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Guy de Pourtalés HAMLET-REI (Luís II da Baviera)
Guy de Pourtalés HAMLET-REI (Luís II da Baviera)
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
«Um eterno enigma, é o que eu quero ser para mim e para os outros.»
www.sistemasolar.pt
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Guy de Pourtalès e a sua filha Françoise.
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G u y d e Po u r t a l è s
H A M L E T- R E I (Luís II da Baviera)
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: LOUIS II DE BAVIÈRE OU HAMLET ROI
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: FERDINAND VON PILOTY, RETRATO DE LUÍS II (1865) 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO DE 2015 ISBN 978-989-0000-00-0
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Muitas foram as guerras que o catolicismo da França fez aos calvinistas; combateu-os, massacrou-os, roubou-lhes vidas, propriedades, e inventou a palavra depreciativa que os designou por huguenotes. O tardio Édito de Nantes prometeu alguma tolerância. E a família Pourtalès, desembaraçada enfim do anátema que tinha caído sobre o seu protestantismo, sem nunca lhe fazer uma traição pôde reencontrar-se no esplendor de muitos castelos, do brasão que mostrava o pelicano de prata e os chaveirões de ouro. A passagem destes anos tolerantes reencaixou-a com altivez em comércios, finanças, diplomacias e concedeu-lhe postos em destaque no exército; deu-lhe nomes com algum brilho nas ciências e na literatura; deu-lhe razões para ser reverenciada na Suíça, na Alemanha e nos Estados Unidos da América. No século XIX chegou mesmo a falar-se no «reino dos Pourtalès» e a dizer-se que «o rei da Prússia era um nome, mas os Pourtalès eram o Poder». Destes Pourtalès, precisamente de um Hermann conde e oficial da guarda prussiana, nasceu em Berlim Guy de Pourtalès. Era o ano 1881 e a época em que a Prússia sobressaía política e economicamente na Alemanha do Norte, ao ponto de a nacionalidade prussiana se diluir cada vez mais na vasta nacionalidade alemã; mas este Pourtalès natural de Berlim tinha nascido numa família ligada aos Pourtalès suíços, os que se exibiam nesses tempos com grandes prestígios sociais em Neuchâtel e Genebra; e embora oscilasse desde cedo entre os dois países, frequentasse escolas como o Gymnase de Neuchâtel mas tam-
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bém a germânica Realschule de Karlsruhe, nunca foi alemão. As suas afectividades culturais e familiares tinham feito dele um suíço de expressão francesa; e mais tarde (em 1912), já a residir em Paris porque ela convinha às suas ambições literárias, obteve uma segunda nacionalidade, a que também fez dele um cidadão da França. Em 1910, Guy de Pourtalès surgiu no tumulto editorial parisiense como escritor suíço, autor dos versos de La Cendre et les Flammes que não chegaram para lhe garantir, quer na Suíça, quer na França, significativos entusiasmos; e em 1913 escritor suíço e já também francês, foi o romancista de Solitudes que o anunciava já rendido ao que viriam a ser as suas futuras elegâncias da prosa. Eram no entanto promessas que iam ser adiadas por um período de contratempos levantados à mais recente das suas nacionalidades; e tinha ele disto consciência porque aquela guerra — a primeira dita grande e mundial — deixaria a Alemanha (onde tinha nascido) como principal inimiga da França (onde era cidadão «a pedido»). Na conturbação destes dias, qualquer indivíduo germânico-francês significava só por si uma desconfiança, um cidadão equívoco e possivelmente a passo curto de actos traidores. Talvez por isto, Pourtalès não perdeu tempo a assumir-se como alistado defensor da sua pátria eleita, a integrar-se com farda e disciplina no exército francês. Foi uma decisão difícil, uma profunda brecha política e sentimental naquele ramo da família Pourtalès. Com irmãos e tios fiéis à causa prussiana, a partir de Agosto de 1914 teve-os a lutar no campo adverso, do lado que ele teria de sentir como inimigo. Foi um incómodo até certo ponto suavizado. Como a sua falta de preparação militar não lhe conferia as exigências mínimas pedidas pelas trincheiras, esteve apenas na retaguarda do conflito a conduzir viaturas na reserva de Chartres, depois agregado às tropas inglesas do Havre, onde podia continuar automobilista mas a servir também de
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intérprete. Guy de Pourtalès falava alemão, falava inglês, falava francês, explicava a ingleses o que franceses diziam, e explicava a ambos o que balbuciava a atemorizada angústia dos prisioneiros germânicos. Mas nestas áreas pouco expostas da guerra também havia os riscos do gás que os alemães atiravam ao ar respirado sem máscara pelos seus inimigos — o clorídrico que tantos pulmões queimou e condenou, e fez irreparáveis danos à sua pleura. É verdade que mais tarde, com a Alemanha já derrotada e a França em maré de condecorações, lhe foi concedida a graça de pendurar no peito uma Cruz de Guerra; prémio de justiça aos maus dias da sua longa convalescença, e que não queria deixar esquecido aquele germânico com preferências francesas, condenado para sempre à debilidade orgânica que estaria na causa central da sua prematura morte em 1941. Estes dias de pouca saúde instalaram-no numa tranquilidade administrativa que pôde ser-lhe oferecida no ministério dos Negócios Estrangeiros. A naturalidade alemã voltou porém a mostrar-se com o que tinha de má sombra; porque num ministério tão sensível, que tratava de assuntos secretos e da propaganda dos aliados anti-germânicos, não pareceram desejáveis os serviços de um impuro suíço-francês vagamente alemão. Pourtalès, com chegados membros da sua família nas fileiras do inimigo, foi injustamente suspeito de simpatias que o transferiram para o «inofensivo» campo de Valdahon, onde só artilheiros americanos recebiam uma formação militar. A paz de 1918 fez este magoado suíço-francês reconhecer que não podia ignorar os seus laços germânicos, e disse-o em «Chaque mouche a son ombre»: «Não encontro em mim nenhuma unidade, e a palavra pátria flutua lá com as cores de duas ou três bandeiras». Mas teria de esforçar-se e esquecê-lo na França apaziguada que o devolvia à literatura. Guy de Pourtalès queria para si um lugar de autor em francês; e sê-lo-ia
