Joseph Conrad, Histórias aquáticas - excerto

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Joseph Conrad HISTÓRIAS AQUÁTICAS

Joseph Conrad HISTÓRIAS AQUÁTICAS O parceiro secreto – A laguna – Mocidade

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes A água cenário para uma intimidade de homens língua vigiada pela indevassável floresta força para um combate difícil.

www.sistemasolar.pt

Joseph Conrad HISTÓRIAS AQUÁTICAS


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Joseph Conrad

HISTÓRIAS AQUÁTICAS o parceiro sec reto a l ag u n a mocidade

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes


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TÍTULOS DOS ORIGINAIS: THE SECRET SHARER; THE LAGOON; YOUTH

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2016 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO DE 2016 ISBN 978-989-8833-08-2 NA CAPA: WASSILY KANDINSKY, UMA MANCHA NO CASTANHO, 1925 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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Quem viajar pela história da Polónia encontrará razões para o cimentado ódio ancestral do seu povo à pretensão dominadora da Rússia. Nesta colecção de conquistas e ocasionais fracassos, lembremos que foi anexada na sua maior parte territorial pelo czar Nicolau I, e na segunda metade do século XIX o «governo paralelo» de Varsóvia organizou forças que atacavam os soldados russos e deram, com escaramuças nacionalistas, origem a um período de grande repressão e instabilidade. Foi nesta época, já a terminar o ano 1857, que Józef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski nasceu na Ucrânia, filho de um aristocrata polaco falido e poeta revolucionário, tumultuoso na sua revolta contra o dominador, incondicional partidário da insurreição camponesa. Korzeniowski-pai fazia versos incómodos e soltava com facilidade uma voz anti-czar que levou o poder de São Petersburgo a deportá-lo para a Sibéria. «O miúdo», ou seja, o Józef Teodor futuro escritor, «cresceu como se estivesse no coração de um mosteiro. Tremíamos de frio, morríamos de fome», lê-se numa carta do poeta castigado, escrita neste tempo de rigores siberianos. Terminada a pena deste exílio, foi-lhe dado com autoritária determinação o conselho de se afastar do norte e descer até Cracóvia; mas as durezas da Sibéria não tinham afectado o seu fervor militante. Korzeniowski continuava ao lado dos camponeses polacos que escolhiam a insurreição, fidelidade anos mais tarde reconhecida nas


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grandes manifestações populares que acompanharam o seu funeral. Józef, na altura desta morte com doze anos de idade, já podia ler o poema paterno que lhe fora dedicado no dia do seu baptizado e onde lhe era pedido que fosse bom polaco: «Sabe ser um polaco», diziam-lhe estes versos no seu passo mais significativo; «E se um dia o inimigo vier / Prometer-te um mundo feliz, / Recusa-o — deves preferir a pobreza. / Mas agora dorme, meu querido filho, agora dorme.» Józef dormiu; mas anos depois acordado para a vida, a sua intelectualidade tranquila nada de revolucionário augurava. Em A Personal Record, o futuro Joseph Conrad recordou-se da decepção de um tio materno perante a sua inabilidade para vencer no mundo: «És um incorrigível e desesperante Dom Quixote. Só isso tu és.» Fiquei pasmado. Eu tinha quinze anos e não sabia o que isto queria dizer. Mas senti-me vagamente lisonjeado ao ouvir o nome do imortal cavaleiro misturado com a minha própria extravagância, porque isso chamava muito grandes ao meu nariz e à minha barba.» Órfão de pai e mãe aos doze anos, tinha-lhe calhado a casa em Cracóvia da sua avó materna, e uma benevolência que o fazia prolongar-se sem contratempos numa já antiga e bastante evidente vocação de leitor: Desde a idade de cinco anos fui um grande leitor, contará no seu texto autobiográfico, o que não é de espantar numa criança que aprendeu a ler sem dar por isso. Aos dez anos eu já tinha lido muito Victor Hugo e outros românticos. Lia em polaco e francês livros de História, de viagens, romances. Conhecia o Gil Blas e o Dom Quixote em edições abreviadas; li muito jovem poetas polacos e alguns poetas franceses. Mas este Józef mergulhado em livros já vai também dizendo que quer ser marinheiro. Tinha visto uma primeira vez o mar,


