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Aníbal Fernandes Um resíduo histórico perturbado pela alucinação. Um tecido subtil de símbolos sexuais. Messalina com uma heroicidade mitológica.
Alfred Jarry MESSALINA
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Alfred Jarry por Nadar.
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Alfred Jarry
MESSALINA ro m a n c e d a a n t i g a ro m a
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: MESSALINE, ROMAN DE L’ANCIENNE ROME
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, JANEIRO DE 2016 ISBN 978-989-8833-02-0 NA CAPA: HENRIQUE BERNADELLI, MESSALINA (PORMENOR), 1913 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/15 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Em 1895, o polaco Henryk Sienkiewicz publicou o romance Quo Vadis, e a sua história de cristãos punidos por Nero fez da Roma antiga um êxito literário de edições sobre edições, agravando muito o que já era um forte gosto de época por objectos, trajos e cenários com o diferente aroma, exótico ou não, de civilizações distantes ou já desaparecidas. À tradução francesa de 1900 coube um enorme êxito de vendas. Em Paris, Quo Vadis deu nome a bolos, chapéus, e até a cavalos de corrida. O editor tinha tomado a precaução de garantir ao livro o mais livre curso, suavizando pormenores audaciosos para a mentalidade que assistia ao julgamento da maior parte dos leitores, impedindo que em lares burgueses o romance se escondesse na fileira de trás das estantes e os pais tivessem, por causa dele, de vigiar uma excessiva curiosidade das suas filhas. (Em Portugal, ao perdurável apreço dos leitores por esta obra lida nos dois volumes de capa dura da editora Lello & Irmão — que só traduzia o traduzido — ainda foi oferecida a prudência de um pouco mais de pudor.) Por todo o lado surgiram novelas e romances a vogarem ao vento de Quo Vadis. Houve imperadores, tribunos e vestais para todos os gostos, hoje amarelecidos em estantes e armazéns de alfarrabistas. Foi no auge desta fama proliferadora que Rachilde escreveu numa crónica do Mercure de France: «A literatura francesa está quovadizada.» Poderíamos portanto pensar o caso de Messalina de Alfred Jarry, aparecido ao público em 1901, como aproveitamento opor-
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tunista da lucrativa onda romana. Mas há provas de que já ele, antes de Quo Vadis, trabalhava no seu romance e em assumida contracorrente ao desejado pelo mais comum dos leitores. O texto de Jarry nada se parece com uma reconstituição histórica. Reconhecem-se as suas fontes principais — os Livros IV e V de A Vida dos Doze Césares de Suetónio, o Livro XI dos Anais de Tácito — mas perturbadas no seu resíduo histórico por uma alucinação, um tecido subtil de símbolos sexuais, pela construção de uma vertigem que confere a esta Messalina a heroicidade de uma figura mitológica. Messalina ficou, entre os romances de Jarry, como o de menos difícil leitura; o que menos obscuridades impõe ao leitor, antes dele confrontado com indevassáveis singularidades de sentido em Les Jours et les Nuits (1897) e, mais ainda, em L’Amour absolu (1899). Messalina teve, durante a vida do autor, um favor do público menos desencorajador e até oportunidade de uma tradução em língua checa. Ao contrário do que acontece nas suas anteriores incursões neste género literário, a trama narrativa dá ao leitor a comodidade de personagens redutíveis a uma identidade definida; e, neste caso, a ela se acrescenta uma sedutora encenação da cultura clássica. Sobreposta aos factos que o conhecimento histórico tem como próximos da morte de Messalina, encontraremos o que foi constante de todas as suas ficções romanescas — a experiência amorosa identificada com a morte e, nessa experiência, a obsessão pelo absoluto. À saída de um lupanar, Messalina vê a imagem do deus Fales levantar voo e desaparecer no céu. Isto contraria o seu desejo de possuir em amor o próprio deus, degrau máximo para a sua experiência sexual. Acabará no entanto por concluir que o deus não desertou para nenhum olimpo e apenas se mudou para os jardins de Lúculo, nessa altura pertencentes ao Asiático, um rico habitante de Roma. Possuir a sua chave faz-se invencível obsessão da impe-
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ratriz, que não hesita em conjecturar uma mentirosa denúncia e condenar o Asiático à morte. Já proprietária dos jardins, não encontra lá o deus mas um dos mais célebres mímicos de Roma. Ela quer, na sua frustração, tomá-lo pelo deus, mas é-lhe oposta uma sexualidade pouco sensível a mulheres, que embora incitada com filtros sábios não se mostra capaz de lhe satisfazer os desejos. Desdenhada por este Fales decaído até às inapetências de um mímico, Messalina opta por possuir o considerado mais belo romano dessa época. E a volúpia sentida nos braços deste macho de eleição dá-lhe audácia para repetir, na ausência do imperador, as cerimónias de um novo e ilegal casamento. Condenada à morte, a imperatriz não hesitará em ver no gládio fálico que a penetra a verdadeira imagem do deus finalmente possuído. As alucinações deste texto não dispensaram um grande domínio das fontes clássicas da História. Jarry lia fluentemente o latim e o grego, e a Biblioteca Nacional oferecia-lhe um abundante convívio com velhos autores. A sua Messalina pôde assim intrometer-se em reconhecíveis malhas de Tácito e Suetónio, embora passe através delas um tanto alheia às maiores severidades que aí lhe são conferidas como terceira mulher de Claúdio César. A Messalina de Jarry cumpre-se na crueldade com inocência; é a feroz ingénua, a atordoada pela procura de um verdadeiro e absoluto amor. E quando se entrega ao gládio letal e sangrento, é para encenar com lirismo operático a sua apoteose. * Já houve a tentação de filiar as extravagâncias de comportamento de Alfred Jarry na tara hereditária que lhe teria sido passada por umas quantas figuras da sua ascendência materna:
