fala mariam de lisboa
PINTURA 2003-2019
com ensaio de Tomás Maia
Templo da Luz
para a Fala I
A pintura atém-se ao mistério da luz. À vaga de penumbra que a precede.
Anterioridade rarefeita, quase líquida, das pinturas recentes (2017-2019), fazendo-se já sentir em telas precedentes — por exemplo, plenamente, em o abismo (Fig. ).
O «assunto» da pintura não é interior nem exterior à pintura: é-lhe anterior. E, se assim é, o fazer da pintura é místico — que não religioso: foi a religião que posteriormente quis captar o mistério da luz (e, mais geralmente, o da existência) erguendo-lhe um ídolo para adoração.
O «assunto» é anterior mas as entidades que esta pintura dá a ver não preexistem à tela e, em rigor, não se deixam identificar. São entidades moventes e, como acontece amiúde na pré-história, parecem migrar entre espécies. A arte entifica — sem identificar (entifica um outro e nunca o mesmo). E quando uma figura parece identificável, a pintura abre aí um abismo de estranheza. — O que é um ser humano? A tela os domínios (Fig. ) mostra um ser estatelado, esguio e de braços abertos, em chão verdejante: como no poço de Lascaux, morto ou rendido a…
A anterioridade do mistério é a contínua possibilização da pintura, a acção da luz. Mesmo — e talvez sobretudo — de noite, quando, na privação de luz, se sente a sua pura possibilidade ou potência. Talvez por isso, para se aproximar da pintura, Fala Mariam se encaminhe para a noite: é a sua inclinação natural, ao invés dos vegetais que se levantam e tendem para a luz solar. Pintor é aquele que se inclina para a noite surpreendendo a luz a passar ao acto.
O Friso das Consequências da Noite é uma surpreendente série dos modos de passar da noite para o dia: estrias ultrafinas, micro-sfumatos, cores estilhaçadas, vultos velados, entalhes subtis, linhas semitransparentes, contiguidade do vivaz e do esmaecido, consequência da noite: ver, pela primeira vez, a luz do dia. (A passagem da noite para o dia é a prova de vida da grande pintura. Lição das trevas. Acerca do mesmo Friso, descubro estas palavras da pintora: «A perigosa noção nocturna da vida é a noção artística essencial. A noite quase me destruiu. Voltou depois a me ensinar. Ensinou-me o que está neste friso que pintei lentamente, continuadamente, reconstruindo-me com ele».)
O pintor pinta sempre com a mão nocturna: a que dá à luz uma pintura.
Observatório (Fig. ) parece observar-nos; como as pedras preciosas que reluzem nas órbitas dos crânios neolíticos: eis um olho de jade numa terra argilosa.
Essa mão — a nocturna — não pinta com a luz-médium, mas com a luz-fonte: aquela que ilumina a origem da luz. Emmanuel Lévinas chamou-lhe, precisamente, «luz nocturna»: «Mas a luz não será num outro sentido origem de si? Enquanto fonte de luz em que coincidem o seu ser e o seu aparecer [ paraître], enquanto fogo e sol? […] A luz como sol é objecto. Se, na visão diurna, a luz faz ver e não é vista, a luz nocturna é vista como fonte de luz. Na visão do brilhante, faz-se a junção entre luz e objecto. […] É preciso uma luz para ver a luz». Talvez esteja aqui, involuntariamente, uma das mais lúcidas definições de pintura: uma luz para ver a luz. Ainda que só a possamos ver quando se faz luz sobre a noite — ou quando a noite cai iluminada.
A pouco e pouco, uma certa aridez da tela impôs-se: para absorver a tinta e dar todo o lugar ao transparecer. A pintura é o gesto da trans-parência — do fazer-aparecer a luz. Fala Mariam escolheu o linho (belga), em detrimento do algodão, quando se apercebeu de que esse tecido é simultaneamente o mais opaco e o mais luminoso. Uma certa aridez da tela: como um torrão sedento de água.
Atracção e repulsão, fascínio e pavor, batimento íntimo — por um momento, quando as contemplei durante uma noite, ao perto e ao longe, cri que algumas telas pudessem ser percutidas no coração das trevas.