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com seis anos de idade e quando um dos seus tios o levou a Odessa (embora preferisse mais tarde escrever que o tinha visto pela primeira vez aos dezasseis e em Veneza), mas sentia-o dentro de si como sedução de grandes horizontes, porta aberta às distâncias exóticas, aos confrontos com a sua força indomável. Diferia também nisto do seu pai, esse apaixonado pelo homem na luta contra os poderosos, que o tinha preferido fora deste romantismo para lhe encontrar evidentes semelhanças com o povo: «Tal como o povo, o mar espuma e avança», ficou num dos seus versos, que acrescenta: «E nunca desarma. / Não é em vão que alguns o contemplam com ar sonhador / e outros aguardam de longe o regresso da maré.» Esta invencível paixão pelo mar põe o jovem Józef, com apenas dezassete anos de idade, fora da Polónia; e fá-lo escolher Marselha como bom início para o seu sonho marítimo. Sonho onde começa por ser não mais do que um criado de bordo e se imagina, não conseguem os da sua família compreender porquê, integrado na marinha mercante inglesa. Há, numa carta de um tio seu, estas perplexidades: «Não sei em que medida o teu desejo de bifurcares para a marinha mercante inglesa é realmente desejável. Para começar, falas inglês? Como nunca consentiste em dizer-me onde aprendeste essa língua, continuo sem o saber…» Liga-se aos desaires desta época a tentativa de suicídio disfarçada com uma causa que pareceu mais nobre: as consequências de um duelo. Diz o mesmo tio noutra carta: «Que este pormenor fique entre nós, porque a toda a gente eu disse que se trata de um ferimento causado por um duelo.» A verdade é que Józef, restabelecido e sem saber inglês, consegue ser aceite como marinheiro na marinha mercante inglesa. Comecei a aprender inglês a bordo do Skimmer, disse-o numa carta de


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1898, com rapazes da costa leste dotados de uma constituição física que lhes dava o aspecto de homens eternos e tão coloridos como postais de Ano Novo. A sua pele era ao mesmo tempo rosada e bronzeada, os cabelos de um louro dourado e os olhos azuis com esse olhar franco e directo da gente do norte. Sabe-se, no entanto, que esta língua onde o futuro Joseph Conrad terá oportunidade para se afirmar como excepcional escritor nunca lhe foi ouvida sem o contágio de pavorosas sonoridades polacas. Há, para isto, uma memória de Paul Valéry: «Conrad falava o francês com um bom sotaque provençal, mas o inglês com um horrível sotaque que muito me divertia. Ser um grande escritor numa língua que se fala tão mal, é coisa rara e de uma eminente originalidade.» Jane Foster Andersen, que com ele conviveu, chega mais longe e propõe que acreditemos na existência de um admirável estilista perturbado na locução por frequentes erros de gramática: «Tem um sotaque que lhe afecta todas as palavras e confere às suas frases um ritmo que é, na verdade, extraordinário. E nunca usa correctamente os verbos. Mesmo quando ocupam o lugar onde é hábito estarem — o que é raro — não estão bem conjugados.» Os seus dezasseis anos de mar, que se estendem desde 1874 até 1890, fazem-no enfrentar águas hostis e terras de todos os continentes, marcam-lhe o físico com sequelas de exotismos esplendorosos mas inóspitos, permitem que ascenda (com desavenças que chegam a demiti-lo, com falhados exames de matemática mas também períodos de recompensadora placidez) ao lugar de capitão. O navio que em 1888 lhe concedeu esta glória chamava-se Otago e fê-lo mostrar-se com grandes elegâncias no trajo: «Ao contrário dos seus homólogos», recordou Paul Langlois, o director da companhia marítima que fretava o Otago, «o capitão Korzeniowski estava sempre


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vestido como um dandy. Parece que ainda o vejo chegar quase todos os dias ao meu barco envergando um sobretudo preto ou de qualquer outra cor escura.» Józef Konrad, desde 1885 o cidadão britânico Joseph Conrad, pela primeira vez capitão de um navio em 1888, veste-se como um inglês, um inglês da City. Começa a duvidar, porém, da longevidade da sua carreira marítima. Sofre com reumatismos agudos que o ar do mar hostiliza insuportavelmente, tem ataques de uma malária transportada desde aquelas regiões que vão estar presentes em quase toda a sua literatura, vê-se obrigado a internamentos em hospitais. O homem do mar condenado à terra sente o impulso de o prolongar nas suas palavras de escritor. Tinha em 1886 passado ao papel a sua primeira ficção, o conto «The Black Mate» (durante a sua vida nunca recolhido em livro), mas só em 1889 começou a escrever Almayer’s Folly, o seu primeiro romance. Conrad está com trinta e dois anos de idade e terá, de muitas horas de escrita, mais trinta e cinco até à crise cardíaca fatal. Estas distâncias de tempo apagam ao leitor de hoje a sensação de singularidade que nessa altura os seus livros suscitaram. O seu mundo literário quase sempre reflector de uma realidade vivida e não imaginada, trazia à poltrona confortável do leitor inglês uma pressentida visão autêntica nunca antes sentida por palavras, lugares de geografia então desconhecida, homens a correrem por uma vida toda feita de durezas alheias ao quotidiano europeu, a sedução que um espectáculo de veleiros sacudidos pelo mais irado dos mares exercia sobre as multidões que iam aos portos urbanos contemplá-los, imponentes e elegantes, nas suas estruturas gigantescas. É certo que as subtis belezas da sua prosa escapavam a um grande número daqueles que o escolhiam como contador de histórias


