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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
Uma noite, estando a minha mãe na azenha, pejada de mim, chegou-lhe a hora do parto e ali me pariu. Posso deste modo dizer com verdade que nasci no rio Tormes.
O LAZARILHO DE TORMES
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Capa de uma das edições de 1554.
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Anónimo do século XVI e H. de Luna
O LAZARILHO DE TORMES tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
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TÍTULOS DOS ORIGINAIS: LA VIDA DEL LAZARILLO DE TORMES Y DE SUS FORTUNAS Y ADVERSIDADES E SEGUNDA PARTE DE LAZARILLO DE TORMES SECUNDO LAS CRÓNICAS ANTIGUAS DE TOLEDO
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA © ANÍBAL FERNANDES (tradução) NA CAPA: GOYA, O CEGO INVESTIGA A BOCA DE LAZARILHO 1.ª EDIÇÃO, JANEIRO 2014 ISBN 978-989-8566-37-9
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ÍNDICE
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Anónimo do século XVI A vida do Lazarilho de Tormes e das suas venturas e adversidades. . . . . . . . . . . . .
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H. de Luna Lazarilho de Tormes (segunda parte) extraída das Antigas Crónicas de Toledo . . . . . . .
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No século XVI, e na época em que Filipe II de Espanha ainda não reinava com um dilatado poder ibérico, os espanhóis que prolongavam até ao livro os seus privilégios de leitura soletravam os idealismos das éclogas, dos elegantes sonetos de Garcilaso, das histórias de mancebos e donzelas em livros de cavalaria. É certo que uma novela dialogada, conhecida por La Celestina, já popularizava um dos maiores símbolos da alcoviteira perversa; que El Caballero Cifar tinha um Sancho em embrião; que o Libro de Buen Amor, do arcipreste de Hita, oferecia em boa dose malícia e sátira; e também é certo que El Cerbacho o Reprobación del Amor Mundano, considerado por Menéndez y Pelayo «o primeiro livro espanhol de prosa picaresca», ironizava a pureza de pastoras e gentis-homens dispostos a desfazerem-se da vida pela sua amada. Mas numa vasta área não maculada por estas impertinências vingavam a todo o vento os amadises-de-gaula defendidos pelo sobrolho das decências católicas e pelos poderes da Inquisição. Por tudo isto — em 1554 — La vida del Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades fez um amável trabalho de escândalo, capaz de alimentar num só ano quatro edições em diversos pontos do país; todas iguais para lá de pequenas diferenças, talvez caprichos ou erros do copista, com excepção da que apareceu num editor de Alcalá de Henares acrescentada por algumas frases e dois pequenos blocos de texto hoje considerados apócrifos. Era, este Lazarilho, um texto anónimo; costume da época em muitas obras literárias de ficção, embora se defendessem aqui consequências inquisitoriais que poderiam chegar àquele ensaio-geral terrestre com auto-da-fé, que ao pecador daria
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breve e bem merecida amostra do seu inferno de chamas para a eternidade inapagáveis. É hoje difícil ou impossível saber-se se teria havido, para este Lazarilho anónimo, indícios fiáveis sobre a verdadeira identidade do seu autor, e se eles corriam pela voz baixa das confidências. Certo é que muito mais tarde a polémica da sua paternidade partia do zero para ocupar especialistas; e podem hoje alinhar-se mais de uma dezena de nomes numa ou noutra ocasião citados para lhe dar autoria. As possibilidades da informatização apertaram depois um cerco que contou a repetição de tiques literários e vocábulos, tudo o que podia significar neste inquérito e veio a apontar um dedo virtual a Diego Hurtado de Mendoza, mas também a Frei Juan Ortega. Esta hipótese dupla criou teimosamente uma incerteza que o tempo mostra incapacidade em desfazer; e desde há cinco séculos (se arredondarmos números) continua o Lazarilho com pai incógnito desdobrado por figuras literárias da sua época mas a resistir com uma vitalidade que o mantém numa posição de texto desautorizado mais célebre — ou, desfazendo tão arriscada certeza — entre os mais célebres textos castelhanos desautorizados. Julio Cejador, que escreveu no século XIX uma Histoira de la lengua y de la literatura castellanas em muitos volumes e muitas páginas, algumas com sabor a crónica, detém-se sobre o que teria sido, sob Filipe II, a sua popularidade: «Foi o livro de todos, dos letrados e dos leigos, do baixo povo e das pessoas da alta sociedade. Aventureiros e caminhantes não se esqueciam de o levar na bolsa, tal como estava na mochila de carregadores e soldados. Era visto na sala dos pajens e dos criados, e não menos na alcova das senhoras, na sala das damas e na secretária dos eruditos.» O Lazarilho começava este êxito de best-seller quinhentista pelo estilo, recusando-se aos excessos verbais que os grandes nomes da literatura espanhola então afagavam; apoiava-se numa coloquialidade não conhecida ou pelo menos rara entre os escritores da época. Era, para ouvidos e sentimentos, de um realismo penetrante em
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linguagem de povo; uma reconhecível visão parodística da vida que então rodeava os seus leitores: visão da Espanha decadente, empobrecida com a emigração para as Américas e com as guerras, a que suscitava esta crítica de amargo humor a uma nova sociedade de burguesia a nascer, com parasitismos e ociosidades, abundância de deserdados e avessa, por descrença, aos méritos do trabalho. Em La Literatura Española como documento social, Guillermo Diaz-Paja é dogmático: «Sempre que o país, sempre que a pátria estavam cansados, sempre que o esforço realizado pela Espanha ultrapassava os limites do humano, nunca deixou de surgir o pícaro a perguntar se esse esforço era recompensado, se valeria a pena desembainhar a espada e não seria mais cómodo estar deitado ao sol.» Em tom alto O Lazarilho grita estas evidências maiores da sociedade quinhentista desiludida. Passando de amo a amo, a sua principal personagem cultiva uma vagabundagem contínua e com um utilitarismo de regra única — da identificação astuciosa do útil e do nocivo ou, dizendo de outro modo, onde é bem o que satisfaz a necessidade imediata, e mal o que a contraria; também fica como um dos mais vivos retratos do deserdado espanhol assombrado pelas exigências vitais do seu estômago, com um percurso ladeado por mais e menos intensos odores a comida, ou pelos ressentimentos da sua ausência. Tem sido muitas vezes suspeitado que este autor anónimo apressou a conclusão do seu projecto literário; hipótese que o comportamento da sua estrutura não desfavorece. Há, de facto, nos seus primeiros capítulos uma caracterização de tipos, de ambientes, de acção, que parece aspirar à novela perfeita; e logo depois o texto cavalga, logo depois drasticamente se precipita para a conclusão que suspende quase tudo o que poderíamos esperar dele, dando porém evidência a um cinismo conformista e sem nenhum lugar — outra originalidade sua — para as moralidades que então se pediam ao acorde final da boa história contada pela literatura.
