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tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
TÍTULO ORIGINAL: MADEMOISELLE FIFI; LE LIT 29; L’AMI PATIENCE; LA MAISON TELLIER; LE SIGNE; BOULE DE SUIF
© SISTEMA SOLAR, CRL
RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2023
1.ª EDIÇÃO, JANEIRO DE 2023
ISBN 978-989-568-060-3
NA CAPA: FÉLICIEN ROPS, LE BOUGE À MATELOTS
REVISÃO: DIOGO FERREIRA
DEPÓSITO LEGAL 509771/23
IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ULZAMA
É fácil, num escritor que deixou publicadas três centenas de contos e narrativas breves, organizar grupos dominados por um tema específico, um género literário, uma qualquer maneira de compreender os homens que ele mais de perto conheceu. E se a escolha preferiu aqui seis histórias onde a prostituição feminina intervém com decisivo papel, deve-se ao facto de pertencerem a este «grupo» três textos entre os mais prestigiados do autor: Mademoiselle Fifi, A Casa Tellier, Bola de Sebo; e deve-se ainda à circunstância, não menos importante, de o próprio autor durante a sua vida adulta ter sido um exacerbado sensual, um coleccionador de trezentas amantes — como ele se classificou — de ter morrido precocemente, vitimado por um mal adquirido em noites de delírio, entregue sem temores à promiscuidade dos bordéis de Paris.
Maupassant teve um estranho pai, que mereceu de Paul Morand estas palavras: «Monsieur Maupassant-pai é um mistério (nada há mais misterioso do que os seres não profundos). Quase nada sabemos a seu respeito: decepcionou a sua mulher, deu-lhe uma pensão anual de mil e seiscentos francos, viveu sempre com falta de dinheiro, sobreviveu ao seu filho e em 1899 terminou os dias no Midi; era muito bonito, pouco inteligente, fraco, perdulário, conquistador.»
Maupassant também teve um requintado tio materno — Alfred
Le Poittevin — que viveu a meias com Gustave Flaubert os aires e os desaires de uma amizade amorosa cheia de exclusividade e ciúme. Em Maio de 1845, Poittevin escreveu numa carta que enviou ao escritor:
«Volta, estou com sede de ti; somos dois trapistas que só falamos quando estamos juntos.» E dias depois Flaubert respondia-lhe: «Fica em Ruão, e que eu te encontre quando aí for a 15 de Junho. […] Terás ideia de quanta lógica existe na nossa união? Ela é tão evidente como o som subir no ar e os astros seguirem a sua parábola.» Quando Poittevin se casou, Flaubert ressentiu-se com esse possível desvio à sua exclusividade. E escreveu-lhe: «Agora já é tarde! Seja então o que tiver de ser! Mas irás encontrar-me sempre. Resta saber se vou eu encontrar-te. Não me contradigas.»
Dava-se também o caso de Flaubert ser muito próximo de Laure de Maupassant, esposa de Gustave de Maupassant e irmã de Poittevin, e de chegar a constar que era o verdadeiro pai de Guy de Maupassant — suspeita infundada porque Flaubert, nove meses antes do seu nascimento, viajava pelo Extremo Oriente.
Olivier Frébourg fala-nos do seu nascimento sem se esquecer, impetuoso nas palavras, de que tem direito aos tiques de um escritor de romances (devemos-lhe, por sinal, um curioso Souviens-toi de Lisbonne de 1998): «Guy abre os olhos com a cabeça voltada para o sul e a uma segunda-feira, 5 de Agosto de 1850 às oito horas da manhã. Ao fundo do parque, o mar. Os verdes ressaltam numa bruma de calor. A floresta de faias é uma corrente de absinto. Um cedro-do-líbano protege do sol o castelo. Normandia, viagem no Oriente. Castelo de Miromesnil, palácio mouresco num oásis. Ao longe, navios a deslizarem entre os molhes de Dieppe, com rota para Casablanca ou Agadir. Os Normandos não foram reis da Sicília?»
