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João Paulo Costa
À SOMBRA DO INVISÍVEL fragmentos de um crer sapiencial
DOCUMENTA
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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © JOÃO PAULO COSTA, 2020 JUNHO 2020 ISBN 978-989-9006-16-4 CAPA: MIRONES, DESERTO-SOIDADE, 2000 REVISÃO: LUÍS GUERRA
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À comunidade monástica cisterciense de Santa Maria de Sobrado. À minha mãe, Maria.
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Senhor, há muitos ao redor do poço, mas ninguém está dentro dele. (Evangelho Gnóstico de Tomás) A sabedoria, é a própria sabedoria, que brilha em mim, rasgando a minha nuvem, que de novo me cobre, quando dela me afasto. (Santo Agostinho) O visível e o invisível disputam-se sobre o feixe de água límpida onde o dançador mergulha de braços abertos. A imagem que ele dá é a do mundo a recriar que cada dia se oferece ao homem. (Edmond Jabès, Le Seuil Le Sable)
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ÍNDICE
Prelúdio: Do fundo abissal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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I §1 Da dança crente à borda do Poço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §2 Da Parusia à Promessa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §3 A Palavra é um grito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §4 O Adveniente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §5 Advir de um desejo hiperbólico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §6 Quem ainda espera o advento de um Messias? . . . . . . . . . . . . . . . .
31 50 55 59 72 79
§7 Atenção cuidadosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §8 Regressaram por outro caminho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §9 Nem só de pão… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §10 Da palavra ao gesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §11 Olhares sobre os últimos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §12 São poucos os que se salvam? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §13 Fogo que queima os ossos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §14 Saber viver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §15 A quem pouco se perdoa… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §16 Reconhecer-se num rosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §17 O que fazer para alcançar a vida eterna? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §18 Da graça da luz tabórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §19 Tu és? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
85 92 96 101 106 110 116 120 124 127 130 135 138
II
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§20 Olhar crístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §21 Jesus e os ricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §22 Não podeis servir a Deus e ao dinheiro! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §23 Orar ao estilo de Jesus de Nazaré! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §24 Jesus e os afectos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §25 Fé, força frágil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §26 Quando a fé comove a percepção e a razão! . . . . . . . . . . . . . . . . . §27 Para além da retórica moralista! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §28 Cristo via aberta para Deus e para o humano . . . . . . . . . . . . . . . §29 Caminhar como quem é amado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §30 Nascimento matinal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §31 O primeiro olhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §32 Venha o que vier permaneceremos juntos! . . . . . . . . . . . . . . . . . . §33 Que pensar nele seja um apelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §34 O festim da promessa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
141 144 147 153 156 159 162 166 169 173 180 184 190 194 201
§35 Do Invisível no sensível pictural de Mirones . . . . . . . . . . . . . . . . §36 Elogio de um teólogo humanista passeur! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §37 Da vida na morte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §38 À Sombra das Mulheres, sob a lente de Roland Barthes . . . . . . §39 Desilusões do amor fati! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . §40 Laudato Si’: Relação, latência e complexidade . . . . . . . . . . . . . . . §41 Quando Derrida acusou o delito de hospitalidade . . . . . . . . . . .
207 219 229 239 251 256 266
Poslúdio: Até que a sombra do Invisível nos banhe os pés! . . . . . . . . . .
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III
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prelúdio DO FUNDO ABISSAL
Se o leitor se demorar por breves instantes nas frases em epígrafe intuirá o andamento deste ensaio. São três movimentos rítmicos à sombra do Invisível… Não é habitual hoje falar-se de invisibilidade, quando tudo apela emocionalmente para que cada um deixe o seu rasto digital nas correntes fluidas do social! Antoine de Saint-Exupéry, no seu clássico O Principezinho, escrevia que «só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos […]. Os homens esqueceram essa verdade […]»1. Por muito que algo ou alguém procure mostrar-se ou exibir-se, há ainda um réstia de invisível que resiste à aparência ou à exibição total. O essencial está aí, por vezes subterrâneo e inaparente, impedido de se mostrar pela saturação da luminosidade áurea que nos cerca. A sombra dá à luz a forma capilar das coisas, a sua epifania ou desvelação, pela qual algo se nos revela no modo e no tempo próprios. É o invisível como dobragem do visível que nos faz ver mais do que aquilo que vemos num primeiro golpe de vista, que intui na inspecção do olhar o toque tímbrico da verdade que se manifesta e como se mostra à nossa fé perceptivo-afectiva. Este ensaio deseja ser uma meditação global da existência a partir de uma certa experiência crente. São fragmentos compostos como variações de um crer sapiencial, ainda por vir plenamente! 41 fragmentos de 41 noites, à 1 Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, Dom Quixote, Lisboa, 20154, pp. 71-72. Para uma abordagem filosófica, ver o ensaio de José Gil, A profundidade e a superfície. Ensaio sobre O Principezinho de Saint-Exupéry. Relógio D’Água, Lisboa, 2003. Numa outra perspectiva, em chave mais psicanalítica-espiritual, o livro de Eugen Drewermann, Lo esencial es invisible: «El Principito» de Saint-Exupéry: una interpretación psicoanalítica, Herder, Madrid, 2009.
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sombra do Invisível no deserto luzente (cf. Mt 4,2)2, em três livros ou géneros diversos, mas enlaçados por um fio comum primordial que os aproxima – a hermenêutica sapiencial da existência crente. A partir de uma dimensão ou compreensão sapiencial da vida, deseja-se reabilitar outramente uma forma de escritura sapiencial que entrelace «a reflexão e a meditação, o pensamento e a experiência, o esforço intelectual e a entrada no Desconhecido, o filosófico e o espiritual.»3 É a comunhão entre o Lesemeister (mestre de leitura) e o Lebemeister (mestre da vida), como era apanágio da tradição monástica cristã. O pensamento dado em e por fragmentos foi desde sempre um género literário muito cultivado (Heráclito, Marco Aurélio, Escrituras Sacras, Agostinho, Pascal, Kierkegaard, Nietzsche…). O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein escrevia: «Mostro aos meus alunos fragmentos duma imensa paisagem na qual eles não seriam capazes de se reconhecer»4. Na verdade, há sempre algo por desvelar-se ou por se revelar totalmente, mesmo se já expresso, acreditado ou visível no mundo, que nos lança à descoberta do ainda-não dito, visto ou tocado. Sem ser fragmentário, o cristianismo originário também vive do fragmento ou da provisoriedade, até que tudo se reunifique plenamente em Deus mesmo. Do fragmento, porque advém da sua própria matriz testamentária, recolhida de textos compostos e recompostos ao longo dos séculos, por autores vários, frequentemente anónimos. Da provisoriedade, pois a própria expressão neotestamentária do crer não tinha a pretensão de esgotar o mistério divino, mas somente invocá-lo e evocá-lo. A totalidade unitária de uma composição só é perceptível no detalhe e na junção dos seus fragmentos, tal é a imensidão da paisagem da possível experiência humana e religiosa de Deus invisível. O Verbo que deveio corpo para que a carne se torne Palavra é o ponto de fuga que harmoniza a unidade fragmentada da vida crente. 2 Para uma iniciação à experiência e simbólica do deserto, enquanto lugar de combate e de epifania espiritual, consultar a edição portuguesa de Cristina Campo e Piero Draghi (org.), Ditos e feitos dos padres do deserto, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003. 3 Alain de Libera, La mystique rhénane. D’Albert le Grand à Maître Eckhart, Seuil, Paris, 1984, p. 12. 4 Ludwig Wittgenstein, Culture and Value, Basil Blackwell, Oxford, 1984, p. 56.
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A aventura espiritual da experiência cristã – enquanto abertura transcultural e transfronteiriça ao rosto de outrem – evoca a presença do Absoluto no Concreto, do Todo no Fragmento, do «Eterno no Homem» (Max Scheler). Esta incompletude fundamental inerente à experiência religiosa cristã abre um espaço intersticial. Todo o ser humano vive imbricadamente com e no «Mistério Absoluto» (Karl Rahner)5. Independentemente do grau de adesão ou de crença religiosa, todos nós humanos, em algum momento da nossa existência, colocamos as questões últimas que nos lançam para fora de nós mesmos. E aí, então, descobrimos ou intuímos, nas horas limites da perda ou do gozo, que o Ser primeiro e último, mais do que estar além de nós, está possivelmente aquém, sob os nossos pés, no e pelo qual silenciosamente nos movemos e existimos. O poeta e escritor Paul Claudel fala precisamente do «Deus abaixo de nós»6, «Abismo sem fundo» (Mestre Eckhart)7, ou em linguagem heideggeriana, o sentido de Deus como «fundamento abissal» (Abgrund)8 que nos precede, constitui e revela o que somos a nós mesmos. Esta eclosão ou dar-se do ser mais íntimo de nós mesmos é a revelação da Origem originante, que nos lança no mundo, e a Destinação última da verdade do Ser que nos faz entrar no umbral absoluto da Vida, Deus, sem a qual todo o sentido seria redução ao puro dar-se do instante presente sem presença. Viver na provisoriedade é inerente ao caminho espiritual dos humanos, sem o qual tendemos a querer manipular e antecipar realidades que não dependem absolutamente das nossas faculdades ou vontade. Ter consciência 5 Cf. Uditori della parola, Edizioni Borla, Roma, 20022, pp. 29-42. Para captar a intuição teológica de Rahner, consultar «Viver no mistério. Entrevista com Karl Rahner por ocasião dos seus 75 anos de vida», in http://www.ihu.unisinos.br/575043, 14 de Janeiro de 2018. 6 Paul Claudel, Art poétique, Gallimard, Paris, 1951, p. 57. 7 Mestre Eckhart, El fruto de la nada, ed. e trad. Amador Vega Esquerra, Alianza Editorial, Madrid, 2018, p. 184. 8 Mafalda de Faria Blanc, Estudos sobre Heidegger, Guerra & Paz, Lisboa, 2018, p. 63: «O poeta é, então, considerado por ele [Heidegger] como aquele que, na época da ausência do Divino, se deixa tocar pelo seu rasto, a sua verdade, que esplende, na clareira do espaço do tempo, sob a forma do sagrado ou do salutar. Este é, por sua vez, a condição para se pensar a essência da Divindade e o sentido possível de Deus como fundo abissal que se reserva.» Esperamos futuramente regressar aqui para pensar esta ideia germinal de Deus como fundo abismal, que tem a sua origem, não em Heidegger, mas no pensamento da mística especulativa renana, que o filósofo alemão bem conhecia.