Como este texto, que deve ser lido a dois tempos, de perto e de longe, aproximando-nos e afastando-nos de cada frase, de cada tela.
Tudo isto também foi formulado por Jean-Marie Pontévia, aprofundando de forma precisa o pensamento da pintura ocidental. Com o conceito de «cintilação», Pontévia indicou uma modalidade particular da luz em que esta não é mais «o médium de toda a visibilidade», «aparecendo apenas para desaparecer». A luz, atingindo a máxima intensidade, deixa então de iluminar (este ou aquele objecto) para dar a ver aquilo que raramente vemos — a própria luz. O dom da visibilidade. E a pintura persegue esse instante luminoso, de tal modo que, para Pontévia, a tarefa do pintor reside em nos desabituar de qualquer visibilidade: «Talvez, enfim, que o visível, à força de ser visível, deixe de ser visto. O trabalho do pintor consiste então, para tornar visível o visível, em lhe retirar a sua visibilidade». O pintor, poderíamos dizer, não acrescenta nada ao mundo visível: pelo contrário, o quadro é o vestígio de uma subtracção na visibilidade para que o mundo se torne, de novo, visível. A esta luz subtractiva, que suspende a aparência do visível, torna-se dispensável a dicotomia entre figuração e abstracção: a pintura não é então nem figurativa nem abstracta. É uma figuração que se abstrai das visibilidades, que se aparta das configurações habituais. Ainda no dizer de Pontévia: é «a luz separada dos objectos que habitualmente se contenta de iluminar».
Fala Mariam escreverá, lapidarmente: é «a figuração abstracta» — a própria essência da pintura porquanto «figurar é o mais próprio do ofício do pintor de Arte». Aquela espécie de novelo a tracejado — que se desenrola de pintura para pintura, pelo menos desde a série do retiro
— figura a própria potência de figurar (Figs. - ). Diagrama materno: novelo, casulo, cápsula, célula, meteorito, nuvem… Simples projecção que voga pelo oceano nocturno do acaso e da necessidade. (À semelhança dos caldeus, dos babilónios e dos sumérios que, observando os céus, projectaram as primeiras constelações — as primeiras figurações abstractas feitas à luz nocturna.)
Qualifiquemos este fazer — «a figuração abstracta» — com o termo «transcendental», em analogia com o propósito kantiano de estabelecer as condições de possibilidade (a priori) da experiência possível: do conhecimento (dos objectos). Porém, com uma devida ressalva: na pintura não se trata de conhecer, mas de ver — e de fazer ver — a própria visão em acto. Na pintura, trata-se essencialmente de «tornar visível» (como disse, de uma vez por todas, Paul Klee: «Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondern macht sichtbar», ou seja: «A arte não reproduz o visível, mas torna visível»). O fazer da pintura não é nem objectivo nem subjectivo — surge nesse limiar assombroso onde tudo pode aparecer — ou desaparecer.
A pintura de Fala Mariam não seria possível sem a invenção do microscópio e do telescópio. Da visão vertiginosamente próxima e longínqua. Um milímetro de tela ou de papel pode corresponder a um milésimo de segundo ou a um ano-luz. Aí, o nosso olhar muda, constantemente, de escala: os olhos vagueiam, sem referencial fixo, pelo espaço infindo e pelos interstícios da matéria. Como se o estranho balão de Odilon Redon tivesse, enfim, cumprido o seu destino: ser o olhar de uma pintora.
Mas de que modo opera, nesta pintura, o pensamento transcendental?
Quais as modalidades concretas da sua «figuração abstracta»?
Estâncias e estratos, falhas, fluidos e filamentos, membranas, escarpas e morros, jazidas, placentas e pedras, órgãos, nebulosas e enxames, nervuras, vales e dunas, enseadas, sulcos e abrigos, nódulos, montanhas e trilhos, glândulas, vasos e alvéolos, ravinas, películas e penhascos, tufões, fibras e tecidos, cartilagens, seres humanos e quase humanos, núcleos e abismos, golfos, por fim um abismo, um único abismo, tudo a desaparecer, basta mudar de escala, tudo a reaparecer à superfície, por fim o início, nada se identifica, plagas e placas, países… Todas as formas em todos os estados da matéria. Em todas as escalas. De perto e de longe. Tudo a desaparecer. De perto, os longes. A pintora faz aparecer. Uma reinvenção radical da paisagem.