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para os seus tempos de lazer; e os conflitos que caracterizam o universo dos seus livros passaram a ser melhor compreendidos pelos leitores actuais. O globo terrestre «encolheu» perante a facilidade da viagem, os problemas de quem nele vive percorreram um caminho uniformizador que tornou psicologicamente acessíveis à sensibilidade actual o que então parecia muitas vezes inacreditável ou incompreensível. Mas ele teve desde logo o emocionado reconhecimento de especiais leitores. Podem ler-se cartas de Henry James onde existem admirações como esta: «Ninguém conheceu — destinando-as a um uso intelectual — as coisas que tu conheceste; e possuis, como artista de qualquer assunto, uma autoridade de que nenhum outro se aproxima.» E noutro momento: «Leio-te como se ouvisse a mais rara das músicas, num íntimo e profundo abandono de onde só lentamente regresso à vida. […] Sabes vaguear pelas águas vastas da expressão como o mais rápido e mais audacioso dos corsários, de tudo isto fizeste teu domínio. […] Emocionas-me, enfim, até à estupefacção, atinges-me até às lágrimas, e agradeço os poderes que tão misteriosamente te lançaram, a ti dotado de uma tal sensibilidade, num domínio que a sensibilidade tão pouco conhecia.» Consentidas por esta dádiva, Conrad publicou obras que somos levados a destacar, como Heart of Darkness (1899), Lord Jim (1900), Typhoon (1901), Nostromo (1904), ou Victory (1915). Tinha-se transformado num homem solitário, a maior parte do tempo expulso do presente para um passado que alimentava o seu mundo interior, esse que o «desligava» durante a convivência com os mais próximos e foi bem recordado em 1947 pelo seu amigo e tradutor Jean-Aubry na Vie de Conrad: «Dobrado sobre si próprio, dando ao observador a impressão de estar esmagado com o peso das suas memórias, acontecia-lhe ficar longos momentos silen-


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cioso. Durante a conversa, por ter sido pronunciado um nome, por ter sido evocada uma paisagem, víamo-lo mergulhar numa meditação profunda, opaca, impenetrável, como um navio que se afunda com um rombo no mais baixo ponto do seu casco, e nesses instantes não havia quem conseguisse quebrar um tal silêncio, não só para respeitarmos o devaneio de um grande espírito, mas ainda mais por uma espécie de impossibilidade física que nos mantinha literalmente acorrentados até ele regressar à superfície como um rochedo que a maré põe a descoberto. E acontecia estes silêncios terem para nós qualquer coisa de muito profundo, serem tão angustiantes, que nada conseguiria fazer-nos interrompê-los.» Conrad teve aos setenta anos de idade o ataque cardíaco a que não sobreviveu. Vivemos como sonhamos… — tinha ele escrito muito tempo antes em Heart of Darkness — sós… * Seleccionados pelos impulsos de um gosto pessoal, juntam-se neste livro três textos dominados pelo elemento aquático, correspondendo cada um deles a uma forma específica, reconhecível como característica no relacionamento literário de Joseph Conrad com água: — a água não mais do que cenário a rodear o navio, e a fazer dele uma ilha onde prevalece uma intimidade de homens com leis próprias, distante do mundo dirigido pelas leis da terra («O Parceiro Secreto»); o mar força hostil, que pede ao marinheiro a sua luta e tudo faz para não ser vencido num combate fácil («Mocidade»); entre estes dois a estreita língua de água de um rio, de um lago ou de uma laguna onde o homem sente próxima de si uma presença de terra, sem conseguir mais do que imaginá-la atrás


