Gilles Deleuze, Imagem-movimento Cinema 1 - excerto

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Gilles Deleuze

Gilles Deleuze A IMAGEM-MOVIMENTO CINEMA 1 tradução de

Sousa Dias

LINHAS DE FUGA 13

A IMAGEM-MOVIMENTO CINEMA 1

A IMAGEM-MOVIMENTO CINEMA 1

Este estudo não é uma história do cinema. É uma taxinomia, uma tentativa de classificação das imagens e dos signos. Mas este primeiro volume vai limitar-se a determinar os elementos, e mesmo assim os elementos de uma só parte da classificação. […] Tratamos nesta primeira parte da imagem-movimento e das suas variedades. A imagem-tempo será objecto de uma segunda parte. Os grandes autores de cinema pareceram-nos confrontáveis não só com pintores, arquitectos e músicos mas também com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagens-tempo, em vez de conceitos. A enorme proporção de nulidade na produção cinematográfica não é uma objecção […] não é por isso que o cinema deixa de fazer parte da história da arte e do pensamento, sob as formas autónomas insubstituíveis que esses autores souberam inventar e fazer passar apesar de tudo.

Gilles Deleuze

D O C U M E N TA


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linhas de fuga Lógica do Acontecimento – Introdução à filosofia de Deleuze, Sousa Dias O Cinema da Poesia, Rosa Maria Martelo O que é Poesia?, Sousa Dias Capa de Ilda David Geografia Imaterial, João Barrento Fotografias de Maria Etelvina Santos Žižek, Marx & Beckett – e a democracia por vir, Sousa Dias Capa de António Gonçalves Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 3.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz A Imagem-Tempo. Cinema II, Gilles Deleuze Tradução de Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras – 4.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz O Riso de Mozart – música pintura cinema literatura, Sousa Dias Capa de António Gonçalves Os Nomes da Obra – Herberto Helder ou O Poema Contínuo, Rosa Maria Martelo Dito em Voz Alta – Entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo, Manuel António Pina Manuel António Pina – Uma pedagogia do literário, Rita Basílio


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w w w. s i s t e m a s o l a r. p t


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Gilles Deleuze

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tradução

Sousa Dias

D O C U M E N TA


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Esta obra beneficiou dos Programas de apoio à publicação do Institut français Ministère français des affaires étrangères et du développement international

TÍTULO ORIGINAL: CINÉMA 1. L’IMAGE-MOUVEMENT

© 1983 BY LES ÉDITIONS DE MINUIT © SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA TRADUÇÃO © SOUSA DIAS CAPA: BUSTER KEATON, THE GENERAL, 1926 REVISÃO: CRISTINA GUERRA 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO 2016 ISBN 978-989-8566-97-3 DEPÓSITO LEGAL 414553/16 IMPRESSO NA EUROPRESS SA RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA, PORTUGAL


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nota do tradutor

Gilles Deleuze não foi só um grande pensador: também um grande escritor. Tentámos na presente tradução restituir rigorosamente essa dupla vertente conceptual e literária, material e formal, da sua escrita. Para isso não nos limitámos a procurar o equivalente exacto em português (até quando foi preciso criá-lo) de cada uma das palavras e alocuções originais utilizadas ou inventadas pelo autor. Procurámos ainda, e ao contrário por exemplo das traduções castelhana e inglesa que nos serviram de referência (cf. infra), respeitar sempre as articulações sintácticas do texto, o corte e o ritmo das frases, a respiração própria da linguagem deleuziana. Em suma, quisemos devolver com fidelidade quer o pensamento do filósofo quer o seu «tom», a sua sensibilidade de escritor, o seu estilo. As principais opções do tradutor foram as seguintes. Para a tradução, não estabilizada na nossa língua, das categorias semióticas de C.S. Peirce (firstness, secondness, thirdness), nucleares neste estudo sobre o cinema, seguimos por nos parecer a preferível a versão de António Machuco Rosa na sua Antologia filosófica da obra de Peirce, IN/CM, Lisboa, 1998, traduzindo aquelas categorias, respectivamente, por primidade, segundidade e tercidade. O termo empreinte, com que Deleuze designa um dos signos da imagem-acção, pôs um problema mais difícil. Impossível traduzi-lo por marca, por este termo ficar reservado para a tradução de marque, outro signo da taxinomia das imagens cinematográficas apresentada neste livro. Mas impossível também subscrever as soluções propostas pelas versões americana e espanhola e traduzir por impressão (impression) ou por pegada (huella), termos ambos inapropriados, suscitadores de contra-sensos no texto, o primeiro porque equívoco e, nesse sentido, demasiado fraco, o segundo porque demasiado forte e, no contexto, obscuro. Decidimo-nos, por ser uma escolha

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mais rente ao sentido contextual do termo original, pela tradução por sinal (a própria tradutora espanhola teve de traduzir o termo, na sua primeira ocorrência, por señal ). Em todo o caso, assinalámos entre parênteses rectos na nossa versão, lá onde ele é exposto como cine-signo, todas as ocorrências do termo empreinte. Em contrapartida, deixámos intraduzidos termos originais que passaram como tal para a linguagem técnica do cinema entre nós, como découpage, mise en scène, fondu, etc. Relativamente aos nomes de filmes, foi o seguinte o critério. Sempre que o autor cita pelo título original filmes não franceses que tiveram distribuição comercial em França e também em Portugal, respeitámos a opção do autor mantendo o título original em vez de o substituir pelo título português. Sempre que o autor cita filmes não franceses pelo título comercial francês, citamo-lo pelo título português ou, se não teve distribuição entre nós (exibição televisiva ou edição em VHS ou DVD incluídas), repomos o título original (não francês) do filme. Adoptamos o mesmo critério com os filmes franceses ou francófonos citados: só traduzimos o título quando conheceram estreia comercial em Portugal. Corrigimos algumas distracções de Deleuze nos nomes de realizadores ou de filmes: Jorge Ivens (por Joris Ivens), Dmytrick (por Dmytryk), Rosen (por [Robert] Rossen), «Corridor Schock» (por «Schock Corridor», filme de Fuller), «Bye bye braverman» (por «Bye bye braveman», de Lumet), etc. Não pudemos, por respeito pelo texto original, corrigir outras distracções, como por exemplo a referência no capítulo 9 deste primeiro volume à «cor ambiente» (o verde, segundo o texto) de «O vale era verde» de John Ford, um filme a preto e branco. Pensámos beneficiar o leitor substituindo por um «índice dos realizadores» no fim de cada um dos dois volumes desta tradução o único e muito incompleto índice, válido para o conjunto da obra, no fim do segundo volume da edição francesa original. Confrontámos toda a nossa tradução com a tradução castelhana de Irene Agoff (La imagen-movimiento. Estudios sobre cine 1, 1984, e La imagen-tiempo. Estudios sobre cine 2, 2004, Paidós, Barcelona) e com a tradução inglesa de Hugh Tomlinson & Barbara Habberjam (Cinema 1. The