«Transcendental», porém, não é a melhor palavra para qualificar a pintura de Fala Mariam. Mantenhamos o espírito desse termo e arrisquemos dizer que esta pintura é elemental, em consonância com um escritor que assim caracterizou a sua poesia (e a de alguns outros), afastando conotações redutoras por vezes atribuídas à palavra «elementar». «Elemental»: tal é o termo que, para Ramos Rosa, designa toda a poética que busca exprimir a vida na sua elementaridade, antes da separação entre o mundo e o sujeito, e, portanto, antes da oposição entre um objecto manipulável e um sujeito intencional. Por sua vez, a pintura elemental seria feita com os elementos pré-objectivos e pré-subjectivos da visibilidade e da visão, a começar por aquele que torna visível o visível (a luz).
Estamos no interior do «elemento»: não é ainda um objecto nem nós somos para ele um sujeito (do conhecimento). Estamos em meio aquoso, onde uma Vénus surgirá: nessa crista onde começam as figuras, vertiginosa divisibilidade da matéria elemental.
Num sentido próximo, mas mais aprofundado, Lévinas também utiliza o termo «elemental» (sem que o escritor português, tanto quanto seja do meu conhecimento, se tenha referido ao filósofo francês). Lévinas detém-se, com estes termos, sobre o que «precede a distinção do finito e do infinito»: existem as coisas, que vêm à representação e se objectivam, mas essas mesmas coisas só chegam até nós a partir de um «meio» (milieu) que as envolve sem que ele mesmo, enquanto fundo obscuro, possa ser envolvido por alguém ou alguma coisa. «O meio tem uma espessura própria. As coisas referem-se à posse, podem levar-se, são móveis; o meio a partir do qual elas me chegam jaz ao abandono [gît en déshérence], fundo ou terreno comum, não-possuível essencialmente por “ninguém”: a terra, o mar, a luz, a cidade. Toda a relação ou posse se situa no âmbito do não-possuível que envolve ou contém sem poder ser contido ou envolvido. Chamamos-lhe o elemental».
Tudo o que vem à superfície, nesta pintura, emana desse fundo não possuível. Aproximemo-nos da tela intitulada a partida e o adeus (Fig. ): parece um esboço de lavagante; parece
um lago num país distante; parece o osso de um velho animal ou farrapos de luz oriental; parece tudo o que aparece quando partimos ou nos dizem adeus: tudo e — subitamente — nada. O elemento onde tudo reaparece.
Sim, tanto na acepção ramos-rosiana quanto na levinassiana, a pintura de Fala Mariam é elemental: são figuras pré-objectivas e pré-subjectivas, dispondo-se num «meio» incontível. Mesmo nos elementos nitidamente recortados sobre fundo liso: mesmo aí — por exemplo, na pintura lá fora (Fig. ), a figura larvar ao centro, vermelho-alaranjada, como que emana do «meio» onde tudo banha e, a qualquer momento, se pode afundar em definitivo. A anterioridade liquefeita desta pintura, a que me referi logo de início, é justamente a manifestação geral do «meio»: «o elemento não tem formas que o contenham», diz ainda Lévinas, à semelhança da matéria em estado líquido cuja forma é unicamente determinada pelo objecto que a contém.
Até as formas geométricas mantêm um vínculo com o «meio»: os contornos chegam a formar um contraste intenso, e as superfícies, transparentes, acentuam a vibração telúrica do fundo.
Mas se recupero, aqui, o termo «elemental» é por duas razões — e eis o que, por fim, proponho pensar. Primeiramente, porque Fala Mariam chama «elementares» às cinco técnicas estruturantes de todo o seu pensamento visual (e pictórico). São elas: «Vénus-Sombra, Vénus-Luz, Cunho Orgânico, Cunho Fechado e Cunho Aberto», respectivamente associadas à matéria «telúrica» da pintura, ao «desenho da luz», ao «detalhe na matéria e na luz», à «mestria do tempo», à «chave do espaço». Se traduzirmos este luminoso apontamento para a linguagem a que me permiti chamar «transcendental», torna-se por demais claro que obtemos as condições de possibilidade do seu gesto pictórico: sombra, luz, traçado rítmico, tempo e espaço. Três incisões entre duas Vénus — ou entre o verso e o reverso da mesma Vénus (se nos lembrarmos da sua tensão anadiómena…).