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do elemento provisório abre o nosso ser ao acolhimento de realidades ainda não experimentadas em absoluto. Desejamos o que nos falta, e amamos o que desejamos, mesmo sabendo que o fogo nostálgico do Infinito jamais será apagado pela ânsia de conhecimento absoluto ou de provas apodícticas que o atestem. Colocar-se à escuta dos indícios credíveis do Verbo que deveio corpo na carne do mundo9, até à vinda do tempo da plenitude da promessa, é, no fundo, a atitude que torna audível o eco das profundezas do mistério silente de Deus na orla insular do mundo. A possibilidade vivencial de um Deus como «fundo abissal» dá-se primordialmente na experiência encarnada da fé cristã, sempre aquém daquilo que possa dizer, imaginar ou experienciar. Esta ideia que vem da teologia mística sapiencial (afectivo-especular) coloca-se entre a ontoteologia metafísica (Deus dos filósofos) e a teologia da desvelação (o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob e de Jesus Cristo), pois, é desse fundo imemorial e originário, do qual o próprio futuro provém, que somos interpelados, na medida em que é no tumulto caótico do fundo do nosso ser que o «Deus divino» silente se faz audível. Esta imagética fiducial de Deus abissal une o poeta (Claudel), o místico (Eckhart), o filósofo (Heidegger), o salmista, protótipo do humano crente: «Do fundo do abismo gritei por ti, Yahvé: // Senhor, escuta a minha voz. // Estejam os teus ouvidos atentos à voz da minha prece!» (Sl 130). Do «Fundo abismal», no qual somos e nos movemos, escutamos os ecos de um outro modo de ser da nossa intimidade mais íntima, o ser que aí se vela desvelando-se no desdobramento carnal da história e das situações vividas. Deus e o humano ressoam, escutam-se vocalmente, no corpo agápico do Verbo, porque, na diferença que os une, «o fundo de Deus é o meu fundo, e o meu fundo, é o fundo de Deus.»10 Como bem assinala o filósofo François Julien, «após o tempo da sua dominação, depois da sua denunciação, hoje o da sua relegação, é necessário fa9 Cf. João Paulo Costa, Indícios – À escuta dos traços de Deus, UCP editora, Lisboa, 2016, no qual procurámos apresentar seminalmente a presença da Palavra carnal no âmago do pensamento e da criação artística contemporânea, nomeadamente no cinema e na pintura, a partir de um registo fenomenológico. 10 Mestre Eckhart, «In hoc apparuit caritas die in nobis» (Sermon 5b), in Id., Les Sermons, Albin Michel, Paris, 2009, p. 100. Para um maior aprofundamento, cf. Bernard McGinn, The Mystical Thought of Meister Eckhart. The Man from Whom God Hid Nothing, Crossroad Publishing Company, Nova Iorque, 2001.
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zer o balanço daquilo que o cristianismo trouxe ao pensamento»11. Voltar a equacionar e a repropor a questão de Deus no âmago da prática crente, não apenas do ponto de vista metafísico-substancial, mas essencialmente fenomenológico-vivencial/relacional, é uma urgência humana e espiritual. Algo que era dado como adquirido – um certo modo de crer religioso em Deus – já não o é de todo nem para todos! Não obstante a omnipresença objectivada das diversas confissões religiosas e das suas fórmulas doutrinárias identitárias, a experiência contemporânea do Transcendente escapa ao seu enquadramento tradicional. A urgência de recolocar a questão de Deus tem a ver com o humano mesmo, que sem a hipótese de Deus permanece mutilado na sua carnalidade e enclausurado em si mesmo. A tese de Dostoiévski, esse perscrutador das profundezas da psique humana, enunciada pela boca da personagem Ivan, de que sem Deus tudo é permitido, permanece actualíssima. O escritor Graham Green lamentava o facto de nos romances do seu tempo se ter perdido o sentido religioso, pois com ele «foi-se embora o sentido da importância das acções humanas.»12 Mas que Deus ou imagens de Deus poderão voltar a dar confiança ao ser humano? A questão da experiência humana de Deus é urgente. No interior do próprio debate teológico, da questão sempre actual – «Deus, tarefa do homem?»13 –, enveredou-se predominantemente para uma análise sociológica da legitimidade e da relevância do religioso no âmbito cultural – «A religião no espaço público»!14 Do questionamento pensante passou-se à terraplanada afirmação apologética da credibilidade da proposta evangelizadora. O discurso teologal é assim açambarcado pelos ditos estudos psicossociológicos da religião. Tal como nas sondagens para aferir a tendência dos consumidores, passam também eles a ter a palavra final na definição das reflexões e das próFrançois Julien, Ressources du christianisme. Mais sans y entrer par la foi, L’Herne, Paris, 2018, p. 7. Graham Greene, Santos e pecadores. Ensaios escolhidos, Livros do Brasil, Lisboa, 2019, p. 13. 13 Jean-Paul Sartre, «Merleau-Ponty Vivant», Les Temps Modernes 183 (1961), p. 275. 14 Talvez o estudo mais completo e recente sobre o velho debate da secularização, e das suas mutações epocais, nomeadamente a passagem da era secular (Charles Taylor) ao pós-secular e pós-cristão, com os diversos tipos de retorno do religioso, seja o estimulante trabalho de Paolo Costa, La città postsecolare. Il nuovo dibattito sulla secolarizzazione, Queriniana, Bréscia, 2019. 11 12
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prias práticas religiosas. Nesse sentido, o apelo nietzschiano é profético, sobretudo para a experiência cristã contemporânea encetar um caminho novo de aprofundamento sapiencial-poético e de autenticidade espiritual: «Sobretudo e antes de tudo, as obras! Quer dizer, o exercício, o exercício, o exercício! A “fé” adequada surgirá por si própria – Estejamos certos disso!»15 A atmosfera cultural ocidental transformou-se irredutivelmente. O centro e a fonte da reflexão teológica já não poderá ser exclusivamente a razão iluminada ou os estéreis debates em torno da modernidade e da pós-modernidade que uma certa teologia academicista ainda fomenta como modelo de toda a reflexão teológica. Sem a razão poética ou simbólica, a dimensão que move e abre o humano à possível experiência sensível e silenciosa do mistério da vida16, dificilmente a frescura da proposta cristã poderá trazer algo de novo ao nosso tempo. O cultivo da teologia sapiencial monástica é uma via nova de acesso ao mistério do homem, de Deus e do mundo. De que outro modo se poderia falar de Deus senão narrando-O poeticamente, como nos poemas salmódicos, ou na prosa poética litúrgico-testamentária? Não é a própria experiência crente cristã a narração poético-revelativa do evento histórico de Deus e dos humanos? Este é um outro caminho possível que encontra raízes profundas no interior da própria tradição cristã17, como bem o atesta a qualidade sensível do movimento místico-monástico. Como nos recorda o escritor religioso trapista Thomas Merton, «a sua teologia [dos padres primitivos e dos místicos] não se elaborava só com os elementos literais da revelação; estava edificada sobre a experiência da realidade inefável da revelação ou de Deus revelado no mistério de Cristo»18. Friedrich Nietzsche, Aurora, §22, Rés, Porto, s/d, p. 22. Cf. Michel Laroche, La voie du silence. Dans la tradition des Pères du Désert, Albin Michel, Paris, 2010. Aqui o autor reabilita a via mística do silêncio dos padres do deserto como caminho possível para o nosso tempo sedento de relação com o Transcendente. O autor constata o desconhecimento por parte dos ocidentais dos recursos espirituais das diversas tradições monásticas cristãs, o que explica a viragem do Ocidente para as práticas de meditação orientais. 17 Por exemplo, a mística beguina holandesa Beatriz de Nazaré, Sete maneiras de amor sagrado, Edições Afrontamento, Porto, 2018. É louvável o excelente trabalho de edição e tradução dos textos filosóficos místicos de tradição cristã, levado a cabo pelo departamento de estudos medievais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publicados com a chancela da editora Afrontamento. A literatura mística cristã é hoje motivo de análise e de estudo filosófico-literário. Nesse sentido, é original o recente trabalho do filósofo analítico Frédéric Nef, La connaissance mystique, Cerf, Paris, 2018. 18 Thomas Merton, Curso de mística cristiana en trece lecciones, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2018, p. 71. 15 16
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Este regresso à via crística da sapiência é um retorno ao acolhimento plausível da graça no âmago do caos ou dos abismos contemporâneos, possível e plausível, se atestada na comunhão despojada dos membros do corpo de Cristo. Para falar de ou sobre Deus (reflexão filosófica), é essencial aprender a falar-Lhe corporalmente (mística experiencial). As artes de sentido e poéticas podem jogar aqui um papel fundamental para a qualidade simbólica da expressão singular e comunitária da fé crística eclesial. Paradoxalmente, com o mundo que deveio «racionalmente adulto ou irreligioso», e que por isso mesmo rejeitaria a «hipótese de trabalho Deus»19 (Deus tapa-buracos ou o Deus ex machina) ou prescindiria da fé religiosa tout court, coexiste um mundo onde o humano ainda busca e permanece sedento de vida espiritual autêntica. No mesmo humano coexistem estes dois mundos! Esta realidade é mais visível na actual viragem do fatigado Ocidente para a novidade filosófica do Oriente e das suas práticas mentais à luz do yoga ou do budismo zen ocidentalizado. A ser verdade que o mundo se tornou cientificamente adulto, dessacralizado e os humanos se autonomizaram relativamente a Deus e à religião, como poderá esta nova realidade cultural e social ser uma oportunidade criativa para o próprio cristianismo? Bonhoeffer falava de um «cristianismo não religioso», de uma fé adulta, para o hodierno «homem irreligioso», mas ainda disponível para se colocar à escuta da sombra do Invisível. É esta sombra ou neblina matinal que se retrai para se revelar outramente na força da pobreza do Verbo que deveio carne para iluminar o humano. Resta a possibilidade de que uma outra gramática do cristianismo ou do assentimento crente seja passível de reabilitação e de reinvenção20 – a via mística (de μυστικός, desejo de adentramento no mistério íntimo da Realidade) do silêncio apofático de Deus. Nesta via exodal se dá a possível comunhão e concomitante fidelidade amorosa entre Deus e o humano, o céu e a terra, a desvelação de toda a vida cósmica totalmente recapitulada no ícone tangível de Deus invisível.