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com a sua visão aristocrática do mundo e uma cultura que as durezas da guerra não tinham conseguido abalar, formatado por erudições clássicas e largos conhecimentos musicais; decidido a recordar aquela violenta experiência que o afastara de castelos e prestígios familiares como dura «lição de energia», valor que ia ser-lhe útil para levar a cabo o que já sentia dentro de si como um grande projecto literário. E se num primeiro momento de afirmação foi apenas tradutor de Shakespeare, se antes de surgir de novo como autor se deu a conhecer por versões francesas de Measure for Measure, Hamlet e The Tempest, não tardaria a expor-se como ensaísta, como memorialista, e num alargado espaço de vinte anos como escritor de oito obras submetidas ao título L’Europe romantique, as que viriam a associar dois romances a seis biografias. Esta Europa romântica de Guy de Pourtalès revê-se em histórias instaladas nas margens do lago Leman — as margens que tinham sido cenário de eleição na sua juventude, as que ele voltava a amar nos romances Marins d’eau douce (1919) e Montclar (1926) — e escolhe biografias de homens ligados de perto a importantes momentos musicais do século XIX, todos contemporâneos ou mesmo próximos por amizades e ambientes, todos a gravitarem num mesmo espaço cultural. Começa com La vie de Franz Liszt (1925) e prolonga-se com Chopin ou le poète (1926), Louis II de Bavière ou Hamlet-Roi (1928), Nietzsche en Italie (1929), Wagner, histoire d’un artiste (1932) e por fim Berlioz et l’Europe Romantique (1939). Exteriormente a esta Europa Romântica foi autor de La Pêche miraculeuse (título inspirado pelo quadro de Konrad Witz), um volumoso romance com muito de autobiografia e um generoso lugar concedido à música (foram-lhe por isto encontradas sombras do Jean-Christophe de Romain Rolland), com uma história estendida por um vasto fresco familiar (associaram-no por isto a Les Thibault de Roger Martin
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du Gard), em 1937 a escolha dos que atribuíam o Grande Prémio da Academia Francesa. A passagem dos anos deixou-o um tanto esquecido como romancista mas muito menos como biógrafo, em especial o deste rei-Hamlet que amou Wagner e ergueu nas alturas da Baviera os demenciais castelos do seu sonho. Biógrafos, conhecemo-los com essa competência fria, esses relatos sem literatura e sem chegarem a mais, na sua autoridade, do que a incontestáveis rigores informativos e à precisão de notas de fim de página ou fim de livro, ao apêndice de uma bem documentada bibliografia; e conhecemo-los a não excluírem deste propósito a sua mais nobre dimensão como escritores — por exemplo Zweig, Rolland, Maurois, ou entre nós Aquilino e Agustina — os que acrescentam à biografia o prazer da literatura. Guy de Pourtalès, como estes, não prescindiu de uma visão apaixonada em muitas das suas investigações de biógrafo, e das preocupações formais que já tinham sido seu exercício como escritor de romances. O trabalho que publicou sobre Luís II da Baviera foi reconhecido como primeiro a revelar um pouco mais do estranho homem que quis ser, afirma-o ele próprio numa carta, «um eterno enigma para si e para os outros». «Apoiando-me em dados até aqui desconhecidos», escreveu na primeira edição do seu livro, «fazendo investigações conscienciosas sobre a amizade de Luís II e Wagner, compulsando a sua correspondência publicada ou inédita, tentando enfim reconstituir à volta destas duas figuras centrais a atmosfera moral e intelectual da época em que nasceram Tristão, Zaratustra e os castelos do rei Luís, tentei consumar a minha Trilogia Romântica1. De facto, as três figu1 Posteriormente, e como acima se disse, esta trilogia alargou-se ao número de seis acrescentando-lhe Nietzsche, Wagner e Berlioz.
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ras de Liszt, Chopin e Luís II parecem-me revelar os sintomas exactos dessa longa e talvez incurável doença dos homens que se chama o romantismo. Para juntar tudo isto em três palavras: Liszt é o amor; Chopin é a dor; e Luís II é a ilusão.» E acrescenta: «Em Luís II da Baviera, a beleza foi a única forma do amor. E se hoje a sua vida só me parece impotência e loucura, tanto mais o seu drama me emociona por ter sido vivido para a ilusão. No entanto, este tímido ruborizado teve audácias de César, e na Europa do fim do século XIX foi o último grande artista a usar coroa. Desde aí, Luís II fica com um rosto poético, assume um valor representativo. É excepcional como personagem de tragédia. E, muito naturalmente, ao estudar a sua história comecei a todo o momento a ler Hamlet onde estava Luís.» Em 1924, Guy de Pourtalès surgiu como signatário da petição que pretendia desviar André Malraux da má sentença que o «caso de Angkor» lhe destinou, acusando-o de roubar baixos-relevos de um templo do Camboja. E, como consequência deste caso e do interesse que então mostrou pelas singularidades históricas e artísticas deste protectorado francês, foi em 1930 encarregado por um quotidiano de Paris de lá ir fazer a grande reportagem-ensaio que em 1931 veio a formar o essencial do seu livro Nous, a qui rien n’ appartient, Voyage au pays Khmer. A sua saúde frágil, que cuidados europeus sabiam manter num estado quase aceitável, foi violentamente afectada pela aspereza quente das indochinas. Os seus pulmões, atingidos pelo gás alemão inalado quinze anos antes em Ypres, suportaram mal os esforços pedidos por muito menos protegidas condições de vida. Guy de Pourtalès regressou a França com uma visão romântica de Ceilão, uma apaixonada simpatia por Saigão e Phnom Penn, surpreendido com as centenas de templos de Angkor, mas já marcado para sucumbir a uma morte próxima. Ainda teve aqueles onze anos de vida que lhe permitiram ser o escritor de
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Wagner, de Berlioz, do romance que venceu nas votações da Academia Francesa. E até chegou a uma esperança que se alimentou com milagres de ar alto e calejada competência em sanatórios do seu país suíço. Guy de Pourtalès deixou de vez a sua casa de Paris. Foi internado em Crans Montana, la Moubra, onde escreveu as cartas que nos dão a conhecê-lo numa incansável contemplação de montanhas e encantado com as saudáveis purezas da altitude. Podia assim esquecer-se um pouco da Europa de Hitler que se ia destruindo exteriormente àquela neutralidade helvética, que ia matando milhões numa das guerras mais violentas do século XX. Mas em Maio de 1940 — com essa guerra no primeiro ano dos que viriam a ser seis — recebeu a notícia da morte do seu filho Raymond num combate de Bois-Grenier. Guy de Pourtalès era atingido pelo «mais duro ferimento de toda a sua vida», dizem-nos palavras suas. Desceu então do alto sanatório para Lausanne, e aí morreu em 12 de Junho de 1941. A.F.
