Antropologia da Vida Material – Escritos sobre Espaços, Coisas e Pessoas

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ANTROPOLOGIA DA VIDA MATERIAL

Filomena Silvano ANTROPOLOGIA DA VIDA MATERIAL

Escritos sobre espaços, coisas e pessoas

Prefácio de Alexandre Melo

DOCUMENTA

A escrita e a edição deste livro foram apoiadas pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), no âmbito do plano estratégico do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) — UID/04038/2020.

© FILOMENA SILVANO, 2022

© SISTEMA SOLAR CRL (DOCUMENTA)

RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA

1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO DE 2022

ISBN 978-989-568-050-4

REVISÃO: LUÍS GUERRA

DEPÓSITO LEGAL:510230/23

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ULZAMA

Este livro é dedicado à memória de Hermínio Monteiro, Al Berto, Eduardo Prado Coelho, Tereza Coelho, Manuel Reis, Manuel Graça Dias e Pierre Pellegrino

9 Índice Prefácio por Alexandre Melo .................... 11 Coisas que vimos .............................. 17 Viver nas casas Os discursos da emigração ........................ 31 Deslocação e recomposição do habitat ............... 39 Sobre a construção de uma casa .................... 47 O santo da aldeia é quem nos guarda cá .............. 53 Coisas que atravessaram oceanos .................... 67 Porque riram as pessoas? .......................... 87 «Falemos de casas…» em Portugal .................. 91 Viver nas cidades A construção cultural de paisagens .................. 99 Turismo, cidades e paisagem ....................... 111 Cidades iluminadas ............................. 119 Museus e casinos numa cidade património mundial ..... 123 Quando as roupas habitam a cidade ................. 145 Mostrar, fazer, guardar Um corpo pós-humano .......................... 173 O mundo de Warhol ............................ 181
10 As nossas roupas exóticas ......................... 189 Lá fora, um lugar para existir ...................... 195 Um antropólogo fazedor de objectos................. 205 Pode uma casa ser vivida outra vez? .................. 213 A vida não é para arquivar ........................ 219 Fazer roupas Costureiras e rainhas ............................. 231 Desfiles de moda, sentidos e valores das roupas ......... 251 Bibliografia ................................... 271

Prefácio

O título deste livro é ao mesmo tempo revelador e enganador. Revelador, porque remete para uma área de investigação, a antropologia da vida material, pouco comum em Portugal e com uma relevância crescente no âmbito dos estudos académicos. Enganador, porque a enunciação da natureza específica deste tipo de saber é susceptível de desencorajar os leitores que não se considerem especialistas na matéria. O subtítulo ajuda a deslindar a aparente contradição: «escritos sobre espaços, coisas e pessoas».

Falamos de assuntos a respeito dos quais todos julgamos ter alguns conhecimentos que, no entanto, nem sempre se revelam tão fundamentados e úteis quanto desejaríamos. Talvez o que neste livro se aprende possa moderar tal frustração. Os temas são os objectos, lugares, convívios e discursos com que vivemos no nosso quotidiano — a vida — em relação aos quais a perspectiva de análise de Filomena Silvano, ancorada numa sólida estrutura conceptual — leiam-se, da autora, os livros Antropologia do Espaço e Antropologia da Moda (Documenta) —, nos permite ver de outra maneira coisas que julgávamos já conhecer e conhecer coisas que nunca tínhamos visto, apesar de estarmos no meio delas, e agora poderemos começar a ver porque nos foi proporcionada uma maneira de olhar a que não estávamos habituados. O livro começa com um texto publicado em 2010 («Coisas que vimos») que, ao fazer um historial e uma contextualização

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internacional dos estudos de Cultura Material realizados em Portugal, permite também situar os textos de Filomena Silvano que aparecerão de seguida, organizados por capítulos temáticos e, no interior de cada um deles, por ordem cronológica. A organização revela uma continuidade temática — os espaços, as coisas e as pessoas estão sempre lá — e uma coerência conceptual (apesar das continuadas actualizações) que dão unidade a um livro que reedita textos bastante diversos — tanto no formato (foram publicados em jornais, revistas, livros e revistas académicas), como na origem temporal (foram escritos entre a década de 1980 e os anos 2020).

