Proximidade / Miguel Tamen

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PROXIMIDADE

Miguel Tamen

PROXIMIDADE

II. Proximidade em arte ................................

P.T., in memoriam

Prefácio

Este livro, muito curto, é uma defesa daquilo a que chamo proximidade; defende em particular a importância da proximidade na arte. A proximidade na arte está relacionada com várias actividades, intenções e desejos familiares: querer ter certas coisas por perto, querer estar perto de certas coisas, prestar atenção a certas coisas. Acredito que a noção de arte é inseparável dessas situações comuns. A proximidade parece ser uma noção indispensável. Não se saberá, contudo, exactamente porquê, e como. Tal recomenda que examinemos a noção.

Houve várias tentativas de menorizar o papel da proximidade. Foram particularmente extremas em questões de arte. Defendeu-se que olhar para um quadro ou prestar atenção a um poema nos impede de ter razão sobre eles; e, inversamente, que a melhor maneira de ter razão sobre um quadro ou um poema con-

siste em não nos aproximarmos deles. Por insólitos que os argumentos possam parecer, têm partes que são verdadeiras. Não precisamos naturalmente de ir a Nápoles para ter razão sobre Nápoles; não sabemos como se chega a outra pessoa, pelo menos de um modo cognitivamente eficiente; e há qualquer coisa opaca em alegar que estamos perto de uma música, uma imagem, uma comunidade, ou do nosso próprio passado. Isto indica que, mesmo que não possamos dispensar considerações acerca da proximidade, a proximidade não deve ser vista como uma condição necessária. Infelizmente, a maior parte dos elogios da proximidade acham o contrário e expandem-se com entusiasmo sobre os benefícios que por necessidade se seguiriam de estarmos extraordinariamente perto das coisas que preferimos.

Neste livro proponho um exame da noção de proximidade em dois ensaios ligados. No primeiro ensaio discuto o caso das pessoas que gostam de ter arte à sua volta e acham que dizem coisas verdadeiras sobre arte por causa dessa inclinação. Defendo que a proximidade não deve ser entendida como uma distância reduzida medida entre nós e a arte; e também não acho que a natureza da proximidade possa ser apreendida

adequadamente através da descrição das práticas ou das disposições daqueles que gostam de ter arte por perto. A minha investigação não é pois sociológica ou psicológica.

No segundo ensaio abordo o problema de um modo complementar. Concedo sem dificuldade que estar perto de um poema, de um filme ou de uma pintura, no fundo de qualquer coisa, não produz necessariamente qualquer compreensão acrescida. Essa compreensão acrescida depende normalmente de descrições, e do progresso das nossas descrições, mais que de encontros imediatos ou daquilo a que um filósofo chamou, com aprovação, «o bombardeamento geral do sujeito». Sed contra, há coisas que se podem dizer a favor da familiaridade. Exactamente o quê, e como, é o tópico do ensaio.

No seu conjunto, os dois ensaios sugerem aquilo que para mim é o sentido relevante da noção de proximidade. Defendo que se abandonem as esperanças numa medição cabal da proximidade; e a tendência para perguntar se aquilo que está perto de nós está realmente perto de nós; ou as expectativas de benefícios necessários da arte. A proximidade não evoca escolhas, dúvidas, debates ou planos, mas hábitos ou órgãos ine-

limináveis, coisas ou pessoas que não são opcionais. Recomendo que encaremos a proximidade não como um chapéu que se pode usar, ou uma decisão que se pode tomar, mas como lavar os dentes ou ter fígado. Isto é no fundo outro modo de dizer que as teorias sobre arte estão talvez destinadas a ser teorias sobre os tipos de vida para os quais a arte importa. Ter uma vida neste sentido é não-opcional, e não muito diferente de ter um fígado: estamos tão próximos da nossa vida como do nosso fígado.

A relação entre estar rodeado de arte e estar perto de arte acabou por finalmente me fazer perceber uma das teses mais extravagantes de «Anecdote of the Jar», o cansado poema de Wallace Stevens. Em «Anecdote of the Jar» Stevens observou que o pote a que se refere o título do poema «conquistou tudo». Sei agora que isso tem a ver com mais do que a invasão exagerada do Tennessee descrita no poema. Com efeito, potes desses tendem a conquistar tudo quando estamos rodeados por eles; e só podemos estar rodeados por eles quando estamos suficientemente próximos deles.