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aquela bisavó, aquela avó, aquele tio internados em asilos de loucos. E uns tantos que o biografaram têm a convicção de que a sua excêntrica mãe, filha de um magistrado, cedeu ao que era apenas um casamento «possível» com um comerciante de tecidos, por pender sobre si a suspeita de uma ameaça genética que inquietava os seus pretendentes. Alfred Jarry, le surmâle des lettres, o livro que Rachilde a seu respeito escreveu, dá-nos esta curiosa achega: «O meu pai — disse-me ele um dia sem a sombra da menor emoção — era um pindérico destituído de importância, aquilo a que se chama uma excelente criatura. Fez com certeza a minha irmã mais velha, uma rapariga de 1830 que gostava de pôr fitas no cabelo, mas não deve ter contribuído muito para a geração da nossa preciosa pessoa! A nossa mãe era uma menina de Coutouly, pequena e rechonchuda, voluntariosa e cheia de fantasia, que fomos obrigados a aprovar antes de ter voto na matéria. Gostava muito de trajos masculinos. Temos dela uma fotografia que a mostra como torero, com calções curtos, uma jaqueta bordada a ouro, guizos, e posto de lado um boné de veludo. Fazia, como todas as mulheres, o desespero do seu marido que talvez cometesse o erro de não usar a matraca, e temos a impressão de que fomos concebidos, honra nos seja feita, na noite em que esta criatura, com um sexo um pouco diferente do que tinha, meteu na sua cabeça que ia a um baile e para lá conduziu um touro pelos cornos.» As excepcionais capacidades do estudante Jarry conquistaram-lhe uma longa lista de prémios, ano após ano incluído entre os mais brilhantes nas escolas que frequentou. Foram-lhe amplamente reconhecidas em Laval, em Rennes, no liceu Henri IV de Paris, mas de repente passadas a sucessivos fracassos na École Normal Supérieur e na Sorbonne, onde às suas falhas académicas se sobrepôs
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a memória de uma brilhantíssima «diferença», um obsessivo gosto por palavras raras e inventadas, por excentricidades capazes de o desbanalizar em todas as triviais situações do quotidiano. O culto desta «diferença» era um programa: «A indisciplina cega de todos os instantes faz a principal força do homem livre», veio a escrever num dos seus textos jornalísticos. Desde muito cedo escritor, teve com vinte e um anos de idade um livro de poemas impresso, aquele a que chamou Minutes de sable mémorial; e dois anos mais tarde a peça de teatro Ubu Roi, a que lhe garantiu a mais persistente notoriedade póstuma, máquina de guerra, cinco actos em revolta contra a estupidez germinados nos seus tempos do liceu de Rennes, e com um risível professor de física como seu maior inspirador. Jarry teve em Rachilde e Alfred Valette, director da editora Mercure de France, dois protectores que se arriscaram em sucessivos lançamentos de obras suas com uma singularidade exterior a todas as modas, de antemão condenadas a medíocres resultados comerciais. Foi-lhe assim permitido construir um simbolismo descentrado em relação aos maiores nomes do Movimento, exercer-se como criador de romances «herméticos» que, na sua opinião, «sugeriam, em vez de dizer, faziam na estrada das frases um cruzamento de todas as palavras». O período em que surgiu com ficções em prosa teve início em 1897, quando publicou Les Jours et les Nuits, romance de um desertor de individualismo feroz, que deserta «na loucura»; e prolongou-se nesta veia em 1898 com L’Amour en visites (um momento de «literatura alimentar», confessou mais tarde) e em 1899 com L’Amour absolu, o seu livro mais «hermético», desconcertante viagem por uma metamorfose a que não escapam seres, objectos, lugares, idades e até mesmo as palavras; 1901 foi o ano de Messalina;
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1902 de Le Surmâle, romance de antecipação (passa-se em 1920) a que ele chamou «moderno» para o situar em oposição a Messalina, romance da Roma Antiga, com um herói que logra ultrapassar o Teofrasto citado por Rabelais, fazendo amor oitenta e duas vezes seguidas. A estes somaram-se dois romances de publicação póstuma: em 1911 Gestes et opinions du Docteur Faustroll, pataphysien, digressão neocientífica até aos confins da realidade aparente, onde o absurdo reina para se afirmar como coerência de uma nova dimensão; e La Dragonne, que deixou por terminar e teve a sua primeira edição em 1943. Durante dezasseis anos Alfred Jarry foi visto com intermitências em Paris, na maior parte destas ocasiões regressado de uma cabana à beira do Ródano, em Grand-Lemps (hoje Isère), onde vivia sobretudo dos peixes que cediam aos incitamentos do seu anzol e dava passeios de bicicleta. Em Paris convivia com os simbolistas, frequentava as terças-feiras de Mallarmé, as quintas-feiras de Rachilde, e escrevia esta absoluta rendição no Mercure de France: «Entre todas as teorias da Arte que nestes últimos tempos foram gritadas, só uma surge nova, e nova de uma novidade não vista e inaudita, o Simbolismo lavado das ultrajantes significâncias que enfermos de vista curta lhe deram, que se traduz literalmente pela palavra Liberdade e, para os violentos, pela palavra Anarquia.» Jarry vivia perigosa e miseravelmente, advérbios que não devem suspeitar-se de exagero se aplicados à sua existência de roupas vulneráveis ao frio, aos dias de fome, à carência de bens essenciais como a água e o aquecimento. Oferecia ao bacilo que lhe habitava os pulmões boas armas para uma fácil vitória. Mas era tudo no dia a dia escondido pelo permanente espectáculo da sua personalidade. Se era mal lido ou não lido pelos próximos, vencia-os pelos fulgores da sua presença na sociedade dos salões. Surgia neles tocado