Dietrich Bonhoeffer, Resistenza e resa. Lettere e scritti dal carcere, Edizioni Paoline, Milão, 1988, p. 398. Para o efeito, o trabalho germinal do pensador jesuíta Michel de Certeau, La fable mystique, Vol. I-II, Gallimard, Paris, 1982; Idem, La faiblesse de croire, Seuil, Paris, 2003. 19
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O presente ensaio faz, de algum modo, um díptico com o nosso primeiro livro primaveril Indícios – À escuta dos traços de Deus. É nosso desejo vir a desenvolver uma fenomenologia indicial que reabilite a gramática teologal e espiritual do cristianismo, a partir das suas próprias fontes literárias e simbólicas (místico-apofáticas), em diálogo com outros campos do saber humano, como a filosofia fenomenológica ou a estética da obra de arte (pictural, literária, poética…). A prática de uma hermenêutica sapiencial da experiência crente poderá dar ao cristianismo a sua relevância cultural e textual. A relação dialógica da cultura humanística com o desejo de Deus poderá restituir ao cristianismo a sua força simbólico-sapiencial. Esta potência brota da experiência vivida e afectiva da verdade evangélica nos mais inesperados encontros inter-humanos. O desejo é o motor de toda a procura espiritual ou intelectual, pois, segundo Paul Ricoeur, «é o desejo do desejo que se apodera do conhecer, do querer, do fazer e do ser»21. O núcleo central deste livro [II] nasce de um contexto litúrgico-mistagógico, discernido e exercitado comunitariamente. Sem qualquer pretensão, acreditamos que possa ser os inícios de uma cristologia sapiencial ou meditativa que coloca a figura existencial de Cristo como charneira de uma intimidade trinitária entre a experiência silenciosa de Deus enquanto mistério e a complexidade da experiência filial humana. Deixamos intacto o movimento rítmico e litúrgico que pautou algumas destas meditações. Todo o texto ultrapassa sempre o limiar do contexto vital aonde nasceu, pois vive da tensão irresolúvel da evidência e da ambivalência que habita quem crê e quem não crê. O pensador italiano Foa pontualiza bem a questão: «Quem crê estará assim tão seguro do que acredita? E o não-crente estará tão seguro de que não crê? Sempre pensei que um crente, embora não o saiba, não deixa de procurar constantemente. As fronteiras da fé são incertas»22. Todo o humano crê
Paul Ricoeur, A simbólica do mal, Edições 70, Lisboa, 2018, p. 272. Vittorio Foa, «Como vivo no mundo, eis o meu fundamento», in Umberto Eco e Carlo Maria Martini, Em que crê quem não crê? Diálogo sobre a ética no final do milénio, Gráfica de Coimbra, Coimbra, 2000, p. 107. 21 22
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em algo que não controla em absoluto, como campo ou horizonte vital que torna possível e sustentável a nossa existência comum. Ao longo deste percurso heurístico à sombra do Invisível, evocaremos mais do que demonstraremos, não por simples efeito de estilo literário, mas porque é esse o nosso próprio modo de ser. Pensamos a Escritura em diálogo com o nosso tempo e com as múltiplas gramáticas existenciais para dizer o humano comum e a sua possível relação com o Transcendente. Como escreve Paul Beauchamp, «a Escritura, é o Deus inesperado; a leitura coloca a fé à prova como a vida põe a fé à prova»23. A Palavra (dabar/Verbum) é uma fenda que suspende o realismo naïf ou o hiper-realismo de tudo querer ver a nu, sem espaço para a respiração, a escuta, o odor ou o ritmo, para o que nos impressiona e nos comove inesperadamente. Só a paciência do tempo escutará o apelo de um evento físico ou carnal que interpela o nosso envolvimento responsorial. Reconhecer que as fronteiras do humano são instáveis, e que uma certa insegurança permite a relação cooperativa e criativa entre os humanos, ao invés do jogo de autodefesa da panóptica hipersegurança fronteiriça, é aceitar que não há diferenças humanas abissais. As distinções potenciam a clareza, mas também poderão gerar uma espécie de dualismo disjuntivo «nós-eles, «dentro-fora», «interior-exterior». A zona limítrofe das diferenças é muito ténue para que se possa afirmar categoricamente que a outra margem (incredulidade, filosofia, laicidade, razão…) do rio não habita a nossa própria margem (credulidade, teologia, religiosidade, fé...), e vice-versa. Só quem está inseguro de si mesmo erguerá barreiras exteriores que impeçam a aproximação das margens, a chegada do outro diverso de nós até ao nosso centro vital. A identidade singular ou comunitária nasce do intercâmbio com a diferença. Caso contrário, seria um monismo identitário, fechamento auto-referencial sem relação concreta com o ritmo pulsante das outras existências. A diferença não está tanto entre crentes e incrédulos, mas entre seres pensantes e seres não-pensantes. A demissão de pensar as diversas realidades do mundo dá 23
Paul Beauchamp, Parler d’Écritures saintes, Seuil, Paris, 1987, p. 41.
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azo ao redutor argumento do dogmatismo intelectual ou fideísta. Para o filósofo francês Emmanuel Falque, trata-se de «Passar o Rubicão»24, de atravessar e habitar por algum tempo ambas as margens, sem com isso perdermos o solo de onde partimos. «Não existem fronteiras entre as pessoas que sofrem, em ambos os lados da fronteira há sofrimento e é necessário rezar por todos»25. Não há humano que não sofra, uns mais que outros, mas todos sofremos de ausência, angústia ou de afecto recíproco. A ausência absoluta de outrem revela-nos a ausência do humano em nós. Mas talvez seja mesmo o facto de sermos seres páticos, por crença ou descrença, intelectual ou afectivo, de luto ou de amor, aquilo que fende as humanas zonas fronteiriças cerradas em si mesmas. Sofrer-com é consentir o outro na sua indelével singularidade e diferença. É encontrar a raiz da nossa comum e ancestral humanidade – a nossa filiação divina como a mais profunda e consistente salvaguarda do nosso ser comum (cf. Gl 4,7). É testemunha viva deste pensamento afectivo e paradoxal o insuspeito Milan Kundera, quando escreve: Tive uma educação de ateu que me agradou até ao dia em que, nos anos mais negros do comunismo, vi cristãos perseguidos. No mesmo instante, o ateísmo provocatório e jovial da minha primeira juventude desvaneceu-se como uma ingenuidade juvenil. Compreendia os meus amigos crentes e, arrastado pela solidariedade e pela emoção, por vezes acompanhava-os à missa. Fazendo-o, não chegava à convicção de que existe um Deus enquanto ser dirigindo os nossos destinos. Fosse como fosse, como podia eu saber disso? E eles, que podiam eles saber? Teriam a certeza de ter a certeza? Estava sentado numa igreja com a estranha e feliz sensação de que a minha não crença e a crença deles eram curiosamente próximas.26
24 Cf. Emmanuel Falque, Passer le Rubicon. Philosophie et théologie: Essai sur les frontières, Lessius, Bruxelas, 2013. 25 Etty Hillesum, Diário 1941-1943, Assírio & Alvim, Lisboa, p. 221. 26 Milan Kundera, Os testamentos traídos, Dom Quixote, Lisboa, 1993, pp. 15-16
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O que aqui propomos brota de uma confissão crente sapiencial aberta ao esplendor do rosto de Deus sempre desvelado no decurso da história. Sabemos que jamais será «possível desvelá-lo, porque ele é – como também poderia dizer-se – o próprio véu»27. Tocamos assim a orla do mistério onde se abre um espaço intersticial infinito entre o que podemos dizer e o que não é possível nomear adequadamente. É esta décalage de possíveis dimensões e de tensão que suscita o desejo da inabitação divina e nos torna disponíveis para o acolhimento do mistério santo da Vida. Sobre aquilo que não sabemos falar devemos silenciarmo-nos, o que é um outro modo de dizer a presença do Ausente, que ultrapassa a nossa própria razão compreensiva. O próprio filósofo Wittgenstein termina o seu Tractatus Logico-Philosophicus com um apelo ao silêncio: «Acerca daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio»28. O inexprimível «mostra-se a si mesmo», vivível como experiência imediata, intersubjectiva ou intercorpórea na história quotidiana, tal como a obra pictórica que se expressa na indizibilidade da coloração tímida ou das linhas compulsivas. A nossa proposta encaminha-se, ainda que só por ora tenuemente, para uma hermenêutica apofática29 da realidade, que abarca muitas das gramáticas artísticas do nosso tempo30. Esta via é parte fundante do património liteByung-Chul Han, A expulsão do outro, Relógio D’Água, Lisboa, 2018, p. 72. Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico/Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 20156, p. 142. 29 Para um aprofundamento da fecundidade da via místico-apofática para o pensamento filosófico-artístico, conferir os fecundos estudos do especialista alemão Alois M. Haas, Visión en Azul. Estudios de mística europea, Ediciones Siruela, Madrid, 1999; Viento de lo absoluto. Existe una sabiduría mística de la posmodernidad?, Ediciones Siruela, Madrid, 2009. Sob um outro prisma, em relação com uma possível estética apofática, o trabalho do filósofo catalão Amador Vega, Arte y santidade. Quatro lecciones de estética apofática, Universidad Pública de Navarra, Navarra, 2006; Victoria Cirlot e Amador Vega (eds.), Mística y creación en el siglo XX, Herder, Barcelona, 2006. Estas obras mitigam o preconceito de uma certa teologia academicista relativamente à literatura mística. Segundo estes, e outros autores, a tradição literária da mística especulativa, em particular a mística renano-flamenga (Mestre Eckhart, Tauler, Suso ou as monjas beguinas) foi sempre um manancial de inspiração para escritores, artistas ou pensadores. Pense-se, mais concretamente, por exemplo, em Martin Heidegger, que inicia as suas incursões filosóficas sobre fenomenologia da vida religiosa, ou as investigações de Ludwig Wittgenstein, no seu Tractatus logico-philosophicus, sobre a mística, a linguagem e o silêncio. Para um maior aprofundamento desta temática, conferir Ghislain Waterlot-François Trémolières-Mariel Mazzocco (eds.), L’Université face à la mystique: Un siècle de controverses, PUR, Rennes, 2018. 30 A via apofática não é apenas teológica ou místico-espiritual. Na verdade, esta corrente atravessa a própria experiência filosófica, artística e literária. Desde as Escrituras, Platão, Agostinho, Gregório de Nisa, 27
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rário-espiritual do cristianismo, ainda que olvidada pelo «positivismo teológico» que grassa nas infecundas ciências teológicas! Não só a orientação deste ensaio procura ser relativamente apofático, como o próprio caminho humano e espiritual de quem o escreve. Como humanos, buscamos sempre a experiência inaudita do mistério que nos habita poeticamente, «para além do bem e do mal» (Nietzsche) do discurso cínico da moral de ocasião. Que imagem melhor do que a da sombra para nos adentrar no mistério da invisibilidade visível? Como afirma Luigi Zoja, «na natureza, o homem reage simultaneamente a uma sombra com medo e interesse: pode indicar presença de um animal ou de um outro homem. As imagens da televisão ou do computador são mais realísticas do que uma sombra, mas menos verdadeiras como presença»31. A presença da sombra do Invisível abre um espaço de desejo e de procura ao humano, ou pelo menos a um questionamento de si, diante dessa presença paradoxal do Outro. Da procura se passa à invocação e da invocação ao crer. Como desejava veementemente Santo Agostinho: «Que eu te procure, Senhor, invocando-te, e te invoque crendo em ti»32. Não há procura sem invocação, nem invocação sem crer fiducial, que nos conduz à adoração despojada! A última parte do ensaio [III] vislumbra algo dessa via que se abriu após uma experiência (do lat. ex-peri-entia, aquilo que se viveu ou vivenciou; conhecer atravessando além dos limites, das fronteiras do já-sabido para o ainda-por-saber) monástica. Esta travessia profunda do deserto interior que abriu em nós uma brecha inapagável, talvez já há muito presente, mas ainda não plenamente reconhecida ou nomeada! Tal como o verdadeiro artista passa da figuração à abstracção paulatinamente, e talvez só tardiamente a ela volte, também aqui se vai do afirmativo/positivo inicial ao apofático/negativo progressivo, como quem ascende a escada de Jacob ou as muralhas infindáveis do castelo Gregório Nazianzeno, Máximo, o Confessor, Dionísio, o Areopagita, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa, Thomas More, Erasmo de Roterdão, Blaise Pascal, Montaigne, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Merleau-Ponty, Simone Weil, Teilhard de Chardin, Thomas Merton, Michel de Certeau, José Augusto Mourão, Robert Ryman, Ad Reinhardt, Malévich, Marc Rothko, Arvo Pärt, Krzysztof Penderecki, Ingmar Bergman, Enrique Díez Mirones ou o próprio movimento minimal Bauhaus… 31 Luigi Zoja, La morte del prossimo, Giulio Einaudi Editore, Turim, 2009, p. 15. 32 Santo Agostinho, Confissões, I, 1,1, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2011, p. 7.