A algumas destas ideias dei uma forma menos comprimida num livro que publiquei há alguns anos (What Art Is Like). A compressão a que fui conduzido pelos

limites acolhedores da colecção em que este livro foi primeiro publicado poderá tornar essas ideias mais evidentes. Acompanharam-me durante muito tempo; e é por que isso imagino que se tratem de pensamentos que não se conseguem dispensar, ou que pelo menos eu não consigo dispensar.

agradecimentos

Este livro foi publicado primeiro na Primavera de 2021 em Milão, pela Juxta Press, sob o título Closeness, na colecção Thoughts One Can’t Do Without, por convite de Gabriele Guercio e intercessão competente de Lucia Coco e Octavia Stocker.

Os dois ensaios e depois o livro beneficiaram de comentários e perguntas de vários leitores e de vários públicos. Estou em particular grato a Brett Bourbon, Humberto Brito, Hunter Dukes, Peter Lamarque, e Jerrold Levinson. O primeiro capítulo tem por base uma conferência que fiz muitas vezes há mais de dez anos e que nunca tinha sido publicada. Uma versão anterior do segundo capítulo, de novo após mais de uma década

de iterações públicas, apareceu como «Art» em Forma de Vida (8), 2016, um número especial organizado por Vincent Barletta. Telmo Rodrigues, o director da revista, autorizou generosamente que fosse republicado sob a sua forma actual; e Manuel Rosa, não pela primeira vez, concordou em publicar a tradução portuguesa de um livro meu, que neste caso foi feita pelo autor. Abril de 2023

RODEADOS DE ARTE

Algumas pessoas rodeiam-se de arte. Bem entendido, nem todos chamam arte às mesmas coisas. As coisas a que chamamos arte tendem normalmente a incluir pinturas e esculturas, música, possivelmente edifícios, filmes, fotografias, cidades e poemas. Mas só alguns casos de cada: nem todas as pinturas, nem com certeza a uma coisa apenas porque lhe acontece ser uma pintura. Outras coisas são consideradas arte por menos pessoas. Há seguramente menos unanimidade quanto a reproduções de quadros e falsificações, roupas, ditos espirituosos, citações e frases características, modos de estar à mesa, melodias assobiadas, desportos, e paisagens.

Imaginemos no entanto que alguém chama arte a Nápoles. Rodear-se de Nápoles pode implicar essa pessoa mudar-se para Nápoles, ou ir muitas vezes a Nápoles; mas também pode implicar comprar postais de 

Nápoles, ou até comprar propriedades em Nápoles, ou cantarolar «O sole mio». ‘Rodear-se’ é assim um termo difuso. Sugere que a arte é uma coisa que se acrescenta a outra coisa, como uma dentadura. Além disso, a pa lavra pode referir-se a muitas coisas diferentes. Pode referir-se às oito vistas napolitanas do século XVII que consegui comprar com deliberação ao longo de muitos anos; às oito vistas napolitanas do século XVII que herdei inadvertidamente, e deliberadamente pendurei na sala; às oito vistas napolitanas do século XVII que gosto de contemplar no Museu do Capodimonte (em Nápoles) sempre que posso; à consciência e à surpresa grata de que estou rodeado por muitas coisas napolitanas incluindo a pronúncia napolitana do meu vizinho, certos cheiros, e oito vistas napolitanas do século XVII; ou ao facto de eu pensar ou falar constantemente, ou em certas ocasiões, acerca de Nápoles ou de coisas relacionadas com Nápoles, incluindo das oito vistas napolitanas do século XVII. Reconheça-se então que qualquer espécie de coisas pode contar como arte e que muitas espécies de acções (e muitas não-acções) podem ser descritas como casos de rodear-se de. Nada disto porém explica o facto de que algumas pessoas se rodeiem daquilo a que chamam arte.

