Jacques Lanzmann, O Rato da América

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Jacques Lanzmann

O RATO DA AMÉRICA tradução e apresentação

Aníbal Fernandes


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TÍTULO DO ORIGINAL: LE RAT D’AMÉRIQUE ©ÉDITIONS ROBERT LAFFONT S.A., PARIS, 1950 © SISTEMA SOLAR, CRL (2016) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: GUILHERME GERALDES, DESENHO SOBRE UM CÉU DE EL GRECO (2017) REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, JULHO DE 2017 ISBN 978-989-8833-21-1


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Se quiseres encontrar-te, começa por te perder, escreveu um dia Jacques Lanzmann. O Rato da América, relato autobiográfico retocado pelas exigências formais e literárias da ficção, é desta fatalidade maior exemplo. Lanzmann percorre-se numa memória de perdas acalmada por quatro anos de distância, e transmite-a com humor cruel mas não isento de afecto; fala-nos dos dias em que se perdeu noutro continente, desiludido numa esperança, vergado pelo destino do rato da América — entenda-se a expressão como ajustada ao emigrante ou ao autóctone sul-americano com dias rastejados por baixos expedientes e duras tarefas impostas à sua condição humana. Era judeu, filho num casamento pouco estável entre um decorador e uma antiquária; e por descuido ou pouca fé paterna não circuncidado, o que lhe serviu de muito nos dias negros em que os nazis também decidiam piores e melhores destinos por observação física. Em 1934, andava ele pelos sete anos de idade, o divórcio dos seus pais separá-lo-ia durante muitos anos do convívio materno; e nos tempos da ocupação da França pelos Alemães, a depender com um irmão e uma irmã do frio arbítrio do pai, o decorador Itzhak Lanzmann — que embora cultivasse as sensibilidades exigidas pela profissão acrescentava-lhes uma inesperada vocação revolucionária — foi entregue a uma herdade de Auvergne para exercer funções de servente enquanto o seu pai dirigia uma organização


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civil de resistência. A sua irmã seguiu outro destino, recolhida em casa de parentes, e o seu irmão mais velho Claude Lanzmann (futuro escritor, jornalista, realizador do filme Shoa) acompanhou desde logo o fervor paterno colaborando e vivendo apaixonadamente as emoções do maquis. Farto aos dezasseis anos de agriculturas, e a sentir no corpo a urgência de uma pátria que precisava de ser salva, o jovem Jacques saiu de Auvergne e foi entregar-se como voluntário ao grupo dirigido pelo seu pai. Não quero morrer sem fazer amor e a Resistência, afirmavam as suas energias de adolescente. Fez ambas as coisas, a primeira em bastante maior quantidade do que a segunda porque não tardou a ser preso em Aix-en-Provence pelas tropas nazis. Chegou mesmo a saber-se entre os escolhidos para fuzilamento, destino a que soube furtar-se com uma fuga que iludiu a vigilância especializada do invasor. Foi este o primeiro e significativo êxito em aventura de uma vida onde haveria muitos cometimentos de risco soprados por audácias, trabalhos rudes determinados por escassez de escolha. Quando Paris viveu os dias felizes da sua libertação, Jacques tinha dezoito anos de idade. Julgavam-me deportado e morto, dirá num livro autobiográfico1. Fui acolhido como herói. Começou para mim outra guerra feita de batalhas contra o tempo que teria de recuperar. Eu tinha dezoito anos, um aspecto de homem pequenote, um pouco sarapintado e com uma incrível força física. Intelectualmente andava pelos doze anos, a idade que eu tinha quando o meu pai me atirou para o seio dos cam1 Todas as citações do autor são extraídas de Le Voleur de hasards, Éditions Jean-Claude Latès, Paris, 1992.


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poneses. […] Com dezoito anos ainda era virgem. Que coisa insuportável! […] Os ensaios foram infrutíferos. Era inevitável que o meu aspecto ruço viesse ao de cima. E mais valeria assumi-lo do que combatê-lo. Ao fim e ao cabo, ser ruço era a minha identidade, a minha cultura. E comecei a reivindicar o meu lado «pele de cenoura». Reivindicava-o associando-lhe Van Gogh e Fra Angelico, Vivaldi e Moisés. Ao longo da vida que antecede a sua aparição como escritor e letrista de canções, Jacques Lanzmann é apanhado por uma boa porção de tarefas de acaso (sou um ladrão de acasos, dirá no livro que teve este título) — pintor de paredes, jogador profissional, camionista, criado para todo o serviço (de uma criminóloga), contrabandista, escolhas arbitrárias numa lista longa e variada. Mas como primeiro painel ligado de perto à cultura decide (incitado depois de ver e sentir a pancada forte das obras de Picasso) tornar-se pintor. Eu ainda era demasiado camponês para compreender a sua pintura. Apreciava apenas a época azul. A cor-de-rosa, com banhistas disformes, parecia-me tão monstruosa como as próprias Demoiselles d’Avignon. A minha «madrinha» [uma mulher a quem ele chama Solange] não queria acreditar que tinha engendrado um tal cretino. Ela ficava em admiração perante a Femme qui pleure, e eu não conseguia impedir-me de dizer: — Não passa de uma coisa qualquer; posso fazer o mesmo. Fui alvo de um olhar negro e apanhei com isto: — Ah! Podes fazer o mesmo? Vamos então ver, meu Jacquot! Vou amanhã comprar-te o que é preciso para pintares, e mãos à obra. Eu não fazia a mais pequena ideia do sofrimento que me esperava, nem do meio onde iria evoluir. Era a minha vez de


