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tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
T ÍTULO DO ORIGINAL: LA VIE AMOUREUSE DE VÉNUS, DÉESSE DE L’AMOUR
© SISTEMA SOLAR CRL
RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2023
ISBN 978-989-568-080-1
1.ª EDIÇÃO, MARÇO DE 2023
NA CAPA: BOTICELLI, O NASCIMENTO DE VÉNUS (PORMENOR)
REVISÃO: DIOGO FERREIRA
DEPÓSITO LEGAL 512092/23
ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ULZAMA
Francis de Miomandre, com vinte e sete anos de idade e a poucos dias de fazer vinte e oito, teve o Prémio Goncourt a distinguir-lhe o romance Écrit sur de l’eau… «O meu Goncourt não foi para ninguém um acontecimento, nem mesmo para mim.» A surpresa da atribuição — o Goncourt «descido» a um novato, e a um livro de vivacidade leve e quase frívola — encheu o meio literário parisiense de anedotas. No entanto, a habitual acidez de Jules Renard abrandou no seu terrível Diário para mostrar alguma simpatia pelo «rapaz»: «Muito jovem, vinte e sete anos, um pequeno mosqueteiro, um miúdo cheio de aprumo, muito decidido a não ter um ar contrafeito, apesar de isso lhe acontecer.»
Francis de Miomandre era filho de um negociante «excêntrico», uma típica figura do comércio de Marselha, tudo menos um marido, tudo menos um pai; mas o seu lado materno orgulhava-se de ter um pé bem metido na História porque um dos seus antepassados — com um nome duplamente santificado: François de Miomandre de Sainte-Marie de Saint-Pardoux — tinha defendido com braço forte Maria Antonieta durante o assalto do Povo da Revolução ao palácio de Versalhes.
Num colégio de jesuítas, o jovem Miomandre surgiu no quadro dos «excelentes»; e tudo parecia correr pelo mais previsível numa família bem estabelecida na sociedade, com a sensatez de Madame de Miomandre a dar algum decoro às leviandades
maritais, quando a sua morte prematura deu vida solta à cabeça no ar do negociante de Marselha. M. Gilbert Durand (o «de Miomandre» era concedido apenas pela mãe) desapareceu; e tempos depois Francis conseguiu saber por uma carta que ele vivia em Argel: «Meu querido filho, deves estar espantado por ver que não voltei para casa. […] O que queres tu? Há momentos na vida em que sentimos a irresistível necessidade de mudar de ares; não conseguimos resistir, sufocamos. […] Encontrei aqui uma cidade ideal, por assim dizer ainda virgem quanto a grandes empreendimentos e onde adivinho, só com algumas horas em terra, que três ou quatro grandes negócios poderão fazer-me voltar a funcionar.»
Sozinho, com um irmão mais novo para sustentar, alugou parte da casa paterna. Conseguiu que M. Durand, seduzido pelos fáceis encantos de Argel se sentisse pai e lhe mandasse uma pensão; mas teve ainda assim de suportar uma lamentável falta de dinheiro — que não o impediu de cultivar uma elegância de monóculo e longos cigarros fumados publicamente com estilo. Francis lia muito; e embora Marselha não fosse Paris, tinha a viver lá Edmond Jaloux e Gilbert de Voisins. E até aconteceu que André Gide, de passagem para as seduções morenas de um Norte de África francês, pôde oferecer-lhes uns dias de companhia com inesquecíveis conversas de toque parisiense. Francis Durand (qual quê!, apenas De Miomandre) começou a sentir, cada vez mais, que ia ser escritor.
A volúpia da escrita chegava-lhe de longe; aos cinco anos de idade tinha escrito «um romance», contava ele com graça e sem dar muitos pormenores; e naqueles dias fazia versos — o começo de todos os futuros prosadores que ainda se amedrontam com as dificuldades da prosa. O empurrão decisivo para as letras deu-se quando Camille Mauclair foi aconselhado pelos médicos a deixar
Paris e a fazer os seus pulmões respirarem as mais brandas atmosferas do sul. Mauclair escolheu Marselha; e esgotado o tempo retemperador, quando regressou a Paris levou Miomandre como seu secretário particular. Estava em causa — pretexto mais evidente — a elaboração das Obras Completas de Jules Laforgue para a Mercure de France, um trabalho onde a ajuda de Miomandre seria preciosa («Ele fez-se meu patrão, o meu grande patrão… e foi quem me “parisiensou”» — veio Miomandre a dizer numa entrevista.
