Jean Giono, O Homem que Falou

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Jean Giono O HOMEM QUE FALOU

Jean Giono O HOMEM QUE FALOU

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

Homem que olha para a mesa depois de ter bebido e suspira, é porque vai falar.

www.sistemasolar.pt

Jean Giono O HOMEM QUE FALOU


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O H O M E M QU E FA LO U ( Un d e Ba u m u g n e s )


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Jean Giono

O HOMEM QUE FALOU (Un de Baumugnes)

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes


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TÍTULO ORIGINAL: UN DE BAUMUGNES

© EDITIONS GRASSET & FASQUELLE, 1929 © SISTEMA SOLAR CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: VAN GOGH, PORTRAIT DE ARMAND ROULIN, 1888 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO DE 2016 ISBN 978-989-8833-07-5


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Já solta da humilhação nazi, a França passou em revista o comportamento dos seus cidadãos durante a ocupação alemã. Quando chegou aos escritores, decidiu que teria de fuzilar Robert Brasilach; com Céline no estrangeiro a procurar refúgios «de castelo em castelo», contentou-se em decretar-lhe a indignidade nacional; viu Drieu la Rochelle suicidar-se, antes de comparecer perante juízes que talvez avaliassem com sentença severa o grau da sua «colaboração». Sobraram uns tantos que a lei não podia atingir mas tinham sido afáveis em demasia para a autoridade invasora. Entre eles Paul Morand, embaixador no governo fantoche de Vichy; Jean Cocteau que emprestava livros ao jovem oficial-escritor Ernest Jünger; Jacques Chardonne (autor do romance Viver na Madeira) que reflectiu sobre a conjuntura chamando-lhe «correcta, suave, muito suave», dizendo ainda: «Sinto o benefício da “provação”, a omnipotência do acontecimento». E mais uns tantos poderiam aqui acrescentar-se… Num outro grupo, o dos menos atingidos pela lei, encontramos Jean Giono; este ligado a uma irreprimível vocação pacifista, preso durante seis meses no forte de São Vicente da Alta Provença sob acusação de considerar o governo de Vichy uma grande experiência e ser autor de textos que incitavam à desobediência perante a mobilização. Queremos que a França tome a iniciativa de um desarmamento universal, tinha ele escrito em 1938, pouco antes da Segunda Guerra Mundial; [durante a guerra de 14-18] estive


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em todos os ataques sem espingarda ou com uma espingarda sem préstimo; não tenho vergonha de nenhuma paz, tenho vergonha de todas as guerras. Em 1939, pouco depois destas afirmações pacifistas Giono tinha cumprido a sua primeira pena de prisão: dois meses no forte de São Nicolau, em Marselha, libertado pelo mérito de esforços e persuasões de André Gide. (Comecei por estar só, veio a recordar numa entrevista. Estive só e confesso que era refrescante. Porque a solidão, quando é obrigatória e não pode ser interrompida pelo telefone ou por visitas, é uma coisa admirável. Quando sabemos que a partir das dez horas da manhã vêm trazer-nos sopa, e desde as dez até às seis não vamos ver ninguém, a não ser por rara excepção, ela é perfeita. Eu estava à vontade, com um perfeito à-vontade. […] Começamos por ter reminiscências de leituras, voltamos a explorar livros que já lemos, livros importantes, poemas, recitamos poemas, tentamos lembrar-nos de versos que já esquecemos, a pouco e pouco a memória reencontra-os. […] Deitado na cama e com os olhos no tecto, eu fazia périplos imensos. Partia de um ponto com um pequeno barco e ia vaguear em mares inverosímeis, e nesses mares havia encontros com personagens, monstros, tempestades, furacões, tudo quanto pode imaginar-se, e nessa altura a prisão não contava.) Giono acabou por ver-se liberto destas excursões celulares em bateau ivre. Mas cinco anos depois voltou a fazê-las durante seis meses, seguidos por uma segunda liberdade que ainda o ligava a bem lembradas afirmações antibelicistas e a umas quantas blandícias ao governo pró-alemão de Vichy, aquelas que a partir de Setembro de 1944 lhe destinariam um lugar na «lista negra» do Comité National des Écrivains.