Bairro de Santa Lúcia, Nápoles, século xix

Lavadouro público, Nápoles, século xix

Uma pergunta talvez preferível seria: porque faria alguém isso? Porque quereria alguém rodear-se de arte? A pergunta pode querer dizer pelo menos duas coisas diferentes. Pode referir-se à causa de algumas coisas que fazemos e, especialmente no caso das coisas que fazemos deliberadamente, às nossas razões para o fazer. Mas pode ser ainda uma pergunta sobre os nossos objectivos, finalidades ou expectativas, que também podem ser invocados como razões para fazermos o que fazemos. A primeira acepção da pergunta sugere que qualquer coisa teve de acontecer antes de termos feito o que quer que tenhamos feito; a segunda, que quando o fizemos esperávamos que certas coisas se seguissem daquilo que fizemos, e que esse foi provavelmente o motivo porque o fizemos. Note-se que as duas acepções da pergunta não correspondem exactamente a uma diferença estrita entre as causas daquilo que fizemos e as razões para o fazer. Podemos explicar as nossas atitudes em relação a uma coisa que ocorreu antes de outra coisa se ter passado, mas também em relação a qualquer coisa que esperávamos que ocorresse depois de termos feito o que fizemos. Existe aqui um contínuo delicado entre as formas mais imediatas de compulsão orgânica e as expectativas mais vagas

E no entanto poder-se-ia argumentar que, apesar destas diversas dificuldades, precisamos de qualquer coisa como a noção de familiaridade para poder descrever a relação específica que temos com a arte. Não obstante tal noção não ter de nos comprometer com quaisquer ocorrências particulares, como ter estado em Nápoles, ou ter lido um dado poema, alguns verão essa forma básica de familiaridade como um espasmo físico; outros como uma intuição, mental ou mesmo extra-sensorial. Não é preciso dizer nada acerca dessas teorias, se for isso que são. Pelo contrário, o que me interessa agora é uma terceira questão: «Proximidade por oposição a quê?»

Uma resposta canónica a este respeito é a de Bertrand Russell. Num ensaio muito influente Russell distinguiu «conhecimento por familiaridade» de «conhecimento por descrição». «Um objecto é-me familiar [I am acquainted with an object]», escreveu, «quando tenho uma relação cognitiva directa com esse objecto.» Pelo contrário, «direi que um objecto é “conhecido por descrição” . . . quando sabemos que existe um objecto, e apenas um, que possui uma certa propriedade; e será normalmente implícito que não temos conhecimento desse mesmo objecto por familiaridade.» Bismarck,

admite Russell, estaria familiarizado consigo próprio.

A alguém que descrevêssemos como tendo conhecido Bismarck, no entanto, seriam apenas familiares «certos dados sensoriais que relacionasse . . . com o corpo de Bismarck.» O resto de nós baseia os seus juízos sobre Bismarck numa «massa mais ou menos vaga de conhecimento histórico», isto é, em descrições de Bismarck.

Para Russell, com efeito, só conhecemos por familiaridade «dados sensoriais, a maior parte dos universais, e possivelmente nós próprios, mas não objectos físicos ou outras mentes.» No entanto, os constituintes do conhecimento por descrição «têm todos de ser objectos com os quais a mente . . . esteja familiarizada.»5

Quando dizemos que é importante a proximidade de um poema escusamos de implicar, erradamente na opinião de Russell, que temos uma relação de familiaridade com qualquer objeto físico. Podemos apenas querer dizer que um certo particular nos é familiar (aquele poema, independentemente daquilo que ‘aquele poema’ quer dizer, ou dados dos sentidos que relacionamos com aquilo que identificamos como o

5 Bertrand Russell, 1910-11. «Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description». Versão revista em Mysticism and Logic (London: Allen & Unwin, 1917), 152-167.

poema), ou mesmo que estamos familiarizados com um certo universal (o conceito de poema). A dificuldade é a de distinguir claramente familiaridade de descrição. Imaginamos por vezes situações em que a distinção parece nítida, por exemplo quando contrastamos ler um poema com ler coisas acerca desse poema; quando contrastamos aquilo que acreditamos ser uma forma de interacção imediata com formas de interacção mais mediatizadas. Tal contraste vem todavia frequentemente embrulhado numa aura epistémica, como quando dizemos que formas directas de interacção com poemas são estética ou cognitivamente preferíveis às suas primas mais afastadas. Ouve-se muitas vezes dizer que quem só leu coisas sobre poemas não sabe nada sobre o que é um poema. E também que escrever sobre arte ou poemas, o que quer que isso seja, é sempre reduzível a formas de conhecimento directo (é por isso que se acredita que a história literária, ou a crítica literária são analisáveis em interacções sensoriais com obras de arte).