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ter épocas azuis, épocas cor-de-rosa, épocas em que isso me faria viver e faria morrer; momentos em que tudo parecia fácil, outros em que tudo era impossível. Nunca sofri tanto como a pintar. Percebi que não vale de nada harmonizarmos as cores se não soubermos construir o quadro e dar-lhe um determinado equilíbrio, mesmo que o façamos abstracto ou cubista. Não há maiores desenhistas do que Picasso ou Klee; melhores mestres na composição do que Braque ou Juan Gris; um mais famoso captador da expressão do que Van Gogh. Mesmo quando o seu traço é sereno, a cor dá um grito e tudo se transforma num tormento da alma. Jacques Lanzmann pintou com algum êxito e até fez exposições de tranquila aceitação no seu grupo; também veremos — em O Rato da América — que surpreendeu o conservadorismo de Santiago do Chile com uma arte ali desconhecida, aquela que a Europa já designava por «abstracta». Na sua primeira viagem (à Tunísia e à Argélia) tinha pago despesas com a venda dos seus quadros: Uma viagem que me deu em cheio nos olhos e no estômago, em que vivi o dia a dia com a caridade de uns e outros. Pagava com telas; figurativas para os franceses e abstractas para os árabes. Ganhava a vida chegando ao suficiente para não a perder. Mas a Europa não tinha diferenças capazes de fazê-lo mergulhar numa aventura de seduções e riscos enfeitados por exotismos duros, a seu tempo recompensada pela folgança material que o restituiria a outro Paris com a vida larga que ele desejaria um dia viver. Tudo isto, sentiu ele, era a América do Sul. E o dinheiro necessário para uma passagem de barco até ao Paraguai foi conseguido com «trabalhos» que um gajo duro, chamado Kas, lhe proporcionou. Consistiam em ficar de atalaia enquanto ele se


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atirava à encarregada da caixa de um cinema, de um quiosque de jornais ou de uma venda de tabaco. Com rostos pouco explícitos atrás de um passa-montanhas, mergulhávamos com uma bicicleta de dois selins por sentidos proibidos. Andávamos nessa bicicleta mais depressa do que as andorinhas que patrulhavam de moto. Kas doava-me dez por cento da receita. O que não era tarifa generosa, atendendo ao risco que eu corria. […] Kas propôs-me então o grande golpe. Tratava-se de um assalto à mão armada numa boîte de putas de alto voo, estabelecimento gerido por um corso e frequentado por janotas, notáveis da província e estrangeiros de passagem. […] Coube a cada um e nós o equivalente a sete mil e quinhentos francos actuais. […] Eu já tinha terminado La Glace est rompue, e entregue o manuscrito a Jean Cau. Lanzmann partiu para a América do Sul sem ver o seu primeiro livro publicado. Foi rato da América durante dois anos que o sacudiram de acaso em acaso, incapaz de uma mão firme sobre o que quer que fosse, ou mesmo sobre si próprio. Tive de entreter-me a jogar com a miséria, comprometer-me, chegar ao contrabando, trabalhar numa mina, vaguear à procura de uma côdea. Eu tinha o estômago nos calcanhares, água na boca, vómitos biliosos, doenças tropicais, paludismo, esquentamentos, parasitas na cabeça e no intestino. Lanzmann voltou para a França em 1953; e era no ano seguinte escritor publicado pelas edições Robert Laffont. La Glace est rompue semi-inventava uma história onde passavam episódios da viagem que ele próprio tinha feito à Islândia. Mas este Lanzmann-escritor continuava a pintar sob a influência determinante de Klee e Mondrian, não impedindo isto que as


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minhas composições tivessem memórias de Van Gogh; ia também dando os últimos retoques a La Glace est rompue, narrativa começada na Islândia em dias de tédio e neura. Escrever concedia-me momentos de felicidade única, mesmo nas alturas em que ficava horas a procurar palavras e a construir frases. Pintar, pelo contrário, fazia-me infeliz. […] Eu procurava perpetuamente a minha assinatura, a assinatura da obra que se impõe e permite um primeiro olhar reconhecer-nos. No ano seguinte, O Rato da América pôs a segunda pedra no percurso de um escritor que chegaria ao fim da vida com o respeitável número de quarenta e seis romances e narrativas publicados. Foi desde 1955 um êxito que o reconhecia como escritor de invejável destreza literária; a que não chegou, iludindo grandes expectativas, para decidir os académicos do prémio Goncourt inclinados nesse ano a destacar os méritos de Les Eaux mêlées de Roger Ikor. Se o meu primeiro livro foi um bom êxito de estima, fez receitas que se revelaram quase nulas. Incidiram sobre dois mil e quinhentos exemplares. Isto nem sequer cobria o que me fora adiantado e tive, [em relação ao Rato da América], de explorar os sentimentos de René Julliard para ele se convencer a modificar o meu contrato e a fazer-me outro adiantamento. Depois de levar a cabo os meus trabalhos de casa, fui assentador de ladrilhos e raspador de paredes. […] Ter cortado uma mão quando abria ostras revelou-se bom pretexto para deixar estes trabalhos e dedicar-me inteiramente ao Rato da América. Claude e O Castor 1 ajudaram-me a dar-lhe um sentido. 1 Claude Lanzmann, o seu irmão, e Simone de Beauvoir (conhecida entre amigos por O Castor) que vivia nessa altura uma relação íntima com Claude.