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Desta lista e da feroz campanha anti-Giono, orquestrada sobretudo por Louis Aragon, não resultaram significativos efeitos práticos. Editoras como a Gallimard, as Éditions de la Table Ronde, a Déchalotte fizeram vista grossa à sua má reputação. Em 1947 puderam ler-se novas obras suas que se chamaram Un roi sans divertissement e Noé, em 1948 Fragments d’un paradis, um dos mais altos pontos do seu imaginário verbal. Mas Jean Giono surgia modificado um pouco na forma literária; menos metafórico e mais «stendhaliano», como insistiram os críticos em registar. Sentia-se a existência de um novo prosador, veio a dizer mais tarde Jacques Laurent: «É de facto uma espantosa maravilha haver dois Giono, o que escreveu antes da guerra e o que escreveu depois; e apesar de uma mudança de registo tenham ambos conservado o domínio da língua, do pensamento, dos sentimentos, das paisagens exteriores e interiores, o que só pelo génio é explicável.» Giono tinha ultrapassado na idade os cinquenta, e somava como escritor uma extensa lista de obras publicadas. Filho de um sapateiro e de uma engomadeira, com maus tempos da juventude a cumprir funções de paquete num banco, «para ajudar a família», o já excelente senhor da língua definia-se a pedido de um editor com alguma provocação: Nasci em Manosque em 1895, sei ler e escrever, não sei nadar. A tudo isto se associavam alguma surpresa e algum mistério incapazes de explicar as perícias verbais exibidas na sua estreia literária como romancista. Em 1929 Colline e Un de Baumugnes (nesta tradução com o título O Homem que Falou) mostravam à literatura francesa um novo tom e camponeses dominados de uma forma nunca antes vista pelas forças subterrâneas da natureza, descritos com inesperadas metáforas onde o homem e o animal, e o vegetal, e o mineral se associavam e completavam fundidos numa unidade universalizante.


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Saíam-lhe da pena camponeses líricos e com uma desenvoltura de palavras que agredia os defensores da verdade naturalista, camponeses que a todo o momento fugiam para dentro de uma realidade «complementar» só existente na sua Provença inventada. Quando perguntavam a este escritor de surpreendentes dotes literários qual tinha sido em si o primeiro sinal de homem da escrita, como lhe era possível mostrar um tão hábil convívio com a língua francesa saindo ele de poucas letras e de um passado onde tinham sido impostas à sua infância e à sua juventude tão grandes limitações culturais, Giono desfazia a expectativa de motivações complexas recorrendo apenas a um acidente onde cabiam Kipling e o seu The Jungle Book: Esta simples frase — «Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Sinoe» — deu origem a tudo. Senti a certeza de também ser capaz de escrever aquilo e, à minha maneira, de o continuar. Anos depois, esta enunciada facilidade na criação literária deu oportunidade a uma mais extensa divagação quando tentou descrever as fases que antecediam e o acompanhavam na construção das suas ficções: Antes de eu escrever um livro, há um prolongado e indefinido período de gestação; qualquer coisa existe ou qualquer coisa não existe, não é coisa que se saiba muito bem; não é nada ou é qualquer coisa já dita, uma espécie de vento onde há por vezes uma palavra, por vezes um gesto, por vezes uma madeixa de cabelo, por vezes um som de voz, o ruído de passos num corredor… É ou não é uma personagem, talvez alguém que vai morrer antes de a personagem ter nascido ou que talvez seja mesmo ela, a personagem, não sei dizer. Depois um belo dia, de repente, esta personagem nasce sem eu dar conta disso; aconteceu, chegou, veio, está ali, está presente.


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Está presente mas não há nenhum livro. Está presente mas da mesma forma que temos aqui esta estátua, que temos presentes acolá na biblioteca aqueles livros. Existe, tem uma forma, e esta forma continua a perseguir-me, a habitar comigo durante muito tempo, durante anos, três anos, quatro anos, durante os quais escrevo outros livros mas com essa presença permanente a fazer-se precisa, não direi dia após dia mas minuto a minuto, talvez mesmo segundo a segundo se levarmos em conta que as previsões transportadas por estas personagens são extremamente minúsculas. Quer isto dizer que vejo, por exemplo, um botão do seu colete e muito tempo depois um segundo botão desse mesmo colete. Quer isto dizer que a personagem é ao mesmo tempo um pequeníssimo homem e uma espécie de prodigioso gigante com uma cabeça que não distingo e se perde nas nuvens. Depois há um dia em que ela se faz uma forma mais concreta, vejo-lhe a forma e a cor do colete, vejo a maneira como se veste, e não só isto mas como se comporta com outra personagem que aparece quase a seguir porque é apenas secundária e, como resulta da primeira, chega muito mais depressa. Quando um certo número destas personagens já assim chegaram, dão à minha volta cabriolas e divertem-se com os outros móveis e as coisas em redor da minha secretária, atravessam a biblioteca, saem, entram, executam toda uma série de actos enquanto continuo a escrever o romance com personagens muito mais definidas, muito mais construídas, que são a armadura e as personagens do romance que levo nessa altura a cabo. As outras continuam com as suas cabriolas, em planos secundários. E há depois uma ocasião, às vezes quando cons-