Em 1901, Miomandre apareceu pela primeira vez no sumário da Mercure de France, a revista do movimento simbolista. Foi rapidamente notado, rapidamente referido; a sua perspicácia literária destinava-o a fazer «descobertas»; a ser o primeiro, por exemplo, a falar do «selvagem e misantropo» Lubicz-Milosz (o autor do esplendorosamente escrito L’Amoureuse initiation). Em 1904, os duzentos exemplares de Les Reflects et les souvenirs marcaram a sua estreia literária («não eram versos famosos», reconheceu mais tarde; «foi vendido um exemplar, o que me pareceu uma espécie de êxito, mas nunca consegui que o livreiro me dissesse o nome do comprador».) No entanto, nesse mesmo ano o burlesco Les Hôtes innatendus deu a conhecer pela primeira vez a trepidação de estilo e de episódios que viria a ser «marca» inconfundível do escritor Miomandre.
Este enérgico literato começou a aparecer com artigos em muitos jornais (mas em paralelo com a sua intensa vida das letras não hesitou em propor-se como o gigolô mundano que um dia fez a Marie Gaspar este pedido cheio de franqueza: «Não conhece nenhuma velha condessa alemã ou uma qualquer velha dama que precise de um leitor e seja capaz de dar-me cento e cinquenta francos mensais para eu lhe ler um determinado número de horas
por dia, e mais tarde seja capaz de deitar-me ao comprido no seu testamento?» E noutra carta também lhe conhecemos este regozijo: «A pouco e pouco, a minha reputação como jovem precioso e amigo das damas espalha-se entre as pessoas e ganho simpatias. Deixo a coisa correr. Acabarei por ser célebre.»)
1908 foi o ano do seu inesperado Goncourt. André Gide confessou na NRF uma perplexidade que parecia não querer prescindir de uma evidente simpatia. Como crítico literário, Miomandre tinha sido bastante elogioso para com o escritor André Gide. Foi assim a hábil retribuição que pedia ajuda à retórica perante a difícil tarefa de falar sobre o premiado Écrit sur de l’eau… «Que tom devemos ter para falar deste livro leve? Leve como uma bolha, inconsistente, bizarro, foge à crítica e parece constantemente em formação. Poderia ser insuportável; mas é um encanto. O autor arfa graciosamente e com uma não fingida juventude. É realista mas ao mesmo tempo cheio de humor e ironia, deploravelmente apaixonado, quimérico; ao mesmo tempo terno e trocista, ri-se das coisas desagradáveis da vida e só leva a sério a sua sentimentalidade discretamente triste.»
Miomandre, com o frenesi sexual de um láparo, fez Paul Claudel e André Suarès começarem a tratá-lo por «coelhinho»; mas houve nesses mesmos dias Apollinaire a mostrar-se com a simpatia de avaliá-lo em La Phalange e de considerá-lo um autor «puro» e «subtil». Foi em 1909, neste auge de premiado pelo Goncourt e de uma competência que encantava mulheres entradas na idade e saudosas de ternura e sexo, que Miomandre foi a Bruxelas e encontrou uma viúva belga dez anos mais velha do que ele, com posses não neglicenciáveis e um nome íntimo, capaz de soar divertidamente aos ouvidos portugueses: Mijette. Casaram-se, instalaram-se numa casa da praça De la Madeleine,
e foram um casal que não se poupava nocturnamente aos brilhos culturais e mundanos de Paris. Mas que era no dia claro diferente: com ele, Miomandre, a escrever; com ela, dama prendada Mijette, a tocar piano. Conseguiu, segundo Rémi Rousselot, atravessar o mau período de 1914 a 1918 «levando ao extremo o seu dandismo». Em 1916 foi até Espanha (o seu conhecimento do castelhano fá-lo-á apreciado tradutor de Góngora, Unamuno, Horacio Quiroga, Azorín, Cervantes; e a guinar nesta sucessão muito vasta, e aqui reduzida a nomes mais significativos, encontra-se o «desvio» da língua espanhola que o fez chegar acidentalmente ao português do Dom Casmurro de Machado de Assis). Na Espanha apaixonou-se por Maiorca, onde teve a sorte de um terreno oferecido por um dos mecenas da ilha. A casa que aí construiu chamou-se Las Siete Higueras; a sua burra chamou-se Platera (uma homenagem a Ramón Jiménez), tudo para uma felicidade insular que se prolongou até ao Verão de 1936, quando a instabilidade sangrenta da Guerra Civil o obrigou a regressar a Paris. Francis de Miomandre recuperou por inteiro os seus antigos hábitos, os da literatura e os da sua enérgica prestação sexual. Mijette, que não ignorava as proveitosas actividades de leito do seu competente marido, fez a Paul Morand esta confissão: «Sou a mulher mais enganada de Paris, mas a mais amada.»