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de Kafka. Esta travessia endógena da realidade só será compreendida e acolhida por aqueles e aquelas que por aí passaram. É um novo modo de olhar e de imaginar outramente a mesma realidade. Não foi Kupka o artista que se afastara da figuração sentindo visceralmente em si as fugas intempestivas de Bach? Talvez estejamos aqui ainda muito nos liminares e limiares dessa possibilidade, e por esse motivo continuamos a dançar à sombra do Invisível até que Ele nos ressoe ao pensamento, ao afecto e à imaginação! A passagem por e para este nível apofático de compreensão da experiência de Deus, só se torna possível quando se passa primeiramente pela figuração artística, ou pela assunção decisiva do Verbo encarnado na história e da sua presença agápica no âmago da vida crente. Os místicos apofáticos exercitaram-se longa e pacientemente nessa via, quase sempre situados no pulsar corporal de uma comunidade crente e orante. Eles faziam a experiência real da corporeidade vivida, de uma intersubjectividade do corpo crente, tecida de resistências e de iluminações que o (des)encontro com a alteridade sempre suscita em nós. Não viviam à parte do seu mundo, como preconceituosamente se pensa, mas faziam do distanciamento um modo privilegiado de estar próximo neste mundo! O artista catalão Antoni Tàpies escrevia que «é difícil conseguir imaginar hoje uma mística que não seja activa, isto é, que não esteja ligada a atitudes éticas que – quer se queira quer não – se repercutirão no testemunho social e político […]; mas trata-se de nos esvaziarmos de falsas concepções, coisa que tradicionalmente não conduz ao afastamento do mundo mas sim, pelo contrário, à compreensão e união com tudo, desde as galáxias mais insondáveis até à mais humilde cozinheira»33. Se por instantes tal distanciamento houver, é para nos aproximarmos outramente da realidade quotidiana, de modo a não sermos ingenuamente absorvidos e submetidos à atitude natural de um «pensamento de rebanho». Esta conversão conceptual do pensamento ou da experiência religiosa de Deus é fundamental para a compreensão sapiencial da existência humana. Como afirma o teólogo alemão Karl Rahner, «o cristão não pode colocar Deus como uma partida no cálculo da vida, mas deve aceitá-lo somente no silêncio e na oração como 33
Antoni Tàpies, A prática da arte, Livros Cotovia, Lisboa, 2002, pp. 169-171.
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o mistério incompreensível, como início e fim da sua esperança e como a própria salvação unicamente decisiva e omnicompreensiva»34. Na mesma esteira, o filósofo do silêncio Merleau-Ponty, num dos seus fragmentos de O visível e o invisível, concebia a «“filosofia negativa” como “teologia negativa”» (apofática)35, a partir daquilo que é subliminar ou subterrâneo ao próprio mistério absoluto do Ser. Esta via é uma tentativa de superação do «positivismo filosófico/teológico» conceptualista herdado do pensamento cientificista da modernidade. O próprio andamento reflexivo deste ensaio reflecte o ritmo pendular entre o catafático (figural abstracto) e o apofático (abstracto concreto), espécie de hiperdialéctica de «sã ambiguidade» (Merleau-Ponty), em direcção à via eminente ou amorosa, ainda por vir. «Deus, por Si mesmo, só Ele e mais ninguém, é suficiente em plenitude – e até bem mais do que isso! – para satisfazer a vontade e o desejo da nossa alma»36! Ele que é «conhecido como o não-conhecido»! A musicalidade que ressoa em nós expressa essa sombra de invisível que dobra e anima o próprio enigma da visibilidade. No visível da hospitalidade o Invisível faz-se «terra carnal»37, tal como outrora ouvimos a Palavra que veio para habitar «em silêncio no corpo/a procissão nocturna das vértebras luminosas»38. Todo este movimento é uma dança lúdica! O peso da gravidade que sustém o acto dançante advém da travessia solidária com os dramas humano-ecológicos do nosso tempo. «Dançar é transformar o esforço em graça» (José Antonio Marina). É mergulhar corporalmente nesse abismo insondável para devir diverso e aberto sobre a paisagem do mundo da vida. Nesta dança corporal, onde o «Je est une autre» 39, como escrevia o jovem poeta Rimbaud, se faz gesto singular o desdobramento corporal de si (dádiva) à alteridade que nos resiste ou recebe. É atravessando a fronteira, a borda, ou dançando sobre ela, que 34 Karl Rahner e Karl-Heins Weger, Problemi di fede della nuova generazione, Queriniana, Bréscia, 19832, p. 199. 35 Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, Gallimard, Paris, 1964, p. 233. 36 Anónimo (século XIV), A nuvem do não-saber, Documenta, Lisboa, 2018, p. 22. 37 Charles Péguy, Eve (1913). 38 Adelino Ínsua, Livro das esmolas, Opera Omnia, Guimarães, 2008, p. 16. 39 Artur Rimbaud, Lettre du Voyant, 15 de Maio de 1871.
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degustaremos a magnificência de estarmos-aí-juntos-sem-mais. Não apenas passagem esporádica sem permanência, mas travessia radical do nosso pathos narcísico. A fé é a visão ainda turva desse umbral que trespassa o aparentemente intransponível, que atravessa o abismo da noite com a esperança da clareira da beleza cruciforme, passando em silêncio da angústia para a coragem de ser criativos na «caoticidade» quotidiana. Do traço original de alguns textos procuramos manter algum do seu registo coloquial, interrogativo-interpelativo, dado que foi num contexto meditativo-anagógico («acto de elevação» que a contemplação convoca) que nasceram a maior parte deles. A oralidade precede a escritura e amplia-a. Dá-lhe uma intensidade presencial e expressiva que a escritura isolada do proferimento torna impossível de transparecer para o leitor. Procedemos a uma reformulação profunda e ampliação global do texto original, acrescentando alguns elementos que permitam um outro desabrochamento das evocações apresentadas. O que aqui se apresenta é ainda fragmento aberto e infinito de um crer sapiencial, que só quem se sente Homo viator poderá hospedar dentro de si. Se Deus é o Aberto, o Indefinido, o Ilimitado, nas suas fronteiras e actuações, e nos modos da sua presença, como poderíamos não habitar e caminhar no limiar das coisas? Escrevia o poeta Rilke: «É toda olhos para ver o aberto, a criatura»40, no começo de «A Oitava Elegia». O percurso destas breves meditações procura manter o seu vestígio temporal originário. Iniciaremos com a espera vigilante [I], realidade a partir da qual o cristianismo se torna evento singular de esperança, até à vida ordinária e quotidiana [II], onde a epifania divina se manifesta e plenifica, como redescoberta inaugural da manhã silenciosa de um mundo novo ainda por vir e em devir [III]. O futuro de Deus vem ao nosso presente como promessa de plenitude que reconcilia os ressentimentos de toda a nossa memória passada. Acreditamos que, mesmo na confluência de géneros de escrita ou modos de pensar, e da abrangência das linhas reflexivas, este ensaio poderá ser lido como um Livro das Horas, em três livros, sem perder o entrela40
Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, Quetzal, Lisboa, 2017, p. 61.
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çamento temático e estilístico que os aproxima. A sombra do invisível (cf. Lc 9,34-36) é o horizonte que reúne em si cada um destes fragmentos de um crer/cristianismo que se deseja sapiencial. Não tememos o estilo sincopado, elíptico ou alusivo com que pontuamos o andamento reflexivo deste ensaio. Parece-nos que esse modo evoca mais do que demonstra, vive mais do que conhece, ressente mais do que vê. As meditações que se seguem são variações dançantes em torno da Voz que deveio carne, do Verbo amoroso que habitou entre nós, deixando tudo em aberto, sobretudo a experiência pessoal da sua vinda no mais íntimo da Vida. Como a dança, estas declinações são epifanias esboçadas. Elas suspendem a pretensão de tudo dizer, a lógica dos silogismos compostos, a transparência conceptual definitiva, para dar lugar à brecha, ao fragmento, à brevidade dissonante, que torna inevitável a sombra de luz que nos fere. É o movimento de um corpo em marcha, em contraponto, como nas rugosas esculturas de Giacometti, onde o corpo é aquilo que resiste à erosão da fluidez temporal, que se inscreve no solo da vida onde várias histórias e narrativas se cruzam. É a odisseia de Deus com os humanos! Na verdade, dançando, ainda que só imaginativamente, tudo se torna risivelmente suportável, até o «pathos trágico» nietzschiano. Tudo se transforma em advento da promessa de um Deus sensível ao humano! Esperamos que este breve ensaio possa vir a cair nas boas graças do leitor/a que dele se abeirar e captar a sua benevolência em favor desta dança à borda de uma existência crente. O desejo de ser em Deus a isso a impele, a buscar o reencontro com a Outrocidade que vive mesmo à e na sombra do visível. Valerá para outras situações e pensamentos o versículo com que S. João termina o seu evangelho: «São muitas as outras coisas que Jesus fez, se fossem escritas uma a uma, não penso que o mundo tivesse espaço para tantos livros escritos» (Jo 21,25)41. Não obstante a pretensão de alguns «teólogos de profissão» à totalidade sistémica, sem atravessarem a margem da dubitação 41 De agora em diante, para os textos bíblicos, seguiremos a edição portuguesa da Difusora Bíblica e a tradução mais literária de Frederico Lourenço. Em alguns casos, a edição italiana TOB e a edição francesa La Bible de Jérusalem (ed. Cerf ).
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de si mesmos, na origem do pensar está o fragmento, no qual o Absoluto vem montar a sua tenda para habitar e transformar silenciosamente os nossos corpos de carne em corpos de luz. À experiência escritural segue-se a experiência do corpo eclesial onde todas as coisas do começo se inscrevem, actualizam e reinventam a partir da escuta originária da Palavra que se faz corpo no corpo vivido de cada crente. As reflexões aqui esboçadas desejam ser apenas um fragmento de dança à borda do Poço, à margem das trincheiras truncadas à possibilidade das diferenças fecundas. São indícios de uma presença ausente até que a sombra do Invisível banhe os nossos pés errantes, apazigue a nossa sede de verdade e suscite sempre em nós o desejo de acolher atenciosamente o Adveniente que corporalmente vem secretamente à nossa intimidade mais íntima. «Guarda-me como a pupila dos teus olhos; esconde-me à sombra das tuas asas […]. Eu, porém, pela justiça, contemplarei a tua face» (Sl 17,8.15). Sem ceder às contraposições entre o sensível e a razão (Pascal), a compreensão reflexiva e a experiência espiritual (Agostinho), valerá sempre tentarmos a fatigosa comunhão das diferenças ou a «coincidentia oppositorum» (Nicolau de Cusa) que nos habitam e estruturam enquanto «humanos capazes de Deus e de Deus capaz do humano»42. Do que virá, fica-nos a síntese inigualável do seguinte aforismo agostiniano: «Não importa se houver alguém que não te entenda. Esse mesmo rejubile dizendo: “Que significa isto?”, rejubile ainda assim e goste mais de te encontrar, não encontrando, do que de não te encontrar, encontrando»43. Resta-me agradecer profundamente ao Eduardo Jorge Madureira e ao Rui Pedro Vasconcelos, pela leitura cuidada e pelas amplas sugestões em torno das ideias deste ensaio. À professora Maria Raquel Cortez pela sua minuciosa atenção ao verbo gramatical. Ao editor Manuel Rosa que o acolheu e ousou publicá-lo com a excelência artística que lhe é reconhecida. Qualquer imprecisão ou inexactidão textual é da exclusiva responsabilidade do autor deste ensaio. 42 Cf. Richard Kearney, «L’Homme capable-Dieu capable», in «L’Homme capable – Autour de Paul Ricœur», Rue Descartes, Hors-série (revue du Collège international de philosophie), PUF, Paris, 2006. 43 Santo Agostinho, Confissões, I, 6,10, p. 11.