Mas convém não olhar para as pinturas através das «técnicas elementares», como se estas fossem regras formais: não, as «técnicas» estruturam, de cada vez, uma pintura sem insti-
tuírem uma composição rígida. Fala Mariam chegou a tais «técnicas» como à depuração do seu pensamento, deixando que a configuração geral se reinvente em cada quadro. Também as «técnicas» são transcendentais — esquemas de pensamento e não formas empíricas já percepcionadas.
Depois — e é a segunda razão — porque «elemental» é um termo que nos conduz à raiz do pensamento e da prática da arte da paisagem (acompanhando o movimento mais íntimo — e radical, repito — da pintura de Fala Mariam). O elemental expõe a necessidade imperativa de a natureza ser delimitada para que ela própria, como força ou fundo elementar, se demarque e seja visível. Georg Simmel mostrou aliás que, para haver paisagem, «é essencial a delimitação, o estar compreendida num horizonte visual — momentâneo ou duradouro», favorecendo uma constante variação do centro da composição, diferentemente da figuração humana, que se autodelimita e concentra em si a atenção do observador (o que não significa, porém, que a paisagem, como acentuou Jean-Luc Nancy, não possa conter presença humana: mas tal presença manifesta-se então como mais «um elemento da paisagem», uma vez que a noção de paisagem terá apenas começado verdadeiramente quando o cristianismo «expulsa da natureza os deuses pagãos»…). Logo que os elementos naturais passam a ser unificados sob uma particular tonalidade espiritual (Stimmung), diz ainda Simmel, é então que estamos diante de uma paisagem. A paisagem, em suma, provém de uma «configuração espiritual» que apreende a torrente da natureza por si mesma, sem implicar outras presenças, numa nova unidade. Diria mesmo que «paisagem» é o nome do visível sem hierarquia entre os seres que se encontram unidos, de relance, num horizonte. E as pinturas de Fala Mariam aparentam-se entre si justamente porque procedem todas da tentativa de pintar um horizonte e, mais exactamente, de pintar o horizonte a que devemos chamar «inicial». Mas, ao mesmo tempo, diferenciam-se umas das outras porque cada pintura se entrega à atmosfera, ao ambiente, à disposição — numa palavra: à luz de um novo início.
Já podemos responder à pergunta que nos orienta (quais as modalidades deste pensamento pictural?): todas as modalidades da paisagem inicial.
Paisagens do perpétuo início do universo. A pintura é sempre inicial e iniciática quando pinta esse início. Em qualquer lugar, a propósito de tudo e de nada, encontrar a coloração exacta do início — delimitando-o e libertando-o. Cápsula ou diagrama que vai espaçar o tempo e temporalizar o espaço: limiar (Fig. ), tardes infinitas (Fig. ), a vaga (Fig. )…
Ora, tal delimitação inicial (que é uma formação espiritual antes de ser uma demarcação física) é propiciada pela ideia de templo — que se manifesta, agudamente nesta pintura, pelo modo como os bordos contêm cada suporte, mas também pelas microestruturas geométricas que sustêm, em escala menor, a luz liquefeita. No fundo, esta pintura mostra-nos que a luz precisa de um templo. Como ensina Heidegger, é através do templo que os elementos da natureza, na sua força primordial, alcançam «a sua figura mais nítida e, assim, vêm à luz como aquilo que são». Sem essa delimitação, a pintura esvai-se (na noite). Porque no templo — que é a pintura — a luz vem à luz, quer dizer, vem a si recuperando a sua essência luminosa, o seu puro dom. De resto, «templo» significa, originariamente, delimitação ou corte. (A palavra deriva do latim templum, sendo aproximado do termo grego temenos, «recinto sagrado», proveniente de um verbo que significa cortar ou delimitar, temnein.) A pintura é o templo da luz. Uma pintura não é para ser adorada, mas, literalmente, para ser con-templada.