Não tentarei aqui enunciar ou resumir os textos apresentados, apenas irei evocar, através de alguns exemplos, algumas passagens do meu relacionamento com a personalidade e a obra de Filomena Silvano (que se iniciou em 1982, antes ainda da escrita do primeiro texto aqui publicado). O nosso primeiro encontro teve lugar num contexto académico, quando a autora fazia um trabalho para uma cadeira da licenciatura em antropologia. Mas o lugar não foi uma universidade, foi um bar no Bairro Alto. A posterior leitura do texto (ainda inédito), que transferia alguma da aparelhagem conceptual da antropologia mais clássica para interpretar o que acontecia no bar-discoteca Rock-House, permitiu-me olhar de uma maneira que antes não me tinha ocorrido para aquele e outros espaços de diversão (se acaso é disso que se trata) nocturna. Alguns anos depois, em múltiplas conversas, a autora foi-me explicando a metodologia de análise que estava a utilizar numa pesquisa inserida num projecto PNUD-UNESCO dirigido pelo arquitecto Pierre Pellegrino, em que a equipa trabalhava a noção de «representação do espaço».

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Na minha própria tese de doutoramento — «O Lugar de Portugal no Mundo da Arte — Nem Centro nem Periferia» —, partindo da análise crítica das noções de centro e periferia em contexto artístico, ganhou relevância a compreensão da diferença entre o chamado espaço real (o que corresponde ao modo de representação consagrado nos mapas oficiais) e o espaço tal como ele é realmente percepcionado na experiência de vida de cada pessoa ou comunidade. Até hoje, esta abordagem faz parte dos meus utensílios de trabalho no âmbito da sociologia da arte e da cultura, nomeadamente no estudo da geografia do poder no mundo da arte ou na análise comparada de carreiras artísticas e perfis de instituições culturais.

Numa área de interesse comum — o cinema —, a colaboração da autora com João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata abre uma forma inédita em Portugal de articulação entre cinema e antropologia. Já no contexto da redação deste prefácio — para além da revisitação dos textos e documentários sobre emigrantes em França (neste volume, «Os discursos da emigração», «Deslocação e recomposição do habitat», «Sobre a construção de uma casa» e «O santo da aldeia é quem nos guarda cá») — a minha visão dos filmes Alvorada Vermelha e A Última Vez Que Vi Macau adquiriu uma nova e enriquecedora perspectiva através da leitura do ensaio, dedicado a Macau, «Museus e casinos numa cidade património mundial». Assim ficamos a ganhar uma maneira diferente de ver cinema.

Em partilhadas deambulações pelos mundos da moda, as conversas em torno do que seria ou não uma aparente ou falsa frivolidade ganham uma nova espessura conceptual e um subs-

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tancial enriquecimento informativo e documental em textos como «Quando as roupas habitam a cidade» e «Desfiles de moda, sentidos e valores das roupas», ou ainda, de forma mais lateral, «Costureiras e rainhas».

Para além da virtude de cruzamentos e articulações transdisciplinares de natureza epistemológica, metodológica e experiencial, este novo livro de Filomena Silvano fornece ainda instrumentos valiosos para pensar alguns dos problemas mais candentes deste nosso já trágico século XXI: a relação entre as noções de classes «populares» e «classe média», as especificidades dos papéis sociais das mulheres, nós e os outros, identidades e fronteiras, migrações e enraizamentos.

Num plano mais abstracto, a questão de fundo subjacente à antropologia da cultura material — compreender quais os sentidos que a nossa relação com os objectos lhes concede — é abordada de uma forma directa e esclarecedora, desmistificando muitas das anacrónicas «críticas» da «mercadoria», «consumo» ou «espectáculo» que continuam a prosperar em alguns discursos ideológicos (e mesmo académicos) e muito poderiam beneficiar com os conhecimentos produzidos na área da antropologia.