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Às grandes qualidades e aos perdoáveis defeitos destas páginas calhou a boa estrela da popularidade e da sedução, e a ela veio somar-se a fama das engenhosas picardias de Lazarilho, dos seus exercícios de dissimulação, os que já inspiraram muitos ilustradores e chegaram ao pincel de Goya. No êxito persistente do seu texto reconhece-se o talento que tem sabido divertir os de ontem e os de hoje com ambientes de perfídia, avareza e crueldade, com os seus picantes anticlericalismos (postos no Índex do Vaticano em 1559 e que levariam à edição expurgada de 1578, hoje conhecida por Lazarillo Castigado); mas também páginas que ficaram como significativo anúncio de um picaresco que pairou em altos momentos das letras castelhanas, o que reconhecemos com maiores complexidades nalgum Cervantes, no Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán, em La vida del Buscón de Francisco Quevedo ou ainda, para citar mais um título entre os que poderiam ser exaustivamente convocados, em La Picara Justina de Francisco Lopez de Ubeda. Porque termina «em aberto», o texto de Lazarilho de Tormes não pôde evitar noutros autores a tentação de prolongamentos, muitos — em prosa, em verso, um deles em inglês — que o tempo tornou dispensáveis; e já no século XX, e tardiamente, o de Camilo José Cela, um autor que caminhava diligentemente para a sua consagração e em 1944 cedia a este mesmo convite com Nuevas andanzas y desventuras de Lazarillo de Tormes. Mas, desta companhia prolixa que incomodou nos séculos XVI e XVII o primeiro Lazarilho anónimo, vai interessar-nos publicar aqui uma Segunda Parte — que mantém qualidades perduráveis e surgiu em Paris no ano 1620; desta vez com autoria explícita mas ainda assim misteriosa, a de H. de Luna, intérprete da língua espanhola; afinal — vieram incansáveis investigadores a descobrir — um Juan de Luna nascido em Toledo (1575) e que morreu em Londres (ignora-se em que ano, mas depois de 1644).
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* H. de Luna (um ex-frade Juan de Luna) começou como sombra de raras penumbras mas desde logo a sugerir que tinha vivido em Paris porque editara aí (em 1620, ou seja, sessenta e seis anos depois das primeiras edições do texto original) a Segunda Parte del Lazarillo de Tormes segundo las Crónicas Antiguas de Toledo. Investigadores recentes forçaram-no a alguma biografia: descobriram-no numa família de judeus convertidos e materialmente folgados que vivia em Toledo, e jovem frade na Ordem de Santo Agostinho. Podemos imaginá-lo rebelde, porque mais ou menos quinze anos de convento levaram-no à decisão drástica de se meter em roupas civis e procurar o caminho de uma França onde o protestantismo florescia (ao contrário do que lhe destinava aquela Espanha severamente católica e inquisitorial), onde respirava ainda livre das ameaças e das punições do cardeal Richelieu. Num barco do Mediterrâneo, Luna pôs-se longe dos Filipes e da Inquisição; tinha trinta e sete anos de idade, era talvez aventureiro mas seguramente um desiludido pelo catolicismo de Roma. Juan de Luna mudava-se para Montauban (futura terra natal de Ingres), nessa época importante centro de religiosos sem obediência ao Vaticano; e saía de Espanha com o sonho, dizia ele, «de poder professar publicamente a verdadeira religião», ou seja, a religião católica reformada e de atitude protestante. Menéndez y Pelayo vê os que então renegavam o país de Filipe como um grupo de vagabundos «intérpretes e mestres da língua pátria, que exibindo títulos mais ou menos honestos e plausíveis, mas não por causas políticas ou religiosas, apenas porque eram impulsionados pela necessidade, sexto sentido do homem, ou pela sua natural inclinação para a vida solta e regida por artimanhas, ultrapassaram portos e viveram na França.» É porém difícil colar um tal programa ao Juan de Luna que algumas certezas biográficas põem acima destes desejos de
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vida livre; porque estudou durante três anos na Faculdade de Teologia protestante de Montauban e limitou-se, quando foi para Paris, a exibir o título de «intérprete da língua espanhola» e a suportar na sua vida prática as consequências de tão mal reconhecida pretensão. Sabe-se que em 1617 Juan de Luna estava casado e não dissuadido pela religião activa de ser escritor; que tinha publicado e ia publicar livros com títulos extensíssimos, e como prova bastarão dois exemplos: Arte breve y compendioso para aprender a leer, pronunciar, escribir e hablar la lengua española (versão bilingue hispano-francesa de 1616), ou melhor ainda a obra com cinco diálogos de sua autoria, acrescentados por outros sete que John Minsheu inspirou, com um título alargado a todo este discurso: Diálogos familiares, en los cuales se contienen los discursos, modos de hablar, proverbios y palabras españolas más comunes, muy útiles y provechosas para los que quieren aprender la lengua castellana (1619). Mas do Juan de Luna ficcionista apenas ficou a conhecer-se a Segunda Parte do Lazarilho de Tormes, a que faz interessar-nos aqui por ele, escritor espanhol bastante «francês» quando se lembra menos do humor do seu país e bastante mais da frivolidade culta que então punha a rir a sociedade frequentadora dos teatros de Paris. Estas novas aventuras de Lazarilho apareceram ao público um ano antes de ele trocar a França pela Inglaterra, fugindo aos tempos difíceis dos protestantes já assustados com Richelieu e a pressentirem a abolição dos seus direitos políticos. Consegue saber-se que em 1623 fazia prédicas dominicais na capela protestante da Mercer’s Company de Londres (grémio para os reformados espanhóis do mercado de sedas e outros tecidos), e que a Leathersellers’s Company (grémio para comerciantes de couro) veio a tê-lo como pensionista exiguamente pago por quatro libras anuais; que o texto da tradução inglesa desta Segunda Parte (editada em 1622, a partir de uma versão com alterações em relação ao texto original) é praticamente de sua autoria; e que teve empenhada parti-