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Movement-Image, 1986) e de Hugh Tomlinson & Robert Galeta (Cinema 2. The Time-Image, 1989, ambos os tomos na University of Minnesota Press, Minneapolis). Agradecimentos especiais são devidos a dois Amigos sempre disponíveis para colaborar com o tradutor, o escritor Manuel António Pina e o cineasta João Botelho. Agradecem-se também os esclarecimentos, pontuais mas preciosos, do crítico Augusto M. Seabra e do filósofo José Gil. Por último: este trabalho não seria o que é sem a cooperação do Ângelo César e, sobretudo, do João Duarte, que informatizou e co-corrigiu todo o texto e reviu por nós e para esta tradução filmes e cenas de filmes.

nótula da reedição de 2016 Para a presente reedição procedeu-se a uma revisão de todo o texto, com a introdução de correcções pontuais e a restituição actualizada, de acordo com os critérios enunciados na Nota supra, do título português de vários filmes citados. Repôs-se também o título correctamente citado por Gilles Deleuze e sem razão por nós «corrigido» (cf. essa Nota) do filme de Lumet «Bye bye braverman». S.D.

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prólogo

Este estudo não é uma história do cinema. É uma taxinomia, uma tentativa de classificação das imagens e dos signos. Mas este primeiro volume vai limitar-se a determinar os elementos, e mesmo assim os elementos de uma só parte da classificação. Referiremos frequentemente o lógico americano Peirce (1839-1914), porque ele estabeleceu uma classificação geral das imagens e dos signos, sem dúvida a mais completa e variada de todas. É como uma classificação de Lineu na história natural ou, mais ainda, como uma tabela de Mendeleiev na química. O cinema impõe novos pontos de vista sobre este problema. Há outro confronto não menos necessário. Bergson escrevia Matéria e memória em 1896: era o diagnóstico de uma crise da psicologia. Já não era possível opor o movimento como realidade física no mundo exterior à imagem como realidade psíquica na consciência. A descoberta bergsoniana de uma imagem-movimento, e mais profundamente de uma imagem-tempo, conserva ainda hoje uma tal riqueza que não é certo que já se tenha tirado todas as suas consequências. Apesar da crítica demasiado sumária que Bergson fará do cinema um pouco mais tarde, nada pode impedir a conjunção da imagem-movimento, tal como ele a considera, e da imagem cinematográfica. Tratamos nesta primeira parte da imagem-movimento e das suas variedades. A imagem-tempo será objecto de uma segunda parte. Os grandes autores de cinema pareceram-nos confrontáveis não só com pintores, arquitectos e músicos mas também com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagens-tempo, em vez de con-

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ceitos. A enorme proporção de nulidade na produção cinematográfica não é uma objecção: ela não é pior aí que noutros domínios, embora tenha consequências económicas e industriais incomparáveis. Os grandes autores de cinema são pois simplesmente mais vulneráveis, é infinitamente mais fácil impedi-los de fazer a sua obra. A história do cinema é um longo martirológio. Mas não é por isso que o cinema deixa de fazer parte da história da arte e do pensamento, sob as formas autónomas insubstituíveis que esses autores souberam inventar e fazer passar apesar de tudo. Não apresentamos nenhuma reprodução que viesse ilustrar o nosso texto, porque é o nosso texto pelo contrário que não pretende ser mais do que uma ilustração de grandes filmes de que cada um de nós tem mais ou menos a recordação, a emoção ou a percepção.

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capítulo 1

teses sobre o movimento primeiro comentário de Bergson

1 Bergson não apresenta só uma tese sobre o movimento, mas três. A primeira é a mais famosa e arrisca-se a ocultar-nos as outras duas. Ela é apenas no entanto uma introdução às outras. Segundo esta primeira tese, o movimento não se confunde com o espaço percorrido. O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o acto de percorrer. O espaço percorrido é divisível, e até infinitamente divisível, ao passo que o movimento é indivisível, ou não se divide sem mudar de natureza com cada divisão. O que supõe já uma ideia mais complexa: os espaços percorridos pertencem todos a um único e mesmo espaço homogéneo, ao passo que os movimentos são heterogéneos, irredutíveis entre si. Mas, antes de se desenvolver, a primeira tese tem um outro enunciado: não podemos reconstituir o movimento com posições no espaço ou com instantes no tempo, quer dizer, com «cortes» imóveis… Esta reconstituição só a fazemos acrescentando às posições ou aos instantes a ideia abstracta de uma sucessão, de um tempo mecânico, homogéneo, universal e decalcado do espaço, o mesmo para todos os movimentos. E assim de duas maneiras falhamos o movimento. Por um lado, por mais que aproximemos ao infinito dois instantes ou duas posições, o movimento far-se-á sempre no intervalo entre os dois, portanto nas nossas costas. Por outro lado, por mais que se divida e subdivida o tempo, o movimento far-se-á sempre numa duração concreta e cada movimento terá pois a sua própria duração qualitativa. Opõem-se por conseguinte