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§1 DA DANÇA CRENTE À BORDA DO POÇO
Também tenho sede [...]. Vamos procurar um poço44. O pensador religioso honesto é como um funâmbulo. Pela aparência, é como se andasse sobre o ar. O chão que pisa é o mais estreito que possa imaginar-se. E contudo é realmente possível andar sobre ele.45
É conhecida a história acerca do filósofo Tales de Mileto que descobrira na água o elemento primordial e absoluto. A água é a ἀρχή (origem) de todas as coisas, pela qual tudo vem à existência, subsiste e existe eternamente. Conta Platão, no seu livro Teeteto, num dos diálogos entre Sócrates e Teodoro de Cirene, que Tales, aquando de uma promenade filosófica, abstraído de tudo o resto, contemplava estupefacto a beleza do céu estrelado. Tal era o espanto do filósofo diante do esplendor estrelar – e assim começou a filosofia a partir do assombro tenebroso (thâuma) diante da Natureza (phýsis) e da infinitude cósmica – que acabou por cair dentro de um poço de água, provocando a zombaria e o deleite de uma escrava da Trácia que por ali passava. Teodoro: O que queres dizer com isso, Sócrates? Sócrates: Tal como, quando Tales observava os astros, Teodoro, e olhava para cima, caiu num poço. Conta-se que uma bela e graciosa serva trácia disse uma piada a propósito, visto, na ânsia de conhecer as coisas do céu, deixar escapar o que tinha à frente,
Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, p. 75. Ludwig Wittgenstein, Culture and Value, p. 73. Para uma análise deste aforismo de Wittgenstein, e da concepção wittgensteiniana de que «a cultura é uma regra monástica», o ensaio do filósofo Peter Sloterdijk, Tens de mudar de vida, Relógio D’Água, Lisboa, 2018, p. 171. 44 45
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debaixo dos pés. Esta graça serve para todos os que se dedicam à filosofia. Pois, a uma pessoa assim, o que lhe está próximo, o seu vizinho, é um desconhecido; não só o que faz, como se é mesmo um homem ou qualquer outra criatura. Mas o que é o homem e o que deve fazer ou sofrer uma natureza desse género, diferente das outras, é isso que investiga e se preocupa em explorar. Suponho que compreendes, Teodoro, não?46.
A metáfora do poço é milenar! O desejo de conhecimento move o génio humano e provoca o engenho artístico. Tales dança diante da música cósmica interestelar. A descoberta inadvertida da «água» simboliza o desejo de descobrir o ser do qual provimos e ao qual retornamos47. Mais do que um elemento físico sensivelmente perceptível, a água, enquanto elemento primordial, que ultrapassa a sua forma líquida, manifesta-se como potência criadora de vida. Escrevia Aristóteles que «o nutriente de todas as coisas é húmido […]: a água é o princípio da natureza das coisas húmidas»48. É a água que gera o movimento seminal das coisas, abrindo zonas húmidas para a invaginação da graça que frutifica os nossos corpos fatigados pelo peso dos dias. Na verdade, como poderíamos navegar sobre uma lastra de mármore marítima rígida? A condição líquida é o requisito para o manejamento flexível, a navegabilidade flácida, a transitabilidade fluida das coisas e dos corpos. O nosso existir concreto manifesta a vida imemorial em devir que nos constitui, que recebemos passivamente em mãos, mediante a qual chegamos a ser aquilo que somos. Espantar-se com tudo o que volve e nos envolve, é exercitar cuidadosamente a atenção, gozar do inesperado presente nas coisas mais insignificantes e até adversas. Talvez Nietzsche tenha sido o pensador que mais radicalmente colocou a relação inusitada do pensamento com a dança. «O pensamento quer Platão, Teeteto, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 20154, pp. 247-248. Cf. o livro artístico de João Miguel Fernandes Jorge e Rui Chafes, O lugar do poço, Relógio D’Água, Lisboa, 1997, p. 32: «A água restou sobre as lájeas, espelho / em que se projectava o traço distorcido da face. / Posso segui-lo como quem parte para longínquos tempos; / o nome tem a imagem dessa água. / […]». 48 Aristóteles, Metafísica, I, 3-5. 46 47
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poslúdio: ATÉ QUE A SOMBRA DO INVISÍVEL NOS BANHE OS PÉS!
Nenhuma palavra humana, nenhuma imagem e nenhum conceito se entreporão entre mim e ti, tu mesmo serás a única palavra de júbilo do amor e da vida, que preencherá todos os espaços da minha alma.332 E uma nuvem escondeu-o dos olhos deles. (Act 1,9)
A imagética ou a metáfora da sombra333 assustará ainda os cultivadores das ideias «claras e distintas». Somos inevitavelmente herdeiros de uma forma mental de pensamento cartesiano, que procura tudo ver a nu, ou sob o prisma da conceptualidade ou das enteléquias da hiper-racionalidade. Segundo o academicismo intelectual vigente, que pouco ou nada considera o não-filosófico, esta seria única e exclusivamente a via de acesso privilegiado ao amplexo da realidade. Esta forma mental cartesiana atingiu todos os âmbitos da experiência humana, desde a teologia conceptual hegeliana à arte experimental dodecafónica até ao modelo técnico-científico do ciborgue. Tudo em nome da procura da forma pura, a essência (εἶδος) das coisas, na sua crueza material e matemática. Perde-se a paisagem para a geografia, o lugar Karl Rahner, Appels au Dieu du silence. Dix méditations, Salvator, Mulhouse, 19704, p. 52. Para reabilitar o imaginário das sombras, a obra singular da artista Lourdes Castro, nomeadamente À luz da sombra (Assírio & Alvim, 2010), Sombras à volta de um centro (Assírio & Alvim, 2003) e o «O grande herbário de sombras» (1972). Dentro desta plêiade se apresentam diversas modalidades do amplo conceito de «sombra»: «Sombras Recortadas» (na verticalidade), «Sombras Projectadas», «Teatros de Sombras», «Sombras Deitadas» (na horizontal, sobre lençóis). Como a própria artista dizia: «A sombra tem tudo o que tem o objecto e o mínimo possível para ser reconhecido, apenas o contorno…» (Entrevista ao programa «Um dia com…», RTP, 2 de Novembro de 1970). O discurso da sombra e das suas múltiplas desvelações místico-poéticas está também muito presente na obra original da artista iraniana Shririn Salehi. 332
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para a geometrização da espacialidade, a vivência do tempo para a sua hipercronometração, o evento para a matrização algorítmica da existência. O desejo cartesiano de uma «mathesis universalis» total e sistémica está prestes a realizar-se, a sair do abismo do sono, como paradigma universal do conhecimento humano, inaugurando-se uma nova ontologia que prescinde da carnalidade sensível do humano. Todavia, já para Merleau-Ponty, o centro da procura filosófica não seria tanto o mundo transparente, sem sombras nem opacidade, mas «a vida ambígua onde se faz a Ursprung das transcendências»334, para aí encontrar um Logos mais fundamental do que o do pensamento objectivo. Aqui, o mundo natural e social encontraria a sua desvelação primordial de sentido, aquém e além da tentação de um sistema positivo de explicação totémica. Este modo de pensar, não somente a partir do conceito ou do silogismo apodíctico, mas da sombra ou da ambiguidade que dobra as realidades, inaugura uma ontologia/teologia lateral ou oblíqua, que é, no fundo, aquilo a que a tradição cristã apelidou de teologia ou mística apofática. À luz da sombra se revela algo mais profundo que a contemplação directa da luz, na medida em que o invisível é uma dobragem do visível, ao qual acedemos ou captamos de um modo perfilado ou por esquissos. Da sombra e das suas colorações se poderá vislumbrar uma teologia fenomenológica indicial. Deus – silêncio subtil e tímido na hodierna carne do mundo, mas sempre presente ou sussurrante – Luz da sombra, «fluxo abissal sem fundo»335 (Hadewijch de Brabante), «Abismo (Ab-Grund), Fundo sem fundo»336 (Mestre Eckhart), no qual o ser humano («alma») contempla e se constitui. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, num dos seus aforismos «Lutas novas», de A gaia ciência, dava o tom da sua profecia trágica: «Deus morreu: mas tais são os homens que haverá talvez ainda, durante milénios,
Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, p. 423. «Poème 16», in Hadewijch d’Anvers. Écrits mystiques des béguines / Poèmes spirituels, trad. do neerlandês medieval por J.-B. Porion, Seuil, 1954, rééd. 1994, p. 128; Cf. também Lettre XVIII, in Hadewijch d’Anvers, Lettres spirituelles. Sept degrés d’amour, Éditions ad Solem, Genebra, 1990, p. 147. 336 «Sermon 59», in Maitre Eckhart, Les Sermons II [31-59], trad. fr. Jeanne Ancelet-Hustache, Seuil, Paris, 1978, p. 84. 334 335
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cavernas nas quais se mostrará a sua sombra… E nós…, é ainda necessário que vençamos a sua sombra»337! A sombra de Deus invisível, mesmo em tempos de desafeição religiosa e de descrença espiritual, continua a manifestar-se, entre os escombros existenciais da sua morte metafísica, ao espírito humano. Pois, como escrevia Agostinho de Hipona: «Tu nos fizeste para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti. Senhor, faz com que eu saiba e compreenda se devo invocar-te primeiro ou louvar-te, se primeiro devo conhecer-te ou invocar-te»338. Esta inquietude é o movimento intemporal que atravessa o humano desde as origens, expressa por diversas linguagens ou gramáticas espirituais. A relação com o mistério último e absoluto é sempre um combate nocturno, que só a sombra poderá presentificar a ausência do corpo de Deus, entre silhuetas aparecentes que velam o Ser no seu próprio desvelar-se, precisamente como memória afectiva de uma ausência que se faz presente339. A sede ou o desejo de Absoluto, seja como autotranscendência do sujeito além de si mesmo seja como experiência religiosa, não é senão a busca para encontrar um centro de repouso. A nostalgia de Deus habita o humano340. Ela é e será sempre um espinho cravado na nossa carne, quer o reconheçamos explicitamente ou não. A metáfora da sombra permite manter a tensão entre a procura e o encontro, o velamento e o desvelamento do rosto de quem se procura. Ela permite salvaguardar a presença do Ser no seu próprio ocultamento. Como foca justamente a psicanalista crente Marie Balmary: «Aqueles que foram obrigados a crer num deus Omnipresente, Todo-Poderoso foram entregues em crianças ao grande Olho que vê sempre tudo, em todo o lado. Esta presença, trauma espiritual, provoca a angústia, 337 Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, Livro III, §8, Guimarães Editores, Lisboa, 1997, p. 129. Para desmitificar o Nietzsche das apressadas interpretações teológicas, o pertinente livro de Didier Franck, Nietzsche et l’ombre de Dieu, PUF, Paris, 1998. 338 Santo Agostinho, Confissões, I, 1,1, p. 5. 339 É inaugural sobre a teologia da sombra e o princípio da encarnação (simbólico-poética e histórica), a obra de Anne Marie Reijnen, L’Ombre de Dieu sur terre. Un essai sur l’incarnation, Labor et Fides, Genebra, 1998. 340 Cf. George Steiner, Nostalgia do absoluto, Relógio D’Água, Lisboa, 2003, particularmente as pp. 11-22 («Os Messias seculares»).