Maupassant andou por estudos de liceu em Étretat, na Villa des Verguines, em Ruão, e teve letras mais cuidadas num colégio de jesuítas em Yvetot; mas com dezasseis anos, e já desenvolto a escrever versos eróticos, fê-los com uma graça obscena que não poupava os dotes físicos de uma sua prima. Esse papel, caído por mau acaso nas mãos dos seus
frades-formadores, pôs à solta raivas de uma moralidade que implicava, pelas regras implacáveis do santo colégio, a mais grave das punições. Uma carta de Laure de Maupassant a Flaubert (16 de Março de 1866) procura ocultar o verdadeiro motivo desta expulsão: «Acabo de ser obrigada a retirá-lo da casa religiosa de Yvetot, onde me foi recusada uma dispensa de jejum exigida pelos médicos. É uma singular maneira de compreender a religião do Cristo, onde eu não me reconheço! O meu filho não tem nenhuma doença grave, mas sofre de um enfraquecimento nervoso que exige um regime tónico; além do mais, ele não gosta muito de lá estar; a austeridade daquela vida de claustro casa mal com a sua natureza impressionável e fina, e a pobre criança sufocava atrás de altas muralhas que não deixam lá chegar nenhum ruído do exterior. Julgo que vou pô-lo durante dezoito meses no liceu do Havre, e depois disso instalar-me em Paris para os seus anos de retórica e filosofia.»
De facto, esta mãe possessiva, dominadora e ambiciosa, separada do seu marido e a exercer sozinha o seu poder sobre o filho Guy, levou-o para um programa de estudos de Direito em Paris, os que foram interrompidos de vez com a mobilização geral — imposta aos jovens franceses pela guerra franco-prussiana de 1870. Depois dela o jovem Guy teve dias folgados, oferecidos pelas branduras da paz de 72, mas também a evidência da falta de um património que lhe permitisse a vida «sem emprego» mais sonhada pela sua vocação literária; o escritor com vontade de nascer teve de resignar-se aos tédios de secretária de um mero burocrata — o que seria tantas vezes ironizado nos seus contos. Maupassant foi funcionário do Ministério da Marinha e depois da Instrução Pública. O seu pai, a saber do que falava porque nunca precisou de trabalhar (se dermos à palavra o seu mais directo sentido), compreendia sem esforço o lado desagradável da situação; e em 15 de Agosto de 1878 escreveu-lhe numa carta: «Vives num universo de merda, bem
sei, e lamento-te com todo o meu coração.» Guy de Maupassant, lamentado pelo pai, censurado pela ambição da mãe, aguentou sem grande entusiasmo o mau cheiro deste universo, como se conclui dos registos que persistem no Ministério da Marinha de Paris; — este em 1 de Janeiro de 1877: «Empregado mole, sem energia. Receio que as suas aptidões não o retirem de trabalhos administrativos»; — e este em 19 de Outubro de 1878: «Trivial capacidade» e — quem tal diria! — esta certeza: «Redige mal.»
O físico do Maupassant adulto nada teve a ver com as fragilidades denunciadas pela sua mãe naquela carta a Flaubert. Até lhe chamavam, pela envergadura do corpo, «touro normando». Pol Neveux descreveu-o com pormenor num Prefácio de 1908 às suas obras: «Era um sólido rapaz não muito alto mas bem feito, com testa vasta abaixo de cabelos castanhos, um nariz direito e um bigode militar, queixo largo, pescoço poderoso. Tinha um aspecto de homem decidido, um pouco rude e sem os matizes que a qualidade de espírito e a condição social determinam. As mãos, no entanto, eram finas e subtis, os olhos contornados por belas sombras. […] Muita polidez, mas nenhuma efusão. Tinha um sorriso apagado; deixava-nos falar e a sua calma derrotava-nos. O seu olhar parecia interessado em observar e escutar, embora não nos sentíssemos vigiados.»