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Terminei no Cantal o manuscrito de O Rato da América. O Castor apoderou-se logo dele porque tinha a intenção de escolher extractos para Les Temps Modernes. A verdade é que praticou enormes cortes e suprimiu tudo quanto lhe pareceu excessivamente literário. Pouco seguro de mim, deixei-a à vontade. Hoje lamento-o. Os comunistas, jovens e velhos, fizeram do livro um triunfo. Era previsível; através de um herói deserdado eu ocupava-me da luta de classes. Não era, de facto, O Germinal, mas grande parte da sua história desenrolava-se numa mina. Orgulhoso com este apreço das massas trabalhadoras, deixei-me ir na onda de uns e outros, ao ponto de aderir ao Partido alguns dias depois de me casar [com uma fervorosa militante]. Sentiria eu necessidade de estar enquadrado? Talvez estivesse farto de me arrastar pelos cafés. O comunista Lanzmann fez nesta época de militância uma viagem à União Soviética e… como Gide, como Céline, como Istrati… regressou decepcionado. Aragon não se espantou. Daix também não. Eu não passava de um pequeno-burguês sensível às aparências, incapaz de dar às coisas o devido valor. […] Talvez a razão fosse deles, e eu devesse levar em conta todos os dados que tinham estancado de vez a marcha em frente do socialismo. Mas que razão teria havido para aquelas purgas e para o terror? Para as fomes e o caos? Que razão haveria para a verdade continuar a ser calada e fazermos os militantes acreditar que o modelo soviético levava a palma a todos os outros? Que razão haveria para mentir descaradamente e evocar o paraíso da classe operária, em vez de ser explicado que esta classe se tinha limitado a sair do inferno, depois de Khruthchev, tal como o povo que tinha saído do Egipto depois de Moisés? Que razão haveria


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para fazermos os soviéticos vestir um fato de todas as purezas, quando a corrupção imperava bem visível e o mercado negro chegava à boca de cena? Que razão haveria para se esconder o alcoolismo e a prostituição? A resposta de Aragon tirava-me qualquer hipótese de refutar: «Talvez tenhas visto e compreendido tudo isso, mas não é este o momento para o dizermos…» Mas Lanzmann achou que 1957 era «o momento» certo, e publicou no jornal L’Express o relato Cuir de Russie onde expunha desenvoltamente as suas dúvidas em relação às purezas do regime soviético. Hoje, a publicação de Cuir de Russie não chocaria ninguém. No entanto, naquela época o humor rangente do livro e a liberdade do tom chocaram os simpatizantes. O meu irmão Claude voltou-me as costas durante mais de um ano. Sartre e O Castor fizeram o mesmo. Passei em poucos dias a ser uma espécie de pestífero, um Kravchenko dos pobres. Perdi quase todos os meus amigos. Uns porque eu tinha escolhido mal o momento para me mostrar rebelde em relação ao Partido, e porque a classe operária não merecia ser atacada no mito que a alimentava. Outros porque eu me tinha deixado manejar, e sem levar em conta o contexto histórico me referia à União Soviética como se falasse de Monte Carlo ou de Las Vegas. (Em 1959, num tom que separava a odisseia de Cuba da realidade soviética, o seu livro Viva Castro — não obstante o seu humor corrosivo, indissociável do autor — fez muitos leitores odiarem Batista e simpatizarem com o revolucionário Fidel.) O Rato da América continuava porém a vencer todas as ondas adversas. Indiferente a um azedume localizado em intelectuais de esquerda que branqueavam a União Soviética, apesar de Estaline, o grande público aceitava com grande êxito de vendas o escri-


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tor Lanzmann e o seu humor feroz virado contra os exploradores da classe operária sul-americana; esse entusiasmado público cedia à força de um choque que lhe abalava o conforto intelectual, que o fazia sorrir e escandalizar-se; que o incitava a não levar a sério o mais sério da vida, a surpreender-se com uma agilidade verbal suportada por metáforas que o baloiçavam entre a admiração e o sobressalto de uma estranha surpresa, empolgava-se com a carregada sombra daquela viagem levada ao fim de uma noite. Era de contar que tão rica matéria interessasse o cinema. Lanzmann foi convocado para uma reunião nas instalações da France London Films. O produtor Deutchmeister começou por dizer-lhe que o considerava um homem inteligente, para acrescentar: Nós, judeus, não sentimos necessidade de pôr constantemente esse problema em cima da mesa… Devemos, meu caro Lanzmann, evitar que o público se sinta indisposto… Quer isto dizer que estou a pedir-lhe para ser apagado tudo o que toque de perto ou de longe o problema do judaísmo… — Senhor Deutchmeister, o que me pede é impossível. O herói de O Rato da América é judeu e não pode ser gói. O que lhe acontece deixaria de ter sal. Repare, senhor Deutchmeister, que o Fridmann não é circunciso e tem de mostrar a pila aos SS do Paraguai para lhes fazer acreditar que é um bom ariano, tal como já se tinha exibido aos alemães durante a Ocupação. Sem isto, a coisa não se aguenta… — Olhe, o Charles Aznavour leu o seu livro e deseja fazer esse papel. — O Aznavour a fazer o meu papel? Está mesmo a falar a sério? Ele tem quarenta anos, pelo menos. E o herói só tem vinte e dois. Além disso é entroncado. E não tem cabelo ruivo.


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Eu passava por um verdadeiro pesadelo, mas não estava no fim das minhas penas nem das minhas surpresas. Deutchmeister interrompeu-me com voz bastante segura: — Não estou a comprá-lo como papel, mas ao seu livro. E comprando o livro estou ao mesmo tempo a comprar o direito de o adaptar às conveniências do realizador… Trata-se do Jean-Gabriel Albicocco… — Quer fazer-me acreditar que o Albicocco está mesmo a pensar no Aznavour? Está a vê-lo como mineiro de cobre em Las Disputadas? Imagina-o a morrer de fome quando vende na vida real milhões de discos? As pessoas não vão identificar-se com a personagem. — Sim, o Aznavour e a Marie Laforêt, um par que vai surpreender. — A Marie Laforêt? Mas o que vai lá fazer? No livro não há nenhuma mulher, a não ser umas quantas índias e pensionistas de casas de passe! Merda! Senhor Deutchmeister, está a fazer confusão com o que é o seu tema! Todas estas objecções foram vencidas por cento e cinquenta mil francos; e em 1963 Albicocco pôde desiludir a seu bel-prazer os espectadores que enfrentavam na tela a sua versão adoçada e menorizada de O Rato da América. A hiper-actividade de Lanzmann espalhava-o entretanto em várias direcções. Era incansável escritor; fazia letras para mais de uma centena de canções, na sua maior parte interpretadas por Jacques Dutronc (em 1999, o Nouvel Observateur e a France Inter elegeram Il est cinq heures, Paris s’éveille como o melhor 45 rotações dos últimos quarenta anos). Lanzmann exercia-se também no jornalismo, fundava a revista Lui, estava na direcção de Les Lettres