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de um mistério de espessas cortinas, as do seu indomável esplendor vegetal («A Laguna»). «O Parceiro Secreto» foi escrito em 1909 e publicado pela primeira vez no ano seguinte, pelo Harper’s Magazine. É a história do relacionamento de um homem com outro sentido como seu duplo; o da salvação de si próprio num corpo que lhe é simultaneamente alheio e pessoal. Sabe-se que o caso de morte inspirador desta história teve como personagens um marinheiro negro, morto pelo imediato do clipper Cutty Sark, que transportava chá, e que um outro oficial, chamado John Andersen, ajudou a fugir do navio. Conrad desdobra esta acção por dois navios e imagina um capitão, do qual nunca conhecemos o nome, bastante menos na sua dimensão de homem e bastante mais como instrumento de uma invencível consciência: a de se reconhecer reflectido no homem salvo através de uma complexa e arriscada evasão. Mas há, sobre a génese deste conto, elementos concedidos pelo seu autor: Eu estava desde há muitos anos na posse do facto que é a sua base. Para dizer a verdade, posse comum a toda a frota de navios comerciais que navegavam nas Índias, na China e na Austrália, uma grande companhia de derradeiros dias que coincidiram com os meus primeiros anos em longos cursos. O facto deu-se a bordo do Cutty Sark, um muito distinto membro dessa companhia, pertencente a Mr Willis, um muito conhecido armador no seu tempo, um daqueles (todos têm agora a terra em cima de si) que insistiam em assistir pessoalmente à partida dos seus navios para as longínquas paragens aonde iam mostrar a dignidade da muito estimada bandeira do seu armador. Sinto-me feliz por não ter chegado tarde de mais e ainda encontrar Mr Willis numa manhã


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muito húmida e sombria, a assistir do alto do molhe da Nova Doca Sul à partida de um dos seus grandes veleiros para uma viagem à China — vulto imponente de um homem sempre de chapéu branco, bem conhecido em todo o porto de Londres, e a aguardar que a proa do seu navio baloiçasse rio abaixo, com a grande mão enluvada a fazer-lhe um digno adeus. É possível, atendendo ao que sei, que esse navio fosse o Cutty Sark, embora noutra viagem diferente daquela, malfadada. Não sei a data do acontecimento em que as linhas gerais de «O Parceiro Secreto» se baseiam; foi um caso que veio à luz do dia, e até relatado nos jornais por volta de 1885; embora eu já tivesse ouvido, numa altura em que ainda não era do domínio público, falar dele entre os oficiais da grande frota dos navios que transportavam lã e onde trabalhei nos meus primeiros anos de longos cursos. Veio à luz do dia em circunstâncias bastante dramáticas, penso eu, mas sem nada terem a ver com a minha história. Este pequeno conto, na parte essencialmente marítima dos meus escritos, pode ser classificado como um dos «textos calmos». Porque se uma qualquer classificação de temas for legítima, tenho dois «textos tempestuosos», The Nigger of the «Narcissus» e Typhoon, e dois «textos calmos», um deles este e o outro The Shadow Line, livro que pertence a uma época posterior. Apesar da forma autobiográfica […] não se trata de uma experiência pessoal. D’«A Laguna» diz o seu autor o seguinte: foi o primeiro conto que escrevi e marca, por assim dizer, o fim da minha primeira fase, a fase malaia com o seu tema particular e as suas sugestões verbais. Concebido na mesma disposição de espírito que tinha feito nascer Almayer’s Folly e An outcast of the islands, e narrado com o mesmo sopro (ou seja, com o que restava dele depois de acabar An outcast),


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olhado com a mesma visão, transmitido pelo mesmo método — se uma tal coisa existia na minha relação consciente com a nova aventura de escrever para ser impresso. Do que eu duvido muito. Começamos por fazer uma obra e só depois teorias acerca dela. É uma ocupação muito divertida e egoísta, em quase todos os casos inútil e muito capaz de levar a conclusões erradas. Toda a gente pode ver que não houve, entre o último parágrafo de An outcast e o primeiro de «A Laguna», uma mudança de aparo, para empregar uma expressão figurada. Mas também uma verdade literal. Saíram ambos do mesmo aparo: um vulgar aparo de aço. Como sou acusado, numa certa medida, de ser destituído de faculdades emocionais, fico satisfeito por poder dizer que cedi, pelo menos numa ocasião, a um impulso sentimental. Achei que este aparo era um bom aparo e bastante bem mo tinha mostrado; e tive por isso a ideia de o conservar como uma espécie de relíquia que eu pudesse mais tarde olhar com ternura, guardado no bolso do colete. […] Mas o conto subsiste. Foi posto pela primeira vez em letra impressa no Cornhill Magazine, com ele apareci pela primeira vez numa publicação periódica de qualquer espécie, e vivi o suficiente para vê-lo muito agradavelmente incluído por Max Beerbohm num volume de paródias intitulado A Christmas Garland, onde me encontrei em excelente companhia. Fiquei com isto imensamente lisonjeado. Comecei a acreditar na minha existência pública. Estou muito agradecido à «Laguna». Conrad escreveu uma segunda versão deste texto (aqui apresentada) que o altera em muitos pormenores formais. A sua estrutura é no entanto a mesma, a de uma história dentro da história e concebida como um dos seus mais desesperados casos de amor. Conrad,


