Herbário Júlio Dinis — Filices

Page 1





HERBÁRIO JÚLIO DINIS



Júlio Dinis

HERBÁRIO FILICES

textos

Nuno Faria José Tolentino Mendonça

DOCUMENTA



O mundo elevado a abismo

Estar aqui é admirável. Como, em face do milagroso Herbário de Júlio Dinis, não nos lembrarmos da belíssima formulação de Rilke evocando a experiência que nos é dada viver na nossa passagem terrena, a plenitude em que se constitui a vida? Citando Paulo Quintela a citar, por sua vez, o poeta das Elegias de Duíno, «“A aceitação da Vida e da Morte mostram ser uma só coisa”. Aceitar uma com a exclusão da outra seria “uma limitação que excluiria todo o infinito”. A Morte, para Rilke, é apenas “o lado da Vida que não está voltado para nós e que nós não iluminamos”.» Se escrevo milagroso, é em duplo sentido: pelas condições em que foi realizado e, a jusante, por ter chegado até nós. O que anima a realização de um herbário? Podemos imaginar que neste tipo de empreendimento se conjuguem sucessivas forças contraditórias — distracção e concentração; abandono e convicção; dominação e veneração; observação e espanto. Dedicado ao seu íntimo amigo, o naturalista Augusto Luso — também ele escritor, também ele herborista —, o Herbário de Júlio Dinis foi realizado na sua última estada na Ilha da Madeira. Nomeou-o «filices», termo que, em latim, designa uma ordem botânica, em poética ressonância com a palavra «felicidade». Júlio Dinis fez três viagens à Ilha da Madeira para se curar da tuberculose de que padecia: a primeira, em Março de 1869, dura pouco mais de dois meses, regressando em Maio ao continente; a segunda, em Outubro do mesmo ano, será mais longa e prolongar-se-á até Maio de 1870; a terceira, em Outubro de 1870, duraria até Maio do ano seguinte, altura em que regressa ao Porto, a poucos meses de falecer, a 12 de Setembro. Durante esse período prolongado e convulso mantém, com um grupo restrito de amigos próximos, uma constante produção onde podemos encontrar passagens memoráveis e terríveis. São reflexões sobre e no limiar

5


da vida, aproximações inconfessadas à consciência do fim, animadas ou contrariadas por fulgurações de esperança ou por momentos em que assume o ponto de vista de observador dos outros, e das coisas que o rodeiam. O cabelo vai-me caindo, embranquecendo a barba, os trinta vêm aí perto, a sombra da doença não deixou de escurecer o sol dos meus dias, e tudo isto me torna pouco disposto para a literatura amena. [p. 78]* Como é natural, nestas longas horas que vou consumindo sem fazer nada, têm-me passado pela ideia os projectos mais extravagantes. Felizmente, porém, a descrença que tenho de acertar com o melhor caminho neste labirinto da vida traz-me em uma irresolução, que me não deixa pôr em prática nenhum daqueles projectos. [p. 83] Li as Confissões, de Rousseau, e o Cromwell, de Victor Hugo. [p. 92] Às vezes o Funchal parece-me uma verdadeira città dolente na qual pesa uma nuvem de melancolia, que não se evita. [p. 93] Deixei o centro do Funchal, procurei um quarto em um hotel inglês no subúrbios desta cidade e onde é mais fácil passear e gozar das vantagens do campo. [p. 96]

Um abismo. O herbário é o memento mori de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, de Júlio Dinis. Espantar-nos-á sempre a emergência de objectos artísticos como este, na exacta medida em que sendo raros, escondidos, votados à escuridão, destinados a permanecerem ocultos, são-nos um dia revelados — fatalmente fora de tempo, já sem a mediação do seu autor — como uma aparição que consubstancia gestos secretos mas palpáveis. Fantasmagoria, objecto que releva quase da magia na forma como desafia as leis naturais e a passagem do tempo, feito pelas próprias mãos do escritor, do artista — sim, porque se trata de uma obra de artista e não de botânico —, as pranchas do Herbário de Júlio Dinis são o toque, o tacto que nos faltava na recepção da obra literária, aquilo que um livro não nos pode dar. Nesse sentido, e imaginando nós que se destinavam a desaparecer, constituem um milagre. Nuno Faria Museu da Cidade do Porto

* As citações de Júlio Dinis foram extraídas da biografia que lhe dedica Liberto Cruz, publicada pelo Círculo de Leitores, em 2006.

