Miguel Branco
cratera crater Texto | Text
Bernardo Pinto de Almeida
D O C U M E N TA
© Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão (Ala da Frente), 2018 © Sistema Solar Crl (chancela Documenta) Imagens | Plates © Miguel Branco Texto | Text © Bernardo Pinto de Almeida Março | March 2018 ISBN 978-989-8902-13-9 Fotografia | Photographs: Frederico NS, Justin Meekel (Cavalo Negro | Black Horse) Tradução | Translation: José Gabriel Flores Revisão | Proofreading: António d’Andrade
Depósito legal | Legal deposit : 440407/18 Pré-impressão, impressão e acabamento | Prepress, printing and binding : Gráfica Maiadouro SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686 (Vermoim) 4471-909 Maia Portugal
Este livro foi publicado por ocasião da exposição «Miguel Branco – Cratera», com curadoria de António Gonçalves, realizada na Galeria Ala da Frente, em Vila Nova de Famalicão, de 3 de Fevereiro a 18 de Maio de 2018, em colaboração com a Galeria Pedro Cera This book was published on the occasion of the exhibition “Miguel Branco – Crater”, curated by António Gonçalves and shown at Galeria Ala da Frente, Vila Nova de Famalicão, from February 3, to May 18, 2018, with Galeria Pedro Cera
CAVALO NEGRO a Eduardo Lourenço
«Aqui te envio as imagens das crateras que viste quando nos encontrámos e as outras peças que vamos ter na publicação. Depois te envio o cavalo negro. […] Pensei em ideias que se relacionassem com o corpo: a ideia de ferida, de sulco, de impacto sobre o corpo, de violência, a ideia do rasto de um gesto de violência, a ideia de algo que aconteceu e que constitui uma marca, a ideia de enigma e de um corpo que está voltado sobre si mesmo (o cavalo, as taças).» — de uma carta do Artista (2017)
1. Freud abordou atentamente, num importante ensaio1, o tema da unheimliche (termo que, em português, se poderá traduzir por inquietante estranheza) para designar, a partir de 1919, o que, não sendo em si mesmo estranho, produz todavia no sujeito um sentimento, ou pelo menos uma impressão, em que de repente se associa, ao que nos é mais familiar, uma sensação difusa de estranhamento, de inquietação, ou mesmo de terror. O termo, primeiramente utilizado numa acepção estética por E.T.A. Hoffmann, o escritor romântico do início do século XIX, designava o elemento fantasioso, muitas vezes associado ao imaginário ambíguo dos —————— 1 Sigmund Freud: Das Unheimliche. Studienausgabe, Bd. IV. Psychologische Schriften. Hg. v. Alexander Mitscherlich, Angela Richards, James Strachey. Fischer, Frankfurt am Main 1982, S. 241–274.
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contos infantis, em que as coisas sofrem pequenas transformações, e viria a ser primeiramente empregado no âmbito da psiquiatria, em 1906, por Ernst Jentsch, para designar um certo tipo de fenómenos psíquicos, precisamente a partir de um estudo do conto O homem de areia, de Hoffmann. Extrapolava-se, assim, a significação desse sentimento típico da criança — que chega a estranhar e a temer o espaço mais familiar em que habita, por nele imaginar potências de assombração — para a de um traço psíquico, presente também no homem adulto, quando este, de súbito, começa a duvidar, num estado alterado e ansioso de perturbação da consciência, da estabilidade dos signos e dos hábitos em que procurara, pouco antes, centrar a sua relação racional com o mundo, impelindo-o a sentir-se deslizar para um espaço desconhecido de suspeita e inquietação. No referido ensaio de 1919 sobre a unheimlich, Freud procurou conceptualizar, de modo ainda mais alargado, esse elemento de perturbação, que emerge como sensação de estranhamento, justamente a partir do interior daquilo que nos é mais familiar, relacionando-o agora com a emergência súbita, no campo da consciência, de pequenos elementos inesperados, antes irreconhecíveis, que parecem vir transfigurar o que nos era imediatamente familiar, ao abrir, nele, inesperadamente, a porta do desconhecido, do oculto. Como o eram, por exemplo, na célebre fábula do Capuchinho Vermelho, os traços fisionómicos maléficos que, lentamente, a menina ia descobrindo no rosto ainda há pouco familiar da avó, antes de se aperceber plenamente do facto de, no lugar desta, estar escondido afinal o lobo, motivo do seu pavor, disfarçado sob as inocentes roupas e toucado. Para o psicanalista vienense, o confronto com estes elementos de estranheza emergindo subitamente do familiar, tanto poderia advir do campo irracional da superstição, ligada ainda a velhas crenças animistas, arcaicas, anteriores portanto à cultura racional, mas permanecendo nela
