ser forçosamente idêntica. Cagliostro um charlatão? É possível; todos os médicos são charlatães. ide assistir a uma sessão da academia de Medicina. Que magnífica charlatanice e que segurança na charlatanice! leiam-se as memórias apresentadas desde há quarenta anos a esta parte nas academias médicas e nos institutos, para fazerdes o cômputo das teorias discutidas, admitidas e hoje sem validade. Que brilhante charlatanice, e tão rotunda segurança na charlatanice! Qual era a grande pretensão de Cagliostro? Possuir certos segredos que os seus contemporâneos desconheciam, curar as enfermidades do corpo e sobretudo as do espírito, para adquirir um real ascendente sobre os homens e os povos. Com que objectivo? uns vêem-no como representante visível de certas seitas ocultas que perseguiam um fim desconhecido; outros dizem que só queria implantar na terra um regime de maior justiça social e liberdade de ideias.
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o autor deste livro não acompanhou Cagliostro em todas as peripécias da sua vida. nada vai contar-vos das suas viagens a inglaterra nem do processo que teve com a Justiça de londres, onde os próprios acusadores reconheceram que ele lhes tinha dado repetidas vezes números da lotaria premiados; nada vos será contado sobre a sua viagem à rússia e a sua permanência na corte de Catarina, nem sobre os anos que viveu na itália. apenas se quis contar, com um negro tom menor, a sua vida e a sua lenda na França. De onde vinha? Para onde ia? são coisas que ele sempre quis deixar cobertas por mistério. o autor quis respeitar este desejo. as eternas perguntas que diferentes autores fizeram sobre Cagliostro devem ser respondidas num livro mais científico do que este. Cagliostro era uma personagem ao serviço de uma nação ou de uma seita oculta que pretendia mudar o regime político de toda a Europa? só era um inspirado, ou um homem ao serviço de projectos secretos? Que mão misteriosa, e com que intenção, guiava tão estranhas personagens como saint-germain e Cagliostro? Quando Cagliostro dizia que tinha vivido milhares de anos e ainda viveria muitos séculos, referia-se a um facto material ou apenas ao espírito revolucionário que ele parecia no seu tempo encarnar? a melhor resposta para estas perguntas e para todas as acusações de que o seu nome foi objecto, encontramo-la nestas palavras suas: «não sou de nenhuma época nem de nenhum sítio. Fora do tempo e do espaço, o meu ser espiritual vive a sua eterna existência; e se eu me afundar no meu próprio pensa-
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mento e subir o curso das idades, se eu levar o meu espírito a um modo de existência alheia àquele que podeis compreender, chego então a ser o que desejo ser… Julgai os meus costumes, ou seja, os meus actos, e decidi se são bons; se já vistes outros com maior força; mas não vos ocupeis da minha nacionalidade, nem da minha classe, nem da minha religião.» Eu quis escrever sobre Cagliostro uma novela visual. a sua técnica, o modo de ela se expressar, os acontecimentos escolhidos, acontecem com uma forma realmente cinematográfica. Julgo que o actual público, com o hábito que já tem do cinematógrafo, pode compreender sem grande dificuldade uma novela deste género. De todas as minhas leituras e das minhas reflexões sobre uma tão misteriosa personagem, nasceu esta novela-filme. aquilo que a minha fantasia lhe atribuiu talvez seja menos do que ele conseguiu fazer, do que ele talvez tenha feito e nós ignoramos. Quando se têm costas largas, elas podem aguentar uma boa carga, e a tentação é grande… só aos ricos devemos fazer empréstimos, disse um psicólogo. Vicente Huidobro.
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