Este físico, de alguém «que conseguia remar durante quatro horas sem parar», que pôde como nadador exímio salvar de um afogamento o poeta inglês Swinburne, também ficou ligado a episódios que o recordam numa sensualidade com direito a fama. Edmond
de Goncourtno seu Journal (9 de Abril de 1893) diz o seguinte: «Léon Hennique fala de Maupassant e demora-se sobre o seu sadismo e a potência da sua erecção. Entesoava-se à vontade e fazia a aposta de que ao fim de alguns instantes, com a cara voltada para a parede, surgiria com o membro no ar; e ganhava a aposta.» E em 11 de Março de 1894:
«Ficam na memória os coitos de Maupassant com público. O célebre coito que Flaubert pagou; e que a rapariga, quando viu a cara do velho romancista, exclamou: “Olha bem para isto, carcaça!”; e o coito à frente do escritor russo Piotr Boborikine, que assistiu a cinco tiros dados de enfiada.»
Em 1867, aos dezassete anos de idade, Maupassant teve o seu primeiro encontro com Flaubert:
«Quando ele me recebeu, olhou para mim com atenção e disse: — «Meu Deus, como te pareces com o meu pobre Alfred! — E depois acrescentou: — De facto, não é nada que espante, porque ele era irmão da tua mãe.
«Mandou-me sentar e interrogou-me. Ao que parece, a minha voz também tinha entoações parecidas com as da voz do meu tio; e de repente vi os olhos de Flaubert cheios de lágrimas. Levantou-se, envolto dos pés à cabeça num grande roupão castanho com mangas largas, que parecia um hábito de monge, ergueu os braços e disse-me com uma voz onde vibravam emoções do passado:
— «Dá cá um beijo, rapaz; ver-te faz-me sentir o coração às voltas. Ainda agora me pareceu que ouvia o Alfred a falar.»
Maupassant vai ser orientado na literatura por Flaubert; vai ser visto como seu «filho adoptivo». — «Flaubert transmitiu-me noções literárias que quarenta anos de experiência não chegariam para eu as adquirir», dirá ele para se reconhecer seu devedor. E ainda isto: «Fiz versos, fiz contos, fiz novelas e até um drama detestável. Nada prevaleceu. O mestre lia tudo e no domingo seguinte, ao almoço, prolongava as suas críticas.» Flaubert confessou a Laure de Maupassant: «Há razões para o teu filho me amar porque sinto por ele uma verdadeira amizade. É espiritual, letrado, encantador. E além disso teu filho.»
Não deve porém concluir-se que haja na sua prosa muito visíveis influências flaubertianas. A disciplina do mestre, expressa por uma
inquestionável regra — «Só existe um modo de exprimir uma coisa, uma só palavra para dizê-la, um só adjectivo para qualificá-la e um só verbo para animá-la» — foi cumprida por Maupassant com resultados diferentes dos que encontramos na prosa de Flaubert. Notamos-lhe uma exigência de brevidade, um dom seguro no diálogo que não existem no «mestre»; a sua linguagem clara, lógica e nervosa, as frases expurgadas de toda a construção que pudesse envolvê-las numa qualquer tentativa de rebuscamento oratório, mostraram-no como uma grande singularidade na literatura francesa e fizeram dele um dos escritores mais lidos na sua época. Léon Daudet, impelido pela sua habitual vocação trituradora, talvez tenha exagerado: «Que Flaubert, com os seus princípios absurdos e regras de escrita ainda mais absurdas, tenha prejudicado gravemente Maupassant, seu aluno e vítima predilecta, é uma coisa que já não pode ser negada. Mas é injusto dizermos que o tenha definhado, forçando-o a imitar-lhe o estilo. Maupassant já era por natureza um definhado que tudo aceitava com uma docilidade de criança: as patranhas que lhe chegavam de Croisset, dos médicos, dos homens da canoagem e dos frequentadores dos salões.»