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cipação nas tentativas para unir as igrejas protestantes italiana e inglesa. A partir de 1644 perde-se o seu rasto. Juan de Luna teve conhecimento, sem dúvida, de que a Segunda Parte do Lazarilho de Tormes segundo as Crónicas Antigas de Toledo chegava na França a grande êxito de público; é mesmo provável que tenha sabido das suas quatro edições em castelhano (publicadas na França mas dizendo na sua chancela de editor que eram de Saragoça, e exportadas clandestinamente para Espanha) e das sete da sua tradução francesa. Mas, se a partir de 1559 o «primeiro» Lazarilho tinha enfrentado em Espanha sérias dificuldades de circulação, a este «novo» Lazarilho muito mais restrições seriam levantadas. Não era por se exceder em misoginia que o texto de H. de Luna desagradava às mentalidades que governavam o seu país; o seu pecado estava na história soprada por um feroz anticlericalismo mundano, ligeiro e devastador, por uma engenhosidade novelesca talvez mais divertida do que o primeiro texto anónimo mas fazendo alarde de uma crueldade e de um implacável cinismo, de uma inadmissível ironia contra os inquisidores e a Inquisição. Juan de Luna nunca viria a saber que a primeira edição espanhola do seu texto esperaria dois séculos até ser aceite pela Censura do seu país natal. No Prólogo às aventuras deste «segundo» Lazarilho, Juan de Luna informa que as escreve contra o primeiro «prolongamento» conhecido da obra anónima original, também este anónimo (já uma vez atribuído a frei Manuel do Oporto) e publicado em 1555; e faz questão de alimentar no leitor a expectativa de uma Terceira Parte que seria, garante ele, entre todas a melhor: era apenas um sonho parisiense; que as névoas de Londres, dir-se-á, nunca o deixaram sonhar. A.F.
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Anónimo do século XVI
A VIDA DO LAZARILHO DE TORMES e das suas venturas e adversidades ilustrações de
Maurice Leloir
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prólogo
enho para mim que tão assinaladas coisas, e por acaso nunca ouvidas nem vistas, devam ser conhecidas de muitos em vez de ficarem enterradas na sepultura do esquecimento, pois alguém poderá lê-las e encontrar algo que lhe agrade; e outros, que não cheguem a aprofundá-las tanto, deleitarem-se. A este propósito disse Plínio que não há livro, por mau que seja, sem ter alguma coisa boa. Mormente porque os gostos não são todos iguais, e o que este não come perde-se outro por ele; e assim é que vemos coisas, por alguns menosprezadas, não o serem por outros. Coisa nenhuma deverá por causa disto enjeitar-se nem achar-se má por muito detestável que seja; devemos ao invés comunicá-la a todos, principalmente se não for prejudicial e dela puder colher-se qualquer fruto. Se assim não fosse muito poucos haveria a escrever, fazendo-o apenas para si próprios, pois não se escreve sem trabalho e quem o tem quer recompensa, não com dinheiro mas a visibilidade e a leitura das obras; e, se houver de quê, com elogios. Disse a tal respeito Túlio: «A honra cria as artes.» Pode alguém pensar que o soldado, primeiro no ataque, seja o que na vida mais se enfada? Nada disso: porque o desejo de louvores fá-lo expor-se ao perigo; e o mesmo se dá nas artes e nas letras. Muito bem prega o aspirante à dignidade eclesiástica, por ser ho-
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mem que muito deseja o proveito das almas. Mas pergunte-se a Sua Mercê se lhe desagrada quem disser: «Oh, como Vossa Reverência maravilhosamente falou!» E se um tal senhor Dom Fulano, que justou de muito defeituosa forma, assim mesmo oferece ao truão a sua armadura por ele lhe ter elogiado as muito boas lançadas, o que faria se aquilo fosse verdade? O mesmo acontece aqui: como não me confesso mais santo do que os meus vizinhos, não me desagradará que esta ninharia, neste grosseiro estilo escrita, interesse e faça folgar todos os que nela encontrarem algum gosto e vejam como vive um homem com tantas desgraças, perigos e adversidades. Suplico a Vossa Mercê que receba o pobre serviço da mão de quem mais rico o faria se tivesse com igual força poder e desejo. E já que Vossa Mercê entende que lhe seja escrito e muito por extenso relatado o caso, achei que não deveria começá-lo pelo meio, antes pelo princípio, para haver um inteiro conhecimento da minha pessoa; e também para os que herdaram nobre condição considerarem quão pouco lhes é devida, já que a Fortuna foi com eles benévola, e quão mais fizeram os que a têm de feição contrária e, com força e tino remando, a bom porto chegaram.