A porta (Fig. ) mostra a fenda negra do acesso à pintura enquanto templo. Câmara nupcial, Vénus-Sombra e Vénus-Luz. Sobre o portal austero, dois entalhes, duas espécies de monóculos: olhos infra ou sobre-humanos — por onde passam quatro figuras brancas e abúlicas, sobre um fundo álacre e róseo. A porta da pintura abre-se com o nosso olhar. (Após ter escrito estas linhas, soube que foi n’a porta que surgiram, para a pintora, as Vénus-Sombra e Vénus-Luz iniciais: aos pares, a primeira formando-se por expansão nuclear, a segunda por contenção orbital; a primeira alastrando-se em manchas, a segunda avolumando-se em traços. Assim, esta imagem não figura somente a entrada de um templo: é o marco, quase objectual, da génese desta pintura. A porta que se tem aberto, de par em par, pelos anos fora.)
«Mariam» é o nome dado a Maria de Bethânia, ou de Magdala, pela antiga cristandade egípcia. Mariam, a pintora, descobriu esse nome, seu «nome sem umbigo» como então declarou, quando lia o derradeiro lógion (114) do Evangelho Copta (ou seja, do Evangelho de Tomé). Nesse lógion, Jesus contrapõe-se a Simão Pedro, que queria excluir Maria Madalena do grupo de discípulos. Jesus responde-lhe: «Eis que a vou atrair a mim», explicando e concluindo: «Porque toda a mulher que se tornar homem / entrará no reino dos céus». Sem desatender à condição social (subalterna) da mulher que perpassa em tal linguagem patriarcal, importaria contextualizar tal sentença no âmbito de várias tradições interpretativas (entre as quais a gnóstica): o «tornar-se homem» — o ser filho do Homem — de Maria Madalena significa, simbolicamente, o nascimento espiritual da mulher, ou seja, o seu renascimento para além da sua condição enquanto filha de outra mulher (ou enquanto ser encarnado no mundo). Aqui, limitar-me-ei a apontar que Jesus, defendendo Maria Madalena contra Simão Pedro (e a emergente ortodoxia), possibilita à mulher o segundo nascimento (aquele que é digno da vida). Em suma, no quinto Evangelho (que poderá bem ser o primeiro, se seguirmos a edição crítica de Suarez), o nome «Mariam» designa a primeira mulher a entrar no templo — a primeira testemunha feminina do mistério (antes de ser a primeira testemunha da Ressurreição).
A série intitulada XPTO (abreviatura do nome «Cristo», em grego) resulta da planificação de seis caixas de cigarrilhas (Figs. -). Sobre um negrume opaco, abrem-se formas dilaceradas. Cada tríptico é uma espécie de sepulcro vazio e espalmado, após a combustão integral: a arte é a única ressurreição dos corpos. Estamos à beira da religião — sim, mas a arte recua ou, melhor, permanece — firmemente — face ao negro dilacerante que possibilitou tanto ela própria, a arte, como a religião.
Se toda a mudança de nome, em contexto sagrado, assinala a condição de iniciado, então Fala Mariam — a pintora que tomou esse nome, em Lisboa,
nos finais do século XX da era cristã — terá marcado a sua iniciação à pintura. Terá pontuado o seu ritual de passagem da vida profana (ou mundana) para a vida sagrada (ou antemundana). E, assim, terá entrado no templo da luz — para dele nunca mais sair.
Tomás Maia
Fontes
o primeiro número refere-se à secção do presente texto, o segundo à página
II, 8: Fala Mariam, sobre a sua Exposição de Outubro-Novembro de 2015.
II, 8: Emmanuel Lévinas, Totalidade e Infinito, tradução de José Pinto Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 171 (permito-me alterar a tradução portuguesa na palavra assinalada).
II, 9: Jean-Marie Pontévia, La peinture masque et miroir. Écrits sur l’art et pensées détachées, Bordéus, William Blake & C. Édit., 1993, respectivamente pp. 27-28, 145 e 28.
II, 9: Fala Mariam, folha A4 dactilografada, 2020.
