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O CICLISTA MELÓMANO. Diálogo entre o

O CICLISTA MELÓMANO

Diálogo entre o Candidato Vieira e Orgasmo Carlos acerca da Performance

À sombra das fachadas sinistras, desertas, na perspectiva acelerada dos estéreis labirintos de calcário do CCB (Centro Cultural Berardo) caminha um homenzinho peculiar, meia idade, de chapéu tipo tachinho, bigodinho à Cantinflas, fato às riscas amarelas e violetas, que mais parece tirado de um cortinado dos anos 70, e camisa de fantasia. é Orgasmo Carlos, artista plástico, ou, como ele prefere chamar-se, artista de plástico. De facto, de certa forma, é um artista de plástico. A sua existência é reduzida à de uma personagem de ficção, absurda, com contornos bidimensionais. Falta-lhe uma dimensão. Se olharmos de perfil, vemos que é tão fino como uma folha de papel. Detém-se perante uma escultura que parece a célebre garrafeira de Duchamp (Dos Campos), mas sem a aparência agressiva de aparelho de tortura que esta tinha, numa escala maior, com uma silhueta um tanto ou quanto mais feminina, cintura de vespa, onde crescem como frutos sem polpa as verdes garrafas do meu país (Budonga). Tchh... E ainda por cima ninguém quer saber que o original atribuído ao Marcel é na realidade obra de meu tretabisavô Theophilo Carlos (aliás Marcelo dos Campos), verdadeiro inventor da anti-arte. É triste. Não tinha dinheiro para registar a patente... O Franciscanismo pelo cano... estava pois, por acaso, a passar, e não pude deixar de o ouvir e de sentir que este frágil personagem, que me parecia vagamente familiar, estava perdido, como um viajante pertencente a uma dimensão diferente da nossa. Ele próprio constituía, na sua pessoa, nos seus gestos, no íntimo mesmo do seu pensamento, uma Performance na galeria dos meus sonhos. Quando me viu, olhou para mim com os olhos muito abertos, apontou-me o indicador abruptamente e declarou:

— Rapaz, eu sou Orgasmo Carlos, rei não coroado da Performance, não só sexual e orgásmica mas também dos limites da anti-arte e da anti-matéria: Para definições, meu rapaz, não há nada como espreitar o dicionário. Olha para a Wikipédia: a performance, art performance ou performance artística é uma modalidade de manifestação artística interdisciplinar que — assim como o happening — pode combinar teatro, música, poesia ou vídeo. é característica da segunda metade do século XX, mas as suas origens estão ligadas aos movimentos de vanguarda (dadaísmo, futurismo, Bauhaus, etc.) do início do século passado… «Mas suas origens» …Uma brasileirada. Sabes? Eu também sou brasileiro, mas respeito a língua indígena do rectângulo. E sou angolano, e timorense! Sou na verdade um artista cem por cento dos PALOP. Multiétnico. Multipistas. Multitudo, multimerda. Bem, mas onde é que eu ia? Ah!… Difere do happening por ser mais cuidadosamente elaborada e não envolver necessariamente a participação dos espectadores.

— Não sei se concordo. As minhas performances não são mais elaboradas que um happening. Na verdade, não são mais elaboradas do que um pano encharcado nas trombas… Mas continuando… Isto sem espectadores é como um tipo masturbar-se sozinho com a prótese do Capitão Gancho… Em geral, segue um «roteiro», Ah Ah ou um traseiro — previamente

definido, podendo ser reproduzida em outros momentos ou locais. É realizada para uma plateia quase sempre restrita ou mesmo ausente e, assim, depende de registos — através de fotografias, vídeos e/ou memoriais descritivos — para se tornar conhecida do público. — Cá está. Precisa de registos para se tornar conhecida. Não houve nenhum Shakespeare a escrever para a Performance, é mais o que dá na gana de cada um… é porque é Arte, não é Teatro… Mas se houvesse, sem registos é como se nunca tivesse existido até alguém reinventar. A performance foi introduzida na década de 1960, pelo grupo Fluxus e, muito especialmente, através das obras de Joseph Beuys. Numa das suas performances, Beuys passou horas sozinho na Galeria Schmela, em Düsseldorf, com o rosto coberto de mel e folhas de ouro, carregando nos braços uma lebre morta, a quem comentava detalhes sobre as obras expostas… — Pois… Grande coisa… Tudo mentira… O meu Tretavô já tinha feito a mesma coisa, mas com o rosto coberto de merda, quer dizer, bosta. Foi em 1919, no núcleo Dada da Pampilhosa da Serra… Ou talvez no grupo de teatro amador dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique? A minha memória é um diáfano casulo… Em alguns momentos, as performances de outros artistas tiveram ligação directa com as obras de body art, especialmente através dos Activistas de Viena, no final da década de 1960… — Estes activistas não conhecia. Viena do quê? Do Alentejo ou do Castelo? Caramba, falem português! Bom, esta é a definição patente na wikipedia em língua portuguesa. A estranhopédia, a estupidopédia. Curiosamente, se formos à wikipedia em inglês aparece o seguinte: Estás a ouvir ó como é que te chamas? — Vieira. Candidato Vieira. Candidato à Presidência da República por 6 vezes, campeão por KO ao 13.º assalto. O que também é uma performance. Realidade e Ficção num mil folhas de proposituras recheado com molho de Terylene. — Não conheço. Não deves ser daqui. Pelo menos não és do meio. E se eu conheço o meio... E olha, ainda bem, nem sabes do que é que te safas… Mas ouve, está quase a acabar… A performance, in performing arts, generally comprises an event in which one group of people (the performer or performers) behave in a particular way for another group of people (the audience)...

— Ora obrigadinho! É claro que temos que ser uns para os outros! Mas também podíamos fazer a performance para um espelho, Ou, como fez Jesus, para os peixes. Claro que alguém o estava a ver. No fundo é como a lebre do outro. Podemos ser performers e espectadores. Eu sou o meu próprio espectador muitas vezes quando não há mais público. Enfim… — Sometimes the dividing line between performer and the audience may become blurred, as in the example of “participatory theatre” where audience members might get involved in the production. Singing choral music, and performing in a ballet are examples. Usually the performers participate in rehearsals beforehand. Afterwards audience members often clap, indicating appreciation. However, sometimes this rule is reversed. In japan, the greatest compliment is complete silence.