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r e l at o p r i m e i r o LÁZARO CONTA A SUA VIDA E DE QUEM FOI FILHO
ntes de tudo o mais, saiba pois Vossa Mercê que me chamam Lázaro de Tormes, filho de Tomé González e de Antona Pérez, naturais de Tejares, aldeia de Salamanca. Nasci dentro do rio Tormes, e por isso fiquei com este sobrenome; e foi assim que aconteceu: o meu pai, que Deus lhe perdoe, estava encarregado de abastecer a moenda de uma azenha que existe à beira daquele rio, e nela foi moleiro mais de quinze anos. E uma noite, estando a minha mãe na azenha pejada de mim, chegou-lhe a hora do parto e ali me pariu. Posso deste modo dizer com verdade que nasci no rio. Ora, sendo eu menino de oito anos acusaram o meu pai de certas sangrias ignobilmente feitas nos sacos dos que iam ali moer; por isso foi preso; e como confessou e não negou, sofreu perseguição da Justiça. Espero em Deus que na glória se encontre, porque o Evangelho lhes chama bem-aventurados. Nesse tempo organizou-se um determinado exército contra os Mouros, e o meu pai (nessa época tão desterrado pelo desastre que referi) seguiu entre os que nele se encontravam com o cargo de tratador de azémolas de um cavaleiro que lá ia, e como leal criado acabou a sua própria vida com a do seu senhor. Vendo-se sem marido nem amparo, a minha mãe viúva decidiu encostar-se aos bons, para ser um deles, e foi viver para a cidade; alu-
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gou aí uma pequena casa, pôs-se a tratar da comida de certos estudantes e a lavar roupa de certos moços de cavalos do comendador da Magdalena, começando deste modo a frequentar as cavalariças. Ela e um homem escuro, dos que cuidavam das bestas, travaram conhecimento. Ele vinha algumas vezes a nossa casa e abalava de manhã; outras vezes chegava à porta durante o dia, com o pretexto de comprar ovos, e entrava em casa. Nos primeiros tempos em que ele aparecia, a sua presença incomodava-me e tinha-lhe medo por causa da cor e do mau aspecto; mas depois vi que a sua vinda melhorava a comida, e fui-lhe querendo bem porque trazia sempre pão, pedaços de carne, e no Inverno os lenhos com que nos aquecíamos. Deste modo, continuando ele a pernoitar e a ter tratos íntimos, acabou a minha mãe por dar-me um negrinho muito bonito, com quem eu brincava e a quem ajudava a agasalhar. E recordo-me de estar o negro do meu padrasto a brincar com o miúdo, de o menino nos ver, à minha mãe e a mim brancos como ele não era, e sentindo medo fugir para junto dela dizendo, a apontar com o dedo: — Mãe, o papão! A rir-se, o meu padrasto respondeu: — Fideputa! Embora muito novo reparei naquela palavra do meu irmãozinho, e disse para comigo: «Quantos haverá no mundo que fogem de outros por se não verem a si próprios!» Quis o nosso destino que os tratos íntimos do Zaide, pois ele assim se chamava, chegassem aos ouvidos do oficial das confrarias; e com a investigação ficou a ver-se que ele furtava uma quarta parte da cevada que lhe era dada para as bestas, bem como farelos, lenha, escovas de ferro, panos da limpeza; e que às mantas e às gualdrapas dos cavalos fingia perdê-las; e quando mais nada havia desferrava as bestas, acudindo com tudo isto à minha mãe para ela criar o meu pequeno irmão. Quando um pobre escravo a isto chega por amor, não
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nos admiremos que um clérigo ou um frade roube, um aos pobres, o outro ao convento, para dar às suas devotas e a outros tantos ajudar. Tudo quanto eu conto se provou, e mais ainda porque me interrogavam com ameaças; e sendo menino eu respondia por medo e revelava quanto sabia, e até cheguei a fazê-lo sobre certas ferraduras que a mando de minha mãe a um ferreiro vendi. Ao triste do meu padrasto açoitaram-no e deitaram-lhe gordura derretida nas chagas; e à minha mãe impôs a Justiça como pena que, acrescentada à habitual centena de açoites, não mais entrasse na casa do dito comendador nem acolhesse na sua o lastimoso Zaide. Para não ir a corda atrás do caldeirão, a triste esforçou-se e cumpriu a sentença. E para não correr perigo e livrar-se das más línguas foi servir os que então viviam na estalagem da Solana. Sofrendo ali mil aborrecimentos, acabou de criar o meu irmãozinho até ele saber andar, e a mim até ser um moço perfeito que aos hóspedes acudia com vinho, candeias, e o mais que lhe mandavam fazer.
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Por este tempo veio hospedar-se na estalagem um cego a quem pareci bom para seu guia. Pediu-me à minha mãe, e ela cedeu-me dizendo que eu era filho de um bom homem morto por exaltação da fé na batalha dos Gelves1; confiava que Deus me não faria sair pior do que o meu pai, e rogava que me tratasse bem e por mim olhasse porque eu era órfão. Ele respondeu que assim faria e não me receberia como moço, mas como filho. Principiei, pois, a servir e a guiar este «velho novo» amo. Depois de alguns dias em Salamanca pareceu-lhe que não tinha lucros a seu contento e determinou que abalássemos dali. Antes de partir fui ver a minha mãe, que me deu a bênção e disse, com ambos a chorar: — Filho, sei que nunca mais voltarei a ver-te. Procura ser bom, e Deus te guie. Criei-te e bom amo arranjaste. Cuida de ti. E assim voltei para o amo que à minha espera estava. Saímos de Salamanca, e quando chegámos à ponte que à entrada tem um animal de pedra parecido com um touro, o cego mandou-me aproximar dele, e quando eu já assim estava disse: — Lázaro, chega a esse touro a orelha, e dentro dele ouvirás um grande rumor. Muito inocentemente me cheguei, cuidando que isso mesmo iria acontecer. E mal sentiu que eu tinha a cabeça encostada à pedra, a sua mão atingiu-me com força e fez-me dar contra o diabo do touro uma grande cabeçada, uma cornada que mais de três dias doeu, dizendo: — Aprende, palerma, porque um moço de cego qualquer coisa mais do que o diabo terá de saber. E muito se riu com a partida. 1 Exército contra os Mouros, que em 1510 García de Toledo organizou com o intuito de conquistar o norte de África, e teve um catastrófico desempenho. (N. do T.)