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por um álcool fascinante, por um éter, a maior parte das vezes capazes de mostrá-lo em brilhantes momentos de linguagem e raciocínio. Queria sentir o alcoolismo como virtude, sabemo-lo pela pergunta que ficou num dos seus textos jornalísticos: «Quando deixará de ser preciso lembrar que os anti-alcoólicos são doentes dominados por um veneno, a água, esse dissolvente corrosivo, escolhido entre todas as substâncias para as abluções e lavagens, e do qual bastará uma gota deitada num líquido puro, por exemplo o absinto, para o deixar turvo?» Jarry marcou os que privaram de perto com a sua afirmação anárquica, com as bizarrias do seu comportamento, e dois exemplos dessa espantada memória vão registar-se aqui. O de André Gide nos seus Feuillets d’automne, o de Guillaume Apollinaire no texto «Feu Alfred Jarry», recolhido em Le Flaneur des deux rives. «Figura ininventável», reconheceu Gide, «sempre com o mais vivo dos divertimentos, antes de ter horrivelmente caído nas crises de delirium tremens. Este Kobald com uma face de gesso, ataviado com farrapadas de circo e a interpretar uma personagem excêntrica, construída, assumidamente fictícia e que mais nada de humano mostrava, exteriormente a ela, exercia no Mercure desse tempo uma espécie de fascinação singular. Todos, quase todos à sua volta se esforçavam com maior e menor êxitos por o imitar, o adoptar no humor e sobretudo na elocução insólita, implacável, sem inflexões nem matizes, com uma acentuação igual em todas as sílabas, incluindo as mudas. Um quebra-nozes falaria assim, não imaginamos que de outro modo o fizesse. Afirmava-se sem qualquer espécie de constrangimento, com um perfeito desdém pelas conveniências. Depois dele, os surrealistas nada melhor inventariam, e bem justo é que o reconheçam e saúdem como precursor. Nada podíamos argumentar com mais profundidade, sem ele fazer a sua
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negação, e isto em escritos e de uma forma muitas vezes dura e durável. […] Ao pé de Jarry, os outros frequentadores habituais dos salões de Rachilde faziam, pelo menos aos meus olhos, figuras de comparsa.» Mais extenso quis Apollinaire ser, quando lhe dedicou todo um texto onde destacamos estes extractos: «A primeira vez que vi Alfred Jarry foi nos serões de La Plume, os segundos, os que não valiam os primeiros, segundo se dizia. O café Do Sol de Ouro tinha mudado de nome: chamava-se Café da Partida. Este nome melancólico apressou, sem dúvida, o fim das reuniões e talvez o de La Plume. Este convite à viagem fez-nos partir depressa para bem longe uns dos outros! De qualquer modo, na cave da praça Saint-Michel houve uns quantos belos serões, e amizades em pequeno número ali se construíram. «Na noite em questão, Alfred Jarry apareceu-me como a personificação de um rio, um jovem rio sem barba, com roupa molhada de afogado. O pequeno bigode caído, a sobrecasaca com abas a balançarem, a camisa mole e os sapatos de ciclista, tudo isto tinha qualquer coisa de mole, de esponjoso; o semideus ainda estava húmido, parecia que poucas horas antes saíra encharcado da cama em que a sua onda corria. «A beber cerveja preta, simpatizámos. Recitou versos com rimas metálicas em orde e em arde. E depois de ouvirmos uma nova canção de Cazals, saímos durante um cake-walk desenfreado onde se misturavam René Puaux, Charles Doury, Robert Scheffer e duas mulheres com cabelos que se despenteavam. «Passei quase toda a noite a percorrer o bulevar Saint-Germain com Alfred Jarry, e conversámos sobre brasões, heresias, versificação. Falou-me dos marinheiros com quem privava a maior parte do ano, das marionetas que tinha posto a interpretar Ubu
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pela primeira vez. A voz de Alfred Jarry era precisa, grave, rápida e por vezes enfática. De repente deixava de falar para sorrir, e voltava bruscamente a ficar sério. A sua testa não parava de se agitar, mas em largura e não em altura como geralmente vemos acontecer. Cerca das quatro horas da manhã um homem aproximou-se de nós para perguntar qual era o caminho para Plaisance. Jarry tirou rapidamente do bolso um revólver, intimou o transeunte a recuar seis passos e deu-lhe a informação. A seguir separámo-nos e ele voltou para a sua grande quartalariça da rua Cassette, convidando-me a ir lá visitá-lo.» «— O senhor Alfred Jarry? «— No terceiro e meio1. «Esta resposta da porteira espantou-me. Subi até à casa de Alfred Jarry que habitava, de facto, no terceiro e meio. Os andares da casa tinham parecido ao proprietário com pé-direito muito alto, e ele tinha-os desdobrado. Esta casa, que continua a existir, consegue assim ter cerca de quinze andares; mas como não é mais alta do que as outras casas do bairro, fica-se pela miniatura de um arranha-céus. «De resto, as miniaturas abundavam no domicílio de Alfred Jarry. Este terceiro e meio só era uma miniatura de andar, onde o inquilino andava à vontade de pé, ao passo que eu, mais alto, era obrigado a curvar-me. A cama só era uma miniatura de cama, ou seja, uma enxerga. “As camas baixas estão na moda”, disse-me Jarry. A mesa de escrever podia ser apenas uma miniatura de mesa porque Jarry escrevia deitado no chão, de barriga para baixo. Na parede estava pendurada a miniatura de um quadro. Era um re1 Ao que parece, um lapso de Apollinaire porque outras referências não costumam designar esta habitção por «terceiro e meio», mas «segundo e meio». (A.F.)