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truo outro livro, em que se tornam precisas, exigem, têm vontade de desempenhar um papel. Como que tenho à frente um grande mapa branco de terras desconhecidas, e no meio destas terras desconhecidas por exemplo um cavaleiro visível com o seu cavalo. Está ali, vejo-o mas não o que ele tem à volta; disto nada vejo. No entanto as manchas vão a pouco e pouco tornar-se definidas, e depois chega a paisagem. Esta paisagem é função de uma grande quantidade de coisas; a paisagem é função de todas as viagens que fiz enquanto se cumpriu a gestação das personagens; a paisagem é por vezes função de sons, de músicas, às vezes conversas, às vezes encontros, porque uma personagem que eu encontro não cria automaticamente uma personagem no meu livro. E, pelo contrário, uma personagem apenas vislumbrada pode ser uma personagem. É uma espécie de mistura antropomorfa onde a paisagem surge às vezes motivada por uma personagem, onde a personagem surge às vezes motivada por uma paisagem. Os sons produzem cores, as cores produzem formas, as formas produziram sons, tudo numa mistura. É uma espécie de pandemónio ainda não coagulado e parecido, imagino eu, com o que se passa na crisálida de uma borboleta antes de ela se libertar. E depois, de repente, dá-se lá dentro a coagulação e toda uma parte do livro desaba e se constrói. Quer isto dizer que toda esta parte do livro entra na minha vida, na minha vida material, como se desabasse lá de repente; e toda uma parte desta arquitectura se constrói perante os meus olhos. Neste momento o livro está quase feito; só resta escrevê-lo mas é muito frequente que eu tenha de acabar, antes disso, aquele que estou a escrever.


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Nesta ocasião todas as personagens e toda a construção se retiram, como se houvesse qualquer coisa a puxá-las para trás, para me darem tempo de terminar o outro livro mais urgente; mas não recuam como manequins de cera e cenários de teatro; recuam como cenários vivos, ou seja, continuam a viver; continuo então a escrever o meu romance mas sempre com um olho a espiar e em movimento sobre o que elas, ali naquele lado, estão a fazer. Durante anos a imaginação de Giono alimentou-se de uma Provença inventada. Tenho direito a uma Provença inventada, contrapunha ele às objecções que alguns lhe faziam esforçando-se por lhe colar, bem colado, o rótulo de mentiroso. Inventei uma terra («como Faulkner», acrescentava às vezes), povoei-a com personagens inventadas de dramas inventados. […] Tudo é inventado. Tudo pertence à terra que tenho à frente dos olhos, mas depois de ela passar através de mim. A Jean Cocteau, que o acusava de fabricar camponeses imaginários tão falsos como a pretendida rusticidade do Trianon de Maria Antonieta, Giono respondia que nenhum proprietário de um campo de trigo pintado por Van Gogh saberia reconhecê-lo nas suas telas; que o pintor tinha dentro de si uma outra verdade dos campos de trigo, e apenas esta lhe interessava. Giono alterava a Provença transformando-a noutra, na única que ele sabia amar; fazia com ela o que Swann tinha feito com Odette, quando acabou por compreender que ela não era a mulher que lhe convinha, que não era o seu tipo. Esta magnífica Provença imaginada é a que sentimos nas páginas de O Homem que Falou; mas também a decisão de dar à forma a oportunidade de um grande triunfo sobre a intriga. Giono inventa para este livro a mais simples e linear das suas histórias,


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aquela que não excede muito em ambições a de um «romance de gare»; força-se por vezes a um singelo sentimentalismo, e não hesita perante um desfecho que pode inscrever-se na banal fórmula do «felizes para sempre». O seu biógrafo Pierre Citron sugere que talvez se esteja aqui perante uma reacção do autor às excessivas complexidades de Angiolina, romance que deixou inacabado pouco tempo antes de escrever O Homem que Falou, hoje só conhecido como texto póstumo. Luiz Pacheco, porém, que tinha por este romance uma particular admiração, costumava citá-lo como resultado de uma surpreendente «aposta ganha», como uma decisão de provar o que podem a força da palavra e a sua conversão em estilo quando há quem saiba deixá-las magnificamente «postas em obra»; como é possível através delas levar uma intriga que percorre banais circuitos a fazer-se marco na obra de um escritor e permanecer com lugar alto nos favores do público e da crítica. Na época em que foi publicado O Homem que Falou houve surpresas e entusiasmos; mas só destacamos aqui a singular observação que ficou numa frase de André Maurois: «Este belo no que é simples […] procurado em George Sand e encontrado em Homero.» São conhecidas as hesitações de Giono sobre o que ele se propunha conseguir com este romance. Enviou-o na fase de manuscrito a dois amigos (o professor de letras em Avignon Maxime Girieud e o escultor de marfins e desenhador de jóias Lucien Jacques, secretário de Isadora Duncan) que o incentivaram a publicá-lo. Tinha-o imaginado durante passeios solitários por florestas e prados do vale de Buech na Croix-Haute, e sonhava-o como um romance da amizade onde a música se substituía por vezes à linguagem, a música saída de harmónicas como um sopro humano susceptível de transmitir o que nenhumas palavras poderiam