Só em 1875, com vinte e cinco anos de idade, Maupassant mostrará ao público o seu primeiro conto (assinado pelo pseudónimo Joseph Prunier). Mas está prestes a surgir como o incansável contista que começa por não ser Guy de Maupassant e prefere arriscar-se como Joseph Prunier, Maufrignance (a lembrar-se de Balzac), Guy de Valmont (a lembrar-se de Laclos), Chaudrons du Diable… entremeados de vez em quando por romances e crónicas. No entanto, antes de se afirmar com esta persistente e produtiva vocação literária, antes de surgir com a inegável mestria de um contista (que hoje não pode deixar de fazer-nos pensar numa herança de Tchekhov e que futuros estudos da sua oficina deram origem aos contos de Katherine Mansfield e Somerset Maugham), o acaso deixou-o ligado a uma representação teatral
«caseira», a da peça A la Feuille de Rose, maison turque, uma obscenidade a todo o vento que cumpriu com eficácia a sua missão de escândalo nas duas únicas representações que teve em Paris.
Jacques-Louis Douchin (em La Vie érotique de Guy de Maupassant ) dá sobre este evento alguns pormenores. Diz que a sua se gunda representação teve lugar no estúdio do pintor Becker, e depois escreve: «Além de Flaubert e Turgueniev, que já tinham assistido a esta peça, viam-se Gustave de Maupassant, o seu pai (pelo menos pai oficial), Zola, Goncourt e algumas mulheres muito famosas como Suzanne Lagier e a semi-mundana Valtesse de La Bigne, o principal modelo da «Naná» [de Zola]. Estas damas ficaram chocadas! Para manifestar a sua reprovação, Lagier saiu antes do final. Zola, a quem os jornais decentes todos os dias chamavam “pornógrafo” mas era na realidade um casto, manteve um ar grave e muito incomodado, embora não quisesse que o vissem como ultra-puritano, aquilo que ele realmente era. Pelo contrário, Turgueniev e Flaubert aplaudiam estrepitosamente e riam-se a bandeiras despregadas. Quanto a Goncourt… o melhor será ele próprio comentar o espectáculo: “[…] Eram lúgubres, aqueles jovens mascarados de mulheres, com malhas onde havia pintado um grande sexo entreaberto; e não saberei dizer que repulsa involuntariamente nos causavam aqueles comediantes a apalparem-se e a fazerem entre eles o simulacro da ginástica do amor. A peça começava com um jovem seminarista a lavar camisas-de-vénus; a meio havia uma dança de bailadeiras junto da erecção de um falo monumental; e a peça terminava com uma punhetada colectiva quase ao natural.»
Maupassant, que antes de ser prosador célebre escreveu poesias, deixou à posteridade um grande número de versos eróticos, muitos deles (quase todos) a não mostrarem mais do que uma prosa cortada em fragmentos dotados de rimas e ritmos. Surpreende, portanto, o que
Flaubert escreveu numa carta a Léonie Brainne em 18 de Fevereiro de 1876: «O meu pequeno discípulo Guy de Maupassant continua a fazer obras-primas de poesia erótica.»
Na vida deste escritor, paralelamente a um lado público que não excluía uma boa dose de exibicionismo, havia um lado mais oculto, o que ele próprio exprimiu com esta frase: «Tenho uma vida de tal forma secreta, que ninguém a conhece. Sou um desiludido, um solitário e um selvagem. Trabalho, e mais nada; mas, para estar isolado, vivo de uma forma errante, e há meses inteiros em que ninguém sabe de mim, com a excepção da minha mãe.»
Em Dezembro de 1876, Maupassant soube que era sifilítico, um mal que lhe foi transmitido por uma grenouille de Seine (uma rã do Sena); e não deixa de ser espantosa a leviana reacção que podemos ler numa carta sua ao historiador Tocqueville: «Estou com sífilis! Até que enfim! Da verdadeira! Não o desprezível escarépio, não a eclesiástica christaline, não essas burguesas cristas de galo, nem as leguminosas couves-flores, não, não, a grande sífilis, a que matou Francisco I. E, com a breca, sinto orgulho nela, o que me faz desprezar todos os burgueses. Aleluia! Estou com sífilis, e deixo por conseguinte de ter medo de apanhá-la.»