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Françaises, era produtor e argumentista de filmes; viajava de mochila às costas por uma grande parte do mundo, cometia a proeza de efectuar a pé o percurso desde Lhassa a Katmandu, e de atravessar as centenas de quilómetros do deserto chinês de Taklamakan… Dentro deste tumulto, a vida amorosa de Jacques Lanzmann fê-lo casar-se quatro vezes (uma das suas esposas era neta do escritor Victor Segalen), ter sete filhos, e nos intervalos destes compromissos sentir-se um romântico e domingueiro frequentador de bordéis: Eu não ia aos bordéis para satisfazer vícios e frustrações. Não, ia lá pelo ambiente. Nada de libidinoso havia nos meus domingos. Ter-se-á de ver nisto, pelo contrário, a aproximação romântica a um meio onde os pintores e os poetas se sentiram sempre protegidos. O bordel era como um pulmão artificial onde nos metíamos quando a solidão se tornava sufocante. Por vezes encontrava lá a inspiração; outras vezes era a respiração que eu recuperava. Pouca importância tinha que a ternura se comprasse a dinheiro durante o tempo de uma queca implacavelmente cobrada pela dona da casa preocupada com os rendimentos. Embora ela encaixasse o dinheiro e limitasse o instante do prazer, não tinha nenhum poder sobre a alquimia das peles e das atracções. Dezasseis anos antes de morrer, um Lanzmann reduzido ao ofício de escritor reflectia assim sobre si próprio: Tenho sessenta e três anos de inexperiência. Sessenta e três anos de um espantoso freio nos dentes, pronto a inflamar-me com a mais pequena paixoneta elevada ao nível da paixão, e até àquele ponto em que o bom senso e a loucura, as promessas e as mentiras, a depressão e a exaltação se metem, desde a alvorada ao crepúsculo, debaixo do mesmo avermelhado céu. Sessenta e três anos a acreditar na paixão súbita: eu espreito-a, construo-lhe a estru-


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tura e depois corto-lhe a cabeça. Sessenta e três anos de encontros de acaso que me esforço, em todo o lado onde passo, em todo o lado onde eles trespassam, por erguer como homenagem aos sentimentos. Sessenta e três anos de estelas e comemorações da vida erigidas e talhadas no meio de mim como esses monumentos aos mortos que marcam o centro das aldeias. Sessenta e três anos: a idade que me recuso a ter. Os anos muito pouco me marcaram, muito pouco me ensinaram. Quando é que eu teria deixado de envelhecer: aos dezassete ou aos quarenta? Entre estas duas idades, talvez? É difícil sabê-lo. A idade está na aparência e não na transparência. A sua verdade só é constituída por palavras tiradas ao tempo e desajeitadamente escritas num papel frágil. Serei uma amostra de homem, um seu mal acabado esboço? É possível. Terei deixado um dia de envelhecer? Ou terei ocupado um lugar a bordo da máquina de regressar no tempo, fugindo a toda a velocidade em direcção à adolescência perdida? Serei, muito simplesmente, indestrutível? Ou cego perante o meu próprio rosto? Ou ainda incorrigível por nunca ter sido, afinal, corrigível? Estas reflexões sobre uma vida que se esquecia do seu fim correspondiam, de facto, a um fôlego de mais vinte livros. Mas palavras suas para uma canção de Dutronc tinham avisado: «De tanto bater, o meu coração parou.» O coração de Lanzmann parou de bater em Junho de 2006. Ele tinha acabado de publicar o romance Uma Vida de Família, a vida que a idade acabara por lhe apontar como inevitável e ele vivia calmamente ali, em Montparnasse, rodeado por memórias de uma imparável agitação vital. A.F.


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Tornei-me um homem perigoso, a partir do momento em que não soube dar nenhuma resposta quando me perguntaram o que tinha vindo fazer a este continente. Os meus compatriotas tinham horror aos aventureiros não especializados. Pensavam que havia um perfeito equilíbrio no seu julgamento; e sabiam tanto sobre as coisas, que se julgavam possuidores da verdade absoluta a seu respeito. Senti uma vontade imediata de morder o coração desta América, mais furiosamente europeia do que a própria Europa mas com uma diferença fundamental: como era transportada por uma espécie de corpo anémico, não conhecia o valor da ameaça existente num bocado de pão. J.L.


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a esperança

Não há mistral, nem brisa, nem barco à vela. Somos algumas centenas de pé no molhe n.º 8, a fazer silêncio. No ar pardacento do barracão, três médicos com blusa branca e penteados com muita brilhantina vão chamando pelos nomes. Somos amenos e dóceis com os médicos; eles são a nossa doença. Os homens, antes de se sentarem no tamborete branco despem um a um as calças. Durante a consulta todos retêm a respiração e põem à mostra a sua timidez. «Pode voltar a vestir as cuecas.» Apesar do marulho da água e do rumor do transatlântico que olha para nós, esta frase ressoa contra as vigotas de aço e é sinal de que o segundo médico nos espera para pôr à prova os seus conhecimentos. Levanta com a ponta dos dedos a fralda das camisas e depois pousa na pele das costas, que não está muito fresca, a sua orelha de curioso. — Tussa. — Respire fundo. — Com a boca aberta. Nalguns faz um sinal com giz branco; e é com certeza uma cruz porque a levamos às costas.