Na introdução ao ensaio «Coisas que atravessaram oceanos», a autora começa por identificar (citando Alice Duarte) como «barreiras conceptuais» à análise das «sociedades de consumo» as «concepções substancialistas que, partindo sobretudo das preposições teóricas de Marx e de Mauss, dividiram o mundo entre sociedades da mercadoria e sociedades do dom», considerando a priori como negativas as relações que nas «sociedades de consumo» as pessoas estabelecem com os objectos. Em contraponto, com base em recentes estudos da cultura material, a autora afirma,

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entre outras conclusões, que «em todas as sociedades, os objectos são objectificações da cultura e consequentemente transportam significações», «que os objectos integram os processos de construção das identidades» e «que os objectos têm, por si próprios, a capacidade de agir socialmente».

O mal ou o bem que as coisas nos podem fazer e podemos fazer com as coisas não é redutível a simplismos binários. Só o conhecimento e a reflexão a respeito do modo como as coisas existem e funcionam em sociedades concretas nos pode ajudar a fazer com que os trabalhos da nossa imaginação produzam na realidade das coisas os efeitos que imaginamos e desejamos.

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Alexandre Melo

Coisas que vimos 1

Há poucos dias, numa conversa com uma jovem estudante que quer trabalhar sobre cinema português e objectos de raiz popular, João Leal dizia-lhe que é tão importante interrogarmo-nos sobre aquilo que se mostrou como sobre aquilo que se ocultou. Em Portugal, pensar o percurso dos estudos de Cultura Material nas últimas três décadas passa, justamente, por formular essa dupla interrogação.

Quando em 1982 parti, com Ana Paula Zacarias, para Trás-os-Montes — preparadas, com o entusiasmo e a ignorância dos nossos 20 anos, para fazer «trabalho de campo» — levava na cabeça alguns dos maravilhosos desenhos de objectos do mundo rural português feitos por Fernando Galhano no quadro das investigações levadas a cabo por Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, no Centro de Estudos de Etnologia e no Museu Nacional de Etnologia. Até então, a antropologia portuguesa tinha dado uma importância singular à cultura material — tanto

1 Filomena Silvano. 2010a. «Things we see: portuguese anthropology on material culture», Etnográfica, vol. 14 (3): 497-505. Este texto foi escrito para contextualizar a publicação de um dossier de textos em língua inglesa — «Materialities, consumption practices and (life) narratives» —, organizado por Marta Vilar Rosales e Emília Margarida Marques, que inclui textos de investigadoras brasileiras e portuguesas e um comentário final de Daniel Miller.

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na versão da etnografia do Estado Novo2 como na que, liderada por Jorge Dias, tinha procurado traçar um percurso mais articulado com a produção científica exterior (Leal 2000b, 2006) — e em consequência disso a nossa formação académica tinha-nos dotado com a apetência, que nós obviamente naturalizávamos, para, uma vez no terreno, olhar, de imediato, para os objectos. No entanto, tal como aconteceu com os cineastas — e as imagens, recolhidas nas décadas de 1960 e de 1970 por António Campos, António Reis e Margarida Cordeiro, também estavam nas nossas cabeças —, quase não vimos alguns dos objectos que se encontravam espalhados pelas casas e pelos campos transmontanos. Continuávamos a procurar escanos, cestos, rocas, teares e panos bordados, ao mesmo tempo que tornávamos invisíveis os frigoríficos, os fogões, as batedeiras e as televisões. Para nós, que pertencemos à primeira geração de antropólogos formados no Portugal democrático, a ideia da etnografia como prática de urgência ainda se opunha, no início dos anos 1980, à vontade de construir um novo olhar sobre o País que estava então a mudar. Foi ao longo dessa década que os objectos antes ocultados começaram a ser descritos e interrogados pelos antropólogos portugueses; ao mesmo tempo que o mundo rural se desertificava no Inverno e se enchia de emigrantes no Verão, as cidades cresciam desordenadamente e uma nova classe média tomava forma. As «casas de emigrante» foram talvez os primeiros objectos representativos desse novo contexto social e cultural a tornarem-se

2 A Exposição do Mundo Português, realizada em 1940, foi o momento mais representativo da forma como a etnografia do Estado Novo utilizou os objectos de cultura popular para pensar a Nação.