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alcançar, uma história onde o corpo do homem tivesse uma forte ligação com as forças da natureza. Por isso o intercalou entre Colline (1928) e Regain (1930), os romances do que ele intitulava a sua «Trilogia de Pã». Jean Giono teria para viver mais uma quarentena de anos depois do momento que lhe deu as páginas de O Homem que Falou. Foi autor de livros inesquecíveis como a sua autobiografia romanceada Jean le Bleu (1932), Le chant du monde (1934), Pour saluer Melville (1941), Un roi sans divertissement (1947) ou L’Hussard sur le toit (1951). O seu prestígio nas letras fê-lo suceder a Colette na Academia Goncourt. No fim da vida considerou-se excepcional exemplo de um homem feliz: Desde há trinta ou quarenta anos tenho vivido minuto atrás de minuto com uma felicidade total. Era uma felicidade soprada pelo frio, pela navalha de um ar de terras altas, vivida com mulher e filhas em Lou Paraïs, uma casa do século XVIII da Alta Provença Alpina que o poupava a cidades e a excessos de sol. (Não gosto do sol, dizia, não gosto do calor, detesto o calor e a luz do sol. […] Na Escócia vi-me de repente na presença de uma terra que correspondia muito exactamente a tudo quanto eu desejava, as cores, a paisagem, a arquitectura geral do país, as pessoas, os habitantes, as casas, a cor do céu, a cor das nuvens, as árvores, os animais, tudo correspondia àquilo que eu desejava.) Jean Giono morreu durante um ataque cardíaco que o roubou, sem pré-avisos, às felicidades de Lou Paraïs. Não compreendo a dor física, mas a morte compreendo-a perfeitamente, e desde sempre isto me aconteceu. Assisti à morte dos meus pais. […] Acho que tudo acaba com a morte. Morremos.


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Somos durante a vida uma coisa que vale pouco; e pouco fazemos na terra. […] Uns e outros, homens, animais, plantas e minerais, estamos na terra para transformar a matéria. Transformamos a matéria. E terminado o nosso papel de transformadores, nós próprios ficamos transformados. Jean Giono começou uma noite a transformar-se. A noite que passava o 8 de Outubro para o 9 de Outubro de 1970. A.F.


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i. Senti que ia acontecer. Homem que olha para a mesa depois de ter bebido e suspira, é porque vai falar. Sobretudo estes homens sós no mundo, sozinhos em cima das pernas e com um grande vazio, um senhor vazio à volta; que são dos nossos lados, dos que se alugam nas quintas só pela ceifa ou assim. Desta vez eu pertencia a uma angariação à molhada em Marigrate, grande casal nas margens do Durance, campo com trigos a perder de vista, matas de caça, vinhas, toda a tralha. Um grande casal, e está tudo dito. Aconteceu pelo maior dos acasos. Eu, coisa mais cabeça à solta não há. Dez dias antes estava em Peyruis num barracão, criado único, mais ou menos dono de mim; pouco trabalho, boa mesa e além do mais a patroa mulher quente; tratado como louça cara, enfim. Por questões de lana-caprina largo tudo e saio de lá. Chego a Marigrate. Todos andavam a suar as estopinhas. — Ei — digo eu assim — precisam de gente? — Às vezes. — Às vezes pode ser agora mesmo? — Vem daí. E cá estou contratado.


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A gente tinha os domingos à noite. Ia-se a Manosque beber a litrada à Buvette du Piemont; um bar no mais alto da cidade, nos arredores dizem eles. Havia mulherame; o dono tocava acordeão como quem puxa massa de rebuçado; o litro de tinto, vinte cêntimos. A coisa ia a matar. Juntávamo-nos por simpatia; entre nós é regra. Pomo-nos a cinco ou seis pela pinta, pela cara, e toca a andar. Eu tinha fisgado um grande com olhos de água clara que transbordavam para as faces, e por baixo do bigode um riso como se fosse neve. O que me tinha atraído, não vou esconder-vos, é que havia naqueles olhos qualquer coisa de amargo; uma sombra como o reflexo de carne a apodrecer no fundo de uma fonte. Chamava-se Albin. Era da montanha. Era ele quem estava, uma noite, com aquilo às voltas. Empurra o copo e sopra um suspiro tão longe como isto, que no seu peito tão grande como dois do meu dá um ronco de vento colineiro. — O que é lá isso, anda a correr mal? — digo para o ajudar. Há que fazer de parteiro, às vezes. É tão bom a gente aliviar-se. Eu, que sou palerma, antes dele já tinha passado vinte vezes por isso. Cá dentro dizia a mim mesmo: — Vá lá, rapaz, vá lá, se não consegues digerir vomita. E vomitou! — Ando para aqui a apodrecer — diz ele assim. — Vou arrumar as botas e pôr-me a milhas. — Não ligues — respondo — se alguém te tratou mal ou disse o que não devia, nunca deves lembrar-te disso com vinho no bucho. É mau momento. As coisas passam ao correr do dia, não ligues. Levam uma hora? Uma hora. Um dia? Um dia. À medida que eles passam, a coisa apaga-se.