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Ao que me parece, despertei nesse instante da simplicidade onde adormecido estava como menino. Disse de mim para mim: «Verdade este fala. Preciso de olho vivo e tomar tento porque sozinho sou; terei de ser eu a pensar como poderei desenvencilhar-me.» Principiámos a fazer o nosso caminho, e em muito poucos dias me ensinou o seu linguajar. Como me visse bem atilado, sentia muito regozijo ao dizer: — Ouro e prata não posso dar-te, mas muitos ensinamentos terás para viver. E assim aconteceu, porque depois de Deus deu-me ele a vida, e apesar de cego me alumiou e orientou nos caminhos de viver. Folgo em contar a Vossa Mercê estas frioleiras, para mostrar quão meritório é os homens que em baixo estão saberem subir, e quão vergonhoso os do alto deixarem-se rebaixar. Ora, voltando ao bom do meu cego e contando que manhas tinha, saiba Vossa Mercê que mais astuto e sagaz não fez Deus ninguém desde que o mundo criou. Era no seu ofício uma águia: mais de cem orações sabia de cor. Dizia-as num tom grave, lento e muito sonoro que fazia ecoar a igreja onde rezasse; quando orava compunha com grande comedimento um rosto humilde e devoto, sem gestos nem maneirismos de boca e olhos como outros costumam fazer. Tinha, além disto, outras mil formas e maneiras de arrancar dinheiro. Dizia que sabia rezas para muitos e diversos efeitos: para mulheres que não pariam e para as que estavam de parto; para as mal-casadas terem maridos que lhes quisessem bem. Às prenhas fazia prognósticos: se filho ou filha traziam. Tratando-se de medicina, dizia que ao pé dele Galeno não sabia metade sobre dores de dentes, desmaios e males da matriz. Para terminar, ninguém se lhe queixava de uma paixão sem ele dizer logo: — Fazei isto, fazei aquilo, colhei tal erva, apanhai tal raiz.
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Por esta razão andava todo o mundo atrás dele, em especial mulheres que em tudo quanto dizia acreditavam. Tirava delas grandes proveitos com as artes a que me refiro, e ganhava mais num mês do que cem cegos num ano. Mas quero que Vossa Mercê também saiba isto: apesar de tudo o que adquiria e tinha, homem tão avarento e mesquinho nunca vi; chegava ao ponto de me matar à fome por nem metade do necessário me dar. Falo verdade: não soubesse eu remediar-me com esperteza e boas manhas, teria muitas vezes morrido à fome; mas apesar de todo o seu saber e prevenção, de tal modo o ludibriava, que sempre ou a maior parte das vezes me cabia o mais e o melhor. Para isto fazia-lhe endiabradas partidas, e algumas contarei embora nem todas sejam a meu favor. Ele trazia pão e tudo o mais numa taleiga de lona que tinha uma argola de ferro com cadeado e chave a fechar-lhe a boca, e com tamanha atenção e tanta minúcia lá metia e de lá tirava as coisas, que nem todos os do mundo saberiam subtrair-lhe uma migalha. Eu aceitava a miséria que ele me dava, e em menos de duas dentadas a despachava. Mas depois de fechado o cadeado, de ele já não estar atento e supor-me a cogitar noutras coisas, com um pouco de costura eu descosia e voltava a coser um lado da bolsa sangrando a avarenta taleiga, tirando-lhe pão que não era pouco, antes em bons pedaços, e torresmos e linguiça. Depois buscava uma ocasião propícia, não para repetir o jogo mas remediar a endemoninhada falta daquilo que o cego me negava. Tudo quanto eu podia apanhar ou furtar trocava-o por quartos de maravedi; e quando lhe davam maravedis por rezas encomendadas, como carecia de visão eu metia-os na boca, mal o dador fazia menção de lhos entregar; e como tinha pronto um quarto de maravedi, por mais rápido que ele fosse a estender a mão chegava-lhe o meu troco minguado a metade do justo valor. Por compreen-
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der, e pelo tacto desde logo perceber que não se tratava de um completo maravedi, o ruim cego queixava-se dizendo: — Que diabo se passa? Desde que andas comigo só me dão quartos de maravedi, e antes davam-me meio e bastas vezes me pagavam um maravedi. Em ti deve estar a má sorte! Também abreviava as orações, deixando-as a meio, porque eu tinha ordem para lhe puxar a aba do capote quando se fosse embora o que mandara rezar. Eu assim fazia. E de imediato ele voltava a gritar, dizendo o que é costume dos cegos: «Quem quer uma oração para isto e para aquilo?» Quando comíamos costumava pôr ao seu lado um pequeno jarro de vinho; e eu era muito rápido a deitar-lhe a mão, a dar-lhe um par de silenciosos beijos, e a voltar a pô-lo no seu lugar. Mas foi coisa que durou pouco porque se apercebia da falta pelas goladas, e para manter o vinho a salvo passou a não desamparar o jarro agarrando-o sempre pela asa. Mas a atrair não havia melhor pedra de imã do que eu, porque tinha para este efeito preparada uma comprida palha de centeio e, metendo-a na boca do jarro, chupava o vinho deixando-o às escuras. Como o traidor era muito astuto, penso que me pressentiu e mudou dali em diante de manha assentando o jarro entre as pernas, tapando-o com a mão e passando a beber com segurança. Eu, que estava afeiçoado ao vinho, morria por ele; e vendo que o estratagema da palha não me aproveitava nem valia, resolvi fazer na base do jarro um finíssimo buraco que fosse uma fonte, e tapá-lo delicadamente com uma pequena e muito delgada rolha de cera. Quando chegava a ocasião de comermos eu fingia que sentia frio, e para me aquecer ao nosso pobre lume encolhia-me entre as pernas do triste cego; e mal a cera se derretia ao calor, por ser muito pouca, começava a fontezinha a correr-me para a boca que eu colocava de maneira a não ficar perdida nem a maldita de uma gota, pequena fosse. Quando o desgraçado ia beber nada encontrava.