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incontornavelmente visíveis na paisagem rural portuguesa. Envoltas numa polémica que começou por implicar arquitectos e urbanistas, essas casas obrigaram os antropólogos a confrontar-se, naquele que foi o seu terreno etnográfico de eleição, com as transformações resultantes dos processos migratórios3. Eram suficientemente grandes e suficientemente espampanantes para terem de ser vistas por todos e por isso começaram por ser interrogadas de um ponto de vista que tinha mais que ver com uma concepção paisagística do território do que com as relações sociais, os estilos de vida e os valores simbólicos que as acompanhavam. Esse outro olhar, que incluía já muitas das interrogações que hoje identificamos como sendo «questões de cultura material», começou por ser construído por antropólogos e sociólogos. Apresentando-se como objectos híbridos, resultantes de processos de mobilidade espacial, social e cultural dos seus proprietários, «as casas de emigrante» obrigaram a rever a forma como a antropologia havia até então percepcionado a relação entre casa, família, sociedade e cultura. As novas composições dos espaços domésticos, assim como as práticas e as representações a elas associadas, foram então pensadas como sendo o resultado dos movimentos das pessoas, dos objectos e das ideias — facto que implicou, desde logo, a articulação analítica entre a sociedade e a cultura portuguesas e as sociedades e culturas dos países de acolhimento dos seus proprietários (Leite 1989; Leite e Villanova 1990; Rocha-Trindade 1989;

3 Também no cinema se inicia a construção desse olhar, com L’Horloge du village de Philippe Costantini (1989) e, mais tarde, Regresso à Terra de Catarina Alves Costa (1994).

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Silvano 1988b, 1990, 2002; Silvano e Coelho 1993; Villanova 1989; Villanova, Leite e Raposo 1995).

Na mesma década, começaram a surgir manifestações de um fenómeno que veio a congregar, até hoje, uma parte muito significativa dos estudos de cultura material em Portugal: a «cultura popular» sofreu, num contexto de progressiva globalização, processos vários de emblematização e de objectificação (não apenas no sentido de transformação da cultura em objecto, mas também em produto de consumo e, consequentemente, em mercadoria). Num primeiro momento, a emblematização de algumas componentes (materiais e imateriais) das culturas rurais surge fortemente associada ao fenómeno mais geral das transformações sociais e culturais resultantes da emigração: de retorno, nas férias de Verão, os emigrantes investiam capitais significativos na reactivação das tradições das suas aldeias de origem, num processo activo de objectificação da ideia de «terra natal» (Leal 1999, 2010; Silvano 2006). A eles se juntaram, num trabalho complexo de recomposição das culturas do mundo rural, migrantes e turistas oriundos, sobretudo, das novas classes médias urbanas portuguesas: ao mesmo tempo que as antigas casas rurais (senhoriais ou populares) se adaptavam para receber novos habitantes temporários, o artesanato, a gastronomia e a vida ritual e festiva transformavam-se de forma a integrarem novas lógicas culturais e de mercado (Raposo 2009). Como noutros países, a época do património chegou ao mundo rural e começaram também a aparecer instituições locais a assumir um papel activo nos processos de objectificação e de mercadorização da cultura. Confrontados com esta nova realidade, os antropólogos envolveram-se com ela, tanto na tentativa do seu entendimento

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crítico, como assumindo um papel activo na sua produção (sobretudo através do tratamento museológico dos objectos, mas também, embora excepcionalmente, intervindo nos mecanismos de controle ligados à produção de objectos tradicionais mercantilizados). É talvez aqui que podemos encontrar uma continuidade entre o que foram os estudos de cultura material dos anos 1960 e 1970 e a contemporaneidade. Benjamim Pereira, o elemento mais jovem do grupo de trabalho ligado à criação do Museu Nacional de Etnologia, foi uma personalidade central para o traçar dessa continuidade: rodeado de antropólogos das novas gerações, ele ajudou a compreender a vida social dos objectos que fizeram os trânsitos entre o país rural tradicional e a ruralidade reinventada. No que diz respeito aos acontecimentos museológicos, será útil referir três exposições que, logo no início dos anos 1990, interferiram no percurso, que aqui se ensaia traçar, dos objectos na antropologia portuguesa dos últimos trinta anos. Aconteceram em Lisboa e no Porto — tendo por isso sido dirigidas aos consumos culturais das elites citadinas, em que se incluíam os, então jovens, antropólogos que viriam a assumir papéis activos no processo que acabei de referir. Duas delas — Fado, Vozes e Sombras (1994) e O Voo do Arado (1996) — realizaram-se no Museu Nacional de Etnologia, sob a direcção de Joaquim Pais de Brito, e, de algum modo, corresponderam ao abrir de um novo ciclo e ao fechar de um outro. Coincidente com a altura em que Lisboa foi Capital Europeia da Cultura, a exposição sobre o fado trabalhou a componente mais internacional do património imaterial do País. Construiu, sobre um ícone da cultura popular urbana, um olhar dinâmico sustentado na interacção entre o passado e o presente, que se repercutiu sobre a forma como as novas gerações