— Se acham que no Japão é diferente haviam de ver na Papuásia-Nova Guiné...

— Performances, for example in theatre, can take place daily, or at some other regular interval. Performances can take place at someone’s house, in a subway, or even at a dollar store. Talent, on the other hand, is subjective...

— Ah, pois, o talento é subjectivo. Se calhar as definições não são! Granda novidade! Por isso é que há críticos, curators, conservadores de museus, filósofos, historiadores e outros teóricos! Para traduzir o intraduzível! Para que a Arte não seja perigosa. Uma obra, uma mensagem. Mas quem é que escreve estas coisas? Olha, rapaz:

Estes dois textículos tem algumas vantagens: Em primeiro lugar dão-me mais umas linhas de texto para encher o salpicão textual que agora enceto, em segundo lugar mostram a diferente abordagem nas duas definições, o inglês e o português-tipo-acordo-ortográphico, permitindo ainda um ponto de partida para este texto, que se revelará um pouco ziguezagueante. Estou a fazer um texto sobre a Performance, que conclui com a superioridade absoluta a nível planetário da minha pessoa nesta disciplina! Podes começar a escrever, e cuida da caligrafia. Eu dito: Até que ponto é que podemos dizer que qualquer coisa pode ser uma obra de Arte e, neste caso, uma performance? Em português a palavra «performance» pode ser situada aproximadamente recorrendo às palavras «desempenho», «prestação» e «acção». Eu, o grande Orgasmo Carlos, definirei lapalisseanamente (de vez em quando são necessárias palavras que não vêm no dicionário — Orgasmo Carlos inventa palavras maravilhosas em Palopês) a Performance como aquilo que é afirmado e aceite dentro do mundo da Arte como sendo uma Performance. Pode-se dizer que aquilo que transforma qualquer tipo de acção com as características formais de uma Performance numa verdadeira performance é o facto de se afirmar e de ser consensual (para quem interessa) que esse acto é uma verdadeira Performance. Isso aliás acontece com qualquer forma de arte contemporânea. E pronto, de resto, tudo é possível.

o que equivale a dizer que nada é impossível é possível que tudo seja impossível é possível que nada seja possível No caso da definição que te li em Neo-Português insiste-se particularmente no papel do tal ex-piloto de caça, Joseph Beuys, como precursor deste género. Segundo alguns, as suas acções-bombardeamentos enquanto aviador do Reich não pertencem à sua obra artística. Este artista (colega meu nos maristas, conheci muito bem, hahaha) construiu um edifício de trabalho baseado na invenção de uma mitologia pessoal alicerçada em torno da projecção da sua figura como xamã, uma espécie de demiurgo, explorando uma ideologia do Ego. Natural na época do Charles Manson. É um caso paradigmático, que fez escola. Tudo copiado. Do meu trabalho. Mas falarei disso mais tarde. Elaborou, portanto, uma história baseada em factos reais da sua experiência pessoal, uma experiência de morte e de renascimento, etc. Vou contá-la, porque parece um conto de fadas, ou do vigário.

Há também o vigário das fadas A vingança das fodas Zézé Bóbó patinando na gelatina tártara Começa assim: Era uma vez um piloto de caça do III Reich, o senhor Joseph Beuys, que passava a vida pacatamente no seu avião a bombardear e a metralhar populações indefesas, quando foi atingido, ou ficou sem combustível, já não me lembro, no meio da vastidão nevada da Mãe Rússia Soviética, ou do Cavaquistão. Talvez uma criança o tenha atingido com uma boneca. Não sei. Foi despenhar-se algures na Sibéria ou na Tartária onde, praticamente em estado de hipotermia absoluta, foi recolhido pelos indígenas locais. Os esquimós, ou os tártaros em questão untaram-lhe o corpo com banha e cobriram-no com feltro, além de outras coisas das quais não me lembro. Veio daí a ideia das energias potenciais acumuladas nessas matérias. A propósito, lembrem-se que o feltro vem dos coelhos e das lebres. Mas, portanto, isto para Beuys foi uma ressurreição. Tanto no sentido vital como profissional, porque não tinha jeitinho nenhum para o desenho. é a partir deste relato que é alicerçada a sua obra enquanto artista plástico e performer. O feltro e a banha permanecerão os seus materiais fetiche. As matérias energéticas, colocadas como símbolos do campo dionisíaco, passam ao mundo da forma, apolíneo. Tomou como modelo o meu trabalho. Fiz isso com bagaço e aguardente, mas conto depois. Aliás, Beuys, como eu, utiliza o próprio corpo como instrumento de trabalho, espécie de catalisador das energias psíquicas e essas coisas. Eu

também utilizo o meu corpo e bacalhau para expelir as más vibrações que me passam pela alma, faz muito impacto no público, até porque peso 110 quilos, mas o resultado é que estou gordo como um texugo. Noblesse oblige. Sou uma vítima da arte.

Esta atitude, dizia, reescreve mais um regresso a místicas ligações da ordem da metafísica e simultaneamente à incorporação no trabalho de reflexos e sinais de ritos primitivos. Aliás, o regresso ao primitivo e a descoberta de outras transcendências estão na ordem do dia nos anos 60. Ninguém me ligou quando fiz isso nos anos 50. E continuamos com isso. O corpo de trabalho deste artista, mais ou menos paradigmático na sua persona de artista contemporâneo, vai desde a performance à instalação, passando por peças muito grandes, peças de pequena dimensão, estas últimas colocadas como reflexo e fragmento do todo do corpo da obra, relíquias de um santinho da arte contemporânea. Não quero aqui falar de outros performers que fazem coisas com os órgãos genitais, sangue ou matéria fecal, porque eu já fiz tudo isso em muito jovem e ninguém ligou nenhuma. Se ainda estão a ler isto é porque são uns completos idiotas.

No caso do José Bois: uma dada performance ou uma performance Dada tem o lugar utilizando como cenário uma instalação, que depois pode ser considerada uma obra autónoma, mas que remete sempre, contextualmente, para os significados da acção ocorrida. Assim, quando se compra uma pequena aguarela de Beuys, ela é como uma pequena relíquia, fragmento do todo, e de certo modo reveste uma santidade comparável daquela que emana dos tubos de ensaio cheios do suor verdadeiro de Elvis Presley, das relíquias medievais ou dos verdadeiros tapetes de sela do general Custer, na medida em que fazem parte de um relato maior, de uma história, de uma construção narrativa e simbólica. Um pouco como Fátima. Atenção: Não há lugar para o humor nestas obras, ao contrário das suas predecessoras dadaístas, surrealistas ou das magníficas festas frívolas nos jardins do Maneirismo e Barroco europeu.