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penetrando não somente a alma mas também o corpo, da qual nenhuma medicina ou ciência pode libertar»341. O caminho aqui esboçado permanece ainda envolto na sombra da «nuvem do não-saber», pois só o tempo paciente ditará o seu andamento rumo a uma teologia sapiencial da sombra e das suas possíveis concretizações (espiritual, artística ou filosófica…). Antecipando a impotência dos sistemas filosóficos e teológicos pretensos à totalidade gnosiológica ou da transparência conceptual, o autor anónimo do clássico A nuvem do não-saber (século XIV) adverte todo o seu potencial leitor: «Dispõe-te a permanecer na escuridão o mais que puderes, clamando sempre por Aquele que amas. É que, se alguma vez O houveres de sentir ou ver, na medida do possível neste mundo, tal só deverá acontecer nesta nuvem e nesta escuridão»342. É o «santo desejo» (Santo Agostinho)343 que subjaz a esta procura do luminoso mesmo na obscura pulsão dos nossos afectos, pensamentos ou desejos. É a alegria pascal de desejar ser encontrado lá onde o Deus vivente se oferece festivamente em ágape ao peso da nossa melancolia diurna344. O humano, a dança, a festa. Tudo à sombra do Invisível que nos faz dançar em ronda amorosa libertando-nos do exílio da angústia e da submissão alienante (cf. Ex 5,1-3)! A sombra da nuvem revela a claridade de uma presença discreta, que actua no centro nevrálgico do ser, e que nos mobiliza para o gesto silencioso da vida íntima em relação com os demais. A percepção dessa presença implica sensibilidade perceptiva, a captação quotidiana que só a atenção torna capaz de desejar o que ainda não vemos. A sombra do Invisível já actuante em nós, mesmo antes de a reconhecermos explicitamente. É o extraordinário no ordinário e o ordinário no extraordinário! Nada de exoterismos, mas de olhares sensíveis ao surgir do mistério na manhã inaugural do mundo. Mas como poderá o humano voltar a desejar Deus, ou até o outro que está aí no Marie Balmary, Freud jusqu’à Dieu, Actes Sud, Paris, 2010, p. 14. Anónimo (século XIV), A nuvem do não-saber, p. 20. 343 Cf. o estudo detalhado de Isabelle Bochet, Saint Augustin et le désir de Dieu, Études augustiniennes, Paris, 1982. 344 Sobre isto, ver a metáfora fílmica O festim de Babette, baseado no romance de Karen Blixen, com o mesmo título. Cf. a análise do filme no nosso livro Indícios – À escuta dos traços de Deus, UCP, Lisboa, 2016. 341 342
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quotidiano, em tempos de desafeição, de discursos amorosos estilhaçados, onde a perda do Mistério, por assim dizer, do espanto, parecem olvidados pelos consumos globalizados e digitais que homologam todas as diferenças? Como ultrapassar a nuvem da obscuridade do não-saber, entre mim e Deus, entre mim e os outros, se é que é mesmo desejável ultrapassar esse limiar? O termo desejo invade hoje os títulos bibliográficos de vários géneros literários. Podíamos até quase falar de uma avalanche febril desta palavra e dos seus avatares. Virou também moda o desejo nas coisas de fé, influxo que advém da tentação de tudo psicologizar, fazendo do religioso o manual de auto-ajuda. Todavia, o acto de pensar pede o «elogio da lentidão», questionamento radical na demoração da linguagem. Se, para usar uma bela fórmula heideggeriana, «a interrogação é a piedade [Frömmigkeit] do pensamento»345, o «desejo do Desejo que nos deseja é a piedade de uma existência crente». Piedade enquanto maneira como o pensamento/crer responde-corresponde àquilo que é preciso pensar/crer desejando o que se pensa ou o que se crê. Já o próprio Montaigne nos advertira que «sem esperança e sem desejo não vamos a lado nenhum»346. Na verdade, como poderíamos suportar o peso dos dias? É mester suspender o desejo para que possamos ter desejo de desejar! Há uma sombra que encobre o esgotamento total da procura, que nos relança como errantes e nómadas na decifração incessante do enigma da vida. Os grandes místicos347 e poetas sempre falaram do desejo, a partir do seu desejo vivido e padecido, não tanto como falta esotérica de algo, quanto da impossível união em vida com a fonte de toda a Vida, Deus. Há também um excesso de desejo que poderá obstipar a relação, a intimidade ou a amizade, sobretudo a insaciável satisfação absoluta do objecto desejado. Os místicos sabem por experiência própria dos perigos desta sede sideral, da inquietude infindável. O dessossego ou a sede de infinito neles só era viável, 345
Martin Heidegger, «La question de la technique», in Essais et conférences, Gallimard, Paris, 1958,
p. 48. Michel de Montaigne, Essais (1580), Firmin Didot Frères, Paris, 1836, p. 458 (Livro III, cap. V). Para uma introdução à literatura mística, o precioso livro do já citado escritor cisterciense Thomas Merton, Curso de mística cristiana en trece lecciones. 346
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não apenas poética ou literariamente, porque a sua vida estava inscrita numa comunidade crente. Havia uma estabilidade material e emocional mínima que lhes garantia os seus êxtases espirituais. Para o psicanalista lacaniano e humanista Massimo Recalcati, Na promessa de libertar o desejo dos laços de uma moral civil repressiva e antiquada, o discurso do capitalista acaba por sancionar a sua mortificação, porque o desejo, para ser fecundo, para ser generativo, para alimentar outro desejo, para animar o horizonte positivo de Algures, necessita de uma Lei […]. A palavra desejo não define um gozo ilimitado, sem Lei, errático, privado de responsabilidade, ferozmente compulsivo e desregulado, quanto a capacidade de trabalho, de iniciativa, de projecto, de lançamento, de criatividade, de invenção, de amor, de permuta, de abertura, de generatividade.348
Como bem intuíram os místicos, a saturação do desejo turva a percepção da realidade, ao não deixar espaço para a expressão autêntica de si nessa relação com o que vemos, tocamos ou odoramos. Daí a necessidade, após esse impulso de desanuviar a mente, de «limpar» as imagens e os pensamentos que perturbam o acesso à presença unitiva com Deus. O corpo joga um papel maior nesta maiêutica. A quietude corporal, a dança interior sem movimento, a deslocação ondular sem navegação espacial, é o espaço intersticial para que o encontro surja. A diferença relativamente à via psicologista reside precisamente na exercitação desta quietude corporal absoluta, na acalmia dos frémitos pulsionais do coração e da razão, na colmatação do desejo com o Vazio absoluto. Esta atitude não é uma simples ponte de passagem para o ser, mas é já ser, ou melhor é um outro modo de ser carnal enquanto ser, não sem o corpo, mas nele e com ele, pelo qual nos abrimos à superfície do mundo. A questão de Deus, que vem ao desejo, não apenas à ideia349, como possibilidade boa para o humano350, é a interrogação teologal novamente a ser Massimo Recalcati, Ritratti del desiderio, pp. 15-16. Cf. Emmanuel Levinas, Dieu qui vient à l’idée, Vrin, Paris, 1982. 350 Cf. Carmelo Dotolo e Gianni Vattimo, Dio: la possibilità buona, Rubbettino, Soveria Mannelli, 2009. 348 349
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reabilitada. Como dizer Deus, se as palavras que para tal usamos no-Lo ocultam, ao mesmo tempo que pugnam por desvelá-Lo? As variações que aqui se apresentaram em torno da dança à sombra do invisível não são senão essa possibilidade de dizer e, porventura, de confessar Deus, como horizonte último e definitivo do destino humano. Entre a consonância e a dissonância, toda a experiência humana de Deus, sensível ou inteligível, racional ou emocional, narrativa ou argumentativa, é marcada pela presença de uma ausência, para a qual as palavras ficam sempre aquém da sua manifestação. Os poetas místicos sabiam bem dos limites da linguagem para dizer o Indizível, Impossuível e o Inenarrável. Por vezes, só o «silêncio santo» poderá absolutamente dizer-nos algo sobre Deus. O excesso de religião não se pactua com este silêncio místico primordial, porque com o zelo devorador se quer colmatar imediatamente todo o desejo. O desejo pode ser perverso quando «este frenesi é causado por uma ânsia daquilo que desejo, em lugar de uma confiança espiritual»351, de um abandono fiducial à «incompreensibilidade do mistério profundo da realidade». A sombra guarda em si a presença do mistério, a presença de uma ausência e a ausência de uma presença, que é Deus mesmo. Interpretando o pensamento de Michel de Certeau, autor de A fábula mística, Joseph Moingt afirma que a «experiência cristã de Deus ou de Cristo – exprime-se na fórmula da oração “não sem ti”, dupla negação, que exprime a proximidade de Deus sob o modo de ausência, da despossessão, da privação, da perda, ou do desejo escatológico: “Que jamais eu esteja separado de ti”»352. Há uma sombra narcísica em nós que oculta a desvelação do Ser. Paradoxalmente dá-se sempre uma «inexperiência presente» de Deus, que é ao mesmo tempo a possibilidade de toda a experiência de Deus no corpo da finitude. «O presente não é o tempo da ausência de Deus […]. Mas se há transcendentalmente presença aqui e agora, trata-se de uma espécie de presença que a deixa
Flannery O’Connor, Um diário de preces, Relógio D’Água, Lisboa, 2014, p. 17. Joseph Moingt, Figures de théologiens, Cerf, Paris, 2013, p. 182 («Michel de Certeau: “Respecter les zones d’ombres qui décidément résistent”», pp. 173-185). 351 352
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em suspenso para aceder à mais-que-presença da manifestação definitiva do Absoluto no reino da contingência»353. É aqui que se dá o paradoxo da revelação bíblica, que está sempre mais além da experiência presente que dela possamos fazer, como abertura ao futuro de Deus que nos chega presentemente, o qual se retrai no momento em que se dá à sensibilidade cognitiva e gustativa dos humanos. Como diz o místico inglês anónimo: «É que, se alguma vez O houveres de sentir ou ver, na medida do possível neste mundo, tal só deverá acontecer nesta nuvem e nesta escuridão»354. É a obscuridade da sombra que nos faz adentrar na luz que brota do mistério inefável, pressentido no rosto da carne do outro e do mundo. Há um provérbio persa que diz assim: «Um rei justo é sombra de Deus sobre a terra» (Nizam al-Mulk). Também a escritora católica Flannery O’Connor confessa essa sombra epifânica: «Não te conheço, meu Deus, porque eu-própria Te encubro. Por favor, ajuda-me a arredar-me do caminho…, desanuvia a minha mente»355. O filósofo espanhol Miguel García-Baró afirma que «Mestre Eckhart plasma esta regra importantíssima na célebre fórmula oracional: Deus meu, livra-me do meu Deus! E hoje, sobretudo depois da diatribe de Levinas contra o grupo mais nutrido da fenomenologia e dos filósofos da religião, diríamos que a reiteração do procedimento negativo [via apofática], a repetição da mesma cautela a cada passo, não é senão o combate contra o ídolo sagrado e a favor do Santo»356. Todo o desejo transporta em si uma ambiguidade fundamental, mesmo o religioso, porque é humano. O excesso de colmatação do desejo mata a 353 Jean-Yves Lacoste, Note sur le temps. Essai sur les raisons de la mémoire et de l’espérance, PUF, Paris, 1990, p. 146. 354 Anónimo (século XIV), A nuvem do não-saber, p. 20. 355 Flannery O’Connor, Um diário de preces, p. 17. 356 Miguel García-Baró, De estética y mística, Sígueme, Salamanca, 2007, pp. 228-229. Este livro é uma excelente introdução à compreensão da via apofática, aqui apenas indiciada, que, nas suas mais amplas variações, vai desde a teologia, a filosofia à estética contemporânea (arquitectura, pintura, literatura ou cinema…). Esta via continua a ser o impensado a pensar da teologia, sempre ávida do esquematismo manualístico ou de pastoral resolutiva e utilitária, sobretudo num tempo em que silenciosamente esta via sapiencial ainda nutre muito das demandas espirituais, do pensamento filosófico e das materialidades artísticas hodiernas!