Quando Mijette morreu, Marcelle Castellier já estava pronta para ocupar-lhe o lugar, acrescentando o peso de três filhas. O novo casal refugiou-se em Corrèze, um departamento da Nova Aquitânia. Francis lia, escrevia ficções, bordava a matiz encantadoras almofadas e aborrecia-se. «Tenham piedade de um pobre escritor com o aparelho de rádio estragado e que não recebe neste buraco perdido, onde mora, nenhum periódico; como nada sabe
do que se passa no mundo, não consegue escrever um artigo, seja sobre o que for.»
Em 1929 Miomandre publicou esta biografia de Vénus, um dos seus livros mais logrados e onde parece haver um desejo de ironia voltado para o que é vulgar chamar-se «verdade histórica». Olhando para Vénus como uma personagem autêntica e só perturbada pela lenda, Miomandre avisa-nos de que «passou a ser difícil discernir o verdadeiro daquilo que a imaginação lhe acrescentou». Com uma inesperada seriedade de biógrafo, tem hesitações nascidas da sua decisão de «só escrever a história, e não a lenda de Vénus»; e quando chega ao momento de fazer referência aos seus filhos, retrai-se porque se desconhecem muitas das suas aventuras e ele só quer falar «das que podem dar-se como garantidas». Também afirma que há poucos dados sobre a sua aventura com Mercúrio, mas que vai falar dela por ser de «inegável autenticidade». Para o biógrafo Miomandre, Vénus nascida da espuma das ondas, ou seja, com um lado terrestre, foi capaz de inquietar a pureza toda divina do Olimpo com a impura eficácia da sua sedução, mas acabou por ser vencida na sua imensa popularidade terrena quando frades de burel destruíram séculos mais tarde as suas imagens e fizeram suceder-lhe «uma doutrina nova, chegada do Oriente», que se propagava «com extraordinária rapidez no espírito das mulheres, dos pobres, dos escravos, dos humilhados, dos ofendidos, e vencia em poucos anos o sorridente e ingénuo paganismo com um papel civilizador que chegava ao fim.» A esta Vénus vencida e em plena época cristã, ainda surgiu o impossível amor de um tardio Tannhäuser. Mas hoje só lhe resta o seu planeta, «morada sideral, para lá do Olimpo destruído, de onde se vertem sobre nós as suas benfazejas ou maléficas influências, o planeta de esperança e beleza onde Ela elabora os nossos destinos de amor».
Miomandre passou a Segunda Guerra Mundial em Corrèze, com uma indiferença pelos assuntos políticos idêntica à que tinha mostrado na guerra anterior. Em 1941 publicou as três novelas de Le Fil d’Ariane, com alguns críticos a chamarem-lhes obra-prima; em 1944 foi eleito membro da Academia Mallarmé.
Mas a literatura do pós-guerra estava a mudar de tom, a mudar de género, a mudar de face. Apareciam os Sartre, os Camus, os Vailland, que não encontravam lugar na sua matriz. Françoise Sagan mereceu-lhe o intenso desprezo escrito que fê-lo dar à expressão «Bom-dia tristeza» um sentido acrimonioso e contrário ao eluardiano, da escritora.
Miomandre não foi, apesar disto, esquecido. Em 1950 ganhou o Grande Prémio da Sociedade da Gente de Letras pelo conjunto da sua obra. Tinha cerca de uma centena de obras publicadas. Mas viveu os seus últimos anos desiludido, até à irremediável crise de uremia que o hospitalizou e fez morrer em Paris, em 2 de Agosto de 1959. Diz-se que seduziu no hospital as enfermeiras.
À primeira vista pode parecer extremamente ousada a pretensão de escrever a história de Vénus. Não por falta de documentos, ai de mim! São, pelo contrário, tão numerosos que ficamos sem saber quais devem ser escolhidos. É, por certo, uma das personagens que mais atenção reteve desde o começo do mundo. A um tal ponto, que a lenda acabou por apoderar-se dela e passou a ser difícil discernir o verdadeiro daquilo que a imaginação acrescentou; essa imaginação, precisamente, que Vénus ao mais alto grau excita.