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i opereta em munique
Cerca de trinta anos depois de Goethe ter vivido uns tempos na Itália, e de inocular uma suprema gota de classicismo nas veias do grande corpo romântico alemão, um jovem príncipe da Baviera por sua vez desembarcou lá e descobriu Roma. Não apenas Roma, mas Atenas em Roma, o Olimpo eterno, os deuses, Homero, a beleza seu destino. Pouco depois era rei com o nome Luís I, e da sua boa capital quis fazer uma nova Atenas. Batendo neste solo honesto e triste com uma bengala de ouro, fez jorrar Propileus, um Partenon, uma Pinacoteca, uma Gliptoteca de tijolos revestidos com cimento e cobertos de veias a pincel para imitar mármore. Depois casou-se, foi um esposo fiel, um pai severo, um monarca cuidadoso com os dinheiros públicos. Continuava a ter a Grécia como única amante. Via-a em todo o lado. Impregnava com ela os seus artistas pagos a coroas de rosas e louros, mas comprava no estrangeiro as estátuas. O seu reino desenvolvia-se na paz e com um helenismo inocente. A um pintor que tinha feito do Reno alemão um quadro alegórico, ele dizia: «Reno vem da palavra rinos. O Reno é um rio grego.» Em 1832 teve uma grande alegria: O congresso de Londres designou Otto, o seu filho ainda menor, como rei dos Helenos. Foi, no entanto, alegria de pouca duração. Os Gregos iluminaram o Partenon para festejar a chegada do jovem bávaro, mas não tardou que o expulsassem, o que em nada fez diminuir o entusiasmo clás-
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sico do rei Luís. Munique continuou a povoar-se com templos e colunas. Esta vida ter-se-ia desenrolado até ao fim com tranquilidade e construções, se um incidente de extrema impertinência não tivesse vindo perturbar para sempre o seu percurso apolínio. Numa noite de Setembro de 1846, trabalhava Sua Majestade no gabinete quando teve de repente o incómodo de um desacostumado ruído, gritos, uma grande agitação. Um criado enlouquecido veio dizer-lhe que a dançarina espanhola, com estreia nessa noite no teatro, vinha abdicar da autorização de aparecer no palco real afirmando com descaramento que pretendia chegar à presença do rei; e se não fosse solidamente agarrada tê-lo-ia conseguido, posso garantir! Já o monarca punha a correr na sua cabeça os vários castigos que uma tal audácia merecia, quando a dançarina lhe apareceu seguida por um camareiro apavorado. Era uma rapariga franzina, morena, furiosa, cintilante. O rei ordenou que os deixassem sozinhos. Perguntou-lhe como se chamava: — «Lola Montez.» Pediu-lhe para se recompor, porque ficara na refrega com a blusa meio desabotoada. Ela preferiu manter-se de seio à mostra. E falou. Explicou-se. Argumentou. Ora, este rei amante de arte, que tantas estátuas tinha acariciado, não podia acreditar na perfeição daquela verdade palpitante. Estendeu a mão; ela agarrou-a e deixou-a perante o «facto consumado». (Ficou assim expresso no relatório da polícia). Como se vê, ninguém teve neste caso gestos inconvenientes. Mas o rei estava perdido. No dia seguinte Lola dançava perante um público maravilhado e um príncipe subjugado. Recebeu versos assinados por «Luís». A seguir jóias, vestidos, cartas inflamadas. Depois mais jóias, imensas jóias, uma casa, uma equipagem, dinheiro. O ava-
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rento, que estava a tornar-se grisalho, transformava-se em pródigo. Alguns meses mais tarde a caixa real ficou a seco. Fez-se então um saque à do Estado. O conselho de ministros foi abaixo. Preencheram-no com outros, e estes por sua vez caíram. Com isto pouco se importou o rei, porque só as coreografias o apaixonavam. Também passeava a sua amante por estúdios de pintores, para ela se instruir em belas-artes e lhe pintarem o retrato. Todo o ano 47 foi ocupado com loucuras. Lola Montez era vista a caracolar a cavalo pelas ruas de Munique, a ser saudada como uma rainha e a ameaçar com a vergasta os transeuntes que não mostravam um suficiente desvelo. Recebeu o título de condessa de Landsfeld. Batia-se com os estudantes pouco admiradores de tão grande romanesco, e derramava-lhes taças de champanhe na cabeça quando se manifestavam por baixo das suas janelas. Lola achava que faria esquecer as suas excentricidades «libertando o povo», e mandou copiar o Código de Napoleão para uso do seu «totozinho» real. Quando ele assistia às suas sessões de pose no estúdio de Kaulbach, era obrigado a ajoelhar-se e apanhava pancadas de leque na cabeça para aprender a ser humilde. Se isto só desagradava até certo ponto ao complicado sexagenário, extenuava-o bastante. E enquanto acontecia, os padres pregavam de cátedra contra a besta do Apocalipse, ou declaravam que em Munique a Virgem Santa tinha sido substituída no seu trono por Vénus. Tudo isto tinha de acabar mal. Um dia a dançarina foi perseguida pela multidão. Refugiou-se na igreja dos teatinos1; a tropa foi mobilizada para a libertar. Correu sangue. A 12 de Outubro de 1848 o rei teve de assinar uma ordem de desterro; e mal a 1
Frades da ordem de São Caetano. (N. do T.)
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«diaba» saiu de casa, disfarçada, o povo invadiu-a e deixou tudo quebrado. O rei apareceu, acalmou a populaça, e voltou para o Palácio onde escreveu estas linhas: «Povo da Baviera! Novos tempos começam, diferentes dos previstos pela Constituição que respeitei durante vinte e três anos de governo. Resigno a minha coroa a favor do meu bem-amado filho, o Kronprinz Maximiliano.» Caía assim o pano sobre este prólogo de uma tragédia parecida com uma opereta. Maximiliano ia reinar. E o pequeno Hamlet, seu filho com três anos, como o outro podia dizer: «O século perdeu o juízo. Oh! Maldição de termos vindo ao mundo para metê-lo na ordem!1»
1 Esta e outras citações da peça Hamlet respeitam a tradução de Pourtalès, sem nunca traduzirem directamente o texto original de Shakespeare.(N. do T.)
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iv tristão
… Não há lugar para mais ninguém. Seja mulher ou seja homem. E um povo? O que é isso do povo, o seu povo? Milhares de anónimos todos diferentes, todos parecidos, a formarem um grande corpo bávaro, um grande rosto bávaro, uma dura vontade bávara, um terrível amor bávaro. Entre o seu coração real e o do bem-amado artista, do Homem por excelência, que lugar pode haver para a massa informe de bocas e braços que à sua passagem vocifera «Ohs!», que gesticula e mais lhe assusta a alma do que consegue atraí-la? No entanto todos os reis têm sobre si a carga de amar este cancro hereditário. O seu pai morreu vítima dele. O seu avô sacrificou-lhe o prazer da idade madura. Roeu, ao longo da história do reino, os seus antepassados. Como é que ele agora, em 1864, vai suportá-lo? Através das janelas do palácio olha com terror para as inúmeras células que formam o seu povo, o seu poder, a sua doença. E o seu ser atira-se totalmente para o Outro, o libertador, o divino estrangeiro. Foge para Hohenschwangau, senta-se à secretária e compõe um poema de resposta ao que acaba de receber: ao meu amigo Na negra noite a arte era prisioneira. Não brilhava no céu nenhuma estrela E o artista lutava com a sua dúvida
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Quando o destino quis dar-lhe Notícias tuas. Ah! Como eu soube recebê-las! A noite desfalece com os seus fantasmas E constrói-se sobre ti a amizade. Ele continua e liberta-se. Porque não é desta vez escutado por um rosto insípido de cortesão mas uma alma igual à sua e que ele consegue, por cima de todas as outras, atingir. Apesar de?… Sim, contra elas. Oh! O que importa? «Entre os que encontrei és tu, de facto, o homem justo.» Hamlet dirige-se assim a Horácio. E Luís de igual modo se dirige a Richard. Mas continuemos a ler Shakespeare: «Desde que a minha querida alma foi senhora da sua escolha e soube distinguir entre os homens, elegeu-te sozinha e marcou-te com o seu selo por seres aquele que, sofrendo tudo, nada sofreu; um homem que aceita com a mesma humildade as grosseiras recusas e da fortuna as recompensas.» Só a palavra humildade não convém aqui. Substituamo-la por orgulho. Porque o poeta e o príncipe têm realmente orgulho em ser batidos e feridos em conjunto. Um no rosto pelo povo, pelos jornais; o outro pela rainha-mãe, pelos ministros que mais sorrateiramente e com deferência lhe ferem o coração. Ao músico escarnecem-no, odeiam-no. Desde 48 e os tumultos de Dresden, Wagner é olhado com suspeição por todos os governos1. O presidente do conselho Von der Pfordten excita contra ele os ministros, os militares e o clero. Dependesse apenas de Sua Excelência, aquela música 1 Durante as revoluções da Europa Central, que em 1848 lutaram pela implantação de regimes liberais, democráticos, nacionalistas e socialistas, o jornal político Volksblätter publicou um panfleto anónimo, intitulado «A Revolução», que se tornou célebre pela sua virulência e foi atribuído, por semelhanças de estilo, a Richard Wagner. (N. do T.)
