Ilda David’
acid ente s da sombra e da luz
D O C U M E N TA
Quando a chave de toda a criatura seja mais do que número e figura, e quando esses que beijam com os lábios, e os cantores, sejam mais do que os sábios, e quando o mundo inteiro, intenso, vibre devolvido ao viver da vida livre, e quando luz e sombra, sempre unidas, celebrem núpcias íntimas, luzidas, quando em lendas e líricas canções escreverem a história das nações, então, a palavra misteriosa destruirá toda a essência mentirosa. Fragmentos, Novalis (tradução de Mário Cesariny)
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Águas estreitas 28, 2020 acrílico sobre tela, 150 × 200 cm
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Porque será que tão cedo se enraizou em mim o sentimento de que, se só a viagem — viagem sem ideia de regresso — nos abre as portas e pode alterar realmente a nossa vida, existe um sortilégio mais oculto, semelhante ao manejo de uma varinha mágica, ligado ao nosso passeio preferido, à excursão sem aventura ou imprevisto que em poucas horas nos conduz ao nosso ponto de apoio, à cerca da casa familiar? A segurança inalterada do regresso não está garantida a quem se aventura por entre campos de forças que a Terra mantém, de um modo singular para cada um de nós, sob tensão; mais do que no caso do «beijo dos planetas», tão caro a Goethe, há motivos para acreditar que esses campos de forças iluminam confusamente a linha da nossa vida. As Águas Estreitas, Julien Gracq (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
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Marmoreado 2#13, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#12, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#11, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#15, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#14, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#32, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#33, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#34, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#37, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#38, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#35, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Marmoreado 2#36, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Série Marmoreado 2#39, 2019 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Existimos em relação com todos os pontos do universo, tal como com o futuro e com o passado. É só da direcção e da duração da nossa atenção observadora que depende a questão de sabermos que relação preferimos cultivar, que relação será para nós a mais importante e a mais activa. Fragmentos, Novalis (tradução de Mário Cesariny)
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Toda a descida em nós mesmos é simultaneamente uma ascensão, uma assumpção, uma vista do verdadeiro exterior. Fragmentos, Novalis (tradução de Mário Cesariny)
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Deméter 1, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Deméter 5, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Deméter 3, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Deméter 2, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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A luz é símbolo e agente de pureza. Onde a luz não tem nada a fazer, nada a unir ou nada a separar, passa. Fragmentos, Novalis (tradução de Mário Cesariny)
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Um grande amor por um objecto inanimado é perfeitamente admissível, tal como por uma planta, por um animal, pela natureza, e até por nós mesmos. Quando um homem possui um verdadeiro tu interior, um comércio muito espiritual e muito material e a mais ardente paixão são possíveis. Talvez o génio seja apenas o resultado dum tal plural interior. Fragmentos, Novalis (tradução de Mário Cesariny)
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Dafne 1, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Dafne 7, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Dafne 2, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Dafne 4, 2020 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Acidentes da sombra e da luz 29, 2021 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Acidentes da sombra e da luz 27, 2021 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Acidentes da sombra e da luz 28, 2021 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Acidentes da sombra e da luz 30, 2021 acrílico sobre tela, 40 × 30 cm