Mas uma característica das tarefas difíceis é tentarem os operários fracos. Quanto mais os obstáculos se acumulavam, mais eu era conquistado pela vontade de os enfrentar. Isto sem falar no facto de não existir, que eu saiba (e é verdade que sou iletrado), uma biografia propriamente dita da deusa do amor. Pintaram-na, esculpiram-na, contaram-na, vilipendiaram-na de todas as formas. Nunca houve quem pensasse em escrever sobre a sua vida, embora isso fosse muitas vezes feito sobre as mulheres que Ela inspirou, de resto com mais ou menos êxito. É uma lacuna, uma lacuna tanto mais grave porque o amor, do qual ela é o ídolo e a essência, fez-se uma das grandes preocupações da humanidade.
Pareceu-me interessante traçar, destinado aos tantos homens e mulheres que ela mais ou menos dirigiu, enlouqueceu,
exaltou, feriu ou desesperou, o retrato d’Aquela que eles procuram e adoram em naturezas por vezes muito pobres.
O enorme trabalho a que eu me dediquei, para ficar documentado não deixará aqui nenhum vestígio. Nem notas, nem chamadas… Terei de ser acreditado na minha palavra. Deve imaginar-se que eu não me atreveria a inventar, tratando-se de um tema tão sério. Todos os episódios desta aventura tão extraordinária, que às vezes parece fabulosa, são estritamente verdadeiros. Não é necessário recorrermos à ficção, quando a história é tão rica e tão mais bela do que todo o devaneio.
Para aqueles a quem isto interessar, tenho à disposição alguns documentos chegados ao meu conhecimento através de uma série de acasos tão felizes, que eu mais veria neles uma particular intervenção d’Ela própria, com revelações que esclarecem certas partes da sua existência mantidas na sombra. Até hoje só eu tive nas mãos estes documentos. Permitiram-me reencontrar o fio cronológico que liga todas as aventuras conhecidas de Vénus e rejeitar também, no domínio das suposições puras, certas fábulas contra as quais a lógica ou o bom senso já se revoltava: por exemplo, a que faz Eros filho de Vénus. Também me ajudaram a reconstituir certos episódios sobre os quais só havia dados muito vagos. Numa palavra, juntaram-se aos outros que já conhecíamos para compor um conjunto coerente, harmonioso, onde a mais meticulosa das críticas não saberá encontrar lacunas.
A vida de Vénus é um romance; o mais perfeito, completo, divertido e emocionante dos romances de amor. Mas este romance é, de uma ponta à outra, uma história verdadeira, sem ser necessário acrescentar-lhe uma hipótese. Não estamos
aqui no domínio móvel da «vida romanceada» (género falso, se algum existir). Mas no domínio da verdade histórica. Mais uma palavra ao leitor. Para evitar repetições fastidiosas, durante a narrativa designámos indistintamente as personagens com o seu nome grego ou latino. Vénus ou Afrodite, Ares ou Marte, Minerva ou Palas, Zeus ou Júpiter. Penso que esta tão modesta liberdade não leve a nenhuma confusão na leitura do texto.
Se pensarmos que sete ilhas da Grécia já disputam a honra de ter dado o dia a Homero que é, de facto, um grande poeta e um homem muito interessante embora pertença, ainda assim, ao género dos velhos trovadores que ganham a vida a cantar histórias nos castelos, é fácil imaginarmos a incerteza sobre as origens de Vénus que se perdem, mais do que todas as coisas do mundo, na noite dos tempos. Todo o Arquipélago está em ebulição, e cada onda do Mediterrâneo se eleva com amor só porque pensa nesse maravilhoso momento, talvez o mais belo que o mundo algum dia viveu. No entanto ignoramos os nomes dos privilegiados que assistiram a esse espectáculo único. Só sabemos uma coisa por si própria muito insólita: que Vénus nasceu da espuma do mar… Espantais-vos com isto?… Sim, é um acontecimento bastante raro, confesso, e começamos por sentir alguma pena quando temos de admiti-lo. Desde há muitos séculos habituámo-nos a pensar que todos os nascimentos supõem um pai e uma mãe! Não conseguimos compreender que certos seres escapem pela sua essência superior a esta lei da natureza. Isto acontece, sem dúvida, por ignorarmos alguns dos mais profundos mistérios dessa natureza que não acaba, desde os tempos em que a estudamos, de reservar-nos surpresas… Na época a que me refiro, ainda ela não estava organizada, atrevo-me