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satânica seria encarcerada como imoral. Até o conselheiro áulico Von Pfistermeister, antigo enviado do rei e agora chefe do seu gabinete particular, recalcitra contra as despesas projectadas pelo seu senhor. E a elegante atitude que todos tomam é esta: não querer que haja nenhuma inovação, que seja garantido o lugar aos homens do momento; seja dada paz aos dinheiros públicos e sejam postos na rua os poetas-profetas, os vagabundos sem pátria. Entretanto, Luís pendura o retrato de Wagner no salão, ao lado dos seus antepassados. E Wagner vai fazendo os ensaios de O Navio Fantasma. A primeira representação várias vezes adiada tem lugar a 4 de Dezembro. À porta do teatro há uma importante guarda policial porque a curiosidade dos habitantes de Munique é mais forte do que o seu mau humor, e eles querem nessa noite rir-se. É o próprio Wagner quem vai dirigir. O rei está no seu camarote e os fieis compareceram: o duque Max da Baviera (aquele a quem Luís tinha subtraído A Obra de Arte do Futuro), o príncipe De Tour de Taxis, algumas damas, Bülow, Cornelius e um grupo de artistas. Depois do primeiro acto, surpresa; no segundo grandes aplausos; no terceiro entusiasmo. O rei está radiante; a primeira partida foi ganha e é preciso aproveitá-la para começar a ser estudado imediatamente Tristão, a obra que fará calar todas as críticas. Porque estará nela o caroço do fruto, a mais fina amêndoa. O rei não consegue duvidar de que a deliciosa amargura de Tristão vai convencer e embriagar de ternura este povo que os envenenadores públicos abastecem com desprezíveis peçonhas. Os dois, Wagner e Bülow, metem-se ao trabalho. Contratam para os principais papéis os dois melhores cantores da Alemanha: Schnorr von Carolsfeld e a sua mulher. Os cenários são confiados a pintores ilustres. Ajudado por Cosima, o compositor desenha os
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trajos, entra no pormenor dos acessórios e toma sob a sua direcção pessoal os coros, os solistas e a orquestra. Todo o Inverno, e depois toda a Primavera, são desta forma ocupados. Vinte e um ensaios de orquestra são necessários para a perfeição ser atingida. Porque não se trata de uma simples representação de ópera, mas de uma renovação profunda do estilo musical, de uma reforma completa do vocalismo, da escola do canto, da declamação, do jogo dos actores. Para resumir, de uma total refundição do drama lírico atolado na mais convencional monotonia. Uma noite como esta significa qualquer coisa diferente de uma reposição do Guilherme Tell. É todo um novo ensinamento, uma insuspeitada arte. E apesar da carga que os projectos de construção e a batalha em jornais de segunda categoria assentam nos ombros deste atarracado gigante, ele ainda encontra forma de redigir um relatório com mais de cem páginas dirigido ao rei, sobre a fundação de uma Escola de Música. Ao mesmo tempo prepara-se, porém, o seu suave assassínio. Pouco antes da representação é de repente apresentada contra Wagner uma queixa de longos fundamentos, e está em causa prendê-lo por dívidas. Um golpe de mestre. Os seus adversários exultam. Mas o rei intervém pouco depois e paga a soma exigida, pedindo ao amigo que desculpe aqueles que não sabem, «na sua maldade e na sua podridão», o que fazem. Tudo acaba por ficar pronto. Aquela espera deixa, no entanto, o rei doente. Já não consegue aguentá-la mais tempo, e tem os nervos em pior estado do que o músico. Antes do grande dia agarra uma última vez na pena e escreve-lhe: «Meu único e meu tudo! Autor da minha felicidade! Dia de enlevo! — Tristão. Como esta noite me regozija! Que ela não demore! Por que terá o dia de anteceder a
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ix mestre e discípulos
Quando Richard Wagner olhava para leste na sua casa de Triebschen, na margem do lago de Luzerna, o seu pensamento juntava-se ao do jovem rei cheio de graça e cuja morte, tinha ele uma vez dito, também seria a sua. E apesar de tudo o que entre eles se tinha desde então passado, sentia um afecto e um reconhecimento emocionados por aquele a quem chamava seu Parsifal. Porque embora o primeiro fogo tivesse numa e noutra partes esfriado, pelo menos no artista transmutara-se numa boa e confortável paz helvética alimentada pelas mais poderosas músicas. Mas quando Wagner se voltava agora para oeste, surgia no seu céu uma nova estrela, um jovem professor alemão instalado em Basileia, que também se tornara seu discípulo e que ele de repente sentia, tomado por uma interessada e quase assustada surpresa, com um génio igual ao seu. Na verdade, depois de este rapaz de vinte e seis anos publicar um primeiro livro, manifestara uma profundidade, uma lucidez, uma audácia incomparáveis, e também um pouco daquela confusão parecida com a embriaguez do explorador ou do sábio quando avança numa região onde ninguém antes dele entrou. Encontram-se algumas analogias entre Luís II da Baviera e Friedrich Nietzsche. Um nascera em 1844 e o outro em 1845, tinham ambos o mesmo gosto pela solidão, os mesmos pudores de sentimento, e uma juventude que apenas se apaixonava pelo pequeno teutão de cabeça dantesca, com uma vida que ninguém
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aflorava sem se queimar. Tinham forçado, pelo entusiasmo e pelo amor, o acesso ao desconfiado coração de Wagner. Um tinha-lhe levado o brilho da sua retumbante homenagem, os meios de realizar o que ele chamava «a criação de um mundo inexistente» e que vivia dentro de si, ou seja, a possibilidade de revelar o seu pensamento e a sua arte. Chegado alguns anos mais tarde, o outro tinha vindo do fim do horizonte das ideias, era portador de coriscos do espírito e estava pronto a servir-se deles para fazer explodir a terra se ela não aceitasse os dogmas da nova revelação. Ambos altivos e perigosos como todos os solitários. Ambos cheios de ódio ao real e inimigos da sua verdade. (Nietzsche só mais tarde se fez disto campeão.) — «Quanto mais uma coisa se afasta da verdadeira existência, mais pura, mais bela e boa ela é», dizia ele nesses tempos. «Só é possível vivermos na arte. — A vida só é possível, graças a fantasmas estéticos.» Não seria fácil acreditarmos que estas divisas compostas por Nietzsche se destinassem aos pavilhões de Meicost-Ettal? De facto, vermos três homens como Wagner, Nietzsche e Luís II, de tão diferente raiz, alistarem-se durante algum tempo sob as mesmas bandeiras, não deixa de ser curioso. E — já conhecendo, como conhecemos, o desfecho disto — espanta-nos ver os dois mais jovens enganarem-se paralelamente sobre si próprios. Nietzsche punha a inteligência e o conhecimento acima de tudo quanto o arrebatava. Foi um dia infiel a Wagner por lhe parecer que ele traíra a causa do espírito, a única sagrada entre os homens. Luís II, pelo contrário, colocava a família dos sentimentos, e não a das ideias, mais alto na escala dos valores. Quando abandonou depois de Tristão o mestre, foi por lhe parecer que ele tinha renegado o seu ideal; que o seu ideal devia ser renúncia ou morte, Isolda e não Cosima. Desenraizado para sempre do jardim das realidades e