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O terceiro médico, esse, ocupa-se da garganta e dos olhos; carrega na língua com uma colher e mete o olhar nos palatos de prata e nas bocas artificiais. Parece que a coisa lhe agrada, e insiste quando os ah! ah! ah! não são satisfatórios; depois, com uma hábil ferocidade manda-nos revirar os olhos para olhar para a sua parte branca. — Tracoma zero! — Tracoma completo! Cheio de pânico, o homem do «tracoma completo» grita à sua mulher, que ele vislumbra esmagada contra a amurada do navio: — Não vão deixar-me subir! — Não vão deixar-me partir! Os chuis marselheses com farda de Verão e a abarrotar de pastis1, empurram o desesperado para a zona dos recusados. Os recusados são todos libaneses ou africanos; esperam que a comissão de higiene volte a decidir qual é a sua sorte. Foi o que lhes disseram. Nem um grito, nem um queixume. São tão bem comportados como crianças castigadas, tentam ganhar com uma boa conduta o que não conseguiram alcançar com a sua saúde. — Tracoma zero! O homem sorri porque ganhou. Senta-se, muito orgulhoso, numa caixa e espera pelos seus camaradas. Como ninguém chama por mim, dou aos cotovelos e vou sentar-me no tamborete. — Abra-me essa braguilha! 1

Bebida alcoólica tradicional de Marselha. (N. do T.)


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A minha qualidade de branco não exige que dispa as calças. Apalpa-me as glandes, carrega-me na barriga. — Dói-lhe? — pergunta. — Não senhor. — Tem a sua carta do I.R.O.? — Não, paguei a minha viagem até Buenos Aires. — E que raio de coisa quer de lá? Hum! Não vê que isto é a comissão de controle para os refugiados? Para si — acrescenta ele — é o molhe n.º 6. Saio a correr para fora daquele ar pardo, quente e escuro; depois, de repente, fico por baixo do azul do céu; mas não se trata do seu verdadeiro azul, é o de uma cobertura de plástico. O molhe n.º 6: atmosfera suave para uma viagem de núpcias, mulheres e crianças muito bem arranjadas, homens com camisetas a descansar em cima de malas de pele de porco e cheias com peso e medida. Um representante da Companhia pede-me com delicadeza o bilhete. — Quarta classe!… Fundo do porão? Não é aqui. Tem de ir até ao molhe n.º 8. — Foram eles que me mandaram para aqui — digo eu. — Não faço parte do I.R.O. É inútil insistir, e volto a sair, para o molhe n.º 8. — Aqui não vão mandar-me embora — penso eu — devo embarcar com os outros. — Dispa as calças. Fico a olhar de frente para ele. Os seus lábios são uma linha, não faz ruído quando fala, bem mais sugere do que ordena.


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Baixo as calças, que deslizam com suavidade ao longo das pernas; os africanos sentem-se incomodados. «Não deviam fazer isto a um europeu», pensam eles. Carrega, apalpa, examina. — São as primeiras cuecas brancas do dia — diz-me ele. Fico corado. Se estão brancas é porque a minha mãe as lavou, penso eu. — Pode voltar a vestir as calças. A frase ouve-se; são as únicas palavras que a sua garganta sabe pronunciar. O segundo médico aborda-me com a orelha, e escuta… em mim só bate o coração. Volto a meter a camisa dentro das calças e aperto o cinto, o que me faz voltar a ser um homem. — Tracoma zero. Sento-me ao sol numa caixa. Sinto-me forte, não tarda que eu suba para o paquete, e ele vai avançar sobre o mar com a precisão de uma tesoura de alfaiate. Há do outro lado uma nova vida, imagino a cor das costas, vejo aventureiros a cavalo, índios amáveis que me adoptam. «Baixe as calças!» «Tracoma zero!» Tanta realidade como sonho. Os que estão do outro lado do mar saberão que o tracoma é uma doença dos olhos? Ou que as calças que baixamos, antes de abandonarmos o nosso país, é um adeus que faz chorar? Subi para o navio e fiz uma comprida viagem ao longo das costas de África. Depois o barco deixou a África e cortou a direito no Atlântico. Durante três semanas enferrujou o seu ferro


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no mar irado; e um dia acabou por lançar âncora numa angra tropical que era a de Santos. Santos foi a minha primeira terra americana. Estive lá uma tarde; lembro-me de que era domingo e os negros sentavam-se à frente das suas portas, a ouvir a retransmissão de um jogo de futebol. A cidade era miseravelmente exótica, e eram miseráveis os operários italianos que víamos deitados nas praças. Eu ia a Asunción do Paraguai, e esperava muito do Paraguai. Santos nada tinha, nem podia ter, que se comparasse com o meu porto de destino; a prova é que eu não o tinha escolhido para lá me fixar. Santos devia ser um erro do continente, uma cidade deixada a um voluntário apodrecimento, que se queria esquecida, privando-a da ternura do país. De resto, o que eu pensava não tinha nenhuma importância, erguia-se o Brasil inteiro para me contradizer! Depois de Santos, foi Montevidéu que acolheu o nosso barco no betão do seu porto. Para os passageiros dos «fundos do porão» Montevidéu não existiu; sabíamo-lo num sítio qualquer, atrás dos muros betonados, mas não podíamos descer do navio para satisfazer o nosso gosto pelo maravilhoso. Retenho de Montevidéu que é uma cidade rica, e só por ricos se deixa visitar. Passámos a nossa tarde a ver as gaivotas que pousavam nos charcos de diesel; depois o barco abandonou durante a noite a terra firme e o mar profundo, para chegar às águas turvas de Rio de la Plata. Na outra margem do Rio, a uma noite de viagem, estava Buenos Aires. * Toda a gente está, desde a madrugada, nas partes dianteira e traseira da ponte; já não há ninguém nos porões, só lá estão