O ritual é uma coisa séria e este exemplo vai contagiar o modo de acção da maior parte dos performers contemporâneos.

A própria falta de sentido de humor pode fazer correr o risco de que os não eleitos escarneçam e se riam dos projectos em questão. (Isto acontece com a transposição da Arte moderna para o mundo maravilhoso de Walt Disney. «Olha, um patasso! Vale biliões!» diz o Tio Patinhas.) Mas a própria ausência deste espírito é necessária para a imposição desta interdisciplinar disciplina como legítima. Entretanto esta forma de Arte tem feito o seu percurso, abordando novas formas e seguindo novas ideias no seu trajecto até aos nossos dias, assumindo, contudo, a partir da contemporaneidade, um certo novo academismo, como acontece a toda a vanguarda que se repete durante demasiado tempo.

é, contudo, um campo que, pela sua própria definição contém sempre novas e múltiplas possibilidades. é aliás uma questão matemática. A interdisciplinaridade multiplica. Percebe o que eu estou a dizer? É que está a olhar para o espaço e não há pássaros… Enquanto o estranho personagem falava, ouvindo cada vez mais longe a sua verborreia anti-pedagógica, pensei em Alto de Cromerique, bairro horizontal, mas de ruas ortogonais, nas tardes e manhãs amenas, quando, de Inverno ou Verão, são obnubiladas por vezes pelo ruído obsceno de uma aparelhagem portátil (vulgo tijolo). Trata-se de um personagem de compleição débil, num desconcertante traje onde se misturam os estilos do ciclista amador e do ciclista-arrumador, que teve a original ideia de montar o diabólico aparelho sonoro sobre o guiador da sua

pasteleira. Estabelece um circuito rigoroso dentro do bairro e repete-o disciplinadamente, estabelecendo um pacto com os habitantes das esplanadas, que observam com bonomia e humor aquela espécie de maluquinho, ex-libris do bairro.

Não estou familiarizado ainda com a história clínica do cidadão em questão. Existirá seguramente uma razão para este comportamento. Apesar do anacronismo nos meios, a sua sensibilidade moderna, na sua expressão futurista exprime-se nestas manifestações ambulatórias e ruidosas. Imita assim os adeptos do tuning, que interrompem o fio dos nossos pensamentos enquanto pastamos tranquilamente nos nossos lares com o vigoroso som dos ultragraves nos modificadíssimos automóveis. O bater das frequências ultragraves colide com os corpos, que as sentem como batimentos de um coração que vai explodir. Mas a aparelhagem modesta do nosso ciclista não chega a essas ambicionadas frequências. Porém, curiosamente, personifica um dos raros corações sonantes do bairro.

Mas é esta manifestação passível de uma subconsequente reapropriação? Isto é, posso roubar as acções de alguém e transportá-las para o domínio da performance? No caso desta «transdisciplina», a apropriação duchampiana está ainda a dar os seus primeiros passos. é um domínio da exploração e da aventura. Tomei por isso a decisão unilateral (isto é trabalho) de qualificar este fenómeno, a que poderíamos chamar «a dança ritual do ciclista melómano», como uma minha performance. Poderia, para este efeito, ter escolhido outros rituais modernos, poderosos e caricaturais como as manifestações de virilidade motorizada dos tuners que o ciclista imita, por exemplo. Poderia, com uma certa distância histórica reinterpretar ou utilizar noutro contexto, represpectivando, por exemplo, performances ou happenings já realizados, por exemplo, pelo grupo DADA, pelo Fluxus, pela Alternativa 0 ou grupo KWØ. Porquê? Porque não? Por idiossincrasia artística. Isto é, por mania. A mania que a sociedade admite ser um campo especial e privilegiado do artista (mais um ponto em comum deste com os maluquinhos). É imperativo seguir um caminho coerente ou incoerente, de acordo com as nossas orientações subjectivas, ou, pelo contrário, racionalmente, de acordo com um programa específico, ou ainda, de acordo com as nossas inclinações ou inscrições ideológicas ou racionais (que no fundo são sempre irracionais).

— Boa, estás a aprender. A simples presença física do grande Orgasmo Carlos provoca esse tipo de reacção nas pessoas. Não me apercebi que estava a pensar em voz alta perante o olhar circunflexo de Orgasmo Carlos. — Como é evidente, para quem conhece o «ramo», compreende-se que este acontecimento só pode ser entendido como um objecto pertencendo ao campo da performance se alguém com poder para tal o situar no contexto da arte contemporânea e da história desta espécie de transdisciplinar, e que para isso alguém, por exemplo neste caso específico a minha pessoa, o deve transportar para esse plano como autor. Por isso, tomo como decisão operativa apropriar-me destas ciclísticas manifestações. Consequentemente, a partir de agora sou eu o autor da performance. O ciclista ele próprio não o pode fazer porque circula noutro plano, noutra dimensão, noutro discurso e neste caso específico noutro estado de consciência. A partir do momento em que reivindico uma apropriação do número do ciclista melómano, posso e devo, através de mecanismos ou esquemas mais ou menos lógicos ou teóricos que operam tradicionalmente no mundo Arte Contemporânea, passar a posicionar-me como autor conceptual da performance, pela mesma operação pela qual um artista se apropria de um «object-trouvé» e lhe dá ou não outra associação de ideias e/ou palavras. A partir daí tenho que passar ao espectador a noção de que, Eu sou o autor da performance. Tenho que lhe dar um título e assinar. Tenho de encenar um discurso que alicerce conceptualmente toda esta operação. Um palco, uma legenda, um comentário. Os processos pos-

tos aqui em prática são, basicamente, os do teatro. O ciclista não sabe, contudo, que está num palco. O sujeito torna-se objecto, a minha acção é reflectida através do outro a partir do momento em que escolho o outro para meu espelho. Existem nestes procedimentos lógicas que mimam o Mercado, do fetichismo do objecto à redução do valor do trabalho na sua despersonalização, ecos também de um certo tipo de esclavagismo, que sob diferentes disfarces continua na sombra como o motor do aparelho capitalista. — Sim. Como aquele grande gato persa branco nas mãos do génio do mal, nos filmes do Bond. Fui eu que inventei essa cena.