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transplantado para o rico território do símbolo, Luís II tinha prosperado aí terrivelmente. Já não enterrava as suas raízes no novo solo imperial, mas no velho mundo das lendas, da história ou da epopeia. À custa de resistência passiva acabara por conseguir excluir do seu programa o dever quotidiano, as estopadas oficiais que a horas certas lhe surgiam, o vil focinho dos seus funcionários. Mesmo Wagner só figurava lá por uma questão de memória. E que importância isto tinha? Nos vivos mais amados há sempre um ponto por onde nos lembram que estão vivos, logo falíveis; ou seja, que são decepcionantes. Mas os mortos? Mas os não-nascidos? Mas todos os que só devem as suas mil aparências constantemente reinventadas à nossa imaginação? São estes «fantasmas» os que ainda despertam no rei algum interesse e fazem-no sentir tanto desprezo pelos seus súbditos de carne e osso. Os mesmos «fantasmas estéticos» que Nietzsche dizia responsáveis pela existência tolerável. Temos no entanto de perceber que este príncipe, como três quartos dos homens, não era muito capaz de ligar a sua vontade a uma doutrina filosófica. O que Nietzsche em todo o lado requestava com tão lúcida avidez, essa explicação da vida, esse ardor em esvaziá-la do que é fraco e inútil para ficar dotada de um mais nobre querer, não preocupava nada o nosso bávaro. E com isto ele era, sem dúvida, tão lógico em relação a si próprio como Nietzsche. Importando-lhe tão pouco a vida do dia a dia, o governo, a política e a sociedade, não seria perder tempo procurar estudar-lhes o mecanismo? Que homem de acção (e ele pretendia sê-lo) abre a caixa do seu relógio para examinar as peças que lá se encontram e saber quanto valem? Basta-lhe que ele marque horas certas. Mas o problema filosófico reduzia-se, para Luís II, a um impulso estético; ou seja, à construção de um castelo. Em Nietzsche ligava-se
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ao estudo da Grécia antiga e à descoberta da lei dos dois ritmos que governam os homens: o apolínio e o dionisíaco. Se Luís II envolvia o seu pensamento metafísico do poder com as pedras de Meicost-Ettal, Nietzsche encerrava o grande impulso dionisíaco — a música de Wagner que lhe mantinha a alma enfeitiçada — no seu Nascimento da Tragédia. «Porque só ela e nenhuma outra é música», escrevia ao seu amigo Rohde; «só a ela e a nenhuma outra atribuo a palavra música, quando falo do dionisíaco.» Nada é mais dramático do que ver a contenda de Wagner com estes dois discípulos, o eleito do seu coração e o eleito do seu espírito, e ambos a renegá-lo antes do alvor da sua glória. Quando o galo cantar ele já não será o homem de dores; estas duas almas é que estarão trespassadas, uma pela flecha da verdade, a outra pela flecha do amor. Wagner tinha feito uma profecia: «Como o destino não consegue destruir-me, ataca os meus fiéis. Desde que um homem verdadeiro se entregue a mim e represente por si próprio uma força incalculável, posso ter a certeza de que o destino vai apoderar-se dele para o vencer.» Com efeito, Nietzsche sacrificou o seu maior entusiasmo humano a esta coisa mais bela, mais pura, que é o conhecimento; tal como Luís II riscou do coração a memória de um sentimento único e ergueu em direcção ao céu, ou sobre as margens dos lagos de montanha, os fantasmas pessoais do «mundo que não existe». No entanto, na data em que estamos nada transparecia desta conclusão. Nietzsche é em Triebschen uma presença habitual. Passa lá os domingos. Electriza-se em contacto com aquele a quem chamará mais tarde «a velha serpente cascavel» mas que o faz nessa altura exclamar: «Schopenhauer e Goethe, Ésquilo e Píndaro, ainda estão vivos»… na pessoa de Richard Wagner. Se a guerra de 70 não
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tivesse feito do jovem e horrorizado filósofo um enfermeiro destruído pela compaixão, teria chegado a ser testemunha no seu casamento com Cosima pouco tempo antes divorciada de Bülow. Quando Nietzsche voltou dos campos de batalha, quando teve notícia da Comuna e do incêndio das Tulherias, sentiu-se doente e como que fulminado, desesperado contra a civilização. Mergulhou fundo no pessimismo, reviu doutrinas que lhe tinham parecido as mais sólidas, e no seu foro interior iniciou o trabalho de crítico apaixonado que mais tarde o levaria a apontar a lança contra o seu mestre. No entanto, ninguém lhe era no mundo mais caro do que Wagner e Cosima. Estes dois seres faziam-no revelar-se a si próprio, e através dessa revelação elevar-se acima deles vislumbrando os seus erros de pensamento e reconhecendo-se na missão de profeta de uma nova razão de viver. Desde aí apoderou-se da sua consciência uma profunda perturbação, e ela fê-lo sentir que o velho e amado gladiador caía derrubado pelos seus golpes. Agora, para lá da música do homem que ele ainda considerava o maior dos compositores, já discernia o segredo de toda a música, ou seja, de toda a filosofia. E este segredo era para o mundo mais importante do que a própria música wagneriana. Ninguém, melhor do que Nietzsche, justificava as palavras de Leonardo: «Quanto mais exacto o conhecimento, mais certo o amor.» No mês de Janeiro de 1872, ao mandar a Wagner o primeiro exemplar do seu Nascimento da Tragédia podia com toda a sinceridade escrever: «…Vereis em cada página que mais não fiz do que agradecer tudo o que me destes. Uma única dúvida me invade: se eu sempre recebi bem essa dádiva…» E Wagner, que julgava encontrar no livro do jovem discípulo uma justificação científica de toda a sua estética, mandou Cosima responder-lhe: «… Nunca li