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trato de Jarry que ele tinha queimado na sua maior parte, deixando apenas ficar uma cabeça a mostrá-lo parecido com o Balzac de uma certa litografia que eu conheço1. A biblioteca só era uma miniatura de biblioteca, e dizê-lo revela boa vontade; composta por uma edição popular de Rabelais e dois ou três volumes da Bibliothèque Rose. Na chaminé erguia-se um grande falo de pedra, trabalho japonês, oferta de Félicien Rops a Jarry, e ele tinha esta aumentada versão de mangalho sempre tapada com uma coifa de veludo roxo, desde o dia em que o monolito exótico assustara uma dama de letras, esfalfada por ter subido ao terceiro e meio e desconcertada com aquela grande quartalariça sem mobília. «— É um molde? — tinha perguntado a dama. «— Não — respondeu Jarry — é uma miniatura.» «As travessuras de Jarry prejudicaram muito a sua glória; e o seu talento, um dos mais singulares e sólidos da sua época, não lhe dava o bastante para viver. Vivia mal, em Paris alimentava-se de costeletas de carneiro cruas e pepinos de conserva. Garantiu-me que antes de se deitar bebia, para benefício do estômago, um grande copo onde tinha deitado vinagre e uma igual quantidade de absinto, esquisita mistura que ele conciliava acrescentando-lhe uma gota de tinta de escrever. Ao pobre Pai Ubu faltaram afectos femininos. «Em Coudray vivia da pesca; e foi certamente uma sorte ter estado com frequência fora de Paris, à beira-rio. A cidade mais anos lhe matou do que concedeu.» Este retrato queimado era uma obra do Douanier Rousseau, exposta num Salão de Paris com o nome Madame A.J. O autor disse a Jarry que não tinha dado nenhum nome ao quadro, e o sucedido era da responsabilidade dos organizadores do Salão. Ofereceu-o depois ao retratado, que o reduziu apenas a um rosto. (A.F.) 1
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«Alfred Jarry foi de um modo raro homem de letras. Os seus actos mais insignificantes, as suas traquinices, eram literatura. Porque estava ancorado nas letras e em mais nenhum lado. Mas de que forma admirável! Foi um dia dito à minha frente que Jarry tinha sido o último autor burlesco. É um erro! A maior parte dos autores do século XV e uma grande parte dos autores do século XVI não teriam sido, se assim fosse, mais do que burlescos. Esta palavra não pode designar os mais raros produtos da cultura humanista. Não dispomos de termo que possa aplicar-se a esta jovialidade particular onde o lirismo se faz satírico; onde a sátira, por se exercer sobre a realidade, de uma tal forma ultrapassa o objecto e consegue destruí-lo; tão alto sobe, que só a muito custo lá chega a poesia; ao passo que a trivialidade está aqui relacionada com o próprio gosto, e por um fenómeno inconcebível faz-se necessária. Só o Renascimento permitiu estes deboches da inteligência onde os sentimentos não se incluem; e Jarry, por um milagre, foi o derradeiro desses deboches sublimes. «Tinha admiradores, e entre os seus leitores contavam-se filólogos e sobretudo matemáticos. Até na Escola Politécnica era popular. Mas entre o público e a gente de letras muito poucos o conheciam. E ele sofria imenso com estes desprezos. Uma vez falou-me longamente de uma carta em que Francis Jammes lhe pregava um sermão a propósito de Le Surmâle, que acabava de aparecer. O poeta de Orthez dizia que os livros de Jarry cheiravam ao citadino que recupera, com uma vida fora de Paris, a saúde mental, etc. Era qualquer coisa próxima disto. “O que diria ele”, observava Jarry, “se soubesse que passo a maior parte do ano no campo, à beira de um rio onde todos os dias pesco?”» «…Seja como for, Jarry caiu de doença e miséria. Amigos salvaram-no. Voltou a Paris com dinheiro e contas da farmácia. Que eram contas do vendedor de vinho!
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Não estive depois a par da sua existência. Sei, no entanto, que em muito poucos dias Jarry bebeu muito dinheiro e pouco comeu…» «Jarry morreu a 1 de Novembro de 1907, e no dia 3 éramos cerca de cinquenta a acompanhar o seu enterro. Os rostos não estavam muito tristes, e só Fagus, Thadée Natanson e Octave Mirbeau mostravam qualquer coisa como um ar fúnebre. No entanto todos sentiam vivamente o grande escritor que desaparecia, o encantador rapaz que Jarry tinha sido. Mas há mortos que lamentamos de outro modo que não o das lágrimas. Não é fácil imaginarmos carpideiras no enterro de Folengo, Rabelais ou Swift. Estes mortos nunca tiveram nada de comum com a dor. Aos seus sofrimentos nunca se misturou a tristeza. Em funerais deste género é preciso todos mostrarem um feliz orgulho por ter conhecido um homem que nunca sentiu necessidade de se preocupar com misérias que o atormentavam, a ele e aos outros. «Não, ninguém chorava atrás do carro fúnebre do Pai Ubu. E como era domingo, o dia seguinte ao de Finados, o grupo dos que tinham estado no cemitério de Bagneux espalhou-se ao fim da tarde pelas tascas que ali à volta havia. Elas estavam apinhadas. Cantava-se, bebia-se, comiam-se salsichas; quadro truculento como uma descrição imaginada por aquele que tínhamos metido dentro da terra.» Os trinta e quatro anos de vida de Alfred Jarry, concluídos com uma meningite tuberculosa tardiamente levada para o hospital, chegaram para uma assinalável fama póstuma como escritor e personalidade marcantes na literatura francesa da sua época. Os surrealistas consideraram-no precursor do seu movimento. — Sim, «surrealista no absinto», reconhecia André Breton citando-o no seu manifesto de 1924. A.F.