— Eu posso instalar em redor do ciclista um palco conceptual, um enunciadozito fabricado por mim. Há anos que ele já desempenhava o papel de actor e personagem principal, sem o saber, ou sabendo-o só até certo ponto. Isto é o máximo da exploração.

— Mas não estás a fazer mal a ninguém... — Quanto ao enunciado específico, a minha justificação e objectivo quanto ao meu trabalho, nem sequer é necessário que estejam construídos numa primeira abordagem, basta seguir a lógica de qualquer construção deste tipo. Segue o processo da elaboração do «object-trouvé» desde Marcel Duchamp e a sua arquetípica Fonte ou Urinol. Uma action trouvée.

— Sim, já te disse quem é o verdadeiro autor. Tens um charuto? — Deixa só prosseguir: neste caso é o título e o contexto no qual o objecto é mostrado que o situa como objecto de arte ou exercício conceptual. É que isso faz com que ele seja olhado de outra forma e provoque no mínimo interrogações, ou que tenha existido uma época remota em que isso aconteceu, embora esses exercícios sejam hoje lugares comuns, vindo assim a existir como elementos gramaticais, recursos gramaticais ou figuras de estilo da linguagem artística.

— Uma coisa engraçada: Um dos fenómenos interessantes ao nível da apropriação é determinado tipo de apropriação das obras dos outros pelos curators das exposições. Acontece normalmente, por exemplo, que o curador de uma exposição pretenda atingir o estatuto de criador máximo dessa exposição, estatuto que por tradição estava reservado ao artista.

— Odeio essa merda. O único bom curator é o curator morto ou o próprio Orgasmo Curator.

— Aliás isto funciona um pouco como no caso da relação dos «DJs» que manipulam as canções dos outros ganhando um estatuto de criadores e também de pequenos deuses. Porquê pequenos deuses? Porque a arte é uma natureza no homem, e o seu criador adquire uma pequena aura divina (pensem em Walt Disney e no seu mundo maravilhoso). O curador pode utilizar as obras dos artistas, se estes se prestarem a isso (e muitas vezes prestam-se — os labirintos do poder nas artes são insondáveis), para montar com estas a sua própria obra de arte, como se os trabalhos artísticos fossem elementos de uma composição da qual é ele o autor, tijolos do projecto arquitectónico do pequeno deus. Segundo esta lógica qualquer artista pode fazer isso com qualquer outro artista, e por consequência, ad infinitum, outro qualquer curador de curadores pode utilizar as exposições de outros curadores para fazer uma obra de arte, etc. Voltando ao caso da apropriação da «dança do ciclista melómano», é conveniente no processo que haja um registo da obra, fotografado ou filmado, por exemplo, visionável pelos nossos pares e público em geral.

— Detesto o público em geral.

— Neste caso, sendo o sujeito o objecto resultante de uma acção executada por um indiví-

duo com um comportamento social «diferente», pode ser interessante ou não conhecer o caso em particular, cavar significados associados à sua realidade, enfim, conhecer as abordagens psiquiátricas, rapinar a pente fino a história do tipo. Modificá-la, elaborá-la, etc. É possível decidir fazer isso com quase qualquer episódio deste género. é possível ser-se um artista especializado em, por exemplo, indivíduos com distúrbios psiquiátricos (independentemente dos constrangimentos éticos e morais) e construir uma carreira e reputação através da apropriação destas acções, por exemplo. Esta é uma atitude completamente diferente da tomada na realização de um documentário sobre esses casos. Existe um canibalismo, mas este pretende-se acrítico, e na maior parte das vezes, bem-intencionado. Isto é, se eu for um realizador de documentários, estou a retratar (sempre de uma forma parcial) a realidade, mas se for um artista contemporâneo estou a exercer uma espécie de poder mágico e simbólico que me é permitido pelo sistema da Arte e que será aceite pelos seus agentes, se seguir determinados códigos de conduta e procedimentos ao nível do subtexto conceptual que fazem parte da sua legitimação (não sei se esta palavra existe, mas acho que não deveria existir). — Pera lá, ó rapaz: é canibalismo, sempre. Bem ou mal-intencionado, é um produto que se vende e que dá vantagens ao realizador. É um produto. O artista também pode ser bem-intencionado. E quanto melhor intencionado mais o admiram. O artista é um bom artista...

— Pois. Uma outra forma de canibalizar esta acção é transportá-la para o domínio da representação em qualquer uma das Artes (numa peça de teatro, filme, narrativa escrita, ou, de outra forma, no domínio das artes plásticas ditas convencionais).

— Olha: não estávamos a falar da Performance? Tás-te a desviar. é um comportamento des-viado! Ah! Ah! viste a minha exposição «Não sou veado, não»? Muita boa. Agora sou eu a falar. Isso está a gravar? Vai: agora a sério. A Performance surge, em termos elementares e formais, a partir de práticas que derivam, nos seus aspectos estruturais, do Teatro, ou de qualquer Rito que reúna os elementos Palavra e Dança, num sentido alargado. Mesmo que não exista uma narrativa convencional, existe uma acção cronológica, em que o tempo precede espaço como elemento estruturante. O pensamento Mágico, simbólico, está presente nos primórdios das artes da representação e, provavelmente, nas artes em geral. Os jogos e acções simbólicas, danças, representações teatrais, começaram como actividades ligadas ao mundo sobrenatural, e aliás, continuam, nas várias manifestações religiosas organizadas pelo mundo, desde as procissões de Pamplona até às autoflagelações nas Filipinas. Existe também outro tipo muito antigo de ritual performativo que tem a ver com as marcas do Poder terreno (ou terrestre, não sei, extraterrestre é que não é). Se quisermos o chamado «dois em um» (termo futebolístico) observemos, por exemplo, a cerimónia de assumpção de um novo Papa e toda a encenação posta à volta deste acto, em que o tempo de espera desempenha um factor determinante e em que a investidura num contexto de chefia de uma hierarquia (neste caso simultaneamente política e religiosa) coincide com o ritual religioso.

papa a papa come a papa papa formigas

Aliás, mais uma vez, nos primeiros tempos da Humanidade o Poder deste Mundo era legitimado pelo Poder do Mundo dos Deuses. As coisas foram-se separando e pouco a pouco as vestes cerimoniais foram perdendo o seu peso simbólico. Não podemos dizer que, hoje em dia, a cerimónia da tomada de posse, por exemplo, do presidente da República Portuguesa seja um espectáculo profundo ou marcante para os cidadãos. Provavelmente a tomada de posse de um chefe lusitano ou do rei D. Afonso Henriques seria mais edificante, e a assumpção do

poder de um imperador Romano ou de Luís XIV seriam certamente acontecimentos caros, pomposos e espectaculares, onde eram gastos muitos recursos e muitas energias.