a dizê-lo, como actualmente está. A sua força criadora, infinitamente poderosa, quase vulcânica, expandia-se com uma abundância e um vigor dos quais nenhuma ideia fazemos. De tão brusca maneira as formas corriam ao assalto da vida, que não davam tempo ao espírito para ele se reconhecer nelas; e a geração espontânea (que hoje não passa de uma vaga expressão de laboratório) era então regra geral. Se alguém mostrasse vontade de nascer nascia, e pronto. Não se embaraçava com antepassados. Magníficos arrivistas da Evolução, os seres um belo dia apareciam no cenário do mundo com a graça irresistível da necessidade. Todos jorravam de onde queriam: Eva da costela de Adão, Minerva — toda couraçada — de uma enxaqueca de Júpiter, e o Caos do nada, o que ainda é uma habilidade mais notável… Nestas condições não espanta que a deusa da beleza tenha escolhido ao mesmo tempo para pai e mãe a onda marinha, ela própria reservatório da energia universal. Isto ainda espanta menos se conhecermos o Mediterrâneo, se tivermos não mais do que duas horas sonhado na sua costa onde há, na plena e racional evidência de um Sul, o maravilhoso esplendor que justifica todas as alucinações e todas as magias. O que digo eu? O Mediterrâneo chama-as. E bem pouca imaginação será precisa para recriarmos o espectáculo que deve ter havido ali, do outro lado… em Chipre, onde o milagre aconteceu.
No entanto, é tão grande a mania científica, mesmo nas épocas mais intuitivas, que já na Antiguidade certos espíritos, e não dos mais rasteiros, duvidavam desta origem misteriosa e procuravam para Vénus uma mais provável genealogia. Homero (ele outra vez!) acha que ela era filha de Zeus e Dione.
— Queres partir?… — disse ela. — Ah! Não tentes negá-lo. Sei-o bem. Os olhos que pousas em mim não são os mesmos, nem os teus beijos. Mistura-se neles um ardor cheio de medo e angústia. Se a Terra ainda não te deu verdadeiramente a soma de decepções de que a tua experiência precisa, deves voltar para ela… Vieste cedo demais ao Venusberg. Não to censuro. Não podias saber que o teu desejo ainda não tinha chegado à maturidade…
— Perdoa-me, Vénus…
— Perdoo-te. De um homem não posso fazer um Deus para lá de um certo tempo, pelo menos…Vou lembrar-me meigamente de ti, meu querido erudito, meu poeta, meu amante cristão…
— …
— Vai ter com a Elizabeth. Está à tua espera… Mas não contes comigo para estar ao pé de vós. Vou deixar isso a cargo da sábia Minerva, da casta Diana…
— Mas se eu quiser voltar, vou encontrar-te?…
— Não posso afirmá-lo.
Separaram-se com um último beijo. *
Tannhäuser não permaneceu durante muito tempo ao pé de Elizabeth, apesar das lutas que teve de travar para o conseguir. Ela era meiga, bela, piedosa e constante. Mas o cavaleiro estava de ali em diante assombrado por memórias demasiado poderosas para serem vencidas por uma qualquer vontade. Todos os
dias elas cresciam, impunham-se ao seu espírito, obcecavam-no. Recorreu aos grandes meios. Partiu numa peregrinação até Roma, para pedir ao papa que o exorcizasse, pensando que o Senhor da Cristandade, e só ele, poderia libertá-lo daquele feitiço. Mas não tinha feito cem léguas e já estava tudo isto esquecido; desviou-se para o Norte e voltou ao caminho do Venusberg. Andava como um sonâmbulo, com uma espécie de delírio, a cantar em voz baixa palavras soltas, postas em árias como as tocadas por violinos nas barcas do Lete quando se faziam à vela para a falsa Citere:
— Oh! Sim… estou a voltar para ti… Vénus, não posso viver sem ti… Bem sei que razão me não fez ficar ao pé de ti, e por que não pediste que o fizesse. Porque também me era necessário sofrer para te conquistar… E que maior sofrimento haverá do que a separação?… Mas volto… quero saborear as guloseimas das tuas mesas, as harmonias das tuas músicas, as delícias dos teus afagos… Vou meter-me na montanha como a gota de chuva no filtro de uma camada de areia, como o tição numa tina de água… Sou o teu cavaleiro e o teu poeta… Só terás de tocar-me com um raio do teu olhar para me restituíres a força da juventude, a minha Imortalidade… Ah! Bem sei quem tu és e que ficarei agora danado por te reencontrar, ó demónia, ó rainha dos prestígios, ó filha de Belzebu!…
Mas a Deusa nada ouviu destas palavras dementes porque já lá não estava. Na montanha devastada, no lugar do palácio mágico que um sopro da sua boca tinha destruído como uma bolha de ar, só havia umas quantas pedras calcinadas… Era noite. Em vez dos sátiros e dos duendes de outrora que o
tinham levado até à Rainha, só encontrou uns quantos fogos-fátuos a dançarem estranhamente no flanco da colina… e no ar flutuava um leve cheiro a enxofre… Louco de desespero o Cavaleiro caiu, e bateu com a fronte no solo. Mas além de Vénus não o ouvir, não podia vê-lo. Porque já lá não estava. Depois de algum choro vertido sobre a melancolia do seu derradeiro amor, voltara para a sua primeira morada sideral, para lá do Olimpo destruído, de onde se vertem sobre nós as suas benfazejas ou maléficas influências, o planeta de esperança e beleza onde Ela elabora os nossos destinos de amor.