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— Não é o que me rala; comigo as más razões nada valem. O que eu cá tenho é a sério, e por isso é importante; entrou cá dentro aos poucos como um fio de água, e agora é grande e pesa-me nas pernas, e nem à luz do sol me deixa ser feliz. Ir-me ou não embora, tanto faz. Depois disto não era preciso eu dizer mais nada, podem acreditar. Ele estava lançado. A coisa ia por si. Naquela noite o dono punha pensos no acordeão com cola de farinha e pedaços de blusas velhas; havia sossego. Fazia uma bela noite de Verão, deitada completamente nua em cima dos olmos formosos. O bulevar estava vazio; um vento leve brincava com o pó como um garoto.

Diz o meu homem: — Faz duas vezes que volto a Marigrate. A vez anterior foi há três anos, por altura do meu primeiro contrato. Chegava todo fresco lá da terra; e nunca mais tornei a subir lá acima. Passei os invernos nas pequenas cidades do sul: Cavaillon, Apt, Lauris, Peyruis… não queria afastar-me; quem sabe se alguma coisa me fizeram aprender… Aqui tens o quê: Nesse ano andava connosco um tipo de Marselha, um jovem tão roído como um rabanete podre, pele e osso e com uma tatuagem na palma da mão onde lhe tinha dado para escrever «Merda». E mexia-me com aquilo no trigo! Chamava-se Louis. Lixado, todo ele lixado. A gavela tremia-lhe na ponta da foice, e sempre a mandar vir com Deus. Como se ele fosse responsável! No fundo, julgo que era a primeira vez que trabalhava. Agora, que sei alguma coisa da vida,


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acho que talvez tivesse feito uma sujeira qualquer e mudava de ares por uns tempos. Há coisas piores. Não era mau companheiro, não, mas fora do trabalho. Cantava a mexer a cabeça como uma galinha; era um gozão. Ah, não perdia tempo se fosse para dar à língua! O mal veio daí: da língua, e porque fazia na testa anéis de cabelo mergulhando-o na fonte, e empestava aquela fronha com perfume, quase a parecer uma gaja. Saíamos juntos. E a coisa era assim. Não me desagradava. Mas eu chegava lá de cima, não sei se me entendes, e toda aquela macacada me deixava encavacado. É difícil explicar: com ele não me sentia à vontade; sentia vergonha. No entanto, se me falava em pagar um litro na Piémont, lá ia eu de boa vontade. Onde me enfadava mais, era com as mulheres. Da primeira vez que aqui viemos, começou com a Anaïs. Deixou-a servir um copo sem dizer piadas. Uma miúda que naquela altura andava nos quinze, só isso! Às tantas ela veio trazer vinho à mesa que ficava atrás de nós. E vi que ele se baixou e depois desatou a rir-se, e pôs-se com uma atitude esquisita e a fungar com força. A miúda, essa, continuava ali. Falava com os que tinham batido na mesa para pedir de beber; dava ao de leve à anca, como uma árvore jovem. Bem vi que se arrastava por lá mais do que o necessário. Quando ela se foi embora, ele pôs-se todo teso. Se eram maneiras! Uma miúda de quinze anos! Mas, olha… Em meados de Agosto é que a coisa aconteceu. Foi nessa altura, sim senhor, e eu já conhecia o homenzinho de ginjeira, sem esquecer tudo o que ele lá tinha dentro a fazer de tripas e moelas. Uma noite pusemo-nos aqui na esplanada, onde agora estamos, numa noite como esta. Era tarde, entre as árvores escorria