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autor de enredos essencialmente masculinos, põe desta vez ao centro uma mulher, uma mulher vencida pela força maligna da laguna. E tudo isto nos conta entre a chegada e a partida de um homem branco que pernoita nessa laguna, saído aos poucos da sua «civilizada» distância para ficar cúmplice, no mundo de ilusões de um malaio perdido para o mundo e o seu amor, vencido enfim por um cenário tropical de sons e sombras, e uma trágica experiência do mundo. Quanto a «Mocidade», também ele segue a fórmula da história dentro da história e assinala, segundo o autor, a primeira aparição no mundo desse homem chamado Charles Marlow. E explica: Estas relações foram crescendo com o correr dos anos numa grande intimidade. As origens deste gentleman (tanto quanto sei, ninguém conseguiu insinuar que ele fosse outra coisa que não isto) — estas origens, sinto-me satisfeito por dizê-lo, foram objecto de algumas especulações literárias e de amigável natureza. Poder-se-á pensar que sou a pessoa mais indicada para lançar uma luz sobre a matéria; mas não é, de facto, assim tão fácil. Sinto satisfação em lembrar-me de que ninguém o acusou de fraudulentas intenções ou o viu como charlatão; mas foi, pondo isto de lado, objecto de toda a espécie de suposições: um hábil ecrã, um mero expediente, «um testa de ferro», um espírito familiar, um daemon murmurador. Eu próprio fui suspeito de congeminar um plano para o ter na minha posse. Nada disto aconteceu. Não fiz nenhum plano. Eu e o homem Marlow encontrámo-nos por acaso, como sucede nessas relações de termas que por vezes se estendem até à amizade. Esta amadureceu. E apesar do tom seguro das suas opiniões, não é importuno. Assombra as minhas horas de solidão, quando aproximamos em silêncio as nossas cabeças com uma forte sen-


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sação de conforto e harmonia; mas nunca tenho a certeza, ao separar-nos no fim de uma história, de que seja essa a última vez. Não creio, porém, que qualquer um de nós faça muita questão de sobreviver ao outro. Com essa extinção perder-se-ia, porém, aquilo em que ele se ocupa, e isso fá-lo-ia sofrer; porque suspeito que exista nele alguma vaidade. Não me refiro a vaidade no sentido salomónico. De todas as minhas criaturas é a única, por certo, que nunca foi motivo de enfado para o meu espírito. É o mais discreto e compreensivo dos homens. Z. Nadjer afirmou que Marlow era o tipo de inglês «que Conrad teria gostado de ser.» E que isto conduziu literariamente a uma persistência. De facto, Conrad serviu-se dele uma primeira vez em 1898, quando escreveu «Mocidade», mas veio a utilizá-lo mais três vezes: no ano seguinte em Heart of Darkness, em 1900 quando publicou Lord Jim, e pela última vez em 1913, o ano de Chance. O jovem Marlow de «Mocidade» é mostrado na sua aprendizagem da vida, de onde sai mais seguro de si e com a consciência de ter perdido o que eram nele as ilusões da juventude; em Heart of Darkness, este jovem amadurecido é confrontado com uma dura experiência que tem como limite a descoberta de um insuspeitado e brutal rosto da humanidade; no ano seguinte, Marlow é o narrador fascinado por Lord Jim, reconhecendo-o sobretudo como homem que pode ter sido cobarde mas nunca um envergonhado de si próprio; e ainda existe o Marlow de treze anos mais tarde, o de Chance, severo e misógino, amargo retrato do jovem que conhecemos muitos anos antes com a inocência de um olhar fascinado, a olhar para «qualquer coisa exterior à vida e que desaparece… enquanto esperamos…» A.F.


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À minha direita havia filas de estacas de pesca que pareciam um misterioso conjunto de sebes de bambu meio submersas, incompreensíveis por dividirem aquele reino de peixes tropicais; e com um ar insano, como se abandonadas de vez por uma qualquer tribo nómada de pescadores que tivesse partido para o outro fim do oceano; porque não havia, até onde os olhos conseguiam alcançar, sinal de habitação humana. À esquerda um grupo de ilhotas áridas que pareciam paredes de pedra em ruínas, torres e fortins, mergulhavam os seus alicerces num mar azul, ele próprio com ar sólido, de tal forma imóvel e estável aos meus pés; até o rasto de luz saído do sol que se voltava para oeste tinha um brilho suave, sem a viva cintilação que denuncia imperceptíveis e superficiais ondulações. E quando voltei a cabeça para um derradeiro olhar ao rebocador que acabava de deixar-nos ancorados fora da barra, vi a linha recta da costa uniforme ajustar-se borda a borda ao mar imóvel e com uma perfeita e indestrinçável exactidão, formando um bem nivelado solo meio castanho, meio azul sob a enorme cúpula do céu. Com insignificância idêntica à das ilhotas do mar, dois pequenos maciços de árvores de um lado e do outro do único defeito desta impecável união marcavam a foz do rio