9. Cópia romana a partir do original grego de Doidalsas da Bítinia (c. 100 a.C.)
Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo
O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain
No sentido da noite, Jean Genet
Com os loucos, Albert Londres
Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James
O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier
A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco
Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet
David Golder, Irene Nemirowsky
As lágrimas de Eros, George Bataille
As lojas de canela, Bruno Schulz
O mentiroso, Henry James
As mamas de Tirésias – drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire
Amor de perdição, Camilo Castelo Branco
Judeus errantes, Joseph Roth
A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence
Porgy e Bess, DuBose Heyward
O aperto do parafuso, Henry James
Bruges-a-Morta – romance, Georges Rodenbach
Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville
Histórias da areia, Isabelle Eberhardt
O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna
Autobiografia, Thomas Bernhard
Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe
Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès
Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton
Dicionário filosófico, Voltaire
A Papisa Joana – segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides
Bom Crioulo, Adolfo Caminha
O meu corpo e eu, René Crevel
Manon Lescaut, Padre Prévost
O duelo, Joseph Conrad
A felicidade dos tristes, Luc Dietrich
Inferno, August Strindberg
Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West
Freya das sete ilhas, Joseph Conrad
O nascimento da arte, Georges Bataille
Os ombros da marquesa, Émile Zola
O livro branco, Jean Cocteau
Verdes moradas, W.H. Hudson
A guerra do fogo, J.-H. Rosny Aîné
Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès
Messalina, Alfred Jarry
O capitão Veneno, Pedro Antonio Alarcón
Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva
Visão invisível, Jean Cocteau
A liberdade ou o amor, Robert Desnos
A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence
O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle
Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg
Histórias aquáticas – O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad
O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono
O dicionário do diabo, Ambrose Bierce
A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco
O caso Kurílov, Irène Némirowsky
Nova Safo – tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura
A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson
Gaspar da Noite – fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand
Rimbaud-Verlaine, o estranho casal
O rato da América, Jacques Lanzmann
As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel
Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones
Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James
O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo
sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan
Derborence, Charles Ferdinand Ramuz
O farol de amor, Rachilde
Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière
A minha vida, Isadora Duncan
Rakhil, Isabelle Eberhardt
Fuga sem fim, Joseph Roth
O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans
Tufão, Joseph Conrad
Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud
Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud
Eu, Antonin Artaud
A morte difícil, René Crevel
A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth
O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne
Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn
As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski
Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán
Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry
Balkis (A lenda num café), Gérard de Nerval
Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos
O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud
Riso vermelho – fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev
A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné
Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde
O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes
Entre a espada e a parede, Tristan Bernard
A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen
Os meus Oscar Wilde, André Gide
As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw
Meu irmão feminino – «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva
Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz
O filho de duas mães, Edith Wharton
A armadilha, Emmanuel Bove
Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès
Erotika Biblion, Conde de Mirabeau
A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet
Paludes, André Gide
O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins
Sol, D.H. Lawrence
Cagliostro, Vicente Huidobro
As magias do Ceilão, Francis de Croisset
Má sorte que ela fosse puta, John Ford
Chita – uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn
A mulher 100 cabeças, Max Ernst
A dificuldade de ser, Jean Cocteau
O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen
A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat
Casa de incesto, Anaïs Nin
Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel
Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont
Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac
Babilónia, René Crevel
O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier
Carmilla, Sheridan Le Fanu
Mulheres na vida, Guy de Maupassant
O plantador de Malata, Joseph Conrad