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como revivescências do passado, como, mais simplesmente, de recordações de infância reprimidas, que desencadeariam no sujeito, ao libertar-se na consciência, sentimentos de inquietação e de insegurança diante do que lhe era conhecido e estável. O termo viria a ser mais tarde reelaborado por Jacques Lacan, no complexo conceito de extimité 2 (extimidade — por oposição a intimidade) para designar, no processo de construção da identidade, algo que pertence ao sujeito, mas que este separa do que lhe é íntimo, para o projectar no campo, mais alargado, do que lhe é exterior, mas que deixa de reconhecer como tal, ao não saber como explicar exactamente esse elemento, quando o vê recolocado, isoladamente, fora do seu contexto primeiro. 2. Muito do território, tanto sensível como imaginário, do que designamos por contemporâneo assenta, creio, sobre esta dimensão da inquietante estranheza (a que se diz uncanniness na designação anglo-saxónica), desenvolvendo afinal, ou até mesmo expandindo, algo que foi presente na história da arte desde muito cedo, e que como tal ficou reconhecido, mas que esta mesma história veio a rejeitar, no processo de racionalização que, a partir do Renascimento, marcou, de uma forma progressivamente mais nítida, uma certa rejeição de toda a dimensão do monstruoso, em benefício da racionalidade típica do pensamento clássico. Autores como Jurgis Baltrusaitis e outros iconologistas, antes e depois dele, procuraram transportar, para um plano de compreensão simbólica, esses elementos que forneceram ao imaginário medieval e depois conti—————— 2 Lacan, Jacques, Le Séminaire XVI, Éditions du Seuil, Paris, 2006, p. 249.
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nuaram até relativamente tarde (até Hieronymus Bosch, de facto), representações capazes de simbolizar a relação surpreendida, e jamais plenamente resolvida no plano da consciência, do homem com o Mundo. As imagens serviram, desde sempre, justamente para isso: para permitir compreender, num plano intermédio entre a consciência e o sonho (o plano imaginário), e para proceder à sua representação, tudo aquilo que, de facto, escapa no mundo à compreensão racional do homem, e que ele não chega a elaborar conscientemente a partir dos instrumentos estritos que a linguagem lhe fornece, porque esta não está em medida de os representar. Assim, por exemplo, todo o mundo pré-científico procurou encontrar, do lado do imaginário, as chaves para representar os fenómenos ainda não organizáveis num plano de linguagem estabilizado. O tema da expulsão do Paraíso — exprimindo, de facto, a nostalgia da perda dessa idade de ouro a que os mitos, tanto pagãos como cristãos, aludiam — percorreu o imaginário do homem medieval, que foi encontrar nas formas do monstruoso, do fantástico ou do grotesco, a chave simbólica para exprimir a sua estranheza face a uma natureza que tanto lhe fornecia a casa e o alimento como, cruelmente, lhos arrancava, deixando-o à mercê da sua inclemência. Medos, estremecimentos, perplexidades, suspeitas, terrores, mas igualmente doses incontidas de humor sarcástico e de sentido do cómico e do absurdo, encheram tantas vezes as formas artísticas desses nossos antepassados, para se dar corpo, através delas, a uma exuberância da imaginação, projectada até aos limites da invenção plástica. Foi, pois, essa relação com o arcaico, o elemento que ligou mais depressa as culturas medievais com os mitos gregos ancestrais, anteriores ao século de Péricles, do que aqueles outros, culturais que, mais tarde, e já em plena Renascença, ligaram a sua cultura com a da idade clássica. E assim,
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BLACK HORSE to Eduardo Lourenço
“I enclose the pictures of the craters you saw when we met and of the other pieces we will feature in the book. I’ll send you the black horse later. […] I thought of notions that had to do with the body: the deferred notion of a furrow, of a blow to the body, of violence, the notion of the trace left by a violent gesture, the notion of something that happened and left a trace, the notion of enigma and of a body that turns in on itself (the horse, the bowls).” — from a letter by the Artist (2017)
1. In a major essay 1, Freud thoughtfully examined the concept of unheimliche (a term that may be translated as disturbing strangeness), which he would use, from 1919 on, in reference to something that, while not being in itself strange, gives the individual a feeling, or at least an impression, in which what is most familiar to us suddenly becomes associated with a hazy sensation of strangeness, anxiety or even terror. The term, originally employed in an aesthetic sense by E.T.A. Hoffmann, a Romantic writer from the early 1800s, applied then to the fanciful element, often associated with the equivocal imaginary atmosphere of children’s stories, in which things undergo small transformations; it would be —————— 1 Sigmund Freud: Das Unheimliche. Studienausgabe, Bd. IV. Psychologische Schriften. Hg. v. Alexander Mitscherlich, Angela Richards, James Strachey. Fischer, Frankfurt am Main 1982, S. 241–274.