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uma torrente de silêncio que afogava tudo. Eu cá pensava na terra. Acabava de fazer três meses que de lá saíra. Aliás, dessa terra não tarda que eu te diga… porque explica o porquê da história e vai fazer-me bem, numa altura em que me vou deitar à estrada. Uma bela noite! As coisas lá da terra, meu velho, tanto vivi com elas, tanto fiz a minha vida no espaço que elas deixavam, tantos amigos-árvores eu tive, o vento tanto se roçou por mim, que em sentindo desgostos penso nelas como consolação. Estava pois a olhar para a minha terra dentro de mim, e era uma dor; mas o rouxinol cantou ali à frente, no olmo, e depois todos os charcos desataram a roncar debaixo da goela das rãs, depois a coruja pôs-se a piar e a lua deu um salto por cima da colina. Nesse preciso momento veio ali do alto um carro; um carro, ou antes, uma carroça, e vinha depressa com o cavalo a bom trote. O ano passado, naquela casa que ali vês fechada e completamente cega pelas persianas, havia uma mercearia. Uma mercearia-modelo, ao que diziam. Deu em pantanas. O homem pregou com um tiro de espingarda nas fuças, e vendeu-se-lhe a mostarda e o sal ao desbarato. Mas o ano passado ainda estava aberta até tarde, com todas as luzes acesas porque já andava a fazer mau negócio, sempre à espera que alguém aparecesse depois de ter dado a volta às outras lojas fechadas. Para começar, a carroça pára à frente da mercearia com um golpe de rédeas: houve o catrapus, de repente os quatro cascos enfiados no pó e mais nenhum barulho. Uma boa mão a conduzir, sólida e precisa. Era uma rapariga. Digo bem: uma rapariga e não uma mulher; porque a mulher deste campo conhece-la como eu, é madeira e pedra; anda


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como os santos do andor, de peça inteira, gasta que está pela terra e pelo homem. Aquilo era uma rapariga. Com dois saltos de pomba mete-se na loja. Estava a vê-la de lado: nariz e boca com a luz a dar-lhe e a mostrarem-se nítidos, e era bonito; ainda me dão em cheio na cabeça. E o merceeiro veio até à carripana trazer os embrulhos porque lá consigo dizia que uma cliente assim, todas as noites, podia fazê-lo evitar o momento de meter os canos da espingarda pela boca adentro. Ela agarra nas rédeas, diz «oh, hi, oh» com a voz que ainda tenho cá na cabeça com outras palavras, e vira. É então a luz da lua que lhe dá em cheio, desde o pé até ao cabelo, e é ela que vejo inteira, com as pernas, a barriga macia e os dois seios fartos que a blusa prendia, e a bela cabeça de tranças enroladas. Sou de uma raça onde não há cá santíssimas virgens; e tu, companheiro, por certo não vais muito às igrejas, como eu; mas sabes, se te lembrares dos teus tempos de catraio, da cara bonita que fazem por aí às Virgens destas terriolas, no que toca a olhar e a braços dobrados para aguentar o menino, com curvas iguais às dos cestos quando se prepara o presente da noiva, e no que toca a ombros e ao resto; lembras-te? Pois era assim! A Virgem! O que eu te descrevi demora. Mas a coisa deu-se num piscar de olhos; com pulso de mestre, cavalo de sangue é rápido. Corria como uma passagem de estrelas, mas ficou porque era a linda força.


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Eu, que estou a contar-vos o que o tal gajo me dizia para se descontrair, e vou contar por aí fora o seguimento da história, diabos me danem se não estava à espera desse vulgar de toda a gente, com murros na mesa e berraria contra o dono da herdade. Mas olhem que realmente não se anunciava como o habitual troco de todas as pessoas. Eu estava a ir na cantiga do tipo! Mas entretanto eu voltava a pensar naquele negrume que lhe tremia nos olhos, e no palavreado que no fundo mais cheirava ao senhor que nele havia, com o freio retesado e a escorrer bons sentimentos. Bastou aquele truque da Santa Virgem… Palerma como sou, mijei em quase todas as pias de água-benta, e agora voltava a ver claras aquelas imagens de comunhão… enfim, não sei se me compreendem. Eu estava a ir na cantiga, é o que vos digo. Manteve-se calado um momento e mandei vir mais um litro. Pago, sirvo, bebo e ponho-me de novo a escutar; mas depois só digo isto: — Desde que começaste — atiro-lhe eu — estou a seguir-te, e há coisas que pedem uma palavrinha. Falaste na tua terra, dizes que interessa para a história. De onde és? — De Baumugnes — diz ele. — Fica longe? Foi com esta pergunta que ele desatou a ir por ali fora, de fio a pavio, a direito, como uma coisa que soubesse de cor.

— A minha terra, a minha terra, espera lá que vou falar-te da minha terra; é obrigatório. Não se trata de ela contar para a história, é toda a história.