6


Olhando as plantas

Lembro-me de que, por um período, Lourdes Castro repetia com frequência estes versos do poeta japonês Kobayashi Issa: «Nous marchons en ce monde / sur le toit de l’enfer / en regardant les fleurs». Olhar é uma especialidade de Lourdes Castro. E olhar as diferentes espécies botânicas tornou-se para ela uma espécie de escolha de vida, um pacto ético e espiritual de grande impacto, uma forma de caminhar, pensar e cartografar o mundo. Nas notas pessoais que acompanham o seu projecto intitulado Grand herbier d’ombres, além de descrever o modo como, num Verão do século XX, na Ilha da Madeira, decidiu fixar em papel heliográfico a variedade vegetal acessível à sua volta, explica-se assim: «sobretudo gosto de plantas, sempre vivi com elas, cuidei delas e vi-as crescer». Esta nota aparece datada de 1973. Numa outra que se lhe segue, datada de 2002, acrescenta ainda: «constantemente aprendo com elas». Pode-se dizer que os herbários nasceram por este motivo: para que aprendamos alguma coisa com as plantas. Nos seus primórdios, pelo menos na tradição ocidental, está uma obra científica de Dioscórides, um médico greco que acompanhou diversas campanhas militares ao serviço do imperador romano, girovagando da Ásia Menor à Itália, das Gálias à Península Ibérica. Dioscórides identificou os efeitos benéficos para a saúde humana de centenas de plantas, raízes e seivas. Mas o seu tratado imponente não tinha imagens. E os herbários que se lhe seguiram, quando continham imagens, eram pouco realistas. Na sua Naturalis Historia, Plínio lamentava-se disso, argumentando que, desse modo, não era possível reconhecer as plantas. Ora, essa preocupação marcará o destino dos herbários. Estes continuarão a ser, por muitos séculos, o utilitário manual das farmácias monacais ou de corte, mas, pouco a pouco, à ciência das plantas se aliará o trabalho visual. Tal não constitui um desvio, mas uma ampliação. De facto, os herbários não documentam apenas os modos de curar. Dão testemunho dos modos de ver, de viajar, de narrar, de representar a

7


existência e de a sentir. Os herbários relatam, por exemplo, numa infinidade de detalhes, o que representou, entre os séculos XV e XVIII, o desembarque em territórios até então desconhecidos. E contam tantas outras coisas: a interculturalidade que permitiu a formação de jardins exóticos por toda a Europa; as novas possibilidades de difusão do conhecimento trazidas pela descoberta da imprensa; a autonomização da botânica como ciência; o desenvolvimento tecnológico que alterou significativamente as fronteiras do humano (pense-se o que foi, no século XVII, a descoberta do microscópio); o salto epocal que representou o triunfo da taxonomia de Lineu; a contemplação atenta da paisagem que, de formas diversas, o romantismo e o realismo promoveram; os arquivos, não só da morfologia vegetal, mas também daquela que respeita às emoções humanas, que se multiplicaram na forma de pequenos herbários exsicatas — uma ocupação tornada muito comum entre forasteiros, veraneantes e convalescentes. Voltemos aos versos de Kobayashi Issa: «Nous marchons en ce monde / sur le toit de l’enfer / en regardant les fleurs». O médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho, que conhecemos como Júlio Dinis, passou três temporadas na Ilha da Madeira, uma estação altamente recomendada do então chamado turismo terapêutico. Na verdade, a Madeira era, nessas décadas do século XIX, uma ilha transformada em hospício a céu aberto. O escritor residiu aí, primeiro na Primavera e depois no Outono de 1869. E voltaria no ano seguinte, no mês de Outubro, prolongando a sua estadia até Maio de 1871. Uma das razões que me trouxe à memória os versos de Kobayashi Issa, que ouvi a Lourdes Castro, foi a passagem de uma carta que Júlio Dinis endereça, do Funchal, a José Pedro da Costa Basto. Ele descreve desta maneira o que vê na cidade: «O viajante cruza-se a cada momento com certas figuras pálidas, emaciadas, pensativas, marchando lentamente, ou transportadas em redes, encontra-as nos assentos dos passeios em ociosa meditação, ou fitando melancolicamente as ondas que se sucedem na praia; são ingleses cadavéricos, alemães diáfanos, portugueses descarnados, brasileiros, norte-americanos, russos; são velhos, adultos, crianças, vaporosas belezas femininas de toda a parte do mundo, todos a convencer-nos de que estamos na cittá dolente, mas no pórtico desta não se lê gravado o dístico desesperador que o poeta inscreveu no da região das tormentas eternas. Pelo contrário, à entrada aqui revestem-se de esperança os próprios condenados.» A expressão cittá dolente remete-nos para o