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Não há pintura que tenha estado tão obcecada com o tema, embora restrito, do barco solitário subindo um desfiladeiro arborizado, como a pintura chinesa — e em especial a dos paisagistas da época Song. O encanto sempre vivo que se liga a essa imagem provém sem dúvida do contraste entre a ideia de escalada, ou, em todo o caso, de esforço físico rude e de penosa caminhada, que o declive das vertentes evoca, e a chateza, a facilidade irreal do caminho de água que desliza indefinidamente por entre os desfiladeiros: neste caso, o sentimento de júbilo gerado no espírito do sonhador pela solução incrivelmente fácil das contradições próprias do sonho cria raízes concretas na realidade. Os ramos das árvores empoleiradas lá no alto, sob os quais se desliza, os ramos do pinheiro amigo dos rochedos que se curvam angulosos por cima da água nas aguarelas chinesas, acentuam o sentimento de embriaguez calma, e podem, de um momento para o outro, fazer suceder ao capricho de uma tira
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de água rodeada de precipícios a intimidade protegida, a cativante fuga das abóbadas de árvores que cobrem como um caramanchão um canal que corre para o horizonte. Entregamo-nos de olhos fechados à água que, inesgotavelmente, abre os caminhos; não há passeio mais fascinante do que aquele em que o bem-estar inerente a qualquer viagem à tona da água se mistura com a segurança mágica associada ao fio de Ariadne. Assim, durante longos minutos, o barco avança no silêncio glauco; ao mesmo tempo que o Sol, as falésias detêm o mínimo sopro de ar. No meio do passeio no Evre, esses momentos de silêncio vêm pousar-se na minha memória como um sinal musical de longa suspensão; o que impõe esse silêncio, de dedo sobre os lábios, de pé e imóvel, e meio materializado no seio desses estreitos cheios de presenças pagãs, é, de facto, o génio do lugar. As Águas Estreitas, Julien Gracq (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
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Águas estreitas 30, 2020 acrílico sobre tela, 150 × 200 cm
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Águas estreitas 34, 2020 acrílico sobre tela, 150 × 200 cm
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O ouvido, tal como o olhar, capta as mudanças trazidas por cada meandro do rio. Ao encaixar-se nas colinas, os frágeis rumores de água revolvida e de madeira batida que acompanham a passagem do barco despertam ecos, sonoridade de gruta. Os ruídos que viajam à tona da água, e que ela leva para tão longe, depressa passaram a ser familiares; tanto quanto me lembro, a barca de meu pai, a longa e pesada chata verde-água, de quilha truncada, com um básculo à popa que servia de viveiro para o peixe, o banco do meio com um buraco onde se podia erguer um mastro para uma vela quadrada, ocupou na minha vida um lugar quase diário: estava amarrado ao cais do Loire, a trinta metros à frente de nossa casa; saltava lá para dentro com tanta familiaridade, de remos ao ombro, toletes na mão, como, mais tarde, montava na minha bicicleta. No entanto, os ruídos que se entrecruzam no arejado Loire — conversas inesgotáveis e monocórdicas, lentas e preguiçosas como a passagem das horas, entre pescadores postados numa ou noutra margem, e que nos seguem ao longo da corrente, sussurro das folhas de salgueiro
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ao vento, tão parecido com o rangido da espuma no refluxo da vaga, som cavo do croque pousado de novo sobre as tábuas, marulhada áspera das pequenas ondas que se apinham e se esmagam contra a quilha achatada da barca — despertavam-me muito mais para a novidade dos ruídos do Evre, para a sua raridade, a sua retumbante solenidade, a ressonância oca que lhes conferia o vale cativado pela sua tira de água adormecida. Mais tarde, o rio que atravessa a região de Argol deve ter-se lembrado dessa água plúmbea, bruscamente toldada pela sombra projectada das suas margens como pela aparição de uma nuvem de trovoada. Quando atravessava sozinho esses estreitos, erguia os remos e deixava por uns instantes, de ouvido à escuta, o barco continuar à deriva; fazia-se um silêncio opressor, vagamente maléfico, como se, sob a penumbra esverdeada que caía sobre a água amortalhada, eu, no meu barco, tivesse passado de repente das Sombras. As Águas Estreitas, Julien Gracq (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
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Este livro foi publicado por ocasião da exposição Acidentes da sombra e da luz, de Ilda David’ com curadoria de António Gonçalves realizada na Galeria Ala da Frente em Vila Nova de Famalicão 4 de Setembro de 2021 a 8 Janeiro de 2022
© Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão (Ala da Frente) © Sistema Solar Crl (chancela Documenta) textos © os Autores © Ilda David’, 2021 1.ª edição, Setembro de 2021 ISBN 978-989-8833-61-7 Fotografia: António Jorge Silva Design gráfico: Manuel Rosa Depósito legal: 487583/21 Impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686 (Vermoim) 4471-909 Maia Portugal