Maupassant não tinha seguido o conselho de Flaubert: «Queixas-te de que as ratas são “monótonas”. Há um remédio bem simples, não te sirvas delas… Meu caro amigo, vejo-te com um ar muito aborrecido, e o teu tédio aflige-me porque poderias empregar muito mais agradavelmente o teu tempo. Meu jovem, cai em ti, tens de trabalhar mais do que trabalhas. Chego a imaginar-te com um pouco de insensibilidade. Putas em excesso! Demasiados passeios de barco! Demasiadas canseiras!»
A doença de Maupassant causou-lhe uma irremediável queda de cabelo. (Há uma carta de Flaubert em que ele lhe chama «Guy o
calvo».) Fez um tratamento com mercúrio. Em 1878 foi um «ano negro» em que sentiu fortes dores de cabeça e inexplicáveis sensações de frio. Um ano depois surgiram-lhe as primeiras perturbações oculares. 1889 foi o seu «ano de martírio», em que passou por insuportáveis angústias, perturbações intestinais, os primeiros fenómenos de desdobramento de personalidade, alucinações. As perturbações oculares agravaram-se. A sífilis evoluiu e provocou-lhe uma encefalite meníngica com hipertrofias olfactivas e auditivas. Começou então a fase da demência e das tentativas de suicídio. Foi internado numa clínica e morreu em 6 de Julho de 1893.
Em 1891, numa carta delirante ao poeta Henri Cazalis — a última que conseguiu escrever — confessa: «Estou completamente perdido. Estou mesmo na agonia, com um cérebro enfraquecido, saído das lavagens que fiz com água salgada às fossas nasais. Deu-se no meu cérebro uma fermentação de sal, e todas as noites ele me escorre pelo nariz e pela boca numa pasta pegajosa e salgada que consegue encher por completo um alguidar. Desde há vinte noites passo por isto. É a morte iminente e estou louco. A minha cabeça divaga. Adeus, meu amigo, não vais voltar a ver-me.»
Maupassant nunca se casou (talvez seja possível associar esta decisão à estranha frase de uma carta sua a Catulle Mendès: «Tenho receio de todas as correntes, mesmo que sejam fracas e surjam de uma ideia ou de uma mulher») mas teve momentos de intensa paixão com Gisèle d’Estoc, com a condessa Potocka, com Marie Kahn e com uma arrebatada amante só epistolar, a célebre autora de um Diário, que se chamou Marie Bashkirtsev. Um caso de sexo funcional com Joséphine Litzelmann deu-lhe três filhos que ele reconheceu e quis recompensar num testamento, decisão que a sua mãe contrariou eficazmente depois da sua morte, chegando ao ponto de rasgar cartas em que ele manifestava esse desejo.
Guy de Maupassant, com uma vida de apenas quarenta e três anos, ficou com representação larga na literatura francesa. As suas três centenas de contos e novelas são hoje constantemente reeditadas, bem mais do que os livros de outros contemporâneos seus que tantos defeitos lhe encontraram, que ao sabor de uma tão persistente má vontade o censuraram; e têm a companhia de seis romances, dois deles — Une vie (1883) e Bel-Ami (1885) — que podem considerar-se de uma essencial representação entre os exemplos mais marcantes do naturalismo então liderado pela altiva superioridade do «mestre» Émile Zola.
Alberto Savinio, autor de um nada benevolente e muito injusto Maupassant e «l’Altro», faz na sua diatribe uma descoberta inquestionável: «A vida de Maupassant parece-se, ela própria, com uma novela à Maupassant.» A.F.
O major, comandante prussiano, conde de Farlsberg, acabava de ler o seu correio, com as costas no fundo de um grande cadeirão estofado a pano de arrás e os pés, calçados com botas, assentes no mármore elegante da chaminé onde as suas esporas, durante os três meses em que ele ocupava o castelo de Uville, tinham traçado dois profundos sulcos que iam ficando todos os dias um pouco mais escavados.