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Meinam, que acabávamos de deixar na primeira e preparatória paragem da viagem de regresso; e muito para trás, ao nível da ilha, uma maior e mais elevada massa era o bosque que rodeia o grande pagode Paknam, a única coisa onde os nossos olhos podiam demorar-se para interromper a tarefa inútil de explorar o monótono panorama do horizonte. Aqui e além, como se fossem umas quantas moedas de prata disseminadas, alguns clarões marcavam as sinuosidades do grande rio; e na mais próxima, já dentro da barra, o rebocador navegava em direcção à terra firme. À minha vista deixavam de estar o casco, a chaminé e os mastros, como se a terra impassível o engolisse sem esforço, sem um sobressalto. Os meus olhos seguiram a leve nuvem do seu fumo ora acima, ora abaixo da terra plana, de acordo com as tortuosas curvas do rio, mas sempre mais fraca e longínqua até acabar por se perder atrás da elevação em forma de mitra do grande pagode. E depois fiquei só com o meu navio ancorado à entrada do golfo do Sião. No ponto de partida de uma longa viagem ele flutuava muito tranquilo, numa tranquilidade imensa, e ao sol poente as sombras das vergas alongavam-se muito para leste. Nesse momento eu estava sozinho no convés. Nenhum ruído ele fazia — e nada se mexia, nada vivia à volta, nem mesmo uma canoa na água, nem mesmo um pássaro no ar, nem mesmo uma nuvem no céu. E neste intervalo de tempo sem respiração, no limiar de uma longa travessia, ficávamos com a ideia de que medíamos a nossa capacidade física perante um demorado e árduo cometimento, a designada tarefa que as duas nossas existências teriam de levar a cabo longe de todos os olhares humanos, só com céu e mar como espectadores e juízes.


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Devia haver no ar um brilho que nos dificultava a visão, porque o meu olhar errante só no momento em que o sol nos deixou descobriu qualquer coisa para lá da mais alta crista da ilhota principal do grupo, que pôs longe a solenidade de uma perfeita solidão. A maré de trevas rebentava com destreza; e um enxame de estrelas surgiu com rapidez tropical acima da terra escurecida, o que me fez retardar ali um pouco com a mão pousada ao de leve na balaustrada do meu navio, como no ombro de um amigo de confiança. Mas ao sentirmos toda a multidão de corpos celestes a olhar lá de cima para nós, ficava afastada de vez a sensação de conforto dessa apaziguadora comunhão. E também houve ao mesmo tempo sons perturbadores — vozes, passos apressados. Com um ar de quem tinha tarefas urgentes a cumprir, o criado de bordo corria velozmente pelo convés principal, e por baixo do tombadilho uma sineta impaciente tilintou… Encontrei na sala iluminada os meus dois oficiais a esperarem-me perto da mesa da ceia. Logo nos sentámos, e dirigi-me ao primeiro imediato: — Já reparou que há entre as ilhas um navio ancorado? Ao pôr do sol vi-lhe a ponta dos mastros por cima da cumeada. Com um movimento rápido ergueu o rosto ingénuo, sobrecarregado por terríveis e avantajadas suíças, e emitiu as suas habituais exclamações: «Pela minha alma, meu capitão! Não me diga!» O meu segundo imediato era um silencioso jovem de faces redondas, mais grave do que a sua idade faria prever, pensava eu; mas quando os nossos olhares se encontraram notei-lhe um leve tremor nos lábios. Baixei então os olhos. Não me competia


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encorajar tons irónicos a bordo do meu navio. Terei também de dizer que conhecia muito pouco os meus oficiais. Devido a certos factos só com especial significado para mim, quinze dias antes tinham-me destacado para aquele comando. E muito pouco eu também sabia sobre o resto da tripulação. Toda aquela gente trabalhara em conjunto durante dezoito meses, ou perto disso, e a minha situação a bordo só era a de um estranho. Menciono isto porque tem alguma importância no que vai seguir-se. De facto, a minha mais forte sensação era a de ser alguém estranho ao navio; e, a ter de dizer-se toda a verdade, de certo modo estranho a mim próprio. Sendo o mais novo dos homens a bordo (excepção feita ao segundo imediato), e sem ter até àquele momento desempenhado um cargo de tão elevada responsabilidade, decidira dar a competência dos outros por adquirida; só teriam de estar à altura das suas tarefas. Perguntava no entanto a mim mesmo até que ponto eu iria manter-me fiel a esta concepção ideal que todos os homens constroem em segredo sobre a sua própria personalidade.