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nada mais belo do que o vosso livro… Lançastes uma luz clara sobre dois mundos; um deles não o vemos por ser demasiado longínquo, e o outro não o reconhecemos por tê-lo demasiado perto…» E chega, no seu entusiasmo, a enviar um exemplar ao rei. Estes dois mundos, o apolínio e o dionisíaco, o da ideia musical primitiva em turbilhão e o da sua expressão traduzida, formulada, constituem o mundo abstracto de Nietzsche e o Walhalla monumental de Luís. O leve povo dos pensamentos que um deles encontrava no silêncio alpestre ou sob os pinheiros do Mediterrâneo, chegou para transtornar a moral das elites que governam o espírito dos homens; ao outro, os sonhos wagnerianos só trouxeram uma visão teatral e limitada de um ideal filosófico, hoje petrificado. Mas será assim tão estranho que os dois Telémacos do novo Ulisses tenham feito uma mesma viagem com o seu mestre e só tenham visto paisagens diferentes? Que se tenha cada um deles alimentado nela com valores divergentes? A partir do momento em que a teoria sobre o trágico grego, saída do espírito da música, ganhou raízes em Nietzsche, ele sentiu-se repentinamente como um «ponto» teatral de Wagner. E quando o rei Luís, pelo seu lado, projectou modelar poemas de pedra e cimento com os gérmenes que o Único tinha deposto dentro de si, libertou-se dessa tutela para cantar segundo a sua própria inspiração. Wagner voltou, uma vez mais, a ficar só. Nietzsche também. E Luís, apesar de tudo. Quando o mestre começou a sonhar com o Delfos místico da cultura trágica moderna, já o filósofo e o monarca não eram seus alunos. E Wagner, pelo contrário, é que tinha agora necessidade deles. Nessa altura compunha o último acto do Crepúsculo, e nunca se atirava ao trabalho sem reler uma passagem qualquer do livro sobre o Nascimento da Tragédia; e para a realiza-
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ção prática do seu cometimento teve de dirigir-se outra vez a Luís para obter a indispensável ajuda material. Mas aquele de quem tinha alguns anos antes dito: «Isto é que é um rei! Poder-se-ia com um tal homem subverter toda a terra», quer nessa altura pôr e dispor a seu bel-prazer. Vai demonstrar a Wagner, que o tinha promovido à categoria de homem livre, aquilo de que é capaz; e como consequência ordena, contra a vontade do mestre, uma primeira representação de O Ouro do Reno. Ficará a ver-se que o artista tem o poder de inventar, mas só o rei de executar. No entanto não tardará que em Von Perfall, o intendente dos teatros, sejam encontrados graves defeitos de encenação, nos artistas uma distribuição de papéis muito medíocre e uma total incompreensão da obra; tudo isto ao ponto de Hans Richter, o jovem director da orquestra, se recusar a actuar, o tenor Betz se eclipsar e o autor se opor com veemência a uma execução que prejudica de tal forma a sua obra. O rei, porém, não quer saber de nada disto. Acusa Wagner de «fraqueza» e mantém para a representação a data prevista. Ela decorre em plena ironia e plena mediocridade. E só o rei não se sente decepcionado, por ser o único que dá ao espectáculo, sem ter consciência disso, apenas um valor simbólico. Naquele momento tem aberto perante si o seu mundo. Apesar de anões e gigantes figurarem com imperícia nas tábuas do palco, ele está a criar. Construirá o Walhalla cem cumes mais alto do que o Nibelheim destes monstros chamados homens. E enquanto os mercadores de sonhos de cartão forem discutindo nos bastidores, ele construirá com blocos eternos o seu sonho no cimo do rochedo.
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Neuschwanstein é um pico rochoso que domina a região de castelos onde Luís viveu a sua infância. Basta meia hora para lá chegarmos, saindo de Hohenschwangau. Espantoso é nenhum barão medieval ter sonhado erguer ali o seu ninho de águia. Um lugar tão altaneiro conviria às figurações da força. Mas o rei pensa que a sua segunda obra merece, depois de Meicost-Ettal símbolo do orgulho, ser dedicada ao sonho. Neuschwanstein será o burgo feudal de Tannhäuser e Lohengrin, o Monsalvat onde o Precioso Sangue do príncipe dos sonhos será conservado. Como não havemos pensar de novo no Nietzsche que uma dezena de anos mais tarde construirá em Engadine os alicerces do seu castelo espiritual? «Percorri a floresta, as margens do lago Silvaplana», contará ele, «e parei perto de um formidável bloco de rocha erguido em pirâmide. Ocorreu-me aí a ideia de Zaratustra… a seis mil pés, para além do homem e do tempo.» Também o rei está, em Neuschwanstein, seis mil pés para lá do homem e do tempo. E que base isto é para um impulso capaz de fazê-lo ir até onde os seus sentimentos, mas não a sua inteligência, queiram levá-lo! Durante algum tempo ele vai todos os dias a esse cume, e olha para o galope das nuvens. Os projectos, uns sobre os outros, fazem dentro de si pressão. Ele abre-se aos seus arquitectos, aos seus decoradores, aos pintores da sua Academia, e faz brotar de imediato uma dezena de estúdios para desenhos e aguarelas. Mas prefere deter-se no de Christian Yank, pintor-decorador do Teatro Real a quem acrescenta sucessivamente três arquitectos, primeiro Riedl, a seguir Von Dollmann, e para terminar Hofmann. Não tarda que se inicie esta construção, extenuante pelas dificuldades de acesso ao pedestal a pique sobre o vazio, e durante anos se prolongue. Mas nada pára nem desencoraja o rei. Trata-se, antes de
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Cerca das quatro horas da manhã começa a amanhecer. Volta a cair uma chuva fina, e nos pinheiros das florestas rasgam-se nevoeiros que se agarram às torres do burgo wagneriano. De repente surgem alguns carros na estrada às curvas, e param junto da porta principal. Os homens da guarda põem-se à frente dos recém-chegados, perguntam qual é o objectivo da visita e barram a entrada do castelo. Não era previsível que gente de tão baixa condição interviesse. «O vosso rei está doente do espírito», dizem os médicos, «e viemos tratá-lo.» Eles respondem: «As ordens que temos é de não deixar entrar ninguém». Isto apesar de aqueles senhores estarem fardados e cobertos de galões. «O nosso rei deu ordens», respondem os guardas, imperturbáveis. Luís fica numa grande fúria quando sabe que Holnstein está entre os que vêm «prendê-lo». Ah! Se ao menos estivesse ali o seu Horácio, o seu Dürckheim! Encontrariam ambos uma forma de sair do impasse. No entanto, já o pano está levantado para o quinto acto e ele vai ser obrigado a dirigi-lo sozinho até ao fim. Sem ter disto consciência, como é evidente, num instante destes o Hamlet da Baviera pensa como o Hamlet da Dinamarca quando começa a divagar, antes de dar por consumado o último acto da sua vida: «… Desafiamos os augúrios. Há uma singular providência quando se trata da queda de um pardal. Se for agora, amanhã não será; se amanhã não for, será agora; se não for agora, não deixará ainda assim de acontecer. Estar preparado, tudo se resume a isso. E como nenhum homem sabe aquilo que abandona, o que lhe importa ter de abandoná-lo já? Tudo seja consumado.» Pouco depois Luís ordena: «Metam na prisão o ministro Crailsheim e o conde Holnstein.» Instantes mais tarde também manda prender Tœrring, Washington, e ainda os dois médicos.