Uma chávena de café fumegava numa mesa de pé-de-galo com embutidos maculados pelos álcoois, queimados pelos charutos, talhados pelo canivete do oficial conquistador, que às vezes parava de afiar um lápis e traçava no gracioso móvel algarismos ou desenhos, de acordo com a fantasia do seu negligente sonho.
Quando acabou de ler as cartas e percorreu os jornais alemães que o seu encarregado do correio acabava de trazer, levantou-se e aproximou-se da janela depois de atirar para o fogo três ou quatro enormes pedaços de madeira verde, porque estes senhores, para se aquecerem, iam a pouco e pouco deitando abaixo o parque.
A chuva caía a cântaros, uma chuva normanda que diríamos atirada por uma mão furiosa, uma chuva de esguelha, espessa como uma cortina, que formava uma espécie de parede de raios oblíquos, uma chuva fustigante, espirrante, que tudo afogava, uma verdadeira chuva dos arredores de Ruão, esse bacio da França.
O oficial olhou durante muito tempo para a relva inundada e, ao longe, para um Andelle inchado que transbordava; e tambo-
rilava na vidraça uma valsa do Reno, quando um ruído fê-lo voltar-se para trás: era o seu auxiliar, o barão de Kelweingstein, com graduação equivalente à de um capitão.
O major era um gigante largo de ombros, enfeitado por uma barba comprida em forma de leque que fazia sobre o peito um guardanapo; e toda a sua grande e solene pessoa sugeria-nos um pavão militar, um pavão que lhe tivesse posto no queixo o leque da cauda. Tinha olhos azuis, frios e doces, um queixo fendido por um golpe de sabre na guerra da Áustria; e dizia-se que era tão bom homem como bom oficial.
O capitão, um homenzinho corado e barrigudo, cintado à força, usava o seu pêlo ardente com fios de fogo quase rapado, levando-nos a crer, quando sujeito a certos reflexos, que tinha o rosto esfregado com fósforo. Dois dentes perdidos numa noite de pândega, sem ele se lembrar exactamente como, faziam-no cuspir palavras espessas, nem sempre compreendidas; só era calvo no cimo do crânio tonsurado como o dos monges, com uma mecha de pequenos cabelos frisados, dourados e luzidios em redor daquele arco de carne despida.
O comandante apertou-lhe a mão e engoliu de um gole a sua chávena de café (a sexta, desde a manhã) enquanto ouvia o relato do seu subordinado sobre os incidentes ocorridos no serviço; depois aproximaram-se ambos da janela, declarando que aquilo não tinha um ar muito risonho. O major, homem tranquilo, casado na sua terra, adaptava-se a tudo; mas o barão-capitão, estroina tenaz, frequentador de espeluncas, impetuoso engatador de raparigas, enfurecia-se por estar desde há três meses fechado na castidade obrigatória daquele posto perdido.
Como alguém batia à porta, o comandante gritou que fossem abri-la; e um homem, um dos seus soldados autómatos apareceu
na abertura para dizer, apenas com a sua presença, que o almoço estava pronto a ser servido.
Encontraram na sala os três oficiais de mais baixa graduação: um tenente Otto von Grossling; dois alferes, Fritz Scheunauburg e o marquês Wilhelm von Eyrick, um muito pequeno loiraço, altivo e brutal com os homens, duro para com os vencidos, e violento como uma arma de fogo.
Logo que tinham entrado na França, os seus camaradas só lhe chamavam Mademoiselle Fifi. Esta alcunha era inspirada pela sua figura afectada, pela cintura fina que diríamos apertada num espartilho, pelo rosto pálido onde um bigode nascente mal surgia, e também pelo hábito que tinha ganho de exprimir o seu soberano desprezo pelos seres e pelas coisas empregando a todo o instante a locução francesa — fi, fi, donc1, que pronunciava com um leve silvo.