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olharam, a partir daí, a cultura material. Por seu lado, O Voo do Arado fechou o longo ciclo de recolha e de mapeamento dos objectos do mundo rural tradicional. No mesmo ano da exposição sobre o fado — 1994 — teve lugar, no Porto, comissariada por José António Fernandes Dias (responsável pela investigação, conceito e guião), Eglantina Monteiro, Paulo Providência e Ângelo de Sousa, a exposição Memória da Amazónia: Etnicidade e Territorialidade, que expôs, em simultâneo, objectos recolhidos por Alexandre Rodrigues Ferreira, no século XVIII, e objectos contemporâneos produzidos, sob controle da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) para serem colocados no mercado étnico internacional. Sustentada numa posição crítica relativa às formas tradicionais de pensar e mostrar objectos indígenas, a exposição concretizou, em Portugal, propostas museológicas e conceptuais então inovadoras. Os objectos faziam parte de um discurso expositivo que se socorria das noções de «território» e de «etnicidade» para pensar as relações, de quase cinco séculos, entre os povos da Amazónia e o exterior. Para os comissários, foi mais importante pensar a instabilidade dos percursos dos objectos do que inseri-los em configurações sociais e culturais estáveis.

Nos anos que se seguiram, o tratamento museológico, agora com uma implantação espacial também regional e local, manteve-se como um lugar privilegiado para etnografar e pensar a cultura material de raiz rural. Os textos e filmes produzidos a propósito da exposição Rituais de Inverno com Máscaras, que teve lugar no Museu do Abade de Baçal, em Bragança (Pereira 2006), são disso um exemplo, bem como alguns dos textos produzidos no seguimento da criação do museu que recebeu uma parte dos objectos da Aldeia da Luz, antes situada nos terrenos que hoje

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estão submersos pelas águas da barragem do Alqueva (Saraiva 2005). A atenção dada aos microcontextos de inserção social e cultural dos objectos musealizados, bem como às transformações dos usos e dos sentidos que os mesmos sofreram ao longo das suas vidas, revelam preocupações conceptuais coerentes com um novo contexto teórico, muito diferente daquele que orientou os trabalhos dos anos 1960/70 (mais atentos às constantes técnicas e formais de objectos inseridos num tempo histórico longo).

A dinâmica patrimonial estendeu-se também para outras geografias, que incluíram regiões piscatórias e zonas de indústria tradicional. Também aqui surgiram, neste caso mais ligadas às questões dos saberes e das tecnologias, pesquisas etnográficas sobre cultura material, tanto para fins museológicos (o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, é talvez o mais conhecido), como de investigação (Durão 2003; Marques 1999, 2000; Nunes 2008; Sarmento 2008).

A construção social do património trouxe também consigo mecanismos de regulação formal associados à ideia de «autenticidade»: alguns objectos passaram a entrar no mercado com um valor simbólico (que tem uma transcrição monetária) acrescido, dependente de uma certificação que regula as técnicas e os saberes aplicados na sua produção. A interferência da antropologia nesses processos não é muito frequente — a sua postura crítica arreda-a facilmente dos mesmos —, mas no caso específico dos «lenços de namorados» (um dos objectos com mais sucesso no mercado de objectos étnicos com valor patrimonial), esse processo de regulação/certificação foi feito a par de um trabalho de pesquisa antropológico que desmontou, de forma crítica, a representação empobrecedora que o processo «espontâneo» de objectificação