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Só é esquecido Rumpler, que sai de lá e telegrafa imediatamente para Munique a dar estas notícias. O governo aproveita desde logo a inesperada ocasião para proclamar a regência. «Em nome de Sua Majestade o rei. «Os insondáveis decretos de Deus acabam de atingir a nossa casa real e o fiel povo bávaro com um triste acidente: a grave e incurável doença do nosso bem-amado sobrinho, nosso muito poderoso rei e senhor, Sua Majestade Luís II, uma doença que o impede de assumir por mais tempo o poder, tal como previsto no artigo 2, parágrafo 11 da Constituição…», etc., etc. Enquanto estes acontecimentos se sucedem na capital, altos comissários e enfermeiros continuam a ser mantidos sob guarda numa sala do rés-do-chão do castelo de Neuschwanstein. O mais humilde povo dos arredores, camponeses e montanheses, acorre de todos os lados para defender com mão forte o seu príncipe. E este redige febrilmente no seu gabinete algumas ordens que um lacaio comunica com ar de troça àqueles cavalheiros: «Os traidores são condenados a sofrer um escalpe e serão fustigados até à morte; ser-lhes-ão cortadas a língua e as mãos…» Os bons guardas ficam perplexos e os prisioneiros de forma alguma tranquilos; mas o prefeito surge de repente, munido das mais recentes instruções do conselho da regência. É o pau que volta para trás, é o fim desta resistência inútil. Para o rei não desconfiar de nada, os comissários são postos um a um em liberdade; e os seus carros, dissimulados na floresta, voltam a levá-los até à próxima estação de caminhos-de-ferro. Nesta mesma altura um cavalo esfalfado galga a montanha do cisne. O cavaleiro Dürckheim-Montmartin apeia-se, todos lhe apresentam armas e ele corre em socorro do seu príncipe. Até que enfim! Fecham-se ambos no quarto do rei, a preparar a contra-ofensiva.
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«Eu, Luís II da Baviera, vejo-me obrigado a dirigir o seguinte apelo ao meu bem-amado povo e a toda a nação bávara: «Contra a minha vontade, o príncipe Luitpoldo projecta guindar-se à regência do meu país e do meu ex-ministério, enganando o meu povo sobre o estado da minha saúde e preparando actos de alta traição. «Estou tão saudável de corpo e espírito como qualquer outro monarca; mas a alta traição com tanta surpresa e rapidez se desenvolve, que já me não resta o tempo necessário para tomar medidas úteis contra as criminosas actuações do governo. «Se os desígnios do príncipe Luitpoldo vierem a realizar-se, ou se ele conseguir apoderar-se do poder contra a minha vontade, encarrego os meus fiéis amigos de salvaguardarem por todos os meios, e em todas as circunstâncias, os meus direitos. «De todos os meus fiéis funcionários, e em particular dos meus oficiais e soldados, espero que haja a memória do solene juramento que os comprometeu a terem fé em mim. Continuem a ser-me fiéis nestas horas difíceis, e ajudem-me a combater os traidores…» Trata-se, no entanto, de uma proclamação tardia e que não chega aos destinatários. Dürckheim telegrafa a Kempten, dizendo-lhe que ponha em armas o batalhão de caçadores. Mas também tarde de mais. As contra-ordens da regência já foram dadas a todo o território do reino, e o telégrafo está nas suas mãos. Apesar disto, o tenaz ajudante-de-campo envia um mensageiro até à fronteira austríaca, de onde se enviam missivas a Bismarck e ao rei da Prússia. Tarde de mais, também. Porque mal chega a inconsequente resposta do chanceler, e o conselho se apresenta perante as câmaras para fazer delas os juízes da sua situação, «tudo está consumado», como escreveu Shakespeare. Dürckheim recebe por duas vezes ordem para ir a
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Munique. À primeira vez recusa-se. À segunda submete-se, confiante, e é imediatamente preso. Mal parte o último dos seus amigos, dois altos funcionários do novo governo apresentam-se às portas de Neuschwanstein, escoltados por oficiais da polícia, pelos médicos psiquiatras e os enfermeiros. É o dia seguinte ao da sua primeira visita, ou seja, sexta-feira 11 de Junho, pouco antes da meia-noite. Mal a nova guarda nomeada na véspera lhes abre o portão de ferro, um lacaio precipita-se até aos recém-chegados para os incitar a apressarem-se e irem até aos aposentos reais porque Sua Majestade está no auge de um paroxismo nervoso e ameaça atirar-se de uma janela das torres. Até àquele momento foi possível impedi-lo de lá chegar, alegando que a chave se tinha perdido. Imediatas disposições são tomadas para vedar as saídas dos corredores e dissimulam-se enfermeiros ao longo do caminho por onde o rei terá de passar, no caso de querer dar cumprimento ao seu projecto. O mesmo lacaio é-lhe depois enviado com a chave da libertação. Aguardam que se faça naquela pobre cabeça a representação do drama que ela própria congeminou. Um grande silêncio. A seguir passos firmes. A porta dos aposentos abre-se e Luís aparece, gigantesco, dando imperceptíveis ordens ao criado que perante ele se curva. Nesse mesmo instante surgem de todos os lados homens que lhe cortam a retirada; e o rei é preso. Antes de poder fazer um gesto, os enfermeiros paralisam-lhe os braços e o doutor Gudden aproxima-se. — Senhor — diz ele — cumpro o mais triste dever da minha vida. De acordo com a opinião de quatro médicos, Vossa Majestade é declarada irresponsável. O príncipe Luitpoldo assumiu a regência. Recebi ordem para Vossa Majestade ser ainda esta noite
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acompanhada até Berga. Senhor, queira dar ordens para o carro partir daqui às quatro horas. O doutor Muller virá a relatar que o rei disse por diversas vezes num tom doloroso: — Ah! Mas o que pretendeis, afinal? O que significa tudo isto? Volta depois para o seu quarto, durante um instante a oscilar sobre as pernas esquerda e direita como uma árvore que vai cair. Mas nada disto surpreende muito, porque este choupo fulminado bem perto está de desabar. O médico-chefe quer prestar-lhe ajuda. O rei volta a falar: — Como podeis declarar-me doente, se nunca me examinastes? — Não é necessário, senhor; as provas são pesadas. — E quanto tempo demorará a cura? — Está dito na Constituição que havendo um qualquer motivo que impeça o rei de governar durante mais de um ano, a regência deve ser declarada. Portanto, o mais curto período será um ano. — Pois bem — replica o rei — ainda vai ser menos demorado, sem dúvida, porque é muito fácil desembaraçarem-se de um homem. — Senhor — disse o médico — a minha honra obriga-me a não responder. De acordo com o previsto, às quatro horas põem-no dentro de um carro para o levarem até ao castelo de Berga. O rei está sozinho na caleche, mas os médicos tomaram a precaução de pôr fora de funcionamento os fechos das portas. A viagem faz-se sem incidentes; e ao meio-dia de sábado, 12 de Junho, ele chega ao seu destino. Diz umas quantas frases irónicas quando verifica que a velha morada familiar está rodeada de paliçadas recentes, nas portas foram abertos postigos de observação, à mesa foram suprimidas