Em certa medida, ecos folclóricos destes acontecimentos ainda resultam turísticos nos países onde há uma realeza. Isso é bom para as revistas. O desgaste relativamente recente, sobretudo após o século XVIII, das cerimónias da religião e do poder, acompanharam o desgaste da relação da Religião com a Arte, culminando logicamente na fraca qualidade das obras de arte das nossas modernas igrejas. Por outro lado, se voltarmos a Luís XIV, a Francisco I de França, à corte de Rodolfo II em Praga, verificamos que nas cortes europeias aquilo a que agora chamamos performance, nos seus meios básicos de expressão, na utilização da componente visual, sonora e narrativa em simultâneo para fabricar qualquer coisa que não é teatro nem ópera, foi praticado para o divertimento e espanto dos membros da nobreza e do povo, que espreitava estes esplendores de fora, durante séculos, e que chegavam a graus de subtileza, artifício e encenação dos quais apenas temos uma pálida ideia através de escassos documentos históricos. Essas acções não eram desenvolvidas com um fim religioso nem numa cerimónia política, embora fossem adornos do Poder. Estas coisas do poder é preciso ver que um tipo tem que o mostrar. Na guerra fria eram exércitos intermináveis em parada, mas nesses tempos mais singelos tinham componentes visuais, musicais e teatrais, que os aproximavam das várias manifestações performativas contemporâneas. As referências à cultura clássica eram um dos factores conceptuais presentes na elaboração dessas esporádicas construções.

Todas as belas deusas da Antiguidade floresciam nesses ramalhetes rubros de papoilas. No mundo contemporâneo, existem, todavia, rituais organizados, como são as cerimónias desportivas, que se podem considerar, desde os tempos do Coliseu de Roma, como performances em que se forjam dinâmicas de grupo semelhantes às dos concertos rock, etc. Aliás muito haveria a dizer acerca do Coliseu de Roma e batalhas marítimas encenadas nesse colosso. Para um Deus é a Arte, para alguns o deus é Elvis, para outros outra coisa qualquer, como o futebol. Em português, o termo Performance é mais ou menos recente, vocábulo inglês usado para falar de resultados e desempenhos de empresas, governos, indivíduos, em diversas matérias como a economia, a política e o sexo. Nesse aspecto, eu, Orgasmo Carlos, posso sentir-me á vontade.

Mas há pessoas que ficam ansiosas. A nossa sociedade está obcecada com a maximização do desempenho. É também isso que lhe confere a sua carga de stress. E o tempo para o pequeno espectáculo interior que encenamos todos os dias para nós próprios é sempre pouco. Acerca dos elementos sexuais e orgíacos na performance, um franciú, Alain Badiou, define a performance como a «cerimónia cujo paradigma é, frequentemente, a celebração de carácter religioso. Podemos enunciá-los nos seus termos: a festa e o ritual». Na Modernidade, abordagens performativas em que se misturavam as Artes Plásticas, o Teatro, a acção de rua improvisada, a tentativa de misturar e indiferenciar o Público e o Artista, a utilização de técnicas públicas de confronto com a «sociedade burguesa», já tinham aparecido com o Dadaísmo, no fim da Guerra de 14-18, movimento, aliás, que, qual caixa de Pandora, determinou a contemporaneidade e originou a maior parte das tendências, novas formas e conceitos, assim como praticamente todos os movimentos artísticos posteriores, desde o Surrealismo á Arte Conceptual, desde o Expressionismo Abstracto à Arte Pop. Outra grande fábrica de grandes acontecimentos foi a Agit-Prop e a revolução russa nos momentos imediatamente precedentes e proce-

dentes à revolução. A última grande era das performances, onde esta foi praticada como uma disciplina em si, e onde o autor se definiu como tal, desenrolou-se nos anos 60-70. Foram desenvolvidas intensamente por um grande número de artistas.

Eram desprovidas, na esmagadora maioria dos casos, do sentido de humor e do absurdo que impregnava as manifestações Dada. Movimentos como o Fluxus abordaram este tipo de procedimentos na procura e elaboração de novos rituais que pudessem acompanhar e ajudar a edificar um novo edifício metafísico, moral e/ ou político, de acordo com os movimentos que se formaram no Ocidente por altura da Guerra Fria, de recusa da ordem moral tradicional, de utopia e de transformação da Realidade, partindo muitas vezes de manifestações em que o corpo e a matéria eram personagens num discurso de libertação dos velhos valores religiosos e sociais. Se as formas adoptadas eram por um lado intencionalmente destinadas a chocar o burguês ou o crítico tradicionalista, eram por outro lado experiências que faziam parte de uma escrita utópica em que a distinção entre a Arte e a Vida, o Observador e o Artista, tenderia para o desaparecimento.