A sala de jantar do castelo de Uville era uma longa sala nobre com espelhos de um antigo cristal estrelado por tiros de bala e altas tapeçarias das Flandres cortadas a golpes de sabre e em certos pontos com pedaços pendurados que falavam das ocupações de Mademoiselle Fifi durante as suas horas de ócio.
Nas paredes três retratos de família, um guerreiro vestido com ferro, um cardeal e um presidente, fumavam longos cachimbos de porcelana, enquanto uma nobre dama com o peito apertado, mostrava com ar arrogante num caixilho desdourado pelos anos um par de bigodes feitos a carvão.
1 Esta expressão, hoje caída em desuso, não tem conseguido obter consensos quanto à sua génese. Foi empregada com um sentido que em português encontra aceitável equivalente em «não querem lá ver». (N. do T.)
O almoço dos oficiais decorreu quase em silêncio nesta sala mutilada, escurecida pelo aguaceiro, entristecida pelo seu aspecto vencido, e com um velho soalho de carvalho que tinha ficado tão sórdido como o chão de um café.
No momento do tabaco, quando começaram a beber depois de a refeição ter terminado, desataram a falar, como acontecia todos os dias, do seu tédio. As garrafas de conhaque e outros álcoois passavam de mão em mão; e todos eles refastelados nas suas cadeiras absorviam repetidamente pequenas lufadas de fumo, mantendo num canto da boca o longo tubo curvo terminado por um ovo, sempre de louça sarapintada, como se estivesse em causa uma sedução de hotentotes.
Mal os seus copos ficavam vazios, com um gesto de resignada lassidão voltavam a enchê-los. Mas Mademoiselle Fifi estava constantemente a partir o seu, e de imediato um soldado lhe trazia outro.
Um nevoeiro de fumo acre afogava-os, e parecia que mergulhavam numa adormecida e triste embriaguez, numa dessas melancólicas bebedeiras das pessoas sem nada para fazer. Mas o barão de repente levantou-se. Era sacudido por uma revolta; praguejou:
— Santo Deus, isto não pode continuar; temos de acabar por inventar uma coisa qualquer.
O tenente Otto e o alferes Fritz, dois alemães dotados de fisionomias alemãs superiormente pesadas e graves, responderam ao mesmo tempo:
— Mas o quê, meu capitão?
Durante uns segundos ele reflectiu, para acrescentar:
— O quê? Pois bem, temos de organizar uma festa, se o comandante o permitir.
O major tirou o cachimbo da boca.
— Mas que festa, capitão?
O barão aproximou-se dele.
— Encarrego-me de tudo, meu comandante. Mando a Ruão O Compincha, e ele traz-nos de lá senhoras; sei onde elas se arranjam. Preparamos aqui uma ceia; nada faltará, portanto, e pelo menos passamos uma boa noite.
O conde de Farlsberg encolheu os ombros e fez um sorriso.
— O meu amigo está louco.
Mas todos os oficiais se tinham levantado, rodeavam o seu chefe e suplicavam:
— Meu comandante, deixe o capitão fazer o que ele quer; isto anda tão triste!
O major acabou por ceder.
— Pois sim — disse ele.
E não tardou que o barão mandasse chamar O Compincha. Era um velho sargento que ninguém tinha visto alguma vez rir-se mas cumpria fanaticamente todas as ordens dos chefes, quaisquer que elas fossem.
De pé, com um ar impassível, recebeu as instruções do barão; depois saiu; e cinco minutos mais tarde um grande carro da equipagem militar, coberto com um toldo de lona estendido como uma abóbada, arrancava sob a obstinada chuva com um galope de quatro cavalos.
Não tardou que os espíritos parecessem percorridos por um arrepio que os entusiasmava; as atitudes preguiçosas despertaram, os rostos animaram-se e eles começaram a conversar.
Apesar de o aguaceiro continuar, sem diminuir a sua fúria, o major afirmou que estava um tempo menos escuro; e o tenente Otto anunciava com convicção que o céu ia clarear. Até Mademoiselle Fifi não parecia capaz de estar parada. Levantava-se, vol-