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duas fórmulas irredutíveis: «movimento real duração concreta» e «cortes imóveis + tempo abstracto». Em 1907, em A evolução criadora, Bergson baptiza a má fórmula: é a ilusão cinematográfica. Com efeito o cinema procede com dois dados complementares: cortes instantâneos chamados imagens; e um movimento ou um tempo impessoal, uniforme, abstracto, invisível ou imperceptível, que está «no» aparelho e «com» o qual se faz desfilar as imagens1. O cinema dá-nos pois um falso movimento, ele é o exemplo típico do falso movimento. Mas é curioso que Bergson dê um nome tão moderno e recente («cinematográfico») à mais velha das ilusões. Com efeito, diz Bergson, quando o cinema reconstitui o movimento com cortes imóveis nada mais faz do que o que fazia já o pensamento mais antigo (os paradoxos de Zenão) ou do que faz a percepção natural. Neste aspecto Bergson distingue-se da fenomenologia, para a qual pelo contrário o cinema romperia com as condições da percepção natural. «Captamos vistas quase instantâneas da realidade que passa e, como elas são características dessa realidade, basta-nos alinhá-las ao longo de um devir abstracto, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento… Percepção, intelecção e linguagem procedem em geral assim. Quer se trate de pensar o devir, ou de o exprimir, ou até de o percepcionar, nada mais fazemos do que accionar uma espécie de cinematógrafo interior.» Deverá entender-se que, segundo Bergson, o cinema seria apenas a projecção, a reprodução de uma ilusão constante, universal? Como se sempre se tivesse feito cinema sem o saber? Mas então são muitos os problemas que se apresentam. E, para começar, a reprodução da ilusão não é também de certa maneira a sua correcção? Pode-se concluir da artificialidade dos meios a artificialidade do resultado? O cinema procede com fotogramas, quer dizer, com cortes imóveis, vinte e quatro imagens por segundo (ou dezoito 1 L’évolution créatrice, p. 753 (305). Citamos os textos de Bergson conforme a edição [francesa] do Centenário e, entre parêntesis, indicamos a paginação da edição corrente de cada livro (Presses Universitaires de France).

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no início). Mas o que ele nos dá, como muitas vezes se observou, não é o fotograma, é uma imagem média à qual o movimento não se acrescenta, não se adiciona: o movimento pertence pelo contrário à imagem média como dado imediato. Dir-se-á que o mesmo sucede com a percepção natural. Mas aí a ilusão é corrigida a montante da percepção pelas condições que tornam a percepção possível no sujeito. Ao passo que no cinema ela é corrigida ao mesmo tempo que a imagem aparece para um espectador sem condições (deste ponto de vista, como veremos, a fenomenologia tem razão ao supor uma diferença de natureza entre a percepção natural e a percepção cinematográfica). Em suma, o cinema não nos dá uma imagem à qual ele acrescentaria movimento, dá-nos imediatamente uma imagem-movimento. Dá-nos um corte, sim, mas um corte móvel, e não um corte imóvel + movimento abstracto. Ora, o que é de novo muito curioso é que Bergson tinha perfeitamente descoberto a existência de cortes móveis ou de imagens-movimento. Foi antes de A evolução criadora, e antes do nascimento oficial do cinema, foi em Matéria e memória em 1896. A descoberta da imagem-movimento, para lá das condições da percepção natural, foi a prodigiosa invenção do primeiro capítulo de Matéria e memória. Deveremos pensar que Bergson a tinha esquecido dez anos mais tarde? Ou ter-se-á deixado levar por uma outra ilusão que afecta todas as coisas no início? É sabido que as coisas e as pessoas, quando começam, são sempre forçadas a esconder-se, determinadas a esconder-se. Acaso poderia ser de outro modo? Elas surgem num conjunto que ainda não as incluía e têm de salientar, para não ser rejeitadas, as características comuns que conservam com o conjunto. A essência de uma coisa nunca aparece no início, mas no meio, no decurso do seu desenvolvimento, quando as suas forças se consolidaram. Bergson sabia isso melhor do que ninguém, ele que tinha transformado a filosofia ao colocar a questão do «novo» em vez da da eternidade (como é que a produção e o aparecimento de qualquer coisa nova são possíveis?). Por exemplo, ele dizia que a novidade da vida não podia ter aparecido no início, porque

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no início a vida estava forçada a imitar a matéria… Não se passou o mesmo com o cinema? Não estava o cinema no início forçado a imitar a percepção natural? E, mais ainda, qual era a situação do cinema no início? Por um lado a tomada de vistas era fixa e por conseguinte o plano era espacial e formalmente imóvel; por outro lado o aparelho de tomada de vistas confundia-se com o aparelho de projecção, dotado de um tempo uniforme abstracto. A evolução do cinema, a conquista da sua própria essência ou novidade, far-se-á pela montagem, pela câmara móvel e pela emancipação da tomada de vistas que se separa da projecção. Então o plano deixará de ser uma categoria espacial para se tornar temporal; e o corte será um corte móvel e já não imóvel. O cinema descobrirá exactamente a imagem-movimento do primeiro capítulo de Matéria e memória. Deve concluir-se que a primeira tese de Bergson sobre o movimento é mais complexa afinal do que parecia. Há por um lado uma crítica contra todas as tentativas de reconstituir o movimento com o espaço percorrido, quer dizer, adicionando cortes imóveis instantâneos e tempo abstracto. E há por outro lado a crítica do cinema, denunciado como uma dessas tentativas ilusórias, como a tentativa que faz culminar a ilusão. Mas há também a tese de Matéria e memória, os cortes móveis, os planos temporais, e que pressentia de maneira profética o futuro ou a essência do cinema.