Depois da II Guerra as sementes DADA germinaram, porém num corpo diferente. Se as suas manifestações artísticas eram plenas de ironia, sarcasmo inteligente e humor negro, numa reacção aos desastres de um Mundo Moderno que era capaz de calamidades como a da Primeira Guerra Mundial, as da geração do Baby Boom, entre 1946 e 1966, embora não descobrindo nada de axiomaticamente novo no plano conceptual, visavam territórios onde se vislumbrava alguma Fé. Não que não houvesse fé em DADA. O DADA é contemporâneo do milagre de Fátima. Foi a época de Kerouac, do LSD, de Woodstock, da Libertação Sexual, de Orgasmo Carlos, da crença, luta e empenho numa reforma social e de mentalidades, que, em alguns casos, mas muito limitadamente, foram levadas a cabo. Houve uma procura de alternativas (algumas puramente escapistas) às formas religiosas convencionais do Ocidente no estudo e prática das filosofias e religiões orientais, assim como ao modelo social instituído, através de experiências de vida comunitária e no movimento dos direitos cívicos, dos quais o canto do cisne foi o Maio de 68. Ou o 25 de Abril de 74. Deu-se a quebra pela décima vez das regras académicas nas disciplinas e depois, a denúncia das velhas formas (pintura, escultura) como pertencentes a um mundo ultrapassado. A manifestação de liberdade total nas Artes, sem nenhuma imposição de uma condição prévia, e, portanto, totalmente livre, seria a forma do happening, o qual Sartre descreve como «o momento em que o teatro explode». Este tomaria a forma de um acontecimento completamente espontâneo, nascendo sem o recurso a «pais conceptuais». No entanto mesmo aí é impossível não haver o mínimo resíduo de uma construção conceptual. O que pode acontecer é que a simultaneidade, as experiências e o sincronismo ideológico entre os participantes os leve a convergir num caminho comum. Mas o simples enunciado «Vamos fazer uma performance» não deixa em si de ser um ponto de partida conceptual. Segundo Badiou, «a ideia-teatro passa por um agenciamento material que implica enunciados, mesmo invisíveis, mesmo inaudíveis». Assim, mesmo no caso do happening existe um enunciado a priori (Vamos fazer um happening) grau zero do guião». É como a noção homeostética de «Espontaneidade Forçada». Vamos ser espontâneos! Também faz lembrar aquelas mães que querem que os filhos peçam desculpa sinceramente senão vão para o castigo. Mas pronto, não há nada a fazer. Hoje a Performance perdeu quase completamente a possibilidade e a intenção ou veleidade de chocar, precisamente pelo desgaste das práticas e mudanças que essa geração levou a cabo. Agora que tudo é possível, nada pode chocar, e as «massas» que enchem os museus aos fins-de-semana aprenderam a ler aquilo que outrora foi explosão e

vanguarda como um inofensivo jogo, mais ou menos compreensível, mais ou menos decorativo.

— Professor Orgasmo… Parece-me subitamente sério e triste.

— O que é que queres? Estas coisas emocionam-me sempre. E tu, o que pensas disto? — Bem, se queres que te diga, desde a mais tenra infância eu, consciente dos caminhos esquisitos (isto é um termo técnico) da Arte Moderna e das suas várias manifestações, tive sempre um conflito com alguns dos seus aspectos. Provavelmente a minha abordagem às questões mais metafísicas da Arte nos mecanismos inconscientes e automáticos da criação ficam-se pela política. É uma atitude preguiçosa, eu sei. Quando tento ser mais consciente e meditar sobre aspectos e questões como a Religião, a Política, a Economia ou a Sociedade, só me apetece ser irónico e anti-pedagógico. A arte que se autoexplica ou que recorre a enunciados de fora do reino maravilhoso não me interessa em absoluto. Mas concordo que é possível criar um reino maravilhoso, senão xamanístico, outra coisa qualquer, como o Portugal dos Pequenitos ou a Disneylândia. Um certo país, uma certa Arte, uns certos artistas. A minha experiência nas Artes Performativas foi sendo feita aos encontrões: além das performances associadas a actividades musicais variadas, a par de um certo discurso pop-foleiro-obsceno-infantil (algumas canções com letras do grande artista expressionista Fernando Grito), que se foi instalando quase automaticamente, fui desenvolvendo com sucesso a práctica de me embriagar até ao ponto de os próprios músicos da minha banda se retirarem, permanecendo só no palco a balbuciar sílabas imperceptíveis até não haver um cão coxo na audiência. Existem explicações para o desenvolvimento desta Persona. Aquele discurso não podia ser simplesmente transportado por um tipo perfeitamente normal, perfeitamente autêntico, sincero, ou seja lá o que isso seja, ou mesmo perfeitamente sóbrio. Fui por isso construindo uma máscara compatível com o discurso (o método não Stalisnavsky mas sim o método Estaline ou Está Lindo), sem a qual me sentiria desadequado no desempenho dessas acções. Na realidade, na música dita popular, há sempre o fantasma da «estrela», chamemos-lhe «O Fantasma do Elvis» (que era até, provavelmente «autêntico»), e, pelo menos o «Front Man» tem que acabar por desenvolver determinadas atitudes características. Isso faz parte da sua «Aura». Antes de enveredar pelo tipo de música dos Fosga-se 69 participei noutras formações musicais ditas normais. Uma era uma banda da esquerda revolucionária chamada Banda Rissol, onde já se pressentia algum humor (nem que seja pelo nome), e onde participava como cantor e trombonista. O registo «sincero» parecia funcionar. A mesma coisa se passava com a minha participação num grupo instrumental (chamado Tuna Luna), isto é, não sentia a necessidade de um esforço suplementar para sustentar a minha personagem em palco, que, nesse caso, não era propriamente pensada. Limitava-me a fazer o que toda a gente fazia e a acreditar naquilo em que toda a gente acreditava.

— Eu também toquei numa banda: o Orgasmo Ensemble, um grupo de gaitas de foles, flautas de Pã e mulheres nuas que bochecham com a boca aberta de forma a produzir gargarejos que induzem no público um estado de catatonia... — Ora o repertório dos Fosga-se 69 exigia uma abordagem diferente e para me transformar no cantor daquele reportório descobri uma importante ajuda e inspiração no amigo álcool. — Pois. Como dizia o meu amigo e falecidíssimo Adolfo Coelho, «ópio, cocaína e escravatura branca».

— Obviamente que a procura de estupefacientes pela parte dos artistas de variedades é comum e que isso se pode explicar parcialmente pelo peso de ter que arrastar com eles a sua Persona e en-