II, 10: Paul Klee, Théorie de l’art moderne, tradução de Pierre-Henri Gonthier, Paris, Denoël, 1985, p. 34.
III, 11: António Ramos Rosa, entrevista ao jornal Expresso, edição de 19 de Novembro de 1988; consultado na reedição on-line: https://expresso.pt/premio-pessoa/laureados/2010-10-31-Laureado-Premio-Pessoa-1988--Antonio-Ramos-Rosa.
III, 11: Emmanuel Lévinas, op. cit., p. 115 (assinalo, de novo, a alteração que introduzo na versão portuguesa).
III, 12: Emmanuel Lévinas, op. cit., p. 116.
III, 12: Fala Mariam, notas de atelier, 2019-2022.
III, 13: Georg Simmel, Philosophie der Landschaft, versão castelhana: Filosofía del paisage, tradução de Mathias Andlau, Madrid, Casimiro libros, 2013, pp. 8 e 20.
III, 13: Jean-Luc Nancy, «Paysage avec dépaysement», in Au fond des images, Paris, Galilée, 2003, pp. 111 e 113.
III, 14: Martin Heidegger, «A Origem da Obra de Arte», tradução de Irene Borges-Duarte e Filipa Raposo, in Caminhos de Floresta, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 39.
IV, 15: Fala Mariam, escritos, 1980-1990.
IV, 15: L’Évangile selon Thomas, tradução, apresentação e comentários de Philippe de Suarez, Marsanne, Éditions Métanoïa, 1975, lógion 114 (vv. 5 e 9-10).
diante da canção lenta…, inauguração em 2009. atelier, 2018.
escudo e pequena memória
nos anos 1960 e Setentas, de família politizada e racionalista, rapariga certinha até lhe fugir o chão debaixo dos pés: aí, mais precisamente no eixo Paris-Lisboa, aconteceu um punhado de gente muito nova, intensíssima, procurar possuir um pensamento mágico, servindo-se para isso da poesia, da pintura e da música. viveu-se «um presente eterno» talvez demasiado vivido e tudo ou quase tudo degradou-se. mas tinha descoberto imagens. nomeadamente certos quadros de William Blake e do posterior simbolismo, que me surgiram logo como pintura de razão visionária, parecendo transcender as épocas onde aparece, o que é e não é verdade mas enfim.
depois desta jovem juventude tive algum contacto com gentes da pintura cá. vivências nómadas e casuais: vaga estudante de gravura, estagiária ilustradora, modelo, etc.
só me relacionei de forma inteligente com o meio ao obter (1986-1988) uma bolsa de estudo; tive então a sorte de conhecer uma pessoa que me deu apoio, interessando-se generosamente pelos meus primeiros conseguimentos, o Pintor Fernando de Azevedo. a dado momento também me ajudaram o Pintor Júlio Pomar, o Pintor Fernando Calhau e seguidamente a Ana Isabel, proporcionando-me a 2.ª exposição individual na sua Galeria da Rua da Emenda. houve a determinada altura da década de 1990 a necessidade de tornar mais analítica a minha noção de Pintura, procurei então aprofundar um conhecimento da sua história humana de escolas e legados. mas não me posso esquecer: da dívida para com as artes imemoriais quase intemporais chamadas de primitivas, verdadeiro dom de fertilidade que recebi desde cedo; do muito que, mais tarde, a antiga pintura chinesa, seu medium subtilíssimo, ensinou ao meu manejo do acrílico; e a natural Iluminação que foi para mim o encontro
com vários dos estados da arte pictural dos começos do século XX a um pouco alargado pós-guerra (a Segunda), afinal o que me precedeu de perto. foram pois bastantes — autodidactas, mas o que é isso? — estudos. e um solitário aprendizado.
talvez por os circuitos das ditas «artes plásticas» não irem muito à bola com as minhas coisas ingressei, irremediavelmente, no circuito do jazz e músicas afins, mas como sideman, trombonista. provavelmente devo a semelhante prática, e a alguns desgraçados instrumentistas dessa área, o que me resta de saúde mental (e social).