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havia já realizado (Durand 2008). As ferramentas da antropologia acabaram assim por complexificar as representações que se faziam do objecto, abrindo novas possibilidades para a sua produção. Deste percurso estão ausentes os objectos, a quantidade infindável de objectos, que entraram em Portugal durante os últimos trinta anos. As coisas banais, correntes, que enchem as casas das pessoas de um país que chegou, embora com constrangimentos económicos específicos, finalmente à sociedade de consumo. Depois dos objectos trazidos pelos emigrantes vindos da Europa e da América e pelos ex-colonos vindos de África, Portugal, que havia vivido fechado sobre si próprio debaixo de uma ditadura, abriu-se, progressivamente, aos mercados globais. Na década de 1980 apareceram as primeiras grandes superfícies, depois foram os centros comerciais (com marcas internacionais de gama média e baixa), as «lojas de chineses», o IKEA e, finalmente, as lojas de luxo. A abertura da loja da Prada em Lisboa, no Verão de 2010, exactamente na altura em que as instituições internacionais se interrogam sobre a solidez económica do Estado português, insere-se numa nova realidade: Lisboa, a capital de um dos países mais pobres da União Europeia, está a tornar-se num centro de compras para as elites económicas das suas ex-colónias. Todos esses objectos chegados de fora viveram, durante anos, no interior das casas dos portugueses, sem que os antropólogos manifestassem por eles um particular interesse. Esporadicamente eram referidos, sobretudo quando o assunto a tratar eram as transformações do mundo rural provocadas pelas novas mobilidades (como foi o caso das «casas de emigrantes»), mas não se constituíram em objecto de trabalho autónomo, nem para a descrição etnográfica nem para a interpretação analítica. O caminho

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que os estudos de Cultura Material seguiram nas últimas décadas (Turgeon 2007), no sentido de integrar os objectos da sociedade de consumo nesse campo de trabalho, só foi incorporado tardiamente pela antropologia portuguesa. As questões, que atrás referimos, associadas aos processos de objectificação da cultura de raiz popular, obrigaram, obviamente, a integrar a questão do consumo, mas os objectos mais comuns, aqueles que passaram a estar disponíveis no mercado massificado, esses foram pouco estudados. Para o fazer, a antropologia portuguesa precisou, por um lado, de solidificar os estudos em contexto urbano — que etnografaram classes populares (Cordeiro 1997; Menezes 2004; Seixas 2008), classes médias (Seixas 2008) e elites financeiras (Lima 2002) — e, por outro, de incorporar um campo teórico que se encontrava em profunda renovação (Duarte 2002, 2010; Rosales 2002, 2006, 2009b). A investigação iniciou-se, assim, ancorada numa filiação conceptual que privilegiou o pensamento de autores como Mary Douglas e Baron Isherwood, Jean Baudrillard, Pierre Bourdieu, Arjuan Appadurai e Daniel Miller. Localizada nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto e focalizada nas classes médias urbanas, a antropologia dos bens de consumo deu particular importância ao contexto doméstico, tido como o lugar onde os objectos iniciam, graças aos mecanismos de apropriação, as suas segundas vidas. Marta Rosales começou por estudar os objectos domésticos no contexto dos percursos de migração de portugueses que retornaram a Portugal após a independência de Moçambique, tendo depois continuado a desenvolver a problemática da relação entre objectos e emigração portuguesa no contexto canadiano e, com Filomena Silvano, no contexto brasileiro.

Alice Duarte (2003, 2009) partiu da observação da prática de «ir

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às compras» — num centro comercial do Grande Porto — para depois seguir o percurso dos objectos até ao interior das casas e das redes de sociabilidade das famílias. Assunção Gato (2009) associou as questões dos consumos domésticos ao consumo do espaço urbano e estudou os estilos de vida de famílias que habitam no espaço que sofreu uma requalificação urbana aquando da Exposição Mundial (Expo’98) de Lisboa. Ao mesmo tempo que se aproximou dos padrões de consumo dos países da Europa comunitária, Portugal tomou consciência de que também é um país de acolhimento, sobretudo para imigrantes das suas ex-colónias. Invisibilizados durante os primeiros anos de permanência no País, estes começaram, nos últimos anos, a aparecer na cena pública como os transportadores e produtores de novas formas culturais, assumindo assim o papel de actores na construção de uma nova multiculturalidade. Essa realidade, que tomou vários contornos quer mediáticos quer políticos, tem uma transcrição material e expressiva muito evidente, que tem vindo a ser estudada pela antropologia, tanto do ponto de vista da produção de culturas expressivas, como dos seus consumos (Cidra 2002, 2008; Fradique 2003). Nesse contexto de trabalho, os objectos massificados ganham novos sentidos, sempre ligados às construções identitárias, mas agora com a particularidade de se associarem, no interior de mecanismos de construção de identidades étnicas, àqueles que vêm dos países de origem dos imigrantes (Rosales 2009a). Uma parte dos objectos que os antropólogos encontram hoje em Lisboa resultam de redes, com origens históricas, sociais e culturais muito diversas, que ligam Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Brasil, Portugal e, ainda, os países de acolhimento das diásporas de todos esses países.