carná-la em palco para uma data de gente que nunca viram antes (a que é costume chamar-se «fãs»). Também é verdade que a geração de artistas dos anos 60-70 se interessou pelas drogas, nomeadamente as alucinogénicas. é ainda verdade que o caso dos actores profissionais é bastante distinto. Estes têm que mudar constantemente de personagem, de maneira que a sua ligação com uma determinada máscara é mais ténue, momentânea, e mais, digamos, «profissional». Mas isso não os impede muitas vezes de adoptarem determinados tiques e aspectos de uma Persona na qual caiem em vertigens magnéticas, transversal aos vários trabalhos, que acaba por nunca os largar, afectando a sua versatilidade. O extremo caricatural desta situação é o actor que já é escolhido sempre para um determinado tipo de papel, no qual se especializou. Voltando ao meu caso, a minha máscara exige em muitas situações estados psíquicos extraordinários, normalmente mais fáceis de atingir com o precioso auxílio dionisíaco. Esse é um feito que julgo notável (e acrobático), uma vez que o método implica começar o espectáculo sóbrio e acabá-lo o mais perto possível do estado de coma, passando assim por todas as nuances do discurso do deus Baco e do deus Bácoro. Sem dúvida que o meu personagem em palco não será exactamente a pessoa do dia a dia, aquele que vai beber um cafezinho de manhã e que acaricia com volúpia o papagaio do barbeiro. Tem também os seus inconvenientes, aos quais o vulgo chama «ressaca». No entanto, não posso chamar estritamente Performance a estas acções, pois para o fazer terei de envolver outros factores que não puramente o discurso musical. Terei de associar essas acções, numa manobra transversal, a outros discursos, de anunciar essas experiências como sendo relevantes no domínio das artes plásticas, de o comunicar aos críticos, curadores, artistas e público, possivelmente de elaborar videoarte e outros objectos a partir delas, enfim, de fazer um pacote e de embrulhar esses objectos com o papel de natal da Arte Contemporânea. Preciso, é claro, de testemunhas credenciadas (ou credíveis, pagas ou não) para testemunhar, comentar, elaborar e aprovar o processo. Não é complicado de fazer. — Não estás já um bocadinho farto dessa estória da performance? Não queres antes sair deste lugar amaldiçoado pelos deuses e ir ao «Elefante Branco»? — Sabes o que é, Orgasmo? Em criança e adolescente familiarizei-me com a Arte Moderna e com as Performances ou «acções-espectáculo» que faziam os mais velhos. O meu tio Revez fez parte do grupo KWØ, da geração Nexus, amigo de longa data do Wolfgang Kostov, colega do Boiss no Fluxus e pioneiro da videoarte, que tinha inaugurado um museu ao ar livre em Sernancelhe. Lembro-me da sua performance Zigurate III. Um zigurate dourado de 50 metros de altura foi atirado à água do lago e mais tarde, com a tempestade, foi feito em pedaços. Essas performances tinham entre si como ponto comum a importância do gesto e dos corpos, assim como a plasticidade e importância visual dos adereços utilizados, muitas vezes marcando um campo próprio, o de um cenário sem palco, onde decorria a acção, acção essa que assumia, em muitos casos, uma aparência solene e ritual, seguindo narrativas, símbolos e sinais que cruzavam elementos mitológicos clássicos ou populares com a linguagem, os recursos e as novas mitologias da era tecnológica.

O que é curioso é que sempre separei religiosamente a minha prática da política e dos meus empreendimentos musicais. A minha relação com a política foi sempre completamente ascética, por um lado, em oposição à prática, digamos, musical, que sempre foi abertamente disparatada. Curiosamente, a primeira vez que participei numa performance política foi no Algarve, com a peça performance Portugal is for Lovers, contando com a preciosa colaboração do artista Expressionista Armando Grito e tendo como centro polar magnético uma peça de parede do mesmo nome em que se misturavam posters fotográficos gigantes do mar, palmeiras, uma tela a óleo de dois por dois metros figurando uma marinha (a tela até não era má), variados objectos, partes seleccionadas de bonecas de borracha, cartas de jogar pornográficas, um pratinho para pedir es-

molas, um papel de pedinte a dizer «uma esmolinha por favor» e outras coisas das quais já não me lembro. A seguir segue-se uma interminável performance onde o público está posicionado em círculo à nossa volta e os artistas vão caminhando ritmicamente em círculos, bebendo um garrafão de bagaço (já não havia LSD), vestidos com aquilo a que se pode chamar a caricatura do traje de um artista do século passado, com a bata azul e a boina basca, o Armando cantando uma ladainha imitando um acordeão e eu pedindo às pessoas para tirarem cartas do chapéu e devolverem uma moedinha. A razão pela qual me deu na cabeça fazer uma performance tão alegre e ao mesmo tempo tão amarga e, como foi moda dizer-se, irrisória, foi possivelmente a mesma atitude que me levou a formar um personagem que inventei mais tarde, o Pato Conald. A dúvida intermitente de que faça sentido produzir coisas belas num mundo marcado pela corrupção mais completa, pelo demolir das utopias, precisamente as utopias que ainda eram vividas pela geração dos nossos pais e que eu ainda vivi na minha adolescência. A posição do artista posta em causa, a interrogação sobre o próprio sentido da performance em questão e de todas as outras, a irrisão, a ironia feroz, o humor, a desconstrução do autor como Xamã e a sua substituição por um sacerdote báquico, ou mesmo por um qualquer pobre bêbado atrasado mental, a repetição ad nauseam, de sons, movimentos, gestos e atitudes, e a esmolinha de igreja de província misturam-se num caldo que, na verdade, não se queria belo, sagrado ou sério. Justamente, foi a primeira performance anti-séria proposta por aquilo que viria a ser mais tarde o grupo Sarcasmo Carlos (mal nós sabíamos). Esta atitude de troça, desdém, e ao mesmo tempo de atracção pelo lado mais pantanoso e discutível do mundo da Arte Contemporânea já tinha sido ostentada na exposição Ases da Punheta, em que as peças expostas partem justamente da caricatura de estilos e formas deste universo, coisa que não acontecia nas pinturas do movimento homeostérico, onde as atitudes de escárnio se praticavam em notas de rodapé das publicações associadas. Mas aquilo a que no grupo Homeostérico chamávamos profeticamente de Academia de Vanguarda veio a revelar-se, passados alguns anos, como uma tendência de mercado e uma estratégia comum a muitos artistas emergentes. A velha academia foi relegada para uma nota de rodapé da história e desapareceu como legado na formação dos novos artistas. Os novos vocabulários formais estendem-se até ao infinito de possibilidades. Performances com Artistas que mancham o branco dos lençóis de uma cama com o próprio sangue menstrual (há várias manifestações originais neste tema executadas por várias artistas), por exemplo, são legitimadas como uma abordagem intensa e feminista do papel da mulher nesta falocrática sociedade, ou associadas à fertilidade, etc. Já não é preciso, como quando eu era pequeno, ter «jeitinho para o desenho», mas sim ter jeito para vender uma ideia, seja ela qual for. Isto dá obviamente origem à explosão de obras de arte de valor equívoco, o que por sua vez tem o efeito paradoxal de obrigar o mercado da arte a garantir uma aparência de seriedade a toda a prova, porque existe dinheiro em jogo e o dinheiro é a seriedade burguesa absoluta. E portanto, de obrigar o artista a fabricar uma arte que pedagogicamente se explica a si própria. Se do ponto de vista plástico determinada obra de arte parece insignificante, o seu verdadeiro valor e dimensão são postos em campo com a ajuda da maquinaria conceptual. Obviamente, trata-se aqui de repetir os processos e mecanismos da antiga vanguarda de uma forma blasée, conseguindo aqui e ali um «Oh!» e um «Ah!», aqui e ali uma contemplação interrogativa e aqui e ali um «Ah! Já percebi!». — Pois, meu caro Candidato… posso tratar-te por Candidato, não? O caminho seguido por mim na aproximação à Performance assume contornos sérios, mas que alguns pretendem paródicos. Eu chamo-lhe Arte não-séria. É dos miasmas pantanosos das contradições nas práticas artistas contemporâneas que se alimentam as performances «caninistas» de Orgasmo Carlos, artista masculinista, onde o caninismo orgasmiano é o seu equivalente ar-