quem realmente assumiu, uma significativa primeira vez, uma especificidade do meu trabalho, foi o Professor Rui-Mário Gonçalves, presença assídua, amiga sempre, nas boas e menos boas fases que atravessou meu Atelier. injusto seria não mencionar a lúcida disponibilidade de José-Augusto França — une personne toujours très occupée — em mais de uma ocasião. e não quero deixar de referir a assistência infalível do meu Galerista, contra ventos e marés, Francisco Pereira Coutinho.
aqui retomo, tal-e-qual, palavras que usei em catálogo de 2007: hoje passadas muitas contradições, transições e outras revoluções, o meu trabalho existe em alguns, poucos, planos. o que o ilimita são as dimensões criadas pela pureza desses planos em acontecimento simultâneo no quadro. conseguir pintar esse acontecer luminoso tem sido o meu drama pessoal e a minha profunda alegria.
FM de L, Lisboa 2022
shield and small memory
the 1960s-70s, a girl born to a politicized, rationalist family, all neat and proper until the ground vanished under her feet: it was there, more accurately along the Paris-Lisbon axis, that a handful of very young, very intense people, happened to seek for a magical way of thinking by availing themselves of poetry, painting and music. they lived ‘an eternal present’, perhaps too vividly, and everything or almost everything fell apart. but, in the meantime, I had discovered images, certain pictures by William Blake and latter symbolists, which appeared to me as a painting of visionary reason, arguably seeming to transcend its own time…
after this youthful youth I came into contact with painting-people from over here. a host of nomadic and casual experiences ensued: I was a cursory student of printmaking, an illustration intern, a model, etc.
my first intelligent relation to the milieu came with a grant (1986-88); I was then fortunate enough to meet someone who supported me and took a generous interest in my early achievements, Painter Fernando de Azevedo. at a certain moment, I was also helped by Painter Júlio Pomar, Painter Fernando Calhau and then by Ana Isabel, who hosted my second solo show at her Gallery in Rua da Emenda.
at a certain point in the 1990s I felt the need to make my notion of Painting more analytic, seeking to deepen the knowledge of its human history of schools and legacies. but I cannot forget my debt to the immemorial, almost timeless so-called primitive arts, a true gift of fertility that came to me from early on; and I should also not forget how ancient Chinese painting, with the utter subtlety of its medium, would later on teach me to handle acrylic paint; or the natural Enlightenment that I felt when meeting with the various states
of pictorial art from the early twentieth century and up to just after the second world war, which was after all my closest antecedent.
these autodidactic — whatever that might be — studies were manifold. and the apprenticeship was lonely.
perhaps because the circuits of the so-called ‘visual arts’ did not particularly relish my things, I irremediably entered the circuits of jazz and music of that ilk, but as a ‘sideman’, a trombonist. I may in fact owe whatever is left of my mental (and social) health to that practice and to some unfortunate instrumentalists in that field.
the first person to truly and significantly consider the specificity of my work was Professor Rui-Mário Gonçalves, a regular, ever-friendly presence across the good and less-than-good moments that my Studio witnessed. it would be unfair not to mention the lucid availability of José-Augusto França — une personne toujours très occupée — on more than one occasion; I must also mention the unstinting support, against all odds, of my Gallerist, Francisco Pereira Coutinho.
and now I would like to go back to my exact words printed in a 2007 catalogue: today, after many contradictions, transitions and other revolutions, my work exists on a few planes. its boundlessness is due to the dimensions created by the purity of those planes that occur simultaneously on the canvas. being able to paint that luminous occurring has been my personal drama and my profound joy.