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A publicação de textos de antropólogas portuguesas e brasileiras num número da revista Etnográfica dedicado à temática do consumo poderá vir a resultar numa colaboração produtiva entre investigadores de dois países que, durante cinco séculos, viram chegar, vindos do outro lado do Oceano, os objectos estranhos que haviam percorrido os caminhos dessas diásporas. Luxuosos e excepcionais como as plumagens de chefes indígenas e os coches da corte portuguesa, ou vulgares e insubstituíveis como as havaianas.

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VIVER NAS CASAS

Os discursos da emigração 1

Uma série de televisão veio aproximar os emigrantes portugueses dos que vivem nas grandes cidades. No resto do país eles são, porém, uma presença bem material sempre que chega o mês de Agosto, o mês das férias. A seguir se sistematizam os discursos da emigração.

A «casa do emigrante» tem sido objecto de discussão e polémica. Sobre ela muito se pode dizer, tudo depende do tipo de abordagem; a nossa resulta da análise de histórias de vida de emigrantes e de entrevistas a indivíduos que, não sendo emigrantes, se sentem tocados pelas vidas destes e, por isso, as relatam2. Estamos, portanto, face a dois tipos de narrativa: uma em que o herói é o próprio narrador (a vida de um indivíduo é interpretada e reconstruída por si próprio) e outra em que não há coincidência entre herói e narrador (trata-se, neste caso, da interpretação reconstitutiva da vida de outrem). Assim, a casa do emigrante será por nós pensada como objecto de discursos que devem ser considerados nas suas subjectividades, sabendo que no fundo des-

1 Filomena Silvano. 1988b. «Os discursos da emigração», «Ideias», JL, 15.08.1988: 16-17.

2 Este texto resulta da investigação realizada no âmbito do projecto PNUD-UNESCO

«Spatial Development», dirigido por Pierre Pellegrino e por Augusto Guilherme

Mesquitela Lima. Na análise das narrativas segue-se a terminologia de Algirdas Julien Greimas.

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sas subjectividades se encontra escondida uma realidade social e colectiva que foi incorporada pelos sujeitos. Os dois tipos de narrativas analisados apresentam uma mesma organização sintagmática: as etapas seguidas pelos emigrantes/heróis são as mesmas, apenas as valorizações do discurso divergem.

O emigrante/herói

Uma situação de «falta», relativa ao lugar de origem, conduz à construção de um projecto que visa a sua «liquidação». Trata-se de projectos de partida para um «além» onde os heróis procuram os meios para a «liquidação da falta» inicial.

A minha mãe foi para França. Olhe, a cama dela era uma cama de bancos. Ela tinha os brincos das orelhas, teve que empenhar os brincos das orelhas para comprar pão para nos dar. Mas antes de nós irmos passou-se muita fome e o meu pai pensou em emigrar.

A obtenção desses meios depende do êxito de provações a que os heróis estão sujeitos durante a sua estada no espaço do além.

Fui a salto, como os coelhos. Andámos nove dias para lá chegar. Nove dias.

Lá está, o tal sofrimento que eles lá passam. Muitos fazem aquele sacrifício, com aquela ganância de mandar para a sua terra, para fazer uma casinha. Nós, os meus pais, também foi com o sonho de fazer uma casa.

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Estas provas conferem valor a objectos que dizem do seu êxito e que, ao mesmo tempo, materializam a progressiva realização do projecto inicial.