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as facas, que a sua casa ficou transformada numa espécie de asilo de loucos privado. Deita-se cedo; e no dia seguinte, domingo de Pentecostes, levanta-se com um ar muito calmo. Neste mesmo domingo, 13 de Junho, o médico Von Gudden manda para Munique uma tranquilizadora missiva: «Tudo corre muitíssimo bem por aqui.» Mas é preciso ser-se médico de almas e curandeiro com patente para saber ler com muita argúcia o que existe atrás do gradeado olhar destes actores maravilhosos que são os neurasténicos. Cerca das cinco horas da tarde o rei come uma refeição ligeira e depois convida o médico Von Gudden a acompanhá-lo num passeio, como lhe fora prometido. Às seis e meia põem-se os dois a caminho e andam tranquilamente ao longo de uma álea que ladeia o lago de Starnberg. Antes de sair, o médico declara que a presença de um enfermeiro é inútil. Aliás, o passeio só durará uma hora, uma hora e meia no máximo. Sente que terá capacidade, em caso de alerta, para acalmar Sua Majestade. E eles dirigem-se, sob um baixo e escuro céu de tempestade, às profundezas do parque. Não tarda que o horizonte escureça ainda mais e seja quase noite, apesar de os dias mais longos do ano terem chegado. Começa a chover. É previsível que os passeantes não tardem a voltar para casa. Mas já são sete horas e meia, são oito horas, são oito horas e meia. Agora chove torrencialmente. E nenhum deles aparece. O doutor Muller inquieta-se. Manda dois polícias fazerem uma batida no parque enquanto ele fica de guarda à frente do castelo. Mas continua a não aparecer ninguém. A partir das nove horas todo o pessoal está alerta, e dá-se início a uma busca mais activa. Embora o parque seja percorrido em todos os sentidos, as patrulhas regressam umas a seguir às outras sem nenhuma notícia sobre os dois passeantes. O nervosismo aumenta. Um pouco antes das
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dez horas é mandada para Munique uma missiva urgente: «O rei e Gudden foram passear e ainda não voltaram; estão em curso buscas no parque.» Às dez horas e meia há finalmente uma grande agitação: um criado acaba de apanhar junto da margem o chapéu de Sua Majestade com o seu enfeite de diamantes. E momentos mais tarde, não longe do mesmo local são encontrados o chapéu do médico, depois a jaqueta do rei, e por fim um guarda-chuva. Todos correm para o lago. Acordam um pescador. Muller, os seus enfermeiros e o intendente do castelo entram num barco e fazem uma exploração dominada por uma perspectiva mais dramática. Mal começam a remar, o intendente grita, dá um salto para a água pouco profunda e traz consigo um corpo que flutuava quase à superfície. É o rei em mangas de camisa. Vários metros mais longe, um segundo corpo: Gudden. Içam um depois do outro para o barco. Os dois estão hirtos, frios, sem pulsações, sem respirar. Muller tenta fazer de imediato tracções da língua e a respiração artificial. Mas é inútil. Estão mortos há várias horas, sem dúvida. O relógio do rei parou às seis horas e cinquenta e quatro minutos. Voltam para terra. Estão lá pessoas vindas de muitos lados. Têm de ir buscar macas. E forma-se, como no terceiro acto de O Crepúsculo dos Deuses, o cortejo fúnebre de Siegfried, mas de um Siegfried sem amante e que apenas deixa atrás de si uma dor inconsolável. Nessa noite do Pentecostes de 1886, à luz de umas quantas lanternas é dali levado em silêncio um pobre grande corpo gelado. O corpo de alguém que se afogou. O corpo, quem sabe, de um assassino. Porque Muller se inclinou sobre o corpo de Gudden e verificou que tinha profundos arranhões na testa e no nariz. E por cima do olho direito uma importante equimose provocada, dir-se-ia, por um soco em pleno rosto. O conde Filipe Eulenburg,
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outra testemunha do ocorrido que apareceu lá na madrugada do dia seguinte, disse que viu «no grosso do pescoço do médico as terríveis marcas do estrangulamento.» É então possível, senão provável, que tenha sido Luís o seu agressor; que tenha procurado espancar o seu guardião, antes de o arrastar até ao lago, e tenha depois conseguido estrangulá-lo. Que o outro se tenha defendido. E assim, estreitamente abraçados, tenham eles próprios feito de si uma dádiva à morte. O rei desejou conquistar a sua liberdade? Mas em direcção a que futuro esperaria ele orientar a sua fuga? Ou estaria simplesmente a vingar a sua grandeza desonrada? Ou — suprema zombaria — este gesto enérgico, o único em todo o seu reinado, não teria sido premeditado mas o acto impulsivo de um demente? Seria perder tempo procurar para estas perguntas uma resposta forçosamente gratuita. Não se explique nada. Estão ali dois cadáveres, nada mais. O do rei no seu quarto, num leito de grande aparato. Mas a porta abre-se e uma mulher entra. O acaso conduziu-a a Possenhofen no preciso momento desta tragédia. Só teve de dar alguns passos para a derradeira visita ao seu companheiro da Ilha das Rosas. No entanto, nada consegue emocionar esta imperatriz já morta e com muitos outros mortos à volta, nenhum deles susceptível de lhe fazer inclinar, um pouco que seja, a altiva cabeça de revoltada. Em menos de três anos Rudolfo, o seu único filho, vai expirar num leito manchado com o sangue de uma rapariga. Um pouco mais tarde a sua irmã Sofia, a que foi noiva deste afogado, será queimada viva no incêndio do Bazar da Caridade. Ela própria, no cais do Monte Branco de Genebra, entrará no seu hotel a pé e muito direta, com a faca de um anarquista espetada no coração.
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Quando trazemos dentro de nós e na nossa família um destino destes, a morte deixa de assustar. É a única visita que podemos tratar em pé de igualdade, uma velha amiga da casa. E além do mais não será verdade que aquele ali deitado, e ela própria, e a maior parte dos artistas, têm a vida entregue à busca de qualquer coisa muito diferente da felicidade, essa coisa vaga e ao mesmo tempo precisa, efémera e apaixonante, tão inapreensível como o vento mas tão persuasiva como a alegria, que se chama ilusão? Isabel inclina-se, curiosa, sobre a grande criança que em poucas horas, e logo no primeiro encontro que teve com a verdade, se transformou num homem morto. Etoy, Abril de 1928
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire
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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès
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REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/15 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Guy de Pourtalés HAMLET-REI (Luís II da Baviera)
Guy de Pourtalés HAMLET-REI (Luís II da Baviera)
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
«Um eterno enigma, é o que eu quero ser para mim e para os outros.»
www.sistemasolar.pt
Guy de Pourtalés HAMLET-REI (Luís II da Baviera)