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Nesta coisa, vê lá bem, há duas terras à briga: a minha e uma outra. A minha recta e sólida, a outra torta e de coração apodrecido. Espera: antes de mais, tenho de te acabar isto. Não estou bêbado, pelo menos de vinho. De outras coisas, das que estou a contar-te, talvez sim, é possível; mas se falo contigo não o faço como ao primeiro que aparece; acho-te a meu gosto. Antes de partir tenho de alijar o meu peso de memórias; tenho-as como que em depósito; como nas alturas em que escondemos a trouxa debaixo do matagal antes de subirmos até uma herdade que fica ao alto e longe. Achei-te a meu gosto assim, com as tuas palavras duras mas suaves, que sabem onde está o coração. Lisonjeava-me, tudo isto. Prossegue: — A noite a fechar-se sobre ela e o ruído da carroça; e continuo sozinho com o Louis. Mas eu já estava longe dele em pradarias altas, com gencianas até à barriga. Já vais compreender. — Viste a miúda — diz-me ele assim com a voz cheia de escarros. — Uma boneca daquelas é que eu precisava, eu. Até podia esmagá-la ali, pois deve andar pelos quarenta quilos!… Eu já te disse: nele a carne era vil e cheirava mal a quem tivesse nariz fino, mas a vileza e o mau cheiro eram coisas que me tornavam frouxo. Doía mas era bom. Não dou resposta, ele prossegue com a sua ideia, e devia ter dado um bom salto no momento em que teve como eu a rapariga à frente dos olhos. — O sacana deste trabalho não é lá muito bom para mim, não é vida. Só os tansos filhos de tanso se acostumam a ele.


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O trigo dá-me agora vómitos só de o olhar. É bom para ti; mas comigo, que sou da Marsiale e sei nadar, ultrapassa tudo o que já fiz. O que eu precisava, não sei se vês, era de uma fêmea do género daquela que veio no carro. Aquilo é ouro, meu velho; não conto o tempo de a educar nem os primeiros lucros; o agradável cá para o meco seria mandar-lhe nas calmas as primeiras trancadas. Não conto com os primeiros lucros; o comércio instalado viria depois. Eu cá sou do lugar do Lenche e sei como se lida com as madamas. Uma mulher como a que ainda agora aqui esteve, tu pagas com cinquenta paus em trapos de loja fina, com roupa interior da que nos põe ao ataque, um passeio ao Palais, e depois mãos à obra. Mais dia menos dia vale-te uns cem francos com todas as despesas pagas. Disse-me isto, o meu Albin, com a pronúncia, as palavras do outro. Via-se bem que a coisa lhe tinha entrado na cabeça a doer, e lá tinha ficado. Disse-o como que alterado, como outro homem, e eu via-o no fundo dos olhos a sofrer ao máximo. Depois fechou-os ao mesmo tempo que suspirava; e à fé de quem é velho nestas, posso jurá-lo, acrescentou com um tom capaz de nos fazer gelar o pêlo das costas: — E eu que bem podia tê-lo logo ali esmagado!


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ii. Fazia-se tarde. Chamo o dono — o acordeão gemia-lhe nas mãos — e pago. O Albin estava pregado à mesa de ferro: — Vens? — digo-lhe eu. Pega em si próprio pesadíssimo, corpulento como era, e dirigimo-nos a Marigrate. O meu turno começava lá para as cinco da manhã, tempo à justa de chegar, deitar e levantar. Vamos assim sem falar até Palerne, até ao fim dos choupos; e na altura de tomarmos o caminho de terra batida não consigo aguentar mais e digo: — E depois?… Retoma no ponto exacto. Aquilo tinha-se feito o seu papel de música. — Disse-te que a minha terra era a história, e toda a história; disse-te porque é verdade. Tinha sido a terra dele a fazer o que ele era. Enchia-lhe a pele. — Eu cá tenho em mim o Baumugnes inteiro, e é pesado porque está feito com terra grossa que chega ao céu, e árvores de grande porte; mas é bom, é bonito, é largo e com formas precisas, é feito de céu limpíssimo, de bom e vigoroso feno e ar tão afiado como um sabre. Baumugnes! A montanha dos mudos; a terra onde se não fala como os homens falam.


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xiii. Não, ele não atirou! Oh, agarrou na espingarda, durante um bom momento manteve-nos aos quatro sob o raio dos dois canos pretos, e cuspiu a ponta do cachimbo para dizer: — Puta! A Angèle está direita e altiva, apertada contra o Albin; tem a blusa desapertada e vê-se-lhe o seio de amamentadora.

Ele não atirou. Não foi a Philomène nem a Virgem ao longe, lá no alto, que o retiveram. Não se atreveu. O Albin, sabem vocês, ali em casa era qualquer coisa: este homem puro como gelo. A história é esta.

Naquilo que me toca, se estou aqui é por ter baixado de categoria, como podem imaginar. O bastão de marechal é o trabalho do trigo, mas só o temos quando somos jovens. Estou velho de mais.