2 Ora, justamente, A evolução criadora apresenta uma segunda tese que, em vez de tudo reduzir a uma mesma ilusão sobre o movimento, distingue pelo menos duas ilusões muito diferentes. O erro está sempre em reconstituir o movimento com instantes ou posições, mas há duas maneiras de o fazer, a antiga e a moderna. Para a antiguidade, o movi-

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mento remete para elementos inteligíveis, Formas ou Ideias que são em si mesmas eternas e imóveis. É claro que, para reconstituir o movimento, há que captar essas formas o mais perto possível da sua actualização numa matéria-fluxo. São potencialidades que só passam ao acto encarnando-se na matéria. Mas, inversamente, o movimento nada mais faz do que exprimir uma «dialéctica» das formas, uma síntese ideal que lhe dá ordem e medida. O movimento assim concebido será pois a passagem regulada de uma forma para outra, quer dizer, uma ordem das poses ou dos instantes privilegiados, como numa dança. As formas ou ideias «são supostas caracterizar um período cuja quinta-essência exprimiriam, sendo todo o resto desse período preenchido pela passagem, desprovida em si mesma de interesse, de uma forma a outra forma… Nota-se o termo final ou o ponto culminante (telos, acme), erige-se esse momento em momento essencial, e este, que a linguagem reteve para exprimir o conjunto do facto, basta também à ciência para caracterizá-lo»2. A revolução científica moderna consistiu em referir o movimento já não a instantes privilegiados mas ao instante qualquer. Para poder recompor o movimento, já não se o recompunha a partir de elementos formais transcendentes (poses) mas a partir de elementos materiais imanentes (cortes). Em vez de se fazer uma síntese inteligível do movimento, efectuava-se uma análise sensível. Foi assim que se constituíram a astronomia moderna ao determinar uma relação entre uma órbita e o tempo demorado a percorrê-la (Kepler), a física moderna ao ligar o espaço percorrido ao tempo da queda de um corpo (Galileu), a geometria moderna ao estabelecer a equação de uma curva plana, quer dizer, a posição de um ponto sobre uma recta móvel num momento qualquer do seu trajecto (Descartes) e por fim o cálculo infinitesimal, quando se teve a ideia de considerar cortes infinitamente aproximáveis (Newton e Leibniz). Por toda a parte a sucessão mecânica de instantes quaisquer 2

EC, p. 774 (330).

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substituía a ordem dialéctica das poses: «A ciência moderna deve definir-se sobretudo pela sua aspiração a tomar o tempo como variável independente»3. O cinema parece deveras o último descendente desta linhagem estabelecida por Bergson. Poderia conceber-se uma série de meios de translação (comboio, automóvel, avião…) e paralelamente uma série de meios de expressão (gráfico, fotografia, cinema): a câmara apareceria então como um comutador ou, antes, como um equivalente generalizado dos movimentos de translação. E é assim que ela aparece nos filmes de Wenders. Quando se interroga a pré-história do cinema, cai-se às vezes em considerações confusas por não saber até onde fazer remontar nem como definir a linhagem tecnológica que o caracteriza. Então pode-se sempre invocar as sombras chinesas ou os sistemas de projecção mais arcaicos. Mas, de facto, as condições determinantes do cinema são as seguintes: não apenas a fotografia, mas a fotografia instântanea (a fotografia de pose pertence à outra linhagem); a equidistância dos instântaneos; a transferência desta equidistância para um suporte que constitui o «filme» (foram Edison e Dickson que perfuraram a película); e um mecanismo para arrastar as imagens (os dentes de Lumière). É neste sentido que o cinema é o sistema que reproduz o movimento em função do momento qualquer, quer dizer, em função de instantes equidistantes escolhidos de modo a dar a impressão de continuidade. Qualquer outro sistema que reproduza o movimento por uma ordem de poses projectadas de maneira a passarem umas para as outras ou a «transformarem-se» é alheio ao cinema. É o que se vê quando se tenta definir o desenho animado: se ele pertence plenamente ao cinema é porque o desenho já não constitui aí uma pose ou uma figura acabada mas a descrição de uma figura sempre a fazer-se ou a desfazer-se pelo movimento de linhas e de pontos tomados em instantes quaisquer do seu trajecto. O desenho animado remete para uma geometria cartesiana, e não euclidiana. Não nos 3

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EC, p. 779 (335).


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apresenta uma figura descrita num momento único, mas a continuidade do movimento que descreve a figura. Porém, o cinema parece alimentar-se de instantes privilegiados. Diz-se frequentemente que Eisenstein extrai dos movimentos ou das evoluções certos momentos de crise dos quais faz por excelência o objecto do cinema. É mesmo a isso que ele chamava o «patético»: selecciona pontas e gritos, leva as cenas ao paroxismo e põe-nas em colisão entre si. Mas isto não é de modo nenhum uma objecção. Regressemos à pré-história do cinema e ao famoso exemplo do galope do cavalo: este só pôde ser exactamente decomposto mediante os registos gráficos de Marey e os instantâneos equidistantes de Muybridge, que referem o conjunto organizado desse movimento a um ponto qualquer. Se se escolher bem os equidistantes, cai-se forçosamente em tempos notáveis, quer dizer, em momentos em que o cavalo tem uma pata no chão, depois três, duas, três, uma. Pode chamar-se-lhes instantes privilegiados; mas não é de todo no sentido das poses ou das posturas gerais que caracterizavam o galope nas formas antigas. Estes instantes já não têm nada a ver com poses, e seriam até formalmente impossíveis como poses. Se são instantes privilegiados, são-no a título de pontos notáveis ou singulares que pertencem ao movimento, e não a título de momentos de actualização de uma forma transcendente. A noção mudou completamente de sentido. Os instantes privilegiados de Eisenstein, ou de qualquer outro autor, são ainda instantes quaisquer; simplesmente, o instante qualquer pode ser regular ou singular, ordinário ou notável. Que Eisenstein seleccione instantes notáveis não impede que os tire de uma análise imanente do movimento e de modo nenhum de uma síntese transcendente. O instante notável ou singular permanece um instante qualquer entre os demais. É mesmo esta a diferença entre a dialéctica moderna, de que Eisenstein se reclama, e a dialéctica antiga. Esta é a ordem das formas transcendentes que se actualizam num movimento, ao passo que aquela é a produção e a confrontação dos pontos singulares imanentes ao movimento. Ora, esta produção de singularidades (o salto qualitativo)