Fala Mariam é natural de Lisboa (1962)
exposições individuais
– «Pintura-Pintura de Fala Mariam de Lisboa»
Galeria ZÉ DOS BOIS, Lisboa curadoria de Natxo Checa
– «The Swimmer, Resenha e Som: 3 Imagens por Fala Mariam, 2009-2016»
Projecto EMPTY CUBE, Appleton Square, Lisboa
curadoria de João Silvério
– «Friso das Consequências da Noite»
Galeria SÃO MAMEDE, Lisboa livro-catálogo com texto de José-Augusto França e notas da pintora
/
– «O Abismo e Outras Imagens»
Galeria SÃO MAMEDE, Lisboa catálogo com entrevista à pintora
– Exposição Retrospectiva
Galeria dos Paços do Concelho, Tomar
– «Os Dois Espíritos, A Porta e Os Primeiros Anti-Símbolos»
Galeria SÃO MAMEDE, Lisboa catálogo com texto de Rui-Mário Gonçalves
– «Pintura 1983-2003 / Obras Escolhidas» Fundação Mário Soares, Lisboa catálogo com texto de José-Augusto França
– «As Capelas Orientais» Banco de Portugal, Lisboa
– «Colour and Symbol»
REVERSO, Lisboa catálogo com texto de Gisela Rosenthal
– «Monochromes»
REVERSO, Lisboa
– «Mitografias»
Galeria Municipal de Vila Franca de Xira catálogo com texto de Cristina Azevedo Tavares
– Galeria de Arte Moderna da S.N.B.A., Lisboa catálogo com texto de Rui-Mário Gonçalves
– Galeria de Exposições Temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa catálogo com textos de Fernando de Azevedo e de José-Augusto França
– Galeria ANA ISABEL, Lisboa introdução pelo Pintor Fernando de Azevedo
– Galeria de Arte Moderna da S.N.B.A., Lisboa
exposições colectivas (selecção)
– «A Exposição da ZDB» CIAJG, Guimarães
– «Rui-Mário Gonçalves, homenagem» Salão da S.N.B.A., Lisboa
– «Quinze Anos» REVERSO, Lisboa
– «Fernando de Azevedo / um texto – uma obra» S.N.B.A., Lisboa
– «O Novo Ofício»
Museu Colecção Berardo, Lisboa curadoria de Pedro Gomes
– 7.ª Edição do Prémio Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante
– «Cristo, Palavra e Imagem»
S.N.B.A., Lisboa
– 2.ª Edição do Grande Prémio Banif, Lisboa
– «100 anos / 100 artistas»
Salão da S.N.B.A., Lisboa
– «Mote e Transfigurações»
Salão da S.N.B.A., Lisboa
– Dez finalistas para a atribuição da bolsa Arpad
Szenes: Centro Cultural Português da Fundação
Calouste Gulbenkian, Paris; Fundação Arpad
Szenes-Vieira da Silva, Lisboa
– «Sensibilidades Femininas do Nosso Tempo»
Palácio Foz, Lisboa
– 4.ª Edição do Prémio Nacional de Pintura
Júlio Resende, Gondomar
– Bienal da Maia
– «A Música e Outras Imagens»
Estremoz
– Bienal de Chaves
outros dados
– Participação em «Longing for Darkness» de Alexandre Estrela
– Prémio de Pintura da Academia Nacional de Belas-Artes
– Prémio Maluda
/
– Projecto de Criação Artística subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian
– Prémio de Pintura da ONU (em colaboração com a S.P.A. e a Casa da Imprensa)
– Prémio de Aquisição, Bienal de Chaves /
– Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian
© SISTEMA SOLAR CRL (DOCUMENTA), 2023
RUA PASSOS MANUEL 67 B, 1150-258 LISBOA imagens © FALA MARIAM DE LISBOA texto © TOMÁS MAIA
1.ª EDIÇÃO, DEZEMBRO DE 2023
ISBN: 978-989-568-090-0
APOIO EDITORIAL: AFONSO CORTEZ
FOTOGRAFIA:
ANDRÉ CEPEDA ( Figs. - ), FILIPE CONDADO ( Figs. - ), LAURA CASTRO CALDAS ( Figs. -, -, - ), JOSÉ FABIÃO ( Figs. - ), PEDRO CALAPEZ ( Fig. ); Pp. - : BRUNO RASCÃO (Sei), PEDRO CORRÊA DA SILVA (inauguração)
TRATAMENTO DE IMAGEM: NUNO SOARES / FINEPRINT
TRADUÇÃO: RUI CASCAIS
REVISÃO: HELENA ROLDÃO
DESIGN: MANUEL ROSA
TIRAGEM: 400 EXEMPLARES
DEPÓSITO LEGAL: 520373/23
PRÉ-IMPRESSÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO: MAIADOURO SA