Leopoldo Lugones, Os Cavalos de Abdera - E mais forças estranhas

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Leopoldo Lugones

OS CAVALOS DE ABDERA e mais forças estranhas

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes


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TÍTULOS DOS ORIGINAIS: LOS CABALLOS DE ABDERA; EL MILAGRO DE SAN WILFRIDO; LA ESTATUA DE SAL; LA LLUVIA DE FUEGO; EL ORIGEN DEL DILUVIO, NARRACIÓN DE UN ESPÍRITU; YZUR; NURALKÁMAR; EL VASO DE ALABASTRO; LOS OJOS DE LA REINA; EL PUÑAL.

© SISTEMA SOLAR, CRL (2017) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO DE 2017 ISBN 978-989-8833-06-8 NA CAPA: FRANZ MARC, DOIS CAVALOS AZUIS, 1913, SOLOMON R. GUGGENHEIM MUSEUM, NEW YORK SOLOMON R. GUGGENHEIM FOUNDING COLLECTION REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/17 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ACDPRINT RUA MARQUESA DE ALORNA, 12-A 2620-271 RAMADA PORTUGAL


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Sem a cumplicidade mítica de nenhum Eufrates, há perto de Buenos Aires um rio Tigre que desliza e faz um delta turístico. As suas ilhas são, sobretudo, espaços de lazer. No dia 18 de Fevereiro de 1938, Leopoldo Lugones tomou uma lancha na Estação Fluvial do Tigre e dirigiu-se a El Tropezón, um hotel onde nunca tinha estado. Pediu, apenas para uma noite, «um quarto muito fresco e tranquilo»; e disse que desejava jantar às nove horas. Durante a tarde passeou no parque, e quando regressou foi visto por uma menina, filha dos hoteleiros, a partir uma ampola de vidro num degrau da escada de cimento. Como não apareceu às nove horas para jantar, depois de várias e inúteis batidas à porta do seu quarto foi decidido utilizar a chave de segurança do hotel. Lugones estava morto, estendido no chão, envenenado por uma mistura de cianeto e uísque. De uma carta posta em evidência numa mesa, destacamos estas frases: Peço que me enterrem na terra sem caixão, sem nome que me recorde; proíbo que o meu nome seja atribuído a um qualquer lugar público; não culpo ninguém de nada; sou o único responsável por todos os meus actos. Este hotel ainda existe, e o quarto alugado por Lugones está fora de serviço. Mantém-se como ele o utilizou no dia da sua morte, acrescentado apenas por uma fotografia e um fac-símile encaixilhado da carta que ali deixou. A morte de Lugones soube causar bastante agitação na intelectualidade sul-americana. Nos seus últimos dias tinha-se mos-


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trado com uma melancolia que não ocultava um fundo de selvagem desespero; e, como nunca, capaz de dividir, de inspirar amores e ódios. A sua morte confirmava-o, porém, na dimensão literária que o país não podia ignorar; a que levaria a data do seu nascimento, 13 de Junho, a ser consagrada como Dia do Escritor na Argentina. Jorge Luis Borges, que o admirava, várias vezes o recordou; escolheu-o para a sua Biblioteca de Babel e depois da sua morte resumiu-o com muita eficiência: «Como o de Quevedo, como o de Joyce, como o de Claudel, o génio de Leopoldo Lugones é fundamentalmente verbal. Não há uma página do seu extenso labor que não possa ler-se em voz alta e não tenha sido escrita em voz alta. Períodos que noutros escritores resultariam ostensivos e artificiais, correspondem nele à plenitude e às amplas evoluções da sua natural entoação. «Para Lugones, o exercício literário foi sempre a honesta e aplicada execução de uma tarefa precisa, o rigoroso cumprimento de um dever que excluía os adjectivos triviais, as imagens previsíveis e a construção pouco feliz. As vantagens desta conduta são evidentes; o seu perigo é que o sistemático repúdio de lugares-comuns pode conduzir a meras irregularidades com hipótese de serem obscuras e ineficazes. Lugones teve a vaidade de trabalhar demoradamente a sua obra linha a linha; um resultado desta dedicação é o elevado número de páginas de índole antológica. «Com desdém pelo espanhol, o autor de La guerra gaucha adoeceu paradoxalmente com duas superstições muito espanholas: a crença de que o escritor deve usar todas as palavras do dicionário; a crença de que o significado é em cada palavra o essencial, e nada importam a sua conotação e o seu ambiente. Não obstante, nalguns dos poemas de tom crioulo empregou com delicadeza um vocabulário simples; isto prova a sua sensibilidade e permite-nos supor que as suas ocasionais fealdades eram audácias e respondiam à