As pessoas vão para o estrangeiro e, primeiro que tudo, ou tentam construir logo ou comprar um carro. No primeiro ano vêm logo com um carro. Mais senhor… mais estrangeiro. Depois começam a amealhar dinheiro para fazer uma casa.

Entre o momento da partida e o momento do regresso definitivo, situa-se um período mais ou menos longo, durante o qual os emigrantes vivem no estrangeiro, regressando ao lugar de origem durante os períodos de férias. As idas e vindas cíclicas estruturam um tempo de margem, cuja ambiguidade é vivida de forma diferente pelos vários actores implicados: os emigrantes e a comunidade de origem. A ambivalência das relações sociais desenvolvidas neste período está presente nas valorizações dos discursos:

Chamam-lhes taralhões. Taralhão é um pássaro que vem só no Verão. Vem só no Verão, como os emigrantes vêm só no Verão. Porque o emigrante, muitas vezes, chega cá e gosta de se mostrar. Aqueles que chegam aí com grandes carros… E nas casas também há assim uma manifestação… nos telhados, principalmente, nota-se que a construção é diferente.

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A festa: lugar de expressão da diferença

Na sua maioria, a emigração portuguesa teve origem em comunidades agrícolas, nas quais se manifesta uma vida social ritualizada que toma forma em festas, feiras e romarias. Para os emigrantes, estes são momentos privilegiados para a reafirmação das relações sociais que definem a sua posição no interior da estrutura social da aldeia e, paralelamente, para a afirmação das diferenças que lhes conferem uma nova identidade e que lhes permitem afirmar uma nova posição social.

Um pouco por todo o País, observa-se uma reactivação das festas de Verão, devendo-se este fenómeno, em parte, à presença dos emigrantes; por um lado, a sua presença física aumenta e diversifica os laços sociais no interior das aldeias, e, por outro, os próprios emigrantes fomentam, através de dádivas económicas, a sua realização. Estamos face a uma dinâmica social em que a eficácia da festa tradicional é utilizada para integrar e afirmar diferenças que, no seu conjunto, conduzem a processos de mudança social. A festa corresponde sempre a um período de margem mais ou menos licencioso, durante o qual a sociedade se renova, através do abandono de algumas regras sociais que, terminado o período festivo, devem ser novamente cumpridas. É este carácter licencioso que torna a festa potencialmente integradora da diferença: ela utiliza o carácter marginal da festa para se introduzir na sociedade, ao mesmo tempo que utiliza o seu poder de integração social para se fazer aceitar. Nas festas, os objectos que dizem do êxito das provas enfrentadas no estrangeiro são ostentados de forma a que a comunidade sancione o percurso do herói.

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O regresso é condição necessária para a realização do projecto

A «liquidação da falta» deve ser realizada no espaço de origem, onde se situa a comunidade que deve reconhecer o êxito das performances do herói. O regresso é, portanto, condição necessária para a realização do projecto dos emigrantes. O retorno definitivo corresponde à realização de um projecto original, que foi concebido e vivido como projecto pessoal, extensivo apenas à família do emigrante. O seu êxito ou o seu falhanço dependem, no entanto, do reconhecimento social das provas do êxito do emigrante. A comunidade, investindo simbolicamente nos seus emigrantes, faz também projectos que dizem respeito ao regresso daqueles. Da interacção, decorrente das negociações entre os projectos dos que regressam e os projectos colectivos da sociedade de acolhimento, depende a integração social do emigrante e o equilíbrio das comunidades que os acolhem; tudo resulta da adequação recíproca dos projectos em presença.

Originalmente, a emigração tem por objectivo o deslocamento das posições ocupadas pelos seus actores no interior de uma estrutura social existente aquando da partida. Do ponto de vista de cada emigrante, a transformação é concebida como um processo individual, que apenas tem sentido se tiver como referência a estrutura social existente no seu início. Para que o projecto inicial de deslocamento da sua posição se concretize, esta estrutura deverá manter-se constante. Na base da emigração estão, portanto, planos de transformação de vidas, projectos individuais que só enquanto tal possuem sentido. Não se trata de planos de modificação social global; pelo contrário, as transformações na sociedade de origem podem invalidar a démarche do emigrante,

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