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Espantava-se, maldizia-se, mandava jarro e vinho para o diabo sem perceber o que ali se tinha passado. — Meu tio, não ireis afirmar que o bebo — dizia eu — porque não o largais da mão. Mas tantas voltas e apalpadelas deu ao jarro, que encontrou a fonte e descobriu a burla; dissumulou porém a descoberta, como se a não tivesse feito. E logo no dia seguinte pus o jarro a gotejar, como era costume, instalei-me de feição, sem cuidar da maldade que me estava destinada e que o ruim do cego me tinha apanhado em falta. Recebia eu os doces tragos com o rosto virado para o céu, os olhos semicerrados para saborear melhor o precioso licor, quando o desesperado cego achou que era altura de se vingar de mim. Levantou a mãos ambas e com toda a força o doce e amargo jarro, e com toda a energia, ia eu dizendo, deixou-o cair sobre a minha boca; e desta maneira o pobre Lázaro, contra isto indefeso e, pelo contrário, como das outras vezes descuidado e gozoso, teve a sensação de que realmente lhe caía em cima o céu com tudo o que nele existe. Tamanha pancada atordoou-me e fez perder os sentidos; e foi tal a jarrada, que os cacos se meteram na minha cara golpeando-a em muitos sítios e partindo dentes que até hoje me faltam. Desde essa hora quis mal ao malvado cego; e embora ele me estimasse, mimasse e tratasse, bem vi que se divertira com o cruel castigo. Lavando com vinho as feridas que me tinha feito com os cacos do jarro, dizia a sorrir: — Que tal te parece, Lázaro? O que te causou a doença vai curar e dar-te saúde! E outros chistes que do meu gosto não eram. Mal me senti meio refeito do negro castigo e das mazelas, compreendi que o cruel cego com mais umas tantas pancadas se livraria de mim. Decidi, portanto, que seria eu a livrar-me dele, e só não o fiz logo para levá-lo a cabo mais a salvo e com maior pro-
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veito. Embora eu quisesse serenar o coração e perdoar a jarrada, dali em diante o mau trato do ruim cego não dava lugar a isso porque me magoava sem motivo nem razão dando-me cascudos e arrepelando-me os cabelos. E se alguém perguntasse por que me tratava tão mal, contava logo a história do jarro dizendo: — Cuidais que este meu moço é algum inocente? Ora ouvi se o demónio se lembraria de tal façanha. Benzendo-se, aqueles que o escutavam diziam: — Imagine-se! Quem iria supor que tal ruindade houvesse em tão pequeno rapaz! E riam-se muito da artimanha, dizendo: — Castigai-o, castigai-o, que Deus vos recompensará. E, com isto, ele nunca de outra maneira fazia. Naquilo que me toca, levava-o sempre pelos piores caminhos; e, para maior mal lhe fazer, havendo pedras de propósito por elas, havendo lama pela mais funda. Não indo pelo mais enxuto não me importava de dar cabo de um olho meu se àquele que nenhum tinha desse cabo de dois. Por causa disto batia-me constantemente com a ponta do bordão no cocuruto, que eu trazia às suas mãos sempre cheio de galos e pelado. E embora eu jurasse que não era com maldade que assim procedia, mas por não achar melhor caminho, nem disto eu tirava proveito nem ele me acreditava, tal eram o tino e a enorme esperteza do traidor. Para Vossa Mercê ver até onde chegava o engenho do astuto cego, contarei um caso entre muitos que junto dele me aconteceram e no qual me parece bem evidente a sua grande astúcia. Era seu intento, quando saímos de Salamanca, virmos para a terra de Toledo por as pessoas serem aqui mais ricas, dizia ele, embora não muito esmoleres. Mas neste rifão se apoiava: «Mais dá o duro do que o nu.» Pelas melhores terras nos metemos a este caminho. Onde encontrasse bom acolhimento e lucro, paráva-
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mos; onde não os encontrasse, dizíamos ao terceiro dia «passem muito bem». Aconteceu-nos chegar a um sítio chamado Almorox e, como se colhiam nessa ocasião as uvas, um vindimador deu-lhe por esmola um cacho. E porque os nossos cestos costumavam andar maltratados, e também porque a uva estava na época muito madura, o cacho esbagoava-se nas mãos. Se o metesse na taleiga ficava em mosto como tudo o que nele tocasse. Por não poder levá-lo dali, num dia em que me tinha dado muitas joelhadas e pancadas resolveu fazer um banquete para me adoçar a boca. Sentámo-nos num cercado e disse-me: — Quero ter agora uma liberalidade para contigo, que é ambos comermos este cacho de uvas e dele tirares tanto como eu. Desta maneira a divisão faremos: uma vez tiras tu e outra tiro eu, desde que prometas não tirar mais de uma uva de cada vez. Farei o mesmo até acabarmos, e deste modo não haverá enganos. Feita assim a combinação, começámos; mas logo à segunda vez o traidor mudou de propósito tirando bagos aos dois e dois, pensando que eu faria o mesmo. Quando vi que ele quebrava o pacto, não só me contentei em emparelhar com ele mas em ultrapassá-lo a dois e dois, a três e três, comendo-os conforme podia. Quando o cacho acabou quedou-se um pouco com o engaço na mão, e a menear a cabeça disse: — Enganaste-me, Lázaro. Sou capaz de jurar a Deus que comeste as uvas a três e três. — Não comi — disse eu. — Mas por que suspeitais disso? Respondeu o cego, muitíssimo sagaz: — Sabes de que forma eu vejo que as comeste a três e três? Porque comendo eu duas a duas te calaste. Ri-me de mim para mim, e apesar da minha juventude muito avisado achei o raciocínio do cego.