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enxergas que cheiram a náusea e perdem na negra humidade a sua palha. Os da terceira, da segunda e da primeira classes ainda dormem; nas suas pontes tudo está silencioso e vazio; e as filas de cadeiras de repouso também dormem. À frente da roda de proa do navio — pouco faltaria para acreditarmos que era possível tocar-lhe com o dedo — está a cidade. Também dorme; é cedo de mais para a acordarmos. «Ainda temos de esperar três horas, antes de desembarcar», diz um homem. Traz um grande embrulho debaixo do braço, está vestido com o fato dos domingos, bem barbeado, bem penteado. Todos nos arranjámos bem, todos temos embrulhos debaixo do braço, todos sentimos no coração a mesma angústia. De pé e num silêncio quase total, olhamos. Só se ouve o marulhar das ondas contra o casco e de tempos a tempos a chamada de um carro ou de um comboio que nos chega da cidade. O vento sopra em má direcção; não nos traz o rumor das docas e, pelo contrário, leva até às docas o estremecimento das nossas vidas. A pouco e pouco a noite levanta-se e o dia sai da terra; depois, o dia empurra a noite que se enrola à volta do céu como a cortina de ferro de uma loja, e as luzes do porto apagam-se, os guindastes e os barracões começam a pôr-se em condições de funcionar. Três apitadelas prolongadas metem-se no espaço com a crueldade de facadas desferidas nas costas. Nessa altura o navio recupera a vida e começa a rodar sobre si próprio e a puxar pela âncora. Com um ruído infernal, os guindastes a vapor deixam correr as correntes, esvaziando assim o navio das suas pesadas tripas, e os cais enchem-se depois com operários mal acordados. Vestidos de azul, parecem-se com os nossos.


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No convés da primeira classe, os passageiros ainda de pijama agarram ao de leve pela asa uma chávena de café com leite. Nenhum ar nervoso, nenhuma pressa, só a enorme certeza das pessoas com alguém a esperá-las. Puxado de flanco pelos cabos, o navio arruma-se no cais com a passadeira à sua frente. Não tarda que a comissão de controle invada a nossa ponte. Polícias, médicos, uma multidão de inspectores. «Deixem aí as vossas bagagens. Pousem os embrulhos no chão. Têm muito tempo, valha-me Deus!» «Por favor, señores, por aqui, por aqui!» «Su papel, señor!» «Que idade tem?» «Por que visita a Argentina?» Um toldo é rapidamente estendido entre quatro escotilhas, na parte da frente do convés. Somos, a bem ou a mal, empurrados na sua direcção, e há um tumulto. As minhas calças, que eu tinha passado tão bem a ferro debaixo da enxerga, já estão todas amarrotadas; a minha camisa, a única camisa branca que eu tinha guardado para este dia como a menina dos meus olhos, tem no peitilho duas nódoas de sebo. Fazem-nos entrar em grupos de dez na tenda improvisada. — Torso nu! Acaba-se o ar fresco da nossa camisa, da nossa vaidade, da homenagem que queríamos fazer ao continente. Quem, neste barco, o compreendeu? — Tussa! — Respire fundo! — Com mais força! Faz calor, a manhã está pesada, as gaivotas sobrevoam-nos sem entusiasmo.


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— Tracoma completo! — Tracoma zero! * Tomei, no porto de La Bocca, um eléctrico para o centro elegante da cidade, «Diligência negra e cavalos nervosos, batidos nos rins com o chicote do gaúcho. Meto-me pela planície pedregosa, protegendo com o meu peito uma rapariga de Mendoza. Apesar dos solavancos, a minha pistola não treme, dá um estoiro e faz cair do cavalo um índio cheio de cores garridas. Atingido por uma flecha no coração, o gaúcho rola e morre na poeira. Deito as mãos às rédeas, sem parar de as puxar através da fumarada que nos rodeia.» Tã, tã!… Avenida Santa Fé. Sentado na ferragem que corre, só tenho à minha volta italianos que vão trabalhar numa fábrica de conservas. As ruas e os passeios estão a transbordar de homens louros com pastas debaixo do braço. Rodeadas de poluição, as moradias não sabem o que é uma sombra de palmeira, os que procuram ouro não têm na mão a ferida mortal, a sua barba não está emaranhada, não têm olhos de febre. De gabardina e bem vestidos, andam apressados nos passeios. Quando desço do eléctrico, tenho necessidade de um conforto para pôr em ordem a minha confiança à deriva; estou na mais larga avenida do mundo: la Nueve de Julio. Entro num café, e bebo ao balcão como os tristes e os nervosos; a rádio derrama a palavra de um ditador, são nove horas e a calma da manhã tranquiliza-me. De repente sinto que me


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puxam por uma perna. Olho e vejo um grande cão com sede. Este cão, que num país estrangeiro me agarra com tanta gentileza a perna, não tem ar velhaco nem indiferente; é um animal com pêlos rasos e raça transbordante, um animal de todas as latitudes. Sinto o coração atingido por um sentimento, uma ideia liberta o sonho… que absurdo… «És doido», digo a mim próprio, «agora, que trocaste de continente, deves trocar de vida.» Luto para expulsar o grande impulso fraternal que me cola ao cão. «Atravesso as pampas com o cão, ele chama-se Médor como os cães pastores dos nossos camponeses. Médor está magro porque não comemos nada desde há oito dias. Falamos um com o outro para lutar contra o abandono. De repente Médor cai inanimado, foi a fome que o matou… Não, não morreu; ainda se mexe. Só há uma solução: matar uma vaca. Ponho a arma ao ombro, atiro e mato uma vaca.» Neste momento entra no café um homem que chama o seu cão. Fico sozinho, pago e vou-me embora. * Para irmos desde Buenos Aires até Asunción do Paraguai, damos voltas sobre a geografia, batemo-nos contra a noite que grita e o ventre da pampa digere-nos. No que toca à viagem, tudo está concebido para satisfazer o turista. Mas, para a gente simples e inocente da América latina, ser turista é ser americano. É por isto difícil viajarmos tranquilamente pobres nas regiões onde o povo não tem mais horizonte do que o seu. No decurso das minhas deslocações, e para combater a