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primeira parte O PRĂ?APO DO JARDIM REAL
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i a casa da felicidade
Tamen ultima cellam Clausit, adbuc ardens rigidœ tentigine vulva, [Et lassata viris nec dum satiata recessit.]1 D. Jun. Juvenalis, Sat. VI
Naquela noite, como em muitas outras noites, ela desceu do palácio do Palatino à procura da Felicidade. Será de facto a imperatriz Messalina quem acaba de furtar o gentil corpo à glória de seda e pérolas do leito de Cláudio César, e vagueia agora a passos de loba pela rua obscena de Suburra? Seria menos inaudito se a verdadeira Loba de bronze, a baixa e alongada escultura etrusca de pescoço torso, antepassada da Cidade, guardiã da Cidade ao pé do Palatino, à frente da figueira ruminal onde Rómulo e Remo a abordaram2, tivesse sacudido da teta insensível o lábio carnudo dos gémeos reais, como quem renuncia a uma coroa de ouro, e depois de um salto do pedestal elevado escolhesse, entre os montes de imundícies do subúrbio, um caminho para as suas garras que não fazem mais ruído do que a cauda do vestido enfeitada por um excesso de pedrarias. «Entretanto, ela é a última a fechar a sua cela, e ainda ardente com a tensão da sua vulva rígida, e fatigada de assaltos viris mas ainda não saciada, afasta-se.» (N. do T.) 2 A figueira ruminal (que alimenta), dada pela imagem da loba que alimentava Rómulo e Remo. (N. do T.) 1
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Esta forma que vagueia com um roçar de cauda de túnica ou de garras, é na verdade qualquer coisa como um animal à caça, mas sem a companhia do abominável cheiro da loba. Já foi alguma vez sentido o cio de uma estátua? É pois um monstro mais infame, mais insaciado e mais belo do que a fêmea de metal que regressa ao covil; a única mulher, completa encarnação da palavra que muito antes da fundação da Cidade, desde a primeira palavra latina, se atira com um escarro ou um beijo ao rosto das prostitutas: Lupa. E esta abstracção viva é pior prodígio do que a alma de repente infusa numa efígie, num pedestal. O mais velho mito do Lácio renasce nesta carne de vinte e três anos1; a Loba, ama dos gémeos, só é uma figura da Acca Laurência, deusa telúrica mãe dos Lares, a Terra que gera a vida, a esposa de Pã adorada com a forma de um lobo, a prostituição que povoou Roma. Nas moedas anteriores à loba encontramos uma pegada mais pura: os quadros2 do século V mostram uma porca. Mas esta Loba, que fundou a Cidade, é quem reina sempre sobre a Cidade. E aqui temos Messalina a dirigir-se para a porta onde se reconhece, mais do que no seu palácio do Palatino, imperatriz do lupanar, casa da Felicidade. A Felicidade habita, segundo se diz, num dos mais baixos antros de Suburra, esmagada no rés-do-chão de seis andares como uma parte vergonhosa se esconde sob a massa de um corpo. Há selhas de excrementos à frente da entrada; e, à direita e à esquerda, a casa do merceeiro e do carrasco vão abrindo fendas. 1 Os historiadores atribuem-lhe hoje, na época da sua morte, mais dez anos. (N. do T.) 2 Moeda romana. (N. do T.)