Levantam-se aqui duas dificuldades: a primeira é uma versão da nossa dificuldade horaciana. Se abandonarmos a ideia de que não existem limites de princípio para a proximidade e para a distância, abandonamos também a distinção entre familiaridade e descrição,

e por isso a distinção entre estar-se familiarizado com dados dos sentidos e raciocinar a partir de dados dos sentidos. É de facto concebível que um equivalente moderno de Horácio (um poeta muito inteligente alimentado à base de Wilfrid Sellars) argumentasse que, dada a possibilidade de conhecer um poema sem ter tido uma impressão sensorial desse poema, i.e., no idiolecto de Russell, de só o conhecer por descrição, aquilo que se conhece por familiaridade, e a que Sellars chamou «o dado», se torna uma mera característica opcional do conhecimento, e no fundo um produto de descrições.6

A nossa segunda dificuldade é de uma espécie diferente. Mesmo que reconhecêssemos a distinção entre familiaridade e descrição, não estaríamos necessariamente a conceder quer a redução da descrição à familiaridade quer, o que é mais importante, a prioridade do conhecimento por familiaridade em relação ao conhecimento por descrição. O facto de termos estado em Nápoles não significa que necessariamente percebamos Nápoles melhor do que se lá não tivéssemos

6 A questão mais vasta é aqui aquilo a que John McDowell chama «a necessidade de reconhecer que a nossa racionalidade compreende a possibilidade de nos descrevermos como aceitando aquilo que nos é dado pelos sentidos.»

Having the World in View (Cambridge: Harvard UP, 2009), 144.

estado (supondo claro que há uma coisa como perceber Nápoles, ou perceber um poema ou uma pessoa, e eu diria que há). Em A Janela Indiscreta James Stewart acredita que uma grande arca, que observa através da janela com um binóculo, contém o corpo da mulher do seu vizinho, assassinada por este. Grace Kelly, que até aí não tinha acreditado nele, olha através da mesma janela, sem binóculo, muda de ideias, e passa a acreditar que viu a mesma coisa:

Vamos começar outra vez do princípio, Jeff. Diz-me tudo o que viste — e o que achas que quer dizer [and what you think it means].

Este é provavelmente um dos momentos culminantes da história; quando as duas personagens principais, que até aí não tinham estado de acordo sobre praticamente coisa nenhuma, chegam a acordo sobre alguma coisa. Uma maneira frequente, embora enganadora, de o descrever seria dizer que estão agora de acordo sobre aquilo que viram. A razão por que é enganadora é porque se sugere que a causa do seu acordo é uma impressão sensorial comum e portanto que o consenso e a verdade são gerados por familiaridade.

« Tell me everything you saw — and what you think it means .»

Não é todavia assim que Grace Kelly põe as coisas a James Stewart. Primeiro, sugere que se volte a contar uma história («Vamos começar outra vez do princípio»); e depois pede-lhe um relato de um avistamento («Diz-me tudo o que viste»); e só depois uma descrição conjectural do seu significado («o que achas que quer dizer»). Nenhum dos dois pretende que tenha visto o corpo na arca. Ambos supõem inferencialmente que existe um corpo na arca. Estão de acordo quanto a uma descrição daquilo que está dentro da arca.

Grace Kelly e James Stewart em A Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock (1954)

A única coisa que se vê aqui é uma coisa que é contada, ou uma coisa que tem de ser contada. O contar não pode ser distinguido do ver. Assim, aquilo a que poderíamos chamar ver é de facto a descrição de um avistamento. A situação não é incomum. Quando vemos uma coisa pouco habitual, como aparentemente foi o caso de Grace Kelly, podemos trocar impressões com outras pessoas em posição semelhante e dizer cosas como «Estás a ver o que eu vejo?» É relativamente normal pedir relatórios e corroborações das nossas próprias experiências sensoriais.