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condição americana que me era imposta, tentei desafiar o meu aspecto físico com disfarces que iam desde a farpela do árabe até à do mendigo de estradas. Deixei crescer a barba e depois o cabelo, rapei as sobrancelhas. Ai de mim! Porque ainda acertava em cheio na originalidade americana. Usei roupa com buracos, tive olhares fixos e febre nas mãos; ainda era um americano, vindo por certo de longe e a dirigir-se para o seu hotel Crillon, para os seus amigos americanos. Se eu não tinha automóvel americano era porque viajava pela Pan American Airways, tinha no bolso toda uma aldeia de dólares e um chewing gum adormecido debaixo da língua. Eu passava por desertos, longe das grandes cidades e das pequenas inteligências, procurava um pouco de alimento à volta de casebres, e via-me de repente rodeado pela população: «Please boy, chicless, chicless (chewing gum), one dollar.» As raparigas aproximavam-se e zumbiam como vespas: «Focke, focke, one dollar, no mas (só um dólar), souvenir, boy.» «Ah, os sacanas», pensava eu, tomam-me por um americano. «Imbéciles, jeunes cons!», dizia-lhes acentuando o sotaque de Paris. «One dollar, focke, focke», era a sua resposta. Eu tinha um tom rosado e a pele branca; a minha desgraça era esta: ter as orelhas transparentes do Eisenhower. * O autocarro chegou numa segunda-feira a Clorinda, aldeia fronteiriça. Cumpridas as formalidades alfandegárias, montei um burro sarnento para atravessar a ribeira Pilcomayo, depois subi para uma carroça que me pôs a correr numa região solar onde os cães não tinham rabo e os habitantes não tinham


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cabelo; e de repente dei por mim na margem do rio Paraguai. Eu tinha no coração uma evidente angústia que nem a acidez matinal conseguia dissipar. Mandaram-me entrar para um barco com velas quadradas, e apaixonei-me por um povo. Os embarcados estavam descalços, tinham rostos gretados; acabavam, sem dúvida, de visitar a família do outro lado da fronteira e aproveitavam a viagem para dar largas à fraude, à sua mania de fazer contrabando. As mulheres, todas velhas, tinham cabelo comprido apanhado atrás, e transportavam-no como um peso. Andavam com o corpo arqueado, como as raparigas grávidas. Nenhuma tinha dentes. A embarcação deslizava lentamente no Paraguai; rodeava-a uma multidão de pequenas pirogas chatas, de onde subiam músicas militares misturadas com fumo de tabaco nacional. Asunción aproximava-se. Comecei por ver os palmares que cinturavam a cidade, depois campanários, casas vermelhas, um desembarcadouro em terra, e hop!, apanhei Asunción com os dentes, como se fosse um charuto. Com o amor àquela terra a dar-me um encontrão, dei comigo nas escadas de madeira que vão ter à praça Lopez, e uma tropa de garotos assaltou-me. — One dollar, one dollar, please, no mas, señor americano. — Non, rien, nada, nada — dizia eu incomodado pelo calor — Merda! Merda! — Usted es um gringo de mierda — diziam os garotos — un americano de mierda. — Vocês têm razão, miúdos, mas peço-vos o favor de me deixarem fazer tranquilamente o meu caminho. — One dollar, señor americano quiere focke, focke, quiere culear una buena mujer, un niño lindo, um bonito garoto moreno?


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Tinham-lhes explicado que eu vinha expressamente até ali, para distribuir na sua cidade dólares que trazia na barriga. Uma espécie de Pai Natal americano, digo-vos eu, que tinha percorrido muitos caminhos acidentados e fazia, à sua frente, o cesto derramar-se. — Vá lá, vá lá — dizia-lhes eu com uma voz branda — não sejam parvos, sou francês da Francia! Como todas as pequenas cidades, Asunción tem a forma de um caminho-de-ferro militar. Estreita e desmesuradamente longa, lava a cabeça no Paraguai e os pés no Parana. Atravessei toda a cidade num táxi, e de casa em casa do tabuleiro cheguei às primeiras classes, bairro residencial e altamente europeu. À frente das moradias espaçosas, palmeiras e guarda-sóis deitavam a sua sombra nos relvados secos. Eram onze horas da manhã, e algumas mulheres de roupão bebiam álcool de cana-de-açúcar. Tinham a cara protegida por uma espécie de chapéu-sombrinha que também servia de escudo contra o olhar dos vizinhos. A sua carne leitosa parecia suave atrás do véu de sombra. A cidade encolhia — não era mais do que uma avenida de cimento quente, varrida pelo vento. — Aqui estamos, señor. A voz do condutor fez aparecer a casa dos meus primos. Alta e branca, dominava o bairro. Paguei a corrida com o meu último dinheiro, e depois puxei ao longo das pernas o saco de marinheiro. À frente da casa que ia decidir o meu futuro, hesitei. Eu tinha saído de Paris para chegar ali, para viver ali e passar por aquela porta vinte vezes por dia, e mal me atrevia a ficar à frente dela.