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A loja — porque é uma loja — só se distingue das vizinhas pela tabuleta. Na janela do carrasco seca um chicote sangrento; o merceeiro mandou pintar nos seus postigos fechados um dragão que aterroriza os garotos mijadores e maltrapilhos que despenduram salsichas. Entre estas curvas flutuantes do chicote que não dá descanso à fuga da brisa nocturna, e das dobras coloridas da serpente, ergue-se acima da porta da Felicidade qualquer coisa como uma haste que estes inconsistentes contrastes fazem parecer mais direita, embora se imponha um pouco mais grossa do que uma haste, como se houvesse nela uma bandeira enrolada. Aos olhos de quem hoje lá passasse, a fachada só teria o aspecto de um provinciano quartel de gendarmes quando não é domingo. Mas a Coisa, porque ela significa qualquer coisa, é mais monstruosa, e insólita, e atraente do que uma bandeira. A Felicidade que ali mora, como esclarece uma inscrição em letras vermelhas, com a sua exuberância teria enchido toda a sua casa ao ponto de transbordar e ser esta saliência sobre a porta? O emblema animal e divino, o grande Falo em pau de figueira, está pregado no lintel como uma ave nocturna num celeiro ou um deus no frontão de um templo. As suas asas são duas lanternas de bexiga amarela. A sua cabeça está pintada de vermelhão, tal como a face do Júpiter Capitolino. Por cima, legível à claridade das lanternas, a bandeirola de pano da tabuleta daria estalos ao vento se o deus teso não a deixasse colada entre ele e a parede que é o seu ventre. Perante o animal pendurado, a depravada Augusta da carne dos imperadores divinos, disfarçada por um muito largo manto de púrpura escura onde cada prega é uma goteira de
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trevas, no negro do seu capucho onde a peruca loura (Messalina é morena) acende uma estrela, mais deusa do que a Laurência, parece a própria Noite evocada do céu pelo sibilante apelo do seu mocho que agoniza. Ora, é apenas uma mulher ciente de que o seu marido acaba de adormecer. À custa de Vénus, Cláudio César cedeu ao sono, mas… Ao esposo de Messalina será permitido alguma vez dormir? Só é possível ser-se marido de Messalina durante o momento de amor; e ainda mais e sempre com a condição de poderem viver-se não interrompidos momentos de amor. O seu único marido é o que não dorme; e Messalina, com a roupagem fulva das cortesãs, calçada com as suas botinas escarlates, como se a vau sangrento pisasse o esgotado vigor de Cláudio vai até ao que não dorme, o animal-deus, o Homem sempre de pé que as lanternas durante a noite, de um lado e do outro, iluminam. Só tem uma dama de companhia, a prostituta profissional e insigne que numa competição de amor, prolongada a um dia e uma noite, a ultrapassou numa unidade despachando o vigésimo quinto macho. Pareceu à imperatriz que prestava uma bastante humilde homenagem de gladiador vencido concedendo àquela que a tinha derrotado a honra de lhe segurar, como uma escrava, a cauda da túnica. Penetraram pela porta baixa do lupanar quente como uma vulva. Lá dentro há o obscuro tremeluzir de lâmpadas que deitam fumo. Orla estrita de um corredor, ao longo de duas muralhas as celas estão fechadas e habitadas.
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A Felicidade, que deixa a casa cheia se fizermos fé na tabuleta exterior e se as inscrições que põem rótulo nas celas não mentirem, em cada um desses compartimentos é vendida em mais pequenas porções. Atrás de cada divisória há desta felicidade uma medida, toda numa mulher ou num adolescente, ou num hermafrodita, ou num burro, ou num eunuco, de acordo com a grandeza das doses que um simples homem é capaz de apreciar. Há uma profusão de homens à espera; e mesmo que escolham pelos rótulos as prostitutas examinarão o mérito do que eles trazem e se arredonda na moeda de prata, sestércio ou denário com que justificam o seu desejo. O tesouro dos seus sestércios e dos seus desejos estaciona num átrio circular, e atrás da parede que o separa dos quartos há a fornalha activa de uma colmeia. Só está vazia uma cela reservada à rainha das abelhas, que a Augusta ali inscrita como Licisca não deixa de fazer lembrar — nenhum dos seus cabelos negros é denunciado fora do pequeno capacete de falsas tranças louras com a cor do uniforme das cortesãs — agora completamente nua e com ouro nos seios. Às vezes é uma rede de ouro que lhe tece nos seios a sua pesada carícia; naquela noite palpitavam livres, com as auréolas pintadas por um bálsamo dourado. A cela, mais exígua do que a mais desconfortável e moderna casa de banho, mais do que tudo se compara no seu arranjo com um water-closet; como único móvel um profundo banco de pedra menos comprido do que um corpo estendido e que rasteja de uma parede à outra, debaixo de um colchão vermelho. Ali se instalou Messalina; primeiro apareceu um homem e ela deitou-se sobre o lado esquerdo, com os joelhos juntos e
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dobrados; as pernas peludas do homem com o peso de sapatos de ferro moldaram a concavidade dos seus membros, e quando ele lhe mordeu a nuca ela voltou, para lhe procurar a língua entre os dentes, a cabeça para a direita. Só então lhe viu o rosto e os ombros. Era um soldado com vestes de couro, e Messalina teve a impressão de que estava a derramar-se em cima dela um odre feito com a pele de um bode vivo. Um pouco tonta apressou a saída deste primeiro amante porque a porta da cela logo a seguir bateu, último eco do tamborim das bacantes, o vapor do lupanar zumbiu na fumarenta greta e um atleta, como um pavão sangrento que abrisse a sua cauda de olhos espantados, polido a pedra-pomes por uma desforra do mármore que quer ser escultor e se reconhece menos belo, projectou-se com o gesto habitual do gladiador para fora da endrómina de púrpura, saído do voo em passo de dança. Bastou porém a lâmpada pestanejar, para os olhos negros da cortesã loura sobreviverem, uvas incorruptíveis, à frente do leito de pedra e do peito do homem. E fecharam-se no prazer quando as suas coxas duras formaram um cinto à volta do lutador que sobre ela se agachava e, com os verdadeiros olhos da cortesã mais eternos, o bico dourado dos seios por sua vez velaram para que o seu fogo fosse infatigável. Veio depois queimar-se no seu farol um cocheiro da facção da Rã1; e Messalina, com a cabeleira virada para trás bateu contra a parede como o poste do circo coroado a ouro desaba sob 1 Cocheiros pertencentes à facção verde dos condutores de quadrigas nos jogos do Circo. (N. do T.)