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sede, ou pelo menos precipita tudo em compulsação frenética, sem espaço para o Vazio, para a ausência ou a perda. O desejo nasce de um sentimento de falta, da não presença carnal do outro em nós. A expressão última do desejo é o Amor, o dom de si incondicional, de abandono por dom fiducial, a um outro/a. O desejo febril não abre espaço para a ausência, porque aí se anula a presença gratuita do que se deseja enquanto desejado. Uma «absolutização do desejo pode ser uma maneira subtil de evitar pensá-lo e de vivê-lo em verdade, o que implicaria afrontar as nossas feridas, pelo menos a nossa impotência»357. O excesso de desejo pode anular o outro, reduzindo-o à mesmidade ou à univocidade totalitária. Tudo desejando, mais tarde ou mais cedo, o sujeito, esmagado pela impossibilidade de alcançar o desejado, nada deseja, desconectando-se assim da sua ligação com o ser. Sem desejar o ser, nem ser-com e para alguém, o sujeito auto-impõe-se no abismo da auto-de-pressão pulsional, da infinita solidão de ser ensimesmado. O desejado passa a ser o espelho virtual de quem deseja, o objecto de posse construído mentalmente por quem deseja o que é desejado. O próprio Deus de Israel não está alheio às projecções psicóticas humanas. Atacado pelo ciúme quase erótico, pretende a exclusividade do seu povo358. «Eles serão o meu povo e Eu serei o seu Deus» (Jer 32,38). Só o vislumbre da sombra da sarça ardente pode revelar-nos algo, suscitar e despertar uma presença inesperada do Diverso. A sombra é a versão metafórica da «boa ambiguidade» (Merleau-Ponty). Somos habitados pela ambiguidade, pelo facto de nem tudo ser clarividente à nossa percepção das coisas. A simultaneidade do chiaroscuro (técnica pictural do sfumato) é um existencial do nosso próprio ser. Dele fazemos quotidianamente a experiência, particularmente na estranha complexidade do mundo e das relações humanas. O Salmo 104 é belíssimo na expressão dramática do ocultamento do rosto de Deus. A ausência de Deus obscurece o horizonte do humano. «Se deles escondes o rosto, // ficam perturbados; // se lhes tiras o alento, morrem e vol357 Emmanuel de Saint Aubert, «Introduction à la notion de portance», in Archives de Philosophie 79 (2/2016), p. 328. 358 Cf. o livro do exegeta Thomas Römer, L’Invention de Dieu, Seuil, Paris, 2017.
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tam ao pó donde saíram. // Se lhes envias o teu espírito, // voltam à vida e assim renovas a face da terra (Sl 104,29-30). Esta sombra bidireccional, de Deus que cobre o humano e do humano que descobre Deus. Em registo heideggeriano, poderíamos falar de uma relação de desvelamento no ser-aí espaciotemporal da história, sempre vivida em tensão. Como na relação erótica no leito nocturno, é preciso diálogo para que a manta cubra ambos os amantes, para que um deles não fique completamente desnudado, à mercê das calamidades que podem conduzir à ruína do ser. Só a relação amorosa como confiança espiritual poderá abrigar os corpos dos amantes sem a angústia de um possível abandono presente ou futuro. Escrevia Montaigne que «o velho Menandro dizia feliz ser aquele que tivesse conseguido vislumbrar apenas a sombra de um amigo»359. Sem a sombra do Invisível dificilmente se verá a claridade do visível. «Para se endereçar ao ser humano, Ele [o Criador] serve-se quase exclusivamente da linguagem das coisas que criou, tira delas o seu vocabulário – «Per visibilia ad invisibilia», escrevia o «poeta cristão»360. O salmo 139 joga espantosamente com o paradoxo da «noite luminosa» da experiência humana crente: «Se disser: “Que a noite me abarque, que a noite seja para mim uma cintura [luz]”; nem as trevas são trevas diante de ti; e a noite ilumina como o dia. A luz e as trevas são a mesma coisa!» (Sl 139,11). O paradoxo nocturno é necessário para a epifania diurna! A Luz ilumina lá aonde tudo aparenta ser caos informe, como esperança de que a escuridão da noite não submerja a réstia de luz que nos impede de sucumbir à gravidade da fadiga diurna. «E a luz brilha na escuridão e a escuridão não domina a luz» (Jo 1,5). Esta ressonância da luz que atravessa a sombra e a sombra que dá a ver a luz profunda das coisas e dos entes é descrita assim por Merleau-Ponty, a propósito da pintura Paisagem com Ezequiel Chorando sobre as Ruínas de Tiro, de Claude Lorrain: «É o que faz Claude Lorrain quando mostra a presença da luz pelas
Michel de Montaigne, Ensaios. Antologia, Relógio D’Água, Lisboa, 2016, p. 111. Paul Claudel, Presencia y Profecía seguido de Notas sobre los Ángeles, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2015, p. 10. 359 360
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sombras que a delimitam, mais eloquentemente do que se o fizesse procurando desenhar o feixe luminoso»361. É a permanência aorística da Luz, por muito frágil que ela seja, nas mais sombrias zonas do nosso ser, que suscita a via heurística da vida e do desejo diante de todas as desesperanças quotidianas. Gregório de Nisa, um dos pais da teologia poético-apofática, fala da existência crente que «busca o que se oculta na escuridão, ama então o desejado. O amado voa e o pensamento não poderá alcançá-lo. De noite busca no leito. Procura saber qual é o seu princípio, qual o seu fim, onde está a sua essência. Mas não o encontra. Chama pelo seu nome enquanto é possível encontrá-lo. O seu nome é aquele que não pode ser nomeado. Porém, tudo o que o nome significa excede quem o procura. […]. Então compreendeu que a sua magnificência, glória e a santidade não tem limites»362. Para que Ele venha, todo o caminho místico implica um despojamento/descentramento de si, para que a luminosidade tabórica inunde e transfigure o coração humano363. Paul Celan, místico profano da linguagem apofática, escrevia, no seu poema epifânico «Fala tu também»: «Diz a verdade quem diz a sombra.»364! O sentido do dizer advém da sombra que habita o corpo da palavra criadora. A sombra de Deus pairava sobre as águas caóticas do «princípio» dos tempos, sobre o caos humano de Job ou sobre a jovem nazarena Maria. «O Espírito Santo descerá sobre ti e a potência do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra» (Lc 1,35). Esta presença é invisível aos olhos físicos, mas pressentível ao olhar da fé fiducial que acolhe e escuta silenciosamente o nascimento que vem do Alto. Como intui a psicanalista Françoise Dolto, «a potência e a sombra de Deus que cobre Maria podem ser a carnalidade de um homem que ela reconhece como esposo»365. Só a palavra recebida criadora (dabar divino) poderá ser palavra seminal dada a outrem (filiação esponsal). É também intensamente Maurice Merleau-Ponty, La prose du monde, Gallimard, Paris, 1969, p. 208. Gregorio de Nisa, Comentario al Cantar de los Cantares, Sígueme, Salamanca, 1993, pp. 103-104. 363 Cf. Vladimir Lossky, «La théologie de la lumière chez Saint Grégoire Palamas de Thessalonique», in Dieu Vivant, I (1945), pp. 93-118, p. 107. 364 Paul Celan, Não sabemos mesmo o que importa. Cem poemas, Relógio D’Água, Lisboa, 2014. 365 Françoise Dolto, L’Évangile au risque de la psychanalyse, p. 23. 361 362
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poética a recordação de Job: «Como era nos dias da minha mocidade, quando o segredo de Deus estava sobre a minha tenda» (Job 29,4). Sem a consciência das sombras que nos habitam todo o nosso devir fica hipotecado, pois esgota-se no comprazimento da evidência das coisas presentes. O discernimento do significado desta sombra implica a transformação do ser em algo novo. Esta transfiguração do si mesmo só é possível por um outro, pela proximidade do «segredo de Deus», que pratique em nós o gesto maiêutico do toque acústico. Isto significa vir à luz da verdade a partir da escuta da voz da consciência que as pulsações do mundo provocam em nós. Nietzsche, na sua inexcedível compunção, adverte-nos que «o homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-homem – uma corda sobre um abismo. É perigoso vencer o abismo – é perigoso ir por este caminho – é perigoso olhar para trás – é perigoso ter uma tontura e parar de repente!»366. Para o crente cristão, a Páscoa (do hebraico Pessach, passar por cima ou por alto; passagem) existencial de Cristo simboliza a força desta passagem exodal, ou a travessia ressurreccional do caos da finitude (pulsões e paixões, o mal radical, a morte, o abandono, a angústia ou o tédio existencial), e dos tormentos mais profundos do humano, sem triunfalismo nem expectativas adocicadas da religiosidade sentimentalista, para a transfiguração de uma nova criação pessoal e social367. Na sua raiz cruciforme, o cristianismo assume a radicalidade da finitude humana, precisamente para a metamorfosear num novo modo de ser. A esperança cristã reside precisamente nesta transfiguração do humano na sua totalidade, e não apenas na sua parte imaterial ou espiritual. Não é possível, como Pedro desejaria, na narrativa lucana (cf. Lc 22,31), chegar à glória sem passar pelo Getsémani, não como satisfação vicariante ou em termos sacrificiais, mas como «dom gracioso que Jesus faz da sua vida»368. O grito último não é a palavra, mas o silêncio que vence a morte! 366 Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra. Livro para todos e para ninguém, p. 14 [capítulo «Prólogo de Zaratustra», §4]. 367 Veja-se a excelente reflexão filosófica de Emmanuel Falque, Le passeur de Gethsémani: angoisse, souffrance et mort. Lecture existentielle et phénoménologique, Cerf, Paris, 1999. 368 Paul Ricoeur, A crítica e a convicção. Conversas com François Azouvi e Marc de Launay, p. 240.
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Por detrás desta sombra que desvela o real, ao mesmo tempo que o esconde, se revela o Desejo de ser desejado. Ao desejo humano de Luz corresponde o próprio desejo de Deus369, o qual toma sempre a iniciativa do encontro. Deus, o desejado, deseja-nos, pois somos «à sua imagem e semelhança», «filhos no Filho», que «deseja ardentemente comer esta Páscoa connosco» (cf. Lc 22,15). Só desejamos o que de algum modo nos habita ainda na sombra, anónima e enigmaticamente, até que venha a ser reconhecido numa relação matinal de intimidade comunitária crente. «Até a eternidade colocou no coração deles […]; Deus vai à procura daquilo que não se encontrou» (Ecl 4,11.15). O desejo humano e o desejo de Deus coabitam-nos como um ser de duas folhas, incrustados um no outro (meu-seu), que a incorporação sacramental expressa de modo sublime (Ele em nós e nós n’Ele), e de algum modo desvela como passível de ser tocado por via da manducação do corpo de Cristo no interior do corpo eclesial. A erótica do desejo corpóreo dos amantes370 é a metáfora mais potente para pensar a reciprocidade do desejo humano-divino, mesmo na diferença ontológica que os singulariza, sem reduzir ao presente a satisfação total de algo que é insatisfeito por natureza. Toda a questão da relação humana com Deus não é senão de um «combate amoroso», intensamente figurado por Delacroix, numa das capelas laterais da basílica de Saint-Sulpice (Paris). Só o crente ou incréu autênticos entram e assumem esse combate nocturno, por vezes, de dúvida intensa acerca do Existente, e se deixam levar até às nuvens de uma sóbria visibilidade diurna, o Amor. Esta relação de mútuo encobrimento, que envolve os amantes ou a vida do crente em Deus, nos abrirá o discernimento do caminho de uma vida justa, bela e verdadeira. Só desejando ardentemente, e estando aí para receber esse Desejo como dádiva, não produzida, mas recebida por mim, algo de transformador se realizará na co369 Cf. Jean-Baptiste Lecuit, Le désir de Dieu pour l’homme. Une réponse au problème de l’indifférence, Cerf, Paris, 2017. 370 Como metáfora visual, continua inolvidável e inultrapassável a todos os níveis, a cena final do filme Field of Dogs (2014), do cineasta e escritor polaco Lech Majewski, a partir da Divina Comédia de Dante, colocando enfâse na comunhão carnal do desejo erótico dos amantes em modo de sobrevoo, provocando no espectador ressonâncias de alguns quadros de Marc Chagall.