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first employed in the psychiatric field in 1906, by Ernst Jentsch, to describe a certain kind of psychic phenomena, precisely during a study of Hoffmann’s short story The Sandman. Thus the meaning of that typical childhood feeling — children can even feel uncomfortable and fear their most familiar space, their home, if they happen to believe it to be haunted — is transferred to a psychic trait that is also present in adults, when they suddenly begin to doubt, in an altered and anxious state of consciousness disorder, the stability of the signs and habits on which they had previously attempted to base their rational relationship with the world, causing them to feel like they are sliding into an unknown realm of suspicion and unease. In his previously mentioned 1919 essay on the unheimlich, Freud attempted to conceptualise in even broader terms that element of disturbance that emerges as a feeling of strangeness precisely out of that which is most familiar to us, by connecting it with the sudden appearance, in the field of consciousness, of small unexpected elements, until then unidentifiable, which appear to transfigure what was once immediately familiar to us by unexpectedly opening in it a door to the unknown, the occult. Like when, for instance, in the famous fable of Red Riding Hood, the little girl slowly recognises evil features in the until then familiar face of her grandmother, before fully realising that her place has been taken by the wolf, the source of her fear, concealed beneath the innocent clothes and bonnet. To the Viennese psychoanalyst, these elements of strangeness that suddenly emerge out of the familiar to confront us could come either from the irrational realm of superstition, still connected to old animistic beliefs that pre-date rational culture but remain in it as survivals of the past or, more simply, from repressed childhood memories that would trigger in the individual, when released into the consciousness, feelings of anxiety and insecurity before what was, until then, known and stable.
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This term would be later reworked by Jacques Lacan as the complex concept of extimité 2 (extimacy — as opposed to intimacy), to indicate, within the process of identity construction, something that belongs to the individual but which they separate from what is intimate to them and project onto the wider field of what is exterior to them; then, they are unable to recognise it as such because they do not know how to precisely explain that element when they see it repositioned and isolated out of its original context. 2. Much of the sensible and imaginary territory of what we call contemporaneity is, I believe, contained in this dimension of disturbing strangeness (generally known as uncanniness in the Anglo-Saxon world), actually developing, or even expanding, something that had been present in art history from very early on, and recognised as such, but which that same history came to reject during the rationalization process that, from the Renaissance on, would come to favour more and more a certain rejection of all monstrous elements, upholding instead the rationality of classical thought. Authors like Jurgis Baltrusaitis, as well as other iconologists before and after him, have sought to achieve an understanding on a symbolic level of those elements that made it possible to the medieval imagination to create, over a relatively extended period of time (up to Hieronymus Bosch, in fact) a number of depictions of man’s awed, and never fully resolved at a conscious level, relationship with the World. Images have always fulfilled that purpose: to allow us to understand, on some plane between consciousness and dream (the imaginary plane), and then depict it; in fact, —————— 2 Lacan, Jacques, Le Séminaire XVI, Éditions du Seuil, Paris, 2006, p. 249.
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