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segunda parte OS ADULTÉRIOS LEGÍTIMOS
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i sob as lâmpadas de diana persa
Siquidem Latinarum feriis quadrigæ certant in Capitolio, victorque absinthium bibit.1 C. Plinii Secundi, Nat. Historiæ. Lib. XXVII, 28
— Já não está desmaiado, mas continua imóvel e não fala — disse o médico, voltando a entrar na gruta. Esta gruta era o mais fresco triclínio da casa de Verão de Lúculo, a sala subterrânea e submarina da Diana persa Anaitis, mais fria do que a caverna, casa rústica de Tibério em Terracina, de onde ele tinha passado, sem transição, para os gelos do ferro e da morte. Estava forrada a couros inteiros de vacas do Eufrates, que depois de haver a arte de Lúculo, arquitecto de aquedutos que chegou a ser proclamado o Xerxes romano, no lugar das lâmpadas sagradas tinham no flanco um vidro a flamejar com a clareza das águas salgadas do Tibre que atrás daqueles muros resmungavam. — Mais do que no seu templo de pórfiro e perpétuas — devaneou Messalina — o deus fecha por minha causa o punho sobre o mistério do seu coração. Claudi — diz ela — o pantomimo Mnester recusa-se a obedecer-me numa coisa! Cláudio começou por não responder, com o ouvido atento ao rangido das janelas de cristal. Garrafas de um vinho muito 1 «Uma vez que nos feriados das cidades latinas há corridas de carros no Capitólio, e o vencedor bebe absinto.» (N. do T.)
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centenário, ao ponto de uma carapaça de corais fazer-nos acreditar que estavam esventradas, trepavam ali sobre as patas ou as dúzias de excrescências ventrais de caranguejos que se remexiam num vertiginoso asco, caranguejos das Antilhas com o dorso revestido pela cera que tapava os gargalos. Depois, o vidro repercutiu o rufar de um tambor da Taprobana, e um mergulhador vestido com uma pedra entre as coxas desceu para apanhar ostras de Burdigala; e, durante o tempo em que ele reteve a respiração, com o feiticeiro músico a protegê-lo da vigilância do tubarão-guarda do parque circular. — Que coisa? — disse Cláudio. Mas o pensamento de Messalina tinha deixado, como o mergulhador, de respirar; e o escanção, que era um soldado, aproveitou este ócio para diluir uma nova porção de falerno na água quente da taça do imperador. Cláudio bebeu, a sua face ficou vermelha e desenhou a claro a cicatriz do golpe de buril. — Fui eu quem restabeleceu o costume antiquado de escolher os actores entre os escravos! E se Augusto restringiu o direito de castigar escravos, eu mantive-o para os histriões! Valéria, em todas as coisas o mímico tem de obedecer-te! Um mais formidável tilintar prolongou o tremor da ordem de Cláudio; porque se a epiderme da sala à volta das janelas e até à abóbada era de peles curtidas, a sua parte de baixo, coberta a capotes e faces a brilharem com olhos mais absortos do que a pupila de jade das vacas e o relâmpago das lanças, estava forrada a soldados. Desde os primeiros atentados contra a sua pessoa, incluindo os imaginários, o imperador deixara de se deitar para uma refeição sem o exército fazer parte da sua baixela de prata.
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A uma ordem da imperatriz e com o consentimento de Cláudio, um lictor saiu para ir buscar Mnester, e regressou tardiamente com as suas vergastas sangrentas e partidas1. — Ele não fala, sucumbe e rebola no chão — relatou o lictor. — Deve estar agora enfeitado com uma rede de pequenos crescentes de sangue, como na altura em que eclipsava o sol e os dois estavam no Circo — disse Messalina. E, na sua memória, a língua dele foi uma milésima primeira lúnula vermelha. — Recusa-se — disse Vécio Valente, que bebia no terceiro leito, à frente do imperador. — E dizes tu, Cláudio, que o escolheste entre os escravos! — exclamou ela. Mas Cláudio acabava de adormecer com a face da cicatriz apoiada no cotovelo; e quando a sua mulher lhe falou por cima da pequena mesa de tuia, tudo quanto pôde fazer, no estado de meio acordado, foi agitar e derrubar a grande taça; coágulos de escarlate rolaram, manchando os três leitos e o local de passagem dos escravos. No seu leito, Messalina voltou-se para o médico. — Para forçar ao amor aquele que a si próprio se ama tanto como a virgem Ártemis, que desdenha todo o céu para curvar um dos seus cornos em direcção ao outro, não seria mais eficaz um filtro do que vergastas e sangue? Tenho agora a certeza de que um deus me possui, e não um escravo histrião que mandei açoitar! Médico, sabes conjurar os deuses? — Ártemis, dizes tu? — perguntou Valente quase sem interromper a bebida. — Artemísia, o absinto, é ele próprio um 1 Conta Tácito que Mnester foi espancado, embora situe o episódio na altura da morte de Messalina. (N. do T.)