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faz-se por acumulação de ordinários (processo quantitativo), pelo que o singular é retirado do qualquer, é também ele um qualquer simplesmente não ordinário ou não regular. O próprio Eisenstein salientava que «o patético» supunha «o orgânico» como conjunto organizado dos instantes quaisquer por onde os cortes devem passar 4. O instante qualquer é o instante equidistante de outro. Definimos por isso o cinema como o sistema que reproduz o movimento referindo-o ao instante qualquer. Mas é aqui que surge a dificuldade. Qual é o interesse desse sistema? Do ponto de vista da ciência, muito pouco. Porque a revolução científica era uma revolução de análise. E se para fazer a análise do movimento era necessário referi-lo ao instante qualquer, era difícil ver qualquer interesse numa síntese ou numa reconstituição fundada no mesmo princípio, excepto um vago interesse de confirmação. É por isso que nem Marey nem Lumière tinham grande confiança na invenção do cinema. Tinha ele ao menos interesse artístico? Também não parecia, visto que a arte parecia manter os direitos de uma mais elevada síntese do movimento e permanecer ligada às poses e às formas que a ciência tinha repudiado. Estamos no cerne da situação ambígua do cinema como «arte industrial»: não era nem uma arte nem uma ciência. No entanto, os contemporâneos podiam ser sensíveis a uma evolução que estava a transformar as artes e a mudar o estatuto do movimento, até na pintura. Por maioria de razão, a dança, o ballet e o mimo abandonavam as figuras e as poses para libertar valores não posados, não pulsados, que referiam o movimento ao instante qualquer. Com isso a dança, o ballet e o mimo tornavam-se acções capazes de responder a acidentes do meio, quer dizer, à repartição dos pontos de um espaço ou dos momentos de um acontecimento. Tudo isso conspirava com o cinema. Desde o aparecimento do sonoro o cinema será capaz de fazer da comédia musical um dos seus grandes géneros, com a «dança-acção» de 4

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Sobre o orgânico e o patético, cf. Eisenstein, La non-indifférente Nature, I, 10-18.


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Fred Astaire que se desenrola num lugar qualquer, na rua, entre os carros ou pelo passeio fora5. Mas já no mudo Chaplin tinha arrancado o mimo da arte das poses para fazer dele um mimo-acção. Aos que acusavam Charlot de se servir do cinema em vez de o servir, respondia Mitry que ele dava ao mimo um novo modelo, função do espaço e do tempo, continuidade construída em cada instante que já só se deixava decompor nos seus elementos imanentes notáveis em vez de se referir a formas prévias a encarnar6. Que o cinema pertence plenamente a esta concepção moderna do movimento mostrou-o com força Bergson. Mas a partir daqui ele parece hesitar entre duas vias, uma que o devolve à sua primeira tese e outra que em troca abre uma questão nova. Segundo a primeira via, por mais diferentes que as duas concepções sejam do ponto de vista da ciência, elas não deixam de ser mais ou menos idênticas no resultado. Com efeito vem a dar no mesmo recompor o movimento com poses eternas ou com cortes imóveis: em ambos os casos falhamos o movimento, porque nos damos um Todo, supomos que «tudo está dado», ao passo que o movimento só se faz se o todo não estiver dado nem puder dar-se. Assim que nos damos o todo na ordem eterna das formas e das poses ou no conjunto dos instantes quaisquer, então o tempo já só é ou a imagem da eternidade ou a consequência do conjunto: já não há lugar para o movimento real7. Uma outra via no entanto parecia abrir-se a Bergson. Porque se a concepção antiga corresponde exactamente à filosofia antiga que se propõe pensar o eterno, a concepção moderna, a ciência moderna, reclama uma outra filosofia. Quando referimos o movimento a momentos quaisquer temos de nos tornar capazes de pensar a produção do novo, isto é, do notável e do singular, em qualquer um desses momentos: trata-se de uma conversão total da filosofia e é aquilo que Bergson se propõe fazer finalmente, dar à ciência moderna a metafísica que Arthur Knight, Revue du cinéma, n.º 10. Jean Mitry, Histoire du cinéma muet, III, Ed. Universitaires, pp. 49-51. 7 EC, p. 794 (353). 5 6

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lhe corresponde, que lhe falta, como a uma metade falta a sua outra metade8. Mas poderemos deter-nos uma vez entrados nesta via? Poderemos negar que também as artes terão de fazer essa conversão? E que o cinema seja neste aspecto um factor essencial e até que tenha um papel a desempenhar no nascimento e na formação desse novo pensamento, dessa nova maneira de pensar? Eis pois que Bergson já não se limita a confirmar a sua primeira tese sobre o movimento. A segunda tese de Bergson, embora se detenha a meio do caminho, torna possível um outro ponto de vista sobre o cinema, o qual já não seria o aparelho aperfeiçoado da mais velha ilusão mas, pelo contrário, o órgão a aperfeiçoar da nova realidade.

3 E é essa a terceira tese de Bergson, sempre na Evolução criadora. Se tentássemos resumi-la numa fórmula brutal diríamos: não só o instante é um corte imóvel do movimento como o movimento é um corte móvel da duração, quer dizer, do Todo ou de um todo. O que implica que o movimento exprime qualquer coisa de mais profundo que é a mudança na duração ou no todo. Que a duração seja mudança faz parte da sua própria definição: ela muda e não pára de mudar. Por exemplo, a matéria move-se, mas não muda. Ora o movimento exprime uma mudança na duração ou no todo. O que constitui problema é por um lado essa expressão e por outro essa identificação todo — duração. O movimento é uma translação no espaço. Ora, de cada vez que há translação de partes no espaço há também mudança qualitativa num todo. Bergson dava múltiplos exemplos disto em Matéria e memória. Um animal move-se, mas não para nada: move-se para comer, para mi8

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EC, p. 786 (343).