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munidade dos sujeitos crentes, que pensam, sentem e esperam. É o modo íntimo de «entrar no mais fundo das coisas e descobrir onde Tu estás»371. Esta sobriedade espiritual é fundamental para o discernimento da qualidade da experiência crente eclesial. O teólogo alemão Karl Rahner falava de «espiritualidade invernal»372. Esta alimentar-se-ia da inquietude e do desejo de ser encontrado pela sóbria ebriez do Espírito, sem pressupor, à partida, qualquer logro de consumação entre o que se deseja e o que se alcança realmente. É um caminho simultaneamente tumultuoso e luminoso! Não ter outro desejo senão esse, para um humano crente que pretende ser minimamente consequente. É desejando sem tudo desejar, aceitar o Vazio absoluto como possível revelação de algo, que poderemos vir a desejar a ausência como presença, como vida intersticial suspensa que a memória, a imaginação ou os sentidos ousam evocar em nosso favor. Só não desejando, só não sentindo obstinadamente sede, é que poderemos desejar colmatar a sede com algo diverso de nós mesmos. Como escrevia Gregório de Nazianzo, «Deus tem sede que tenhamos sede d’Ele»373, e em jeito de glossa, também «não teremos nós sede que o Infinito tenha secura do finito»? O escritor nipónico Junichirō Tanizaki descreve o fulgor da sombra e da sua eficácia: «Comprazemo-nos nessa claridade ténue, feita de luz exterior de aparência incerta, retida na superfície das paredes de cor crepuscular, e que conserva com dificuldade uma última réstia de vida. Para nós, essa claridade numa parede, ou antes essa penumbra, vale por todos os ornamentos do mundo e vê-la não nos cansa nunca»374. Ver a sombra ou claridade na penumbra, como visão lateral ou indirecta, permite querer ver sempre mais para além do que lá está, a não esgotar no instante a experiência futura dessa mesma luz. De um outro modo, a saturação de luz, o excesso de luminosidade, cega-nos, não deixa ver o profundo das coisas. A luz crepuscular mostra mais do que a luz intensa solar. A ânsia de tudo querer ver a nu, clara e evidentemente, é o que a moderFlannery O’Connor, Um diário de preces, p. 18. Karl Rahner, Faith in a Wintry Season: Interviews and Conversations with Karl Rahner in the Last Years of His Life, 1982-84, Crossroad, Nova Iorque, 1990, p. 115. 373 Gregório de Nazianzo, Oratio 40,27, in «Sources Chrétiennes»», 358, p. 260. 374 Junichirō Tanizaki, Elogio da sombra, p. 33. 371 372
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nidade cartesiana nos legou. Esta luz de penumbra ou «cone de sombra» (Michel Crépu) mostra-nos o brotamento do Invisível no visível que aí-está encrostado, do «espiritual na matéria» (Wassily Kandinsky), como transfiguração e metamorfose sacramental dessa mesma materialidade. Por muita clarividência que haja num espaço ou objecto, há sempre aí um ligeiro véu, uma penumbra que lhe dá a verdadeira intensidade. «Ora é precisamente nessa luz indirecta e difusa que se encontra o factor essencial da beleza das nossas residências. E para que esta luz cansada, atenuada, precária, impregne completamente as paredes da divisão, pintamos de propósito com cores neutras essas paredes estucadas […]. Porque se fossem brilhantes, todo o encanto, subtil e discreto, desta escassa luz se dissiparia»375. Esta poética da luz oriental seria de todo fundamental para os ocidentais aprenderem a ambiguidade existencial, a procurar para além da simples e aparente evidência daquilo que nos aparece. Edith Stein, filósofa da vidência noctívaga, fala da sombra da noite, através da qual «se revelam as linhas essenciais que na luz clara do dia não se chegam a colher»376. É «o coração da nuvem» exodal (Ex 19,9), espelho da presença inolvidável da sombra do Invisível nos passos e passagens mais térreos dos humanos. À sombra do Invisível, do mistério silente de Deus, esse inconsciente do consciente, «ser selvagem» do nosso «ser cultural ou religioso», passa ou corre muita seiva, sentimentos e pensamentos tão claros quanto contraditórios de nós mesmos. Milan Kundera escrevia que «o homem é aquele que avança no nevoeiro»377. O Invisível não obnubila a nossa humana condição, apenas a desvela na sua nudez precária, projectando-a para um novo de vida até então inatendível. Há qualquer coisa de luminoso e de revelativo nesta sombra! Aquilo que se desvanece abre-se àquilo que permanece. O antigo véu impeditivo de ver o rosto adquire agora pessoalidade própria, Cristo mesmo, onde a sombra do invisível clareia, devém visível, como a obra de pintura que, no gesto artístico, torna visível o invisível.
Ibid., p. 32. Edith Stein, Scientia crucis. Studio su san Giovanni della Croce, Postulazione Generale dei Carmelitani Scalzi, Roma, 1982, p. 62. 377 Milan Kundera, Os testamentos traídos, p. 224. 375 376
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Há um texto de Paulo absolutamente espantoso que diz: «Nós todos, de rosto descoberto, mirando como num espelho a glória do Senhor, estamos a ser transformados na mesma imagem, de glória para glória, em conformidade com o facto de essa transformação vir do Senhor, o espírito» (2 Cor 3,18). O privilégio de aceder ao núcleo da sombra onde se esconde a divindade já não é para um privilegiado (Moisés, o Advindo), mas universalizável por um (Cristo, o Adveniente) para todos os humanos. Do ofuscamento visivo ou da cegueira, para que a posse não seja total ou exclusiva, se passa à vivificação espiritual, ao olhar interior que liberta da letra legal, que perscruta e reconhece a presença de uma ausência, visível no coração de carne que humedece os nossos desvarios e violências várias. A experiência de Deus não é administrável ou exclusiva de uma casta sacerdotal ou crente. Ela é a possibilidade real de todos os humanos serem banhados pela Sua sombra. Depois de admitir que prefere aquele que nada sabe sobre um assunto (o selvagem), mas que «sabe que nada sabe», do que aquele que «tudo julga saber» (o teólogo), David Thoreau confessa-nos que a sua «ânsia de conhecimento é intermitente, mas a minha sofreguidão por banhar a cabeça em atmosferas que os meus pés desconhecem é perene e constante»378. O poder da sombra está em revelar-nos o Invisível, Deus, esse «Desconhecido» (Act 17,23), que se esconde e se dá no mais íntimo do humano, e que impulsiona as nossas inquietudes de sentido e desejos de infinitude. É pertinente o questionamento de um dos maiores teólogos do século XX, Karl Rahner: «Quando observamos honestamente a vida que tantos homens vivem com coragem, uma vida que não pode ser justificada só com o ateísmo, não deveremos também anuir que ela é preenchida pela fé no “Deus desconhecido”, cuja imagem é posta sobre o altar dos corações também daqueles homens que crêem dever ser ateus?»379. Dito de um outro modo, como escrevia a carmelita-filósofa Edith Stein, interpretando a teologia mística de Dionísio, o Areopagita, «a ascensão a Deus é uma ascensão no escuro e no silêncio»380. Sobre esta experiência pela qual todos passamos, não há ciência infusa que privilegie uns em detrimento de outros! Henry David Thoreau, Caminhada, Antígona, Lisboa, 20183, p. 70. Karl Rahner e Karl-Heins Weger, Problemi di fede della nuova generazione, p. 83. 380 Edith Stein, Vie della conoscenza di Dio. «La teologia simbolica» dell’Areopagita e i suoi presupposti nella realtà, EDB, Bolonha, 2008, p. 28. 378 379
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Não será o espanto dos humanos diante do inabarcável mistério da vida que poderá suscitar a presença adormecida da sombra do «jardineiro invisível» do mundo, Deus? Se no sopé da montanha ainda é possível falar positivamente de Deus (teologia positiva), isto das verdades de fé que devem ser acreditadas pelos crentes, já no cume da montanha, Deus revela-se na potência fulgurante da «sarça ardente» (teologia apofática), onde apenas pelo silêncio absoluto se acede à união corporal com o Inefável (teologia mística). A potência do símbolo levanta a nossa pele incrédula e move o humano a adentrar-se no «Mistério Santo» (Rahner) e com ele entretecer uma relação de intimidade salvífica. Deus, ao mesmo tempo que se vela e se desvela, faz-nos sentir a insondabilidade do mistério da sua presença amante. Deus é Amor é a pedra de toque filosofal da aventura singular do cristianismo, sempre por descobrir nas zonas cinzentas do existente, que só uma trepidez espiritual eclesiástica poderá ocultar e desfigurar! E, por isso, como poetiza a mística beguina Beatriz de Nazaré, «um tal desejo, de tamanha pureza e nobreza, provém seguramente do amor, e não do temor»381. Só um olhar espiritual impregnado de atenção, advindo da prática meditativa da escuta da voz da Palavra e do rumor dos rostos carnais, acederá à verdade do desejo amoroso de Deus pelo humano concreto. Como diz o profeta Oseias: «Eu sou como um cipreste sempre verde, é de mim que provêm todos os frutos» (Os 14,6). A amplitude da sombra de Deus, que é como uma árvore, atrai verticalmente o horizontal. Sob os seus ramos, Deus abriga em si a polissémica existência humana, as suas venturas e desventuras, como destino último da história e como Promessa derradeira de uma árvore da Vida plantada no caótico jardim do mundo, «entre o céu e a terra»382! Beatriz de Nazaré, Sete maneiras do amor sagrado, Afrontamento, Porto, 2018, p. 21. Entre o céu e a terra é a belíssima obra da artista israelita Dvora Morag que esteve patente na Exposição Internacional «Contextile» 2018, em Guimarães. Nesta obra, concretizada em material de sarapilheira, a artista procura dar a ver o entrelaçamento orgânico que existe entre o Visível e o Invisível, o Imanente e o Transcendente, o Espiritual e o Material, o Mundo e o Humano, a Morte e a Vida. No fundo, Deus, Natureza e o Humano. Esta obra pode ser lida em relação com a do escultor do ferro Rui Chafes, Entre o céu e a terra. A obra não deixa de evocar a organicidade florestal da Catedral da Sagrada Família (Barcelona), de Antoni Gaudí, que nos atira para a potência da Verticalidade (Deus) enraizada na Horizontalidade (encarnação no corpo da humanidade). 381
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«Quem o poderá compreender? Quem o poderá explicar? Que é isso que brilha em mim e trespassa o meu coração, sem o ferir? A sabedoria, é a própria sabedoria, que brilha em mim, rasgando a minha nuvem, que de novo me cobre, quando dela me afasto, por causa da escuridão e do acervo das minhas penas, porque as minhas forças debilitaram-se de tal modo na indigência que não sou capaz de suportar o meu próprio bem, até que tu, Senhor, que te tornaste indulgente para com todas minhas fraquezas, porque não só resgatarás a minha vida da corrupção, mas também me hás-de coroar na tua compaixão e misericórdia, e saciarás de bem o meu desejo, visto que a minha juventude será renovada como a da água. Na esperança fomos salvos e na paciência aguardamos o cumprimento das tuas promessas. Quem puder, ouça-te, falando no seu íntimo; eu clamarei, cheio de confiança com as palavras do teu oráculo: Como são magníficas as tuas obras, Senhor, todas as fizestes na tua sabedoria! E esta é o princípio, e neste princípio fizeste o céu e a terra.»383
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Santo Agostinho, Confissões, XI, 9.11, pp. 295-297.
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