8


início do canto III que Dante Alighieri compõe para o «Inferno» da sua Divina Comédia. Trata-se, nesse caso, da inscrição gravada no cimo do pórtico infernal, à semelhança das epígrafes métricas que frequentemente decoravam as portas das cidades medievais: «Alcança-se por mim a cidade dolente / alcança-se por mim a incurável dor / Alcança-se por mim a desenganada gente / […] Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais». Em Outubro de 1869, quando escreve esta carta, Júlio Dinis ainda não é um desenganado ou desesperadamente deseja não o ser. Por isso, escreve: «à entrada aqui revestem-se de esperança os próprios condenados». Porém, à medida que o tempo passa, a consciência do seu estado impõe-se sempre mais inequívoca. Há um momento em que todos os mortais dizem: «Nous marchons en ce monde / sur le toit de l’enfer». A resiliência para continuar, mesmo do telhado do inferno, a olhar as flores é uma extraordinária lição que Júlio Dinis deixa ao futuro. No epistolário madeirense desses que são os últimos anos da sua vida (o escritor viria a morrer, no Porto, em Setembro de 1871) refere-se com insistência à importância do reencontro com a natureza: «é necessário sair do recinto da cidade, procurar as freguesias rurais, subir as íngremes ladeiras que costeiam os picos… Que vigor e variedade de vegetação! O verde doirado da cana realça entre as diferentes cambiantes da mesma cor de plantas de todos os climas. A palmeira de África agita a sua fronte graciosa junto dos carvalhos da Europa; a bananeira, vergando sob o peso dos seus cachos, cresce cheia de viço nos mesmos pomares onde se enfeitam de flores os pessegueiros e as laranjeiras odoríferas; as rosas, as malvas, as madressilvas florescem espontâneas à beira dos caminhos; debruçam-se dos muros as buganvílias entretecendo os seus cachos roxos com as flores alaranjadas das begónias; e tudo tem um ar de festa… Então sim, então a atmosfera embriaga, o peito aspira com voluptuosidade esse ar balsâmico, o espírito liberta-se de todas as apreensões que nos gelavam.» Percebemos assim que esta Colecção dos Fetos, Equisetos e Lycopodios da Flora Madeirense é, naturalmente, um herbário, mas também é mais do que isso. Deve ser lido, para todos os efeitos, como um testamento. José Tolentino Mendonça

9



Joaquim Guilherme Gomes Coelho

Colecção dos Fetos, Equisetos e Lycopodios da Flora Madeirense



























© Câmara Municipal do Porto (Museu da Cidade), 2021 Paços do Concelho, Praça General Humberto Delgado, 4049-001 Porto © Sistema Solar Crl (chancela Documenta) Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Lisboa Textos © os Autores ISBN 978-989-54952-7-6 (Câmara Municipal do Porto) ISBN 978-989-9006-95-9 (Documenta) 1.ª edição, Agosto de 2021 Imagens do Herbário: Cortesia Escola Secundária Rodrigues de Freitas Fotografia: António Alves Design gráfico: Manuel Rosa Revisão: Luís Guerra Produção gráfica: Inrede Depósito legal n.º 487485/21







Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.