tístico ao «Kunismo» de Diógenes, do qual fala Peter Sloterpiça. Este é o reverso da medalha do cinismo contemporâneo e, na práctica artística, o grito de «O rei vai nu», de Andersen. A diferença é que, como no cinismo, Orgasmo aponta os meios de que se serve o Poder, mas para melhor o denunciar e pôr em causa os seus objectivos. Não te importas que fale de mim na terceira pessoa? Numa das minhas Performances, na galeria Arqué em 2007, intitulada Anima e o Animal servi um banquete onde a comida ornamentava o corpo nu de uma mulher, tornando indistintos o que é mulher e o que é comida. A partir do momento em que a mulher é «despida» da comida que a vestia, é levada por um monstruoso urso de peluche para o tapete «mulher-capacho», parte da feérica instalação composta por monstros em fibra de vidro, um tapete e miniaturas de parede. Enquanto é executada uma acção de simulação de uma relação sexual entre uma jovem e um urso, Orgasmo Carlos aparece para cantar uma canção com a sua guitarra, mas verifica que o tapete está borrado de comida e começa a gritar com os performers e com o público que emoldura o tapete, tornado palco, acabando por ir buscar uma vassoura para limpar e arrumar a peça. Portanto, temos o exemplo de uma performance clássica como executada por Benny Hill. — Pois bem Orgasmo, essa não é má, mas olha só para o que te vou contar a seguir. Uma outra dimensão da Performance (esta experiência tinha, a certo ponto, sido já ensaiada pelo actor e académico belga Poluche) foi a conseguida com o processo «Candidato Vieira». Este exigiu uma pluralidade de momentos, espaços e media, imitando os processos dos acontecimentos políticos e abordando a questão da falsidade ou verdade nesse mundo assim como aquilo que é virtual ou real neste Mundo.

Trabalhou ainda o contacto no mesmo plano da Ficção com a Realidade e abordou as possibilidades de ilusão e engano no universo da comunicação. O Candidato Vieira é um personagem inventado como sendo um político que prega o Absurdo e o Impossível num contexto (o meio político e as eleições) em que normalmente a consciência do Absurdo ou do Engano só surge a posteriori. O Candidato Vieira, ao contrário, anuncia radicalmente a priori o seu programa como tal, utilizando para isso um discurso exagerado, rabelaisiano, gargantuesco, que tem como referência ao mesmo tempo as promessas impossíveis dos políticos e as extravagâncias da imaginação popular, utilizando, ao mesmo tempo, acções reminiscentes da Agit-prop. O processo foi realizado durante o tempo da campanha real, sendo público na Internet, Televisão, Rádio, espectáculos ao vivo, sessões de esclarecimento em universidades, aparições em mercados, conferências de imprensa, marketing, cartazes, autocolantes, Vídeo, Fotografia e Pintura. O que se conseguiu com isto foi também a criação de um personagem que navega entre a realidade e a ficção. Estes dois campos estão cada vez mais difíceis de distinguir e a maneira alucinante como funciona a televisão clássica contribui para isso. Vivemos num mundo carregado de informação, polvilhado de estímulos sensoriais com os quais somos confrontados sem a possibilidade de os digerir. Temos a sensação de ter o Mundo à nossa disposição nessa caixa mágica, que Hitler considerou fundamental para a propaganda no novo Reich (ver o filme Television Under The Swastica), quando no fundo ela é que nos tem na mão. A internet é, nesse sentido, falsamente mais independente, porque por enquanto ainda é um meio relativamente livre e, sobretudo, depende da força de vontade de cada um chegar onde quiser. O cruzamento de informações díspares, publicidade, guerra, desporto, a morte de alguém famoso, uma exposição canina, o apocalipse nuclear, a crise na bolsa, desenhos animados, um terramoto no Haiti, um artesão de 90 anos que é o último a fabricar um artefacto, a Moda, etc., faz alinhar tudo ao mesmo nível e portanto perder o contacto

com a realidade da maneira como esta existia há quarenta anos. Além de familiares, amigos e vizinhos, os nossos conhecidos são normalmente limitados, embora possamos arranjar centenas de «amigos» no Facebook.

Se me limitasse a fazer o meu honrado trabalho de político não me aconteceriam o tipo de encontros com fãs, ou seja, público, que começaram com a divulgação dos Fosga-se 69. Comecei a ouvir pessoas que nunca tinha visto na rua a gritarem «69», ou «fosga-se!». Mais tarde, depois de fazer um anúncio publicitário, começou a ser muitíssimo frequente, em qualquer estabelecimento da especialidade ou mesmo no meio da rua alguém gritar o slogan «gostam de beber xixi?» Mas o mais incrível é, depois da tentativa falhada de conseguir assinaturas para formalizar uma candidatura à Presidência da República, ouvir muito frequentemente pessoas a dizer «Votei em ti!» É bastante difícil que tenham votado em alguém que não chegou a figurar nos boletins de voto. O que é que isto quer dizer? Qual o resultado desta experiência? Terão estas pessoas mergulhado parcialmente no domínio onde o real e o ficcional se encontram ou estarão apenas a participar no jogo a que a experiência do Candidato Vieira deu início? De qualquer maneira, os personagens que inventamos parecem às vezes ser mais reais que nós próprios.

— Compreendo. Às vezes, em tardes como esta, eu próprio me sinto um sonho.

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