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grar, etc. Dir-se-ia que o movimento supõe uma diferença de potencial e se propõe anulá-la. Se considero abstractamente partes ou lugares, A e B, não compreendo o movimento que vai de um ao outro. Mas estou em A, tenho fome, e em B há comida. Quando atingi B e comi, o que mudou não foi só o meu estado, foi o estado do todo que compreendia B, A e tudo o que havia entre os dois. Quando Aquiles ultrapassa a tartaruga, o que muda é o estado do todo que compreendia a tartaruga, Aquiles e a distância entre ambos. O movimento remete sempre para uma mudança, a migração para uma variação sazonal. E o mesmo sucede com os corpos: a queda de um corpo supõe um outro que o atrai e exprime uma mudança no todo que compreende os dois. Se se pensar em puros átomos, os seus movimentos que manifestam uma acção recíproca de todas as partes da matéria exprimem necessariamente modificações, perturbações, mudanças de energia no todo. Aquilo que Bergson descobre para lá da translação é a vibração, a irradiação. O nosso erro é julgar que o que se move são elementos quaisquer exteriores às qualidades. Mas as próprias qualidades são puras vibrações que mudam ao mesmo tempo que se movem os pretensos elementos9. Na Evolução criadora Bergson dá um exemplo tão famoso que já nem sabemos ver o que tem de surpreendente. Diz ele que, se deitar açúcar num copo de água, «devo esperar que o açúcar derreta»10. É apesar de tudo curioso, porque Bergson parece esquecer que o movimento de uma colher pode apressar essa dissolução. Mas o que é que ele quer dizer antes de mais? Que o movimento de translação que separa as partículas de açúcar e as suspende na água exprime em si mesmo uma mudança no todo, ou seja no conteúdo do copo, uma passagem qualitativa da água na qual há açúcar ao estado de água açucarada. Se agitar com a colher acelero o movimento, mas mudo também o todo que compreende agora a colher, e o movimento acelerado continua a exprimir a mudança do todo. «Os deslocamentos puramente superficiais de massas 9

Sobre todos estes pontos, cf. Matière et mémoire, cap. IV, pp. 332-340 (220-230). EC, p. 502 (9-10).

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e de moléculas que a física e a química estudam» passam a ser, «relativamente a esse movimento vital que se produz em profundidade, que é transformação e já não translação, aquilo que a paragem de um objecto móvel é para o movimento desse objecto no espaço»11. Bergson, na sua terceira tese, apresenta pois a analogia seguinte: cortes imóveis movimento como corte móvel ———————— = —————————————— movimento mudança qualitativa Com a única diferença de que a relação da esquerda exprime uma ilusão e a relação da direita uma realidade. Aquilo que Bergson quer principalmente dizer com o copo de água açucarada é que a minha espera, seja qual for, exprime uma duração como realidade mental, espiritual. Mas porque é que essa duração espiritual dá testemunho não só de mim que espero mas também de um todo que muda? Bergson dizia: o todo não está dado nem pode dar-se (e o erro da ciência moderna como o da ciência antiga era darem-se o todo, de duas maneiras diferentes). Muitos filósofos tinham já dito que o todo não estava dado nem podia dar-se; só que tiravam daí a conclusão de que o todo era uma noção destituída de sentido. Bem diferente é a conclusão de Bergson: se o todo não pode dar-se é por ser o Aberto e por ser próprio dele estar sempre a mudar ou fazer surgir qualquer coisa de novo, em suma, durar. «A duração do universo deve coincidir com a latitude de criação que nele pode achar lugar»12. Pelo que, de cada vez que nos encontremos diante de uma duração ou dentro de uma duração, poderemos concluir pela existência de um todo que muda e que está aberto algures. É sabido que Bergson começou por descobrir a duração como idêntica à consciência. Mas um estudo mais desenvolvido da consciência levou-o a mostrar que ela só existia ao abrir-se para um todo, ao coincidir com a abertura de um todo. Passa-se o mesmo com o 11 12

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EC, p. 521 (32). EC, p. 782 (339).


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ser vivo: quando Bergson compara o ser vivo a um todo, ou ao todo do universo, parece retomar a mais velha comparação13. E porém inverte completamente os termos. Porque se o ser vivo é um todo, assimilável portanto ao todo do universo, não o é na medida em que seria um microcosmo tão fechado quanto o todo é suposto ser, é-o pelo contrário na medida em que está aberto a um mundo e que o próprio mundo, o universo, é o Aberto. «Onde quer que alguma coisa viva há, aberto algures, um registo em que o tempo se inscreve»14. Se se tivesse que definir o todo ele seria definido pela Relação. É que a relação não é uma propriedade dos objectos, ela é sempre exterior aos seus termos. Além disso é inseparável do aberto e apresenta uma existência espiritual ou mental. As relações não pertencem aos objectos mas ao todo, na condição de não o confundir com um conjunto fechado de objectos15. Pelo movimento no espaço os objectos de um conjunto mudam de posições respectivas. Mas, pelas relações, o todo transforma-se ou muda de qualidade. Da própria duração ou do tempo podemos dizer que é o todo das relações. Não deve confundir-se o todo, os «todos», com conjuntos. Os conjuntos são fechados, e tudo o que é fechado está artificialmente fechado. Os conjuntos são sempre conjuntos de partes. Mas um todo não é fechado, é aberto; e não tem partes, excepto num sentido muito especial, porque não se divide sem mudar de natureza em cada etapa da divisão. «O todo real poderia muito bem ser uma continuidade indivisível»16. O todo não é um conjunto fechado, mas pelo contrário aquilo que faz EC, p. 507 (15). EC, p. 508 (16). A única semelhança, mas considerável, entre Bergson e Heidegger é justamente esta: ambos fundam a especificidade do tempo numa concepção do aberto. 15 Fazemos intervir aqui o problema das relações, apesar de ele não ter sido explicitamente colocado por Bergson. É sabido que a relação entre duas coisas não pode ser reduzida a um atributo de uma ou de outra dessas coisas nem também a um atributo do conjunto. Em troca, permanece intacta a possibilidade de referir as relações a um todo se se conceber esse todo como um «contínuo» e não como um conjunto dado. 16 EC, p. 520 (31). 13 14