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ambição de fazer frente a todas as palavras. É fatal que algumas dessas novidades tenham ficado antiquadas, mas a obra, no seu conjunto, é uma das maiores aventuras do idioma espanhol. O século XVII quis inovar regressando ao latim; Lugones quis incorporar ao seu idioma os ritmos, as metáforas, as liberdades que o romantismo e o simbolismo tinham dado ao francês. «A literatura da América ainda se alimenta da obra deste grande escritor; e bem se vê que ser escritor é para muitos escrever à maneira de Lugones. Desde o ultraísmo até aos nossos dias, a sua inevitável influência perdura, a crescer e a transformar-se. E tão generalizada é essa influência, que para sermos discípulos de Lugones não é necessário tê-lo lido. Em La pipa de Kifde, Valle Inclán está atento ao Lunario sentimental; sem menosprezar a originalidade dos dois grandes poetas Ramón López Velarde e Martinez Estrada, afirmar-se-á que provêm de Lugones. «Chegar num meio indiferente a uma obra tão fértil e tão perfeita, é um empreendimento heróico; toda a sua vida foi uma laboriosa jornada com desdém pelas recompensas, pelos aplausos e pelas honras, e até pela glória que agora o sustenta e justifica. O seu destino impôs-lhe a solidão porque não havia outros como ele, e encontrou nessa solidão a morte.» Esta morte começou por ser atribuída a um insuportável desencanto político. A sua trajectória neste campo é de largo espectro, a caminhar da esquerda para a direita sob o incitamento de sucessivas desilusões, iniciada com entusiasmos de jovem pelo socialismo, a pisar depois o centro e a desviar-se até à vontade militarista, ultraconservadora e autoritária, na sua opinião a única que poderia construir o homem novo com base na língua, na literatura e nas tradições, a única que poderia levar a Argentina à «raça nacional» plenamente integradora de gaúchos e crioulos. Nos seus últimos dias, o desespero político de um Lugones convertido recentemente ao cato-


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licismo e com sopros que pareciam inspirados pelo fascismo italiano (embora se mostrasse ferozmente contra o anti-semitismo), tinha posto a execrá-lo uma apreciável parte da intelectualidade do país. Para o seu fim encontrou-se depois outro centro, este apenas sentimental e totalmente preenchido por Emilia Cadelago, jovem que ele conheceu em 1926 na Faculdade de Letras e persistiu durante doze anos como seu grande amor extra-conjugal, aquela a quem escreveu cartas assinadas «com sangue e esperma». Mas Emilia foi obrigada pelo filho de Lugones a cortar pela raiz esta «indecorosa» relação (ignora-se com que tipo de ameaças, já que ele era destacada figura da polícia política do país) e a deixar soltas as forças que levaram o poeta ao suicídio. Leopoldo Lugones era director da Biblioteca Nacional de Maestros, presidente da Sociedade Argentina de Escritores, e em 1926 (o ano em que conheceu Emilia Cadelago) tinha recebido o Prémio Nacional de Literatura. Mas, indiferente a estes prestígios, recolhia-se numa solidão apenas enfeitada pela sua obra poética (Lunario Sentimental continua inapagável referência para os estudiosos da poesia argentina), por escritos em prosa onde existem ensaios, uma única novela intitulada El Ángel de la Sombra (1926) e contos que chegam a cento e trinta e um, seleccionados por ele próprio para formar La guerra gaucha (1905), Las fuerzas extrañas (1906), Cuentos (1916) e Cuentos fatales (1924), ou conviverem com poemas em Lunario Sentimental (1909) e Filosofícula (1924). Recorrendo de novo a Jorge Luis Borges e ao que afirmou no artigo «La fantasia e lo fantástico en la literatura», todas as ficções podem ser reais e fantásticas: «Se chamarmos realidade à soma de todas as aparências, toda a literatura é real porque se inclui nesta soma. Não é menos real do que os nossos sonhos e as nossas percepções. Toda a literatura é fantástica porque está cheia de símbolos e