Entretanto, com inefável ajuda dos olhos redondos e das medonhas suíças, o primeiro imediato ia tentando construir uma teoria sobre o navio ancorado. A característica dominante do seu carácter era enfrentar tudo com um tom sério. Quando pensava tinha tendência para ser meticuloso. Gostava, como era seu costume dizer, «de explicar a si próprio» praticamente tudo o que se atravessasse no seu caminho, inclusive o pobre escorpião que encontrara uma semana antes no seu camarote. O porquê e o como desse escorpião — como tinha aparecido a


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bordo e escolhera o seu camarote, em vez da despensa (que era um lugar escuro e mais adaptado às suas exigências), e como diabo conseguira cair dentro do tinteiro da escrivaninha — não tinham deixado de preocupá-lo imenso. O navio no meio das ilhas era muito mais fácil de explicar; e a tal respeito se pronunciou quando nos levantámos da mesa. Tratava-se, não tinha sobre isso nenhuma dúvida, de um navio acabado de regressar. Era provável que tivesse a linha de água demasiado elevada para atravessar a barra, a não ser com marés mais altas, e esperava por isso alguns dias naquele porto natural, em vez de permanecer num ancoradouro aberto. — É isso mesmo — confirmou de repente o segundo imediato com a sua voz um tanto rouca. — Está mergulhado mais de vinte pés. É o Sephora, um navio de Liverpool com um carregamento de carvão, saído há cento e vinte e três dias de Cardiff. Olhámo-lo com espanto. — Foi o que me disse o capitão do rebocador quando veio a bordo buscar as cartas — explicou o jovem. — Conta rebocá-lo rio acima depois de amanhã. Deixou-nos confundidos com a extensão das suas informações, e desapareceu da sala. O imediato fez pesarosamente notar que «não conseguia perceber as extravagantes saídas daquele rapaz». Gostava de perceber por que não tinha ele contado desde logo o que sabia. Detive-o quando ele fez, por sua vez, menção de abandonar a sala. Nos últimos dois dias a tripulação tinha executado trabalhos muito pesados, e na noite anterior dormido muito pouco. Mas quando lhe dei ordem para todos os homens se recolherem, sem ninguém fazer o quarto de vigia, senti-me preo-


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cupado por ordenar — eu, um estranho — qualquer coisa tão pouco habitual. Decidi que permaneceria eu próprio no convés até cerca da uma hora da manhã. Seria substituído a essa hora pelo segundo imediato. — Ele despertará às quatro o cozinheiro e o criado de bordo — acrescentei — e chamá-lo-á depois a si. Ao primeiro sinal de uma qualquer espécie de vento terá a equipagem pronta, claro está, e desde logo mandará aparelhar. Dissimulou o seu espanto. — Muito bem, meu capitão. Já fora da tilha meteu a cabeça através da porta do camarote do segundo imediato para o informar sobre o inaudito capricho de eu próprio me dispor a fazer cinco horas de vigília. Ouvi o outro elevar com incredulidade a sua voz: «O quê? O próprio capitão?» Houve mais alguns murmúrios, uma porta e a seguir outra fecharam-se. Momentos depois subi até ao convés. A sensação de ser um estranho, que já me tinha tirado o sono, incitara-me àquela solução não convencional como se eu esperasse que essas horas solitárias da noite me conciliassem com um navio do qual nada sabia, me pusessem ao corrente de uma equipagem da qual eu pouco mais sabia. Ancorado ao longo do cais e atravancado, como qualquer navio que estaciona num porto, com uma porção de coisas estranhas entre si, invadido por gente de terra firme que lhe não pertencia, era difícil eu achar que o tinha realmente visto. Agora, que ele estava prestes a fazer-se ao mar, muito bela me parecia a extensão do convés à luz das estrelas. Muito bela, muito espaçosa para a sua dimensão, e muito acolhedora. Desci até ao tombadilho e comecei a percorrer a coberta, a conjecturar como seria a pró-


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xima travessia do arquipélago malaio, a descida do Oceano Índico e a subida do Atlântico. Todas estas fases me eram bastante familiares, todas as suas características, todas as alternativas que era bem possível eu ter de enfrentar no mar alto — tudo!… — excepto a nova responsabilidade do comando. Confortei-me, porém, com o sensato pensamento de que era um navio como os outros, eram homens como os outros, e o mar não viria provavelmente a reservar-me especiais surpresas, criadas de propósito para me embaraçar. Chegado a esta confortável conclusão, lembrei-me de acender um charuto e desci para ir buscá-lo ao meu camarote. Lá em baixo tudo estava calmo. Todos estavam na popa do navio, bem mergulhados no sono. Voltei para o tombadilho da popa, muito à vontade no meu pijama, descalço naquela noite quente e sem uma aragem, com um charuto aceso nos lábios, e enquanto ia andando conciliei-me com o profundo silêncio da proa do navio. Ao passar pela porta do castelo da proa só ouvi um profundo, descansado e confiante suspiro de alguém que lá dentro dormia. E senti um repentino regozijo pela grande segurança do mar se a comparássemos com as inquietações da terra firme, por ter escolhido aquela vida sem tentações, sem perturbadores problemas, com uma total honestidade e uma total franqueza de exigências que a dotavam de uma muito singela beleza moral. As luzes do porto e do cordame da proa ardiam com uma chama clara, uma imperturbável e como que simbólica chama cheia de segurança e brilho nas misteriosas sombras da noite. Ao fazer o meu caminho até à outra borda do navio reparei que a escada de corda, deixada ali pelo patrão do rebocador,