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filtro. Ártemis, Lua, Febe, a tripla Hecate! Há três absintos: o das Gálias; o santónico de cabelos dourados; o pôntico de Pont1 e de muito para lá, em direcção ao Oriente, onde os bichos com ele engordam, fazendo-nos encontrá-los sem fel como nestas vacas abertas, por onde contemplamos a luz do rio através dos seus fígados, tal qual as outras, prenhas, com fetos que a grande vestal queima no dia das Palílias2; e, Valéria, é ele o melhor: o da Itália é mais amargo… — Não te peço um hipómano3 para um touro, mas para Príapo, deus! — disse Messalina. — … Do absinto marítimo, o serífio de Taposiris no Egipto, basta um dos seus ramos agarrado com a mão, ou a sua beberagem com o azeite e o sal, para sermos iniciados nos mistérios de Ísis. Uma libra de pôntico fervido em quarenta sesteiros de mosto, até ficar reduzido a um terço, tal como se faz com o vinho de hissopo… — Esses vinhos de aromas são perfumes — disse Messalina — e só os utilizo nos meus cuidados pessoais. — Os perfumes têm virtude de filtros, lembra-te disto. Lembra-te do meu ftório de Tasos, onde juntei a escamoneia e a heleborite de heléboro negro, estes abortivos com que eu mais sumptuosamente te adornei, minha amante, e não tanto com essências de flores ou pedrarias, essências da terra, e que Pont-Euxin, no Mar Negro. (N. do T.) Talvez a frase mais obscura deste texto. Poderá no entanto lembrar-se que as paredes do triclínio estavam forradas a peles curtidas, com aberturas (no lugar correspondente aos fígados), e que em vez das tradicionais lâmpadas tinham vidros «a flamejar com a clareza das águas salgadas do Tibre». Palílias eram as festas de Palés, deusa dos rebanhos e dos pastores, onde costumavam fazer-se sacrifícios com fetos de bezerros. (N. do T.) 3 Ou seja, capaz de provocar «hipomania», ou seja, um estado de excitação associável aos comportamentos maníaco-depressivos. (N. do T.) 1 2
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para ti os comprei com todos os oitenta talentos que um ano consagrado a curar ou a obedecer-te me vale. Criei o ftório semeando a virtude das plantas à volta da raiz das vinhas! E para ti macerei emenagogos1 com artemísia e mel. E se o favor do deus me amadurecer a vindima, vou preparar-te um insuspeito e irresistível filtro de amor para o próprio deus de amor! — É muito demorado. Já o deus estará morto ou ter-me-ei apaixonado por um homem ou um burro, e o amor que tenho em mim não espera por épocas adequadas — disse Messalina. — Podes durante um dia ou uma noite dissolver a artemísia em água de chuva salgada; e, nas nossas antigas festas do Lácio, uma taça deste absinto era o preço supremo das corridas de quadrigas na base do Capitólio, o preço acima da coroa de ouro! Porque na água ele é saúde soberana e aclara a vista, embora no vinho cure a bem dizer as peçonhas da cicuta, do dragão marinho, do musaranho e do escorpião! E cheirado provoca o sono, o que também acontecerá se o esconderes debaixo do travesseiro de Mnester, sem ele o saber! Mal ficou concluída a colheita das últimas fórmulas, a imperatriz fugiu da presença loquaz do médico embriagado. — E com tinta de absinto vou escrever-te o resto das propriedades do absinto — dizia ele com soluços misturados ao ressonar de Cláudio; — e se não te apetecer lê-las, irá fazê-lo a posteridade porque os ratos nada querem com a tinta de absinto!
Mais tarde um dia e uma noite houve uma chuva quente e dissolvente como choros de alegria, e mandou Messalina que fosse debaixo dela colhida a planta e preparado o filtro. 1
Que provocam a menstruação. (N. do T.)
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— Ele bebeu? — perguntou Vécio. — Bebeu — disse Messalina radiosa e enfurecida por uma nova volúpia e um ultraje inédito. — Bem docilmente bebeu, ao ponto de não ter sido Fales nem Mnester, mas uma criancinha no berço quem se esqueceu da sua divindade e se aliviou em mim! — De facto, infuso um dia e uma noite na água da chuva, o absinto é emenagogo nas mulheres mas diurético nos homens — sentenciou num tom sério o médico Vécio Valente.
Aconteceu, porém, que à volta do palácio dos Césares o povo voltou a rugir por causa do seu mímico sequestrado. E como Messalina atirou ao tumulto mãos cheias de um ouro que era o das moedas de bronze de Caio, com fundição acabada de votar pelo Senado, fez cair profusamente por todo o Império imagens de Mnester. E estas efígies, que pareciam ovos de ouro, perpetuavam o gesto do Narciso dos jardins e o astro do teatro de Caio. As escavações modernas exumaram nas piscinas de Capreia um desses cubistas1 de bronze. Vécio Valente examinou com interesse o retrato de metal. — Fales é então isto? — Oh, sim — disse Messalina. — Embora criancinha, era ainda assim a real presença de Fales. Fales, Príapo, o deus do amor, é uma criancinha pudica que brinca a esconder-se atrás de uma árvore, levando-a atrás de si para todo o lado. 1
Ver nota da p. 77. (N. do T.)
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— E como asilo mais secreto encontra a mulher de mais terno alburno — gracejou Vécio. — Era mesmo Príapo, eu vi-o — repetia obstinadamente Messalina. — De ora em diante, e devido a um testemunho ocular indiscutível — concluiu o médico — Príapo é para nós um homem frio.
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índice
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Primeira Par te: O Príapo do Jardim Real I A Casa da Felicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II Entre Vénus e o Cão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III O Senhor Asiático das Árvores . . . . . . . . . . . . IV A Imperatriz à Caça do Deus . . . . . . . . . . . . . V O Pai da Fénix . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VI O Príapo do Jardim Real . . . . . . . . . . . . . . . . VII Dançava às Vezes de Noite . . . . . . . . . . . . . . .
19 27 45 54 59 62 70
Segunda Par te: Os Adultérios Legítimos I Sob as Lâmpadas de Diana Persa. . . . . . . . . . . II O Mais Belo dos Romanos . . . . . . . . . . . . . . . III As Núpcias Adúlteras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV A Imitação de Baco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V O Pescador de Mugiles. . . . . . . . . . . . . . . . . . VI Por Intervenção das Cortesãs . . . . . . . . . . . . . VII Na Atropos da Casa de Lúculo . . . . . . . . . . . . VIII Apokolokyntose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
85 92 97 100 107 110 114 122
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille
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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes Um resíduo histórico perturbado pela alucinação. Um tecido subtil de símbolos sexuais. Messalina com uma heroicidade mitológica.
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