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que o conjunto nunca esteja absolutamente fechado, nunca completamente resguardado, aquilo que o mantém aberto algures como que por um fio ténue que o liga ao resto do universo. O copo de água é de facto um conjunto fechado que contém partes, a água, o açúcar e talvez a colher; mas o todo não está aí. O todo cria-se, e está sempre a criar-se, numa outra dimensão sem partes, como aquilo que faz o conjunto passar de um estado qualitativo para outro, como o puro devir ininterrupto que passa por esses estados. É neste sentido que ele é espiritual ou mental. «O copo de água, o açúcar e o processo de dissolução do açúcar na água são sem dúvida abstracções, e o Todo no qual foram recortados pelos meus sentidos e pelo meu entendimento progride talvez à maneira de uma consciência»17. Resta que esse recorte artificial de um conjunto ou de um sistema fechado não é uma pura ilusão. É bem fundado e, se é impossível romper o vínculo de cada coisa com o todo (esse vínculo paradoxal que a liga ao aberto), ele pode pelo menos ser estendido, esticado ao infinito, tornar-se cada vez mais ténue. É que a organização da matéria torna possíveis os sistemas fechados ou os conjuntos determinados de partes; e o desdobramento do espaço torna-os necessários. Mas, precisamente, os conjuntos estão no espaço e o todo, os todos, estão na duração, são a própria duração na medida em que ela está sempre a mudar. Pelo que as duas fórmulas que correspondiam à primeira tese de Bergson ganham agora um estatuto muito mais rigoroso: «cortes imóveis + tempo abstracto» remete para os conjuntos fechados, cujas partes são com efeito cortes imóveis e os estados sucessivos calculados num tempo abstracto; ao passo que «movimento real duração concreta» remete para a abertura de um todo que dura e cujos movimentos são outros tantos cortes móveis que atravessam os sistemas fechados. Ao cabo desta terceira tese encontramo-nos de facto em três níveis: 1) os conjuntos ou sistemas fechados, que se definem por objectos dis17

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EC, pp. 502-503 (10-11).


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cerníveis ou partes distintas; 2) o movimento de translação, que se estabelece entre esses objectos e modifica a sua posição respectiva; 3) a duração ou o todo, realidade espiritual que está sempre a mudar de acordo com as suas próprias relações. O movimento tem pois de certo modo duas faces. Por um lado ele é aquilo que se passa entre objectos ou partes, por outro é aquilo que exprime a duração ou o todo. Ele faz que a duração, ao mudar de natureza, se divida nos objectos, e que os objectos, ao aprofundarem-se, ao perderem os seus contornos, se reúnam na duração. Diremos pois que o movimento relaciona os objectos de um sistema fechado com a duração aberta e a duração com os objectos do sistema que ela força a abrir-se. O movimento relaciona os objectos entre os quais se estabelece com o todo mutante que ele exprime, e inversamente. Pelo movimento o todo divide-se nos objectos e os objectos reúnem-se no todo: e, entre os dois justamente, «tudo» muda. Aos objectos ou partes de um conjunto podemos considerá-los como cortes imóveis; mas o movimento estabelece-se entre esses cortes e relaciona os objectos ou partes com a duração de um todo que muda, exprime portanto a mudança do todo relativamente aos objectos e ele próprio é um corte móvel da duração. Estamos agora em condições de compreender a tese tão profunda do primeiro capítulo de Matéria e memória: 1) não há só imagens instantâneas, quer dizer, cortes imóveis do movimento; 2) há imagens-movimento que são cortes móveis da duração; e 3) há por fim imagens-tempo, quer dizer, imagens-duração, imagens-mudança, imagens-relação, imagens-volume, para lá do próprio movimento…

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índice

Nota do tradutor .................................................................. Prólogo ..................................................................................

1. TESES SOBRE O MOVIMENTO (primeiro comentário de Bergson) Primeira tese: o movimento e o instante ............................. Segunda tese: instantes privilegiados e instantes quaisquer ... Terceira tese: movimento e mudança — O todo, o Aberto ou a duração — Os três níveis: o conjunto e as suas partes; o movimento; o todo e as suas mudanças ................................... 2. QUADRO E PLANO, ENQUADRAMENTO E DÉCOUPAGE O primeiro nível: quadro, conjunto ou sistema fechado — As funções do quadro — O fora-de-campo: os seus dois aspectos ............................................................................ O segundo nível: plano e movimento — As duas faces do plano: uma voltada para os conjuntos e as suas partes e outra voltada para o todo e as suas mudanças — A imagem-movimento — Corte móvel, perspectiva temporal ..................... Mobilidade: montagem e movimento da câmara — A questão da unidade do plano (os planos-sequência) — A importância do falso raccord ........................................................

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3. MONTAGEM O terceiro nível: o todo, a composição das imagens-movimento e a imagem indirecta do tempo — A escola americana: composição orgânica e montagem em Griffith — Os dois aspectos do tempo: o intervalo e o todo, o presente variável e a imensidade ...................................................................... A escola soviética: composição dialéctica — O orgânico e o patético em Eisenstein: espiral e salto qualitativo — Pudovkine e Dovjenko — A composição materialista de Vertov ............. A escola francesa anterior à guerra: composição quantitativa — Ritmo e mecânica — Os dois aspectos da quantidade de movimento: relativo e absoluto — Gance e o sublime matemático — A escola expressionista alemã: composição intensiva — A luz e as trevas (Murnau, Lang) — O expressionismo e o sublime dinâmico ..........................................................