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sem dúvida, quando tinha vindo buscar as nossas cartas, não fora recolhida como era de boa norma acontecer. Isto perturbou-me porque a precisão das mais insignificantes tarefas é a verdadeira alma da disciplina. Depois de reflectir concluí que eu próprio tinha peremptoriamente isentado os meus oficiais das suas obrigações, que a minha decisão impedia o quarto de vigia de ser cumprido segundo as regras, e a impecabilidade das coisas sofria com isso. De mim para mim perguntei se era sensato eu interferir, uma vez que fosse, na rotina estabelecida para as tarefas obrigatórias, mesmo que o fizesse com a mais amável das intenções. Essa decisão tinha-me feito parecer excêntrico. E só Deus sabe de que forma aquele imediato de suíças absurdas «explicaria» a minha conduta, e o que pensaria todo aquele navio sobre esta informalidade do novo capitão. Senti-me aborrecido comigo próprio. Não o fiz por arrependimento, é bem certo, mas fui de uma forma instintiva recolher a escada. Uma escada de corda como aquela era fácil de manobrar; e o vigoroso puxão, que deveria ter começado por fazê-la voar para dentro do navio, não logrou mais do que reflectir-se com um choque totalmente inesperado no meu corpo. Que diabo!… Fiquei de tal modo espantado com aquela escada inamovível, que permaneci petrificado e a tentar explicar a mim próprio o facto, como teria feito o imbecil do meu imediato. Acabei, naturalmente, por baixar a cabeça sobre a amurada. O flanco do navio opunha à luz escura e vítrea do mar uma faixa de sombra opaca. Mas comecei desde logo a ver qualquer coisa comprida e clara a flutuar muito perto da escada. Mesmo antes de dar forma a qualquer conjectura, um débil e súbito clarão de luz fosforescente que


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parecia emanada do corpo nu de um homem, vacilou na água adormecida com esse jogo fugidio e silencioso que conhecemos dos relâmpagos de Verão no céu nocturno. Vi sobressaltado que se revelavam ao meu olhar de espanto dois pés, pernas compridas, as costas largas e claras de um homem imerso até ao pescoço numa esverdeada luminosidade de cadáver. Uma mão à flor da água agarrava-se à trave mais baixa da escada. Tinha tudo à vista, menos a cabeça. Um cadáver decapitado! Com um leve «plop» e um sibilante som de lábios bem audível no silêncio absoluto de tudo quanto havia sob o céu, caiu-me da boca aberta o charuto. Foi o que lhe fez levantar o rosto, suponho eu, um oval claro e difuso na sombra do flanco do navio, a única coisa que pude assim mesmo destrinçar com clareza na forma de uma cabeça de cabelo preto, embora tenha sido o bastante para dissipar a horrível e gelada sensação que se tinha apoderado de mim e me trespassava o peito. O momento das inúteis exclamações também tinha passado. Limitei-me a subir pela verga de reserva e inclinar-me o mais possível por cima da amurada, para aproximar os olhos daquele mistério que flutuava encostado ao casco. Tinha-se agarrado à escada como o nadador num momento de pausa; e a cintilação do mar, sempre que ele se mexia, brincava nas suas pernas; surgia com uma palidez mortal, tão prateado como um peixe. E também permanecia emudecido como um peixe. Não mostrava intenções de sair da água. Era inconcebível que não tentasse subir para bordo, e estranhamente perturbador eu suspeitar que talvez não quisesse fazê-lo. De facto, as minhas primeiras palavras foram ditadas por esta incómoda incerteza.


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Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O parceiro secreto – um episódio da costa . . . . . . . . . . 19 A laguna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Mocidade – uma narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107


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Joseph Conrad HISTÓRIAS AQUÁTICAS

Joseph Conrad HISTÓRIAS AQUÁTICAS O parceiro secreto – A laguna – Mocidade

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes A água cenário para uma intimidade de homens língua vigiada pela indevassável floresta força para um combate difícil.

www.sistemasolar.pt

Joseph Conrad HISTÓRIAS AQUÁTICAS


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