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Agora trato dos feijões, das lentilhas. Cheguei ao ponto de me fazer contratar para a apanha de melancias. Vou mesmo dizer-vos: um dia da semana passada andei a escolher tomates num revendedor espanhol. A vida é assim. Temos de comer. Quando tenho uma oportunidade, assim uma noite destas, não me coíbo de recordar bons tempos. Ah! O trigo em Marigrate e vinte tararas que nos bufam uma poeirada na cara; a batedora que come as medas à boca cheia, e andarmos por aqui num cheiro a palha, a suor e a pão!

Muitas vezes, desde o momento em que comecei a não me reconhecer adaptado às circunstâncias, cheguei perto daquelas terras de trigo para ver de longe o trabalho; era como se estivesse lá no meio dos outros, e o meu peso de anos levantava voo. Mas se me aproveitassem só era para limpar o caminho das cabras ou desentupir a ribeira. A última vez que voltei a estes sítios deu-me vontade de rever a Douloire. Eu sabia que ela continuava a pertencer ao Clarius. Já de longe as terras me pareciam mais cuidadas; de perto víamos o seu bom tratamento e adivinhávamos que tinham como dono um homem de bom senso e bom gosto. Tinham cortado as árvores loucas do velho pomar, árvores que sofriam ao máximo para dar folhas e não pensavam lá muito, como se calcula, nos frutos. Transformara-se numa terra de fruta temporã.


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Pus-me de pé no talude da estrada, com o bastão e o alforge entre as pernas, e reflecti sobre toda esta mudança até ao momento em que apareceu uma miúda atrás de três cabras que baloiçavam três chocalhos, não mais alta do que isto, e ao vê-la senti na cara todo o sopro quente do passado, como se a porta de um forno se tivesse aberto. Não estava amedrontada nem para amabilidades. Andava à minha volta a pastar a rebanhada. — Pelos vistos a menina é dali! — digo-lhe eu. Devia ter cinco anos. — Oh, não — responde com um leve trejeito. — Eu cá sou de Baumugnes! Como podem pensar, isto punha a ferver a panela que trago dentro de mim. Mas havia que levar o caso para a graça, se qualquer coisa eu quisesse tirar a limpo. — É longe? — Muito longe, lá em cima, bastante mais longe do que as nuvens. — E vens assim de tão longe guardar as cabras? — Era o que faltava! São precisos dias de comboio para chegar cá, e não me deixariam entrar no comboio com as minhas cabras; além disso, como é que se dá num comboio de beber aos animais?… Não, eu estou ali — e com a ponta do mindinho mostra a Douloire — na casa do meu papá. Também tenho o meu irmão, que anda ali no campo; o senhor vê-o ao lado da charrua. Eu via-o; era um rapazinho que acompanhava o arado e fustigava o cavalo. — E que nome te puseram?


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— Puseram-me Angèle, como a mamã. — E aquele homem, além, é o teu papá? — Oh, não! O meu pai é maior e também mais forte; e depois, quando trabalha anda mais depressa do que ele. Não está aqui, o papá; está lá em cima na minha terra com a mamã; há-de vir daqui a oito dias buscar-me, a mim e ao meu irmão. Voltamos para subir até à minha terra e parar em Gap; e sempre que paramos em Gap o meu pai compra-me um avental bonito, e compra calças de veludo para o meu irmão, e compra um vestido para a mamã; e quando chegamos à minha terra a mamã diz-lhe: «És maluco!», e depois ele dá-lhe um beijo. — Gostas muito do teu papá? Olhou-me para ver se eu perguntava a sério, e então fez como que um ar de quem sentia pena de mim. — Gosto, é claro que gosto. Levantei-me e peguei no alforge. — Ouve — digo-lhe eu — quando ele voltar, o teu papá, dá-lhe cumprimentos do Amédée. Não te esqueces? Do Amédée; ele sabe quem é. E meti-me ao caminho. Vocês vão perguntar-me: afinal, já não és camarada do Albin? Teria sido bem fácil aproximares-te da Douloire e dizer: sou eu. Depois do que tinhas feito, achariam muitíssimo natural. Em vez disso, mandas pela rapariguinha cumprimentos sem nenhum préstimo, porque ela vai esquecer-se… Sim, a rapariguinha ia esquecer-se… bem sei… mal eu desaparecesse na curva da estrada. Pois bem; era isso, aliás, o que eu desejava.


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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire


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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (un de Baumugnes), Jean Giono


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DEPÓSITO LEGAL 416620/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL


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Jean Giono O HOMEM QUE FALOU

Jean Giono O HOMEM QUE FALOU

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

Homem que olha para a mesa depois de ter bebido e suspira, é porque vai falar.

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