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Para não ser prolixo deixarei de contar muitas coisas, tão engraçadas como dignas de nota, que me aconteceram com este meu primeiro amo, e falarei apenas da despedida e do modo como acabei com ele. Estávamos numa estalagem em Escalona, vila do duque da mesma, quando ele me deu um pedaço de linguiça para assar. E já a linguiça pingara, e tínhamos comido pão untado com o pingue, quando tirou da bolsa um maravedi e me mandou à taberna buscar vinho. Como sói dizer-se, o demónio pôs-me diante dos olhos a ocasião que faz o ladrão; porque aconteceu que um pequeno nabo comprido e murcho estava perto do fogo, talvez abandonado por não prestar para a panela. E como na altura ninguém ali se encontrava, senão ele e eu, e me senti cheio de um guloso apetite (sabendo que era a única coisa de que iria gozar), sem atender ao que podia acontecer-me pus de lado todo o medo e dei satisfação ao desejo. Enquanto o cego tirava o dinheiro da bolsa tirei eu a linguiça, e muito
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rapidamente pus no espeto o referido nabo. O meu amo agarrou nele, depois de me entregar o dinheiro para o vinho, e começou a dar-lhe voltas no fogo para assar o que tinha pelos seus deméritos escapado de ser cozido. Fui buscar o vinho, e não tardou que me ajudasse a despachar a linguiça; e porque o pecador do cego se tinha esquecido de apalpar o nabo para avaliar do que se tratava, quando regressei encontrei-o com ele apertado entre duas fatias de pão. Agarrado a elas deu uma dentada, e cuidando que ia trincar uma parte da linguiça sentiu-se esfriar com o frio nabo. Disse-me então, irritado: — O que é isto, Lazarilho? — Desgraçado sou! — disse eu. — Quereis deitar-me qualquer culpa? Pois não acabo de chegar com o vinho? Alguém por aqui esteve e por partida fez isso. — Não, não — disse ele — porque não larguei da mão o espeto. Não é possível.
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Tornei a jurar e a perjurar que de tais trocos e trocas estava inocente, mas de pouco me serviu porque nada era possível esconder às astúcias do maldito cego. Levantou-se, agarrou-me pela cabeça e chegou-se a mim para me cheirar; e como deve ter sentido à maneira de um bom podengo o meu hálito, para melhor se assegurar da verdade, e por estar numa grande aflição agarrou-me com as mãos, abriu-me mais a boca do que devia ser-lhe consentido e nela meteu desatinadamente o nariz que tinha comprido, aguçado, e que a zanga aumentava naquela ocasião de um palmo, chegando com a sua ponta ao meu gorgomilo. E então, por causa disto e do grande medo em que eu estava, e porque a malvada linguiça não tinha em tão pouco tempo achado assento no meu estômago e, mais importante do que o resto, porque a descortesia do seu compridíssimo nariz me deixava quase sufocado, com todas estas coisas a juntarem-se o acto e a gula manifestaram-se devolvendo o seu ao seu dono. E antes do maldoso cego me tirar a tromba da boca, tamanha alteração o meu estômago sentiu que lhe atirou com o furto, não só saindo da minha boca o nariz mas a malvada e mal mastigada linguiça. Oh, grande Deus, só me faltava àquela hora estar sepultado, porque morto já eu estava! Ao cego perverso uma tal gana chegou, que a não ter havido quem ao barulho acudisse ele não me deixaria, cuido eu, com vida. Arrancaram-me das suas mãos, deixando-as cheias com os poucos cabelos que ainda me restavam; eu com a cara arranhada, e lacerados o pescoço e a garganta que bem o merecia por tantos tormentos me chegarem da sua maldade. A quantos se acercavam de nós, o mau cego contava uma e outra vezes os meus desastres repetindo, quer a história do jarro, quer a do cacho de uvas e a que tinha agora acontecido. E era muito grande o riso de todos, ao ponto de a gente que passava na rua entrar toda para ver a festa. E com tanta graça e tanto donaire o cego
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segunda parte de LAZARILHO DE TORMES extraída das Antigas Crónicas de Toledo
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AOS LEITORES
migo leitor, a oportunidade de mandar imprimir a segunda parte de Lazarilho de Tormes surgiu por me chegar às mãos um pequeno livro onde são referidas sem réstia de verdade algumas coisas sobre a sua vida. A sua maior parte empenha-se a contar como Lázaro caiu ao mar e se transformou num peixe chamado atum, como viveu lá muitos anos e se casou com a peixa de quem teve três filhos peixes, idênticos ao pai e à mãe. Conta ainda as guerras que os atuns faziam com Lázaro por capitão, e outros disparates tão ridículos como mentirosos, tão mal fundamentados como néscios. Quem tal escreveu, por certo quis contar um sonho néscio ou um sonhado disparate. Foi esse livro, afirmo eu, a principal razão que me levou a trazer à luz esta Segunda Parte literalmente contada como a vi escrita, sem nada cortar nem acrescentar, nuns alfarrábios do arquivo da tradição popular de Toledo, idêntica ao que nas noites de Inverno cem vezes ouvi à minha avó e às minhas tias junto da lareira, e ao que me foi dado notícia pela minha ama. Ela e outras vizinhas discutiam muitas vezes e em controvérsia se teria sido ou não possível ficar Lázaro tanto tempo dentro de água sem se afogar (como nesta Segunda Parte é contado). Umas eram a favor e outras contra; aquelas argumentavam que o próprio Lázaro dissera que não podia dentro de si meter água por