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sonhos.» Sentimos a comodidade desta indiferenciação quando nos tentamos a não definir um género para os contos de Lugones. As suas histórias vivem na indeterminação de planos a que Roger Caillois chamou «estranheza irredutível», vocacionada para perturbar factos conhecidos, iluminando-os ou acrescentando-os com aparências conferidas por um diferente foco ao que é tradição lendária ou conhecimento histórico. Hoje a sua sobrevivência como escritor é em grande parte alimentada pela reedição dos textos curtos reunidos em livros ou dispersos por jornais e revistas que o tiveram como colaborador. Esta edição escolheu-os entre histórias mais determinadas por aquilo a que ele próprio chamou «forças estranhas» e encontrou-os, com excepção de um único caso, nos livros publicados durante a sua vida. Os sessenta e quatro anos de Lugones, vividos em pleno uso das suas faculdades mentais e quase até ao fim alimentados por uma inesgotável veia criativa, teriam justificado expectativas de uma obra literária ainda mais extensa. Mas em 1937, ano anterior ao da sua morte, teve o entusiasmo criador afectado por uma evidente quebra; Lugones apenas conseguiu dar ao público o texto de dois contos («El vecino» e «La mula negra») e em 1938, doze dias antes de se suicidar, pôde ser lido em La Nación «Sangue real», destinado a conhecer-se como sua derradeira prosa publicada. Quando o astro já não brilha, ficou escrito num poema seu, os olhos devem fechar-se. O astro era Emilia Cadelago, e tinha deixado de brilhar; os seus olhos fechavam-se numa morte difícil, essa que cheira a amêndoas amargas e se esconde, implacável, no cianeto de potássio. A.F.


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os cavalos de abdera

Abdera, a cidade trácia do Egeu que é actualmente Balastra e não deve ser confundida com a sua xará bética, era célebre pelos seus cavalos. Sobressair na Trácia pelos seus cavalos não era pouco; e ela sobressaía ao ponto de ser única. Todos os seus habitantes tinham orgulho na educação de tão nobre animal; e esta paixão, teimosamente cultivada durante largos anos, produzira efeitos maravilhosos. Os cavalos de Abdera gozavam de uma fama excepcional; e todas as povoações trácias, desde as dos cicones até às dos bisaltos, eram nisto tributárias dos bistónios, povoadores da mencionada cidade. Deve acrescentar-se que uma tal indústria unia o proveito à satisfação e ocupava todos, desde o rei até ao último dos cidadãos. Estas circunstâncias também tinham contribuído para tornar íntimas as relações entre a besta e os seus donos, muito mais do que era e é habitual no resto das nações, chegando a considerar-se as cavalariças como prolongamento do lar e a extremarem-se os naturais exageros de todas as paixões, até se admitirem cavalos à mesa. Eram corcéis verdadeiramente notáveis, embora não passassem de animais. Alguns dormiam em cobertores de biso1; havia pesebres com ingénuos frescos, porque não poucos vete1 Substância filamentosa, produzida por certos moluscos, que se mistura com fibras de lã e seda para fazer tecidos. (N. do T.)


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rinários sustentavam que a raça cavalar tinha gostos artísticos; e o cemitério equino ostentava entre pompas burguesas, por certo sobrecarregadas de enfeites, duas ou três obras-primas. O mais formoso templo da cidade era consagrado a Arião, o cavalo que Neptuno fez sair da terra com uma pancada do seu tridente, e julgo que a moda de rematar as proas com cabeças de cavalo tenha proveniência idêntica. É em qualquer caso seguro que os baixos-relevos hípicos foram o mais vulgar ornamento de toda aquela arquitectura. O monarca era quem mais se mostrava apegado aos corcéis, chegando a tolerar aos seus verdadeiros crimes que os tornaram singularmente bravios, ao ponto de os nomes Podargos e Lampão1 figurarem em fábulas sombrias; pois teremos de dizer que os cavalos tinham nomes, como as pessoas. Tão amestrados aqueles animais estavam, que não eram necessárias rédeas; conservavam-nas apenas como adornos que os próprios cavalos naturalmente apreciavam. A palavra era o meio habitual de comunicar com eles; e ao ser notado que a liberdade favorecia o desenvolvimento das suas capacidades, durante todo o tempo em que a albarda ou o arnês eram dispensáveis davam-lhes a liberdade de atravessar, para recreio e alimentação, as magníficas pradarias de subúrbio nas grandes povoações da margem do Kossinites. Ao som de trompa os convocavam quando era caso disso; e eram, tanto no trabalho como na hora da ração, pontualíssimos. Roçava o incrível, a sua habilidade para toda a espécie de jogos de circo e até de salão, a sua bravura nos combates, a sua discrição nas cerimónias solenes. Isto, tanto no hipódromo de Abdera como nas companhias de equilibristas. A sua cavalaria 1

Podargos e Lampão, dois dos cavalos de Heitor (Ilíada, VIII, 185.) (N. do T.)


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índice

[Sem a cumplicidade mítica…] . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os cavalos de Abdera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Só é totalmente compreensível…] . . . . . . . . . . . . . . O milagre de São Wilfrido. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

11 20 23

[«A chuva de fogo»…] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A chuva de fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A estátua de sal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A origem do dilúvio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Yzur. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nuralkámar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

33 41 54 62 71 82

[Os contos «O vaso de alabastro»…] . . . . . . . . . . . . . 97 O vaso de alabastro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 Os olhos da rainha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 O punhal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138



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