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s e g u n d a pa rt e

a queda

A viatura da companhia transandina sopra, raspa o percurso sombreado, dá um grito de vitória e abre as suas portas. Desço, ponho a sacola ao ombro, assento as pernas no alcatrão negro, acendo o cachimbo e depois olho. Não que eu procure quaisquer rostos conhecidos na multidão apressada; não, olho sem saber e sem andar à procura, preciso de ganhar um hábito e de alguém com quem falar. Daria dinheiro para isso. Um médico? Ou um padre? Talvez um companheiro pobre? Com um companheiro, as minhas palavras transformar-se-iam numa fonte de ternura; com um médico ou um padre seriam uma séria confidência, uma espécie de auscultação dos meus sentimentos. Penso num médico ou num padre porque terei algumas hipóteses de me fazer compreender em francês; a não ser assim, prefiro um qualquer destroço embriagado. A embriaguez tem isto de bom: é compreensiva, não tem pressa, e a sua memória é como uma casca que atiramos fora, mal o segredo esteja descascado. Santiago tem ar de boa cidade; bate-nos, comprida e quente, com o sol nas costas. Começo a andar numa grande rua comercial onde os letreiros das lojas têm nomes franceses. Todos estes nomes são pequenas ofertas maravilhosas que esta cidade me faz. Os automóveis são americanos, as casas foram recentemente reconstruídas, alguns buildings mantêm-se em equilíbrio no céu,


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aviões passam; mosquitos picam, vendedores de jornais cantam, engraxadores engraxam, grupos de homens com bigode bebem o seu café de pé, alguns artistas de rua passam a berrar, outros a pensar, os homens olham para as mulheres, as mulheres olham para os homens, os homens olham para as mulheres; atrás das janelas, as máquinas de escrever assanham-se; agências de viagens vendem bilhetes, mendigos que saem do hospital desenferrujam as pernas nos passeios, um carro da polícia faz a sua ronda, os polícias de trânsito são amáveis e os habitantes da cidade entram um pouco enlouquecidos nas fontes de refrigerantes para matar a sede. Estou no centro; fui parado na baixa da cidade, no seu coração leve que as pulsações do comércio põem a bater à luz do dia. Uma livraria que se chama Europa tem na montra livros de arte. As cartas de Van Gogh ao seu irmão Theo estão enquadradas à direita pelas memórias do marechal Rommel e à esquerda por um livro que trata do aparecimento da filoxera na América do Sul. Tenho um sorriso a ocupar-me o rosto, e entro na loja. Sou cumprimentado do alto de uma escada por uma senhora. — Fala francês? — pergunto-lhe. — Sim, um pouco, estive na França antes da guerra. Sinto uma tal alegria, que me precipito para a escada e a sacudo com brusquidão. — Desça depressa — digo eu — tenho uma coisa para lhe contar. «Nada do que poderá contar-me terá valor se não me comprar livros», parecem dizer os olhos desta senhora; mas desce, ainda assim, e desaperta o avental. Nesta altura entram no es-


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t e rc e i r a pa rt e

a subida desde o fundo

De norte a sul do país só se fala da eleição do novo presidente. A cidade enerva-se; todos dão um conselho, fazem apostas, preparam matracas ou pacotes de cartazes. Ao contrário de todas as outras manhãs, o dia macilento não progride. Ao longo da Alameda, automóveis-metralhadoras precedidos ou seguidos por carabineiros a cavalo abrem fogo contra o céu. Trata-se de impedir as concentrações de operários convocadas para hoje. Chegados de todas as ruas da capital, centenas de homens, mulheres e crianças desembocam na Alameda. Todos estão vestidos com farrapos, têm faces cavadas e o corpo esquelético. Agrupam-se em silêncio. As crianças não são turbulentas; conscientes do seu futuro fazem, com os seus pais, corpo contra o grupo adverso. «O presidente Baniez promete o pão e o mínimo vital, a organização dos sindicatos e a suspensão imediata da fome.» Cerca do meio-dia, com a Alameda enegrecida por gente pobre e pacífica, a polícia ataca. Começa com matracas, coronha de espingardas, mas depois com arremesso de granadas lacrimogéneas. A polícia faz sempre chorar de raiva, dor, ou com gás.


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Neste dia de Outono estamos ali milhares com olhos vermelhos e cabeças que parecem loucas, a bater em retirada perante a força policial. Essa coisa de manifestantes é muitíssimo bonita de ver, é como as páginas de um livro de história; eles são eternos, corajosos, e batem-se desde há séculos pela mesma coisa. É como se os cemitérios de repente se abrissem dando passagem aos de 48 ou 92. O manifestante não tem farda, não tem época, é o filho do mundo, a gente da terra. Logo que as primeiras granadas explodem, fico tão fraco que caio no chão. Os meus olhos começam a voltar-se para dentro e a multidão espezinha-me; há um tipo grande e cheio de força que me agarra e faz deslizar para cima das suas costas. Vai deitar-me num banco da praça das Festas, e olho para ele. O que logo me surpreende é uma calma de pastor. Apesar de isto ser uma metáfora banal e contrafeita, ele tem a evidência dos pores do sol mediterrâneos. — Chamo-me Muller! — Chamo-me Fridmann! Obrigado — digo eu. Muller tem no rosto uma doçura e uma calma de bilhete-postal. A sua expressão pousa sobre mim e não consigo modificá-la no poder que exerce. Os olhos azuis de Muller são como o céu, claros se forem vistos de longe, escuros quando os captamos de perto. São olhos que vivem no triângulo perfeito de um rosto, rosto também prolongado por uma barbicha loura e em bico, de um louro crestado e áspero. Logo que deixamos de olhar um para o outro começamos os dois a rir-nos de uma forma leve e nervosa. Nasceu atrás do nosso riso uma amizade que cai, nesse dia de revolta, em cima de nós. Quero saber da sua vida, ele quer saber da minha, o modo como ele a ganha, o modo como eu não a ganho.


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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire


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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco O caso Kurílov, Irène Némirowsky Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson Gaspar da noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal


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DEPÓSITO LEGAL 429397/17 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL



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