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estar cheio e abarrotado de vinho até à boca. Um bom velho com experiência de nadador fez a sua autoridade intervir para provar que era coisa possível, dizendo que tinha visto um homem entrar no Tejo a nadar, cair lá de mergulho e meter-se depois numas cavernas, desde o sol posto até ao nascente, com um resplendor que o fez atinar com o caminho; e já estavam todos os seus parentes e amigos fartos de o chorar e procurar o corpo para lhe ser dada sepultura, quando ele apareceu são e salvo. A outra dificuldade levantada pela vida de Lázaro era não haver ninguém que o tivesse conhecido enquanto homem; e aqueles que o tinham visto estarem todos convencidos de que era peixe. Um bom canónico (por ser muito velho ficava o dia inteiro ao sol com as fiandeiras de roca) respondia a isto dizendo que era bem possível acontecer se fosse levada em conta a opinião de muitos autores antigos e modernos, entre os quais Plínio, Eliano, Aristóteles, Alberto Magno, que dão como certa a existência de peixes do mar com machos chamados tritões e fêmeas chamadas nereides, todos homens marinhos com perfeita forma humana da cintura para cima, e dali para baixo com a de peixes. Mesmo sem uma tal opinião ser defendida por autores qualificados, digo que a ignorância espanhola seria a tal respeito justificável atendendo à directiva dada aos pescadores pelos senhores inquisidores, a de não duvidarem de uma coisa que suas senhorias resolvessem que estava certa, porque seria caso de inquisição. Contarei a este propósito uma coisa (apesar de alheia ao que agora trato) que aconteceu com um lavrador da minha terra, e foi um inquisidor tê-lo mandado chamar para pedir o envio de umas peras de muitíssima qualidade que ele tinha, segundo lhe fora dito. Tão angustiado o pobre aldeão se sentiu por não saber o que sua senhoria poderia querer dele, que adoeceu, só ficando depois a par do que se tratava por um amigo. Levantou-se então da cama, foi ao pomar, arrancou a árvore pela raiz e enviou-a com a fruta, pois
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nada queria em sua casa que fosse pretexto para o chamarem outra vez. Tão temidos eles são, não só pelos lavradores e pela gente humilde, mas pelos senhores e pelos grandes, que tremem mais do que as folhas da árvore com o suave zéfiro quando ouvem estas palavras: inquisidores e inquisição. Eu quis advertir a respeito disto o leitor, para ele poder responder quando forem feitas perguntas do mesmo género na sua presença. Aviso-o também de que deve considerar-me cronista, e não autor desta obra capaz de fazê-lo passar uma hora. Se ela lhe agradar, espere pela Terceira Parte com a morte e o testamento do Lazarilho, pois será de todas a melhor; mas se isto não vier a concretizar-se, receba então esta com benevolência. Até mais ver.
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capítulo i ONDE LÁZARO CONTA A SUA PARTIDA DE TOLEDO PARA PARTICIPAR NA GUERRA DE ARGEL
uem tiver o que bem está e mal escolher, com o mal que lhe chegar não se deve aborrecer. Vem a propósito eu dizer isto porque não pude nem soube manter-me na boa vida que a fortuna me tinha oferecido, e porque a mudança foi de mim inseparável acidente e minha companhia, tanto na vida boa e farta como na má e desastrada. De facto, gozava eu o melhor tempo que um patriarca alguma vez gozou, a comer como um frade em casa alheia e a beber mais do que um curandeiro benzedor, melhor vestido do que um jesuíta de São Caetano e com duas dezenas de reais na bolsa mais garantidos do que numa loja de revendas em Madrid, com a casa cheia como um cortiço, uma filha bordada a fio de ouro e um ofício capaz de fazer inveja ao enxota-cães da igreja de Toledo, quando houve notícia do exército de Argel e fui por ela inquietado ao ponto de ser o bom filho que resolve seguir as pegadas e as solas do seu bom pai Tomé González (que em boa memória se mantenha) e sente o desejo de a vindouros séculos legar exemplo e modelo, não de guiar um cego astuto, ratar o pão do avarento clérigo, servir o escudeiro pelintra e por fim gritar alto as faltas alheias, mas exemplo e modelo que desse vista aos Mouros cegos nos seus erros, rompesse e destroçasse os afoitos batéis corsários, servisse o meu corajoso capitão da Ordem de São João com quem me ajustei
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como confeiteiro, ciente de que tudo quanto ganhasse seria a mim próprio destinado (tal como aconteceu); e finalmente por querer mostrar-se como exemplo, gritando e dando ânimo, clamando Santiago e Coragem Espanha! Despedi-me da minha amada consorte e da minha querida filha, rogando esta que me não esquecesse de lhe trazer um mourisquinho, e a outra que me lembrasse de enviar pelo primeiro mensageiro uma escrava para a servir e algumas berberescas moedas de ouro que a consolassem da minha ausência. Ao arcipreste meu senhor pedi licença e que a seu cuidado ficasse o bem-estar da minha mulher e da minha filha, tendo ele prometido tratá-las como se fossem suas. Parti de Toledo alegre, ufano e animado como os que vão para a guerra, pejado de boas esperanças, acompanhado por grande quantidade de amigos e vizinhos que seguiam viagem comigo, levados pelo desejo de melhorar a sua sorte. Chegámos a Múrcia com a intenção de embarcar em Cartagena, e aconteceu-me ali o que eu não queria quando verifiquei que a sorte me tinha feito subir ao mais alto da sua roda e erguer ao cume da bem-aventurança terrestre, e com a sua veloz rotação começava a despenhar-me até ao seu ponto mais baixo. Aconteceu-me, chegando à pousada, ver um semi-homem com madeixas e farrapos na veste que o deixavam bastante parecido com um bode. Como trazia um chapéu enterrado na cabeça, não se lhe podia ver a cara; encostava a mão à face e apoiava a perna na espada meio metida numa bainha de fancaria. O chapéu era um tanto à picaresco, sem o topo da copa para se evaporar a exalação da cabeça; a casaquinha era à francesa, tão cheia de rasgões que não haveria onde pregar meio real de cominhos; a camisa era de carne visível pelas persianas da roupa; as calças a mesma coisa; as meias, uma vermelha e outra verde, não desciam a mais do que os tornozelos. Tinha uns sapatos a dar para o descalço, tão usados
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livros publicados Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, George Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt
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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
Uma noite, estando a minha mãe na azenha, pejada de mim, chegou-lhe a hora do parto e ali me pariu. Posso deste modo dizer com verdade que nasci no rio Tormes.
O LAZARILHO DE TORMES
O LAZARILHO DE TORMES
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