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4. A IMAGEM-MOVIMENTO E AS SUAS TRÊS VARIEDADES (segundo comentário de Bergson) A identidade da imagem e do movimento — Imagem-movimento e imagem-luz .......................................................... 93 Da imagem-movimento às suas variedades — Imagem-percepção, imagem-acção e imagem-afecção ........................... 101 A prova inversa: como extinguir as três variedades («Film» de Beckett) — Como se compõem as variedades ..................... 108 5. A IMAGEM-PERCEPÇÃO Os dois pólos, objectivo e subjectivo — A «semi-subjectiva» ou a imagem indirecta livre (Pasolini, Rohmer) .................. 115 Na senda de um outro estado da percepção: a percepção líquida — Papel da água na escola francesa anterior à guerra — Grémillon, Vigo ........................................................... 122 Na senda de uma percepção gasosa — A matéria e o intervalo

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segundo Vertov — O engrama — Uma tendência do cinema experimental (Landow) ...................................................... 128 6. A IMAGEM-AFECÇÃO: ROSTO E GRANDE PLANO Os dois pólos do rosto: poder e qualidade .......................... 137 Griffith e Eisenstein — O expressionismo — A abstracção lírica: a luz, o branco e a refracção (Sternberg) .................... 142 O afecto como entidade — O ícone — A «primidade» segundo Peirce — O limite do rosto ou o nada: Bergman — Como escapar-lhe ........................................................................ 148 7. A IMAGEM-AFECÇÃO: QUALIDADES, PODERES, ESPAÇOS QUAISQUER A entidade complexa ou o exprimido — Conjunções virtuais e conexões reais — As componentes afectivas do grande plano (Bergman) — Do grande plano aos outros planos: Dreyer ............................................................................... 159 O afecto espiritual e o espaço em Bresson — O que é um espaço «qualquer»? ............................................................... 167 A construção dos espaços quaisquer — A sombra, a oposição e a luta no expressionismo — O branco, a alternância e a alternativa na abstracção lírica (Sternberg, Dreyer, Bresson) — A cor e a absorção (Minnelli) — Os dois tipos de espaços quaisquer e a sua frequência no cinema contemporâneo (Snow) .............................................................................. 172 8. DO AFECTO À ACÇÃO: A IMAGEM-PULSÃO O naturalismo — Os mundos originários e os meios derivados — Pulsões e pedaços, sintomas e fetiches — Dois grandes naturalistas: Stroheim e Buñuel — Pulsão de parasitismo — A entropia e o ciclo ............................................................ 189

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Uma característica da obra de Buñuel: poder da repetição na imagem ............................................................................. 199 A dificuldade de ser naturalista: King Vidor — Caso e evolução de Nicholas Ray — O terceiro grande naturalista: Losey — Pulsão de servilismo — O virar-se contra si — As coordenadas do naturalismo ......................................................... 203 9. A IMAGEM-ACÇÃO: A GRANDE FORMA Da situação à acção: a «segundidade» — O englobante e o duelo — O sonho americano — Os grandes géneros: o filme psicossocial (King Vidor), o western (Ford), o filme histórico (Griffith, Cecil B. De Mille) .............................................. 213 As leis da composição orgânica ........................................... 227 O laço sensorio-motor — Kazan e o Actors Studio — O sinal .. 232 10. A IMAGEM-ACÇÃO: A PEQUENA FORMA Da acção à situação — Os dois tipos de indícios — A comédia de costumes (Chaplin, Lubitsch) .................................. 239 O western em Hawks: o funcionalismo — O neo-western e o seu tipo de espaço (Mann, Peckinpah) ............................. 245 A lei da pequena forma e o burlesco — A evolução de Chaplin: a figura do discurso — O paradoxo de Keaton: a função minorante e recorrente das grandes máquinas ............................. 251 11. AS FIGURAS OU A TRANSFORMAÇÃO DAS FORMAS A passagem de uma forma a outra em Eisenstein — A montagem de atracções — Os diferentes tipos de figuras ........... 263 As figuras do Grande e do Pequeno em Herzog .................. 271 Os dois espaços: o Englobante-sopro e a linha de Universo — O sopro em Kurosawa: da situação à questão — As linhas de universo em Mizoguchi: do traçado ao obstáculo ........... 274

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12. A CRISE DA IMAGEM-ACÇÃO A «tercidade» segundo Peirce e as relações mentais — Os Marx — A imagem mental segundo Hitchcock — Marcas e símbolos — Como é que Hitchcock completa a imagem-acção levando-a ao seu limite ...................................................... 289 A crise da imagem-acção no cinema americano (Lumet, Cassavetes, Altman) — As cinco características desta crise — O afrouxamento do laço sensorio-motor ............................ 301 A origem da crise: neo-realismo italiano e nouvelle vague francesa — Consciência crítica do cliché — Problema de uma nova concepção da imagem — A caminho de um para lá da imagem-movimento .................................................. 309 Glossário ................................................................................ 317 Índice de realizadores .......................................................... 321

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Gilles Deleuze

Gilles Deleuze A IMAGEM-MOVIMENTO CINEMA 1 tradução de

Sousa Dias

LINHAS DE FUGA 13

A IMAGEM-MOVIMENTO CINEMA 1

A IMAGEM-MOVIMENTO CINEMA 1

Este estudo não é uma história do cinema. É uma taxinomia, uma tentativa de classificação das imagens e dos signos. Mas este primeiro volume vai limitar-se a determinar os elementos, e mesmo assim os elementos de uma só parte da classificação. […] Tratamos nesta primeira parte da imagem-movimento e das suas variedades. A imagem-tempo será objecto de uma segunda parte. Os grandes autores de cinema pareceram-nos confrontáveis não só com pintores, arquitectos e músicos mas também com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagens-tempo, em vez de conceitos. A enorme proporção de nulidade na produção cinematográfica não é uma objecção […] não é por isso que o cinema deixa de fazer parte da história da arte e do pensamento, sob as formas autónomas insubstituíveis que esses autores souberam inventar e fazer passar apesar de tudo.

Gilles Deleuze

D O C U M E N TA


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