Não é exactamente isto no entanto que acontece na sequência. Grace Kelly pede a James Stewart que lhe diga aquilo que ele acha que quer dizer o relatório de um avistamento com que ambos já concordam. Assim, o facto de duas pessoas estarem de acordo acerca de um relatório que se refere aos seus respectivos avistamentos não implica que qualquer deles perceba aquilo que viu. Duas pessoas podem estar de acordo quanto a um relatório protocolar referente a avistamentos por exemplo em Nápoles. Mas escusam de estar de acordo, e não ipso facto, acerca daquilo que viram em Nápoles; o que equivale a dizer que mesmo que tenham visto a mesma coisa, um deles ou os dois podem não ter percebido o que viram.

Este ponto lembra-nos aquilo que Horácio diz so bre a falta de força normativa de um poema. O facto de termos lido um poema, como aliás de termos lido alguma coisa sobre um poema, não garante que o tenhamos percebido.7 E acreditarmos que vimos o cadáver da mulher do vizinho numa arca também não significa que saibamos aquilo que uma descrição protocolar («O caixeiro-viajante, suando profusamente, de pé junto de uma grande arca quadrada no centro do quarto . . . firmemente amarrada com uma grossa corda que anteriormente o vimos trazer para o apartamento») significa. É neste sentido que o significado de um poema nem sempre coincide com aquilo que acreditamos que se passa no poema. Grace Kelly acredita que o significado não é automaticamente conhecido por familiaridade; que a familiaridade não é expressa em descrições protocolares incontroversas; e poderá até acreditar que a familiaridade não é anterior à descrição, ou mais básica do que a descrição. Mesmo que reconheçamos que as pessoas lêem livros, e vêem quadros, e vão a Nápoles, poderemos além

7 Santo Agostinho discute um caso contrário num espírito semelhante: o caso de alguém que ‘percebe’ um texto (i.e. a Bíblia) sem o ter lido, e que assim não precisa de o ler. Cf. De Doctrina Christiana. J.P. Migne ed. PL34:16-122. I, xxxix.

do mais querer perguntar se devem fazê-lo. Este tipo de pergunta faz sentido em relação a muitas outras actividades a que a proximidade parece também ser relevante, como quando perguntamos se alguém deveria continuar a encontrar-se com outra pessoa, ou se alguém deveria continuar a espiar outra pessoa, ou se alguém deveria continuar a ver filmes pela noite dentro. Contudo, ler livros, ver quadros, e ouvir música são trivialmente consideradas coisas boas por inerência; e com isto não queremos necessariamente dizer que os efeitos de fazer essas coisas sejam bons, mas que a proximidade com livros, quadros e música é considerada genericamente vantajosa.

Vantajosa, no entanto, em que sentido? Suponhamos um homo Davidsonianus, que sustenta algumas suposições muito simples, e esmagadoramente verdadeiras, acerca da linguagem, da verdade, e da intenção: que normalmente dizemos o que queremos dizer e queremos dizer o que dizemos, e dizemos coisas verdadeiras, e imaginamos que os outros são a este respeito como nós. Suponhamos também que essa pessoa não sente nenhuma necessidade de uma teoria da ficção, ou de uma teoria da representação pictorial, ou de uma teoria sobre a linguagem poética (só uma pequena minoria

tem tais necessidades; para a maioria as suposições habituais sobre verdade, intenção, e as outras pessoas são aplicáveis a todos os casos e satisfatórias.) Mesmo nesse caso, a reacção dessa pessoa a um romance, um filme ou um poema, ou mesmo um quadro, poderia ser parecida com a de James Stewart: a admissão de que há «coisas muito privadas que por lá se passam.»

Quando descrevemos a arte deste modo, a questão de saber se devemos fazer determinadas coisas torna-se natural. Ao adoptar uma posição de janela indiscreta tendemo-nos interrogar sobre se essa posição será a posição certa. O ensino da arte parece todavia evitar perguntas acerca de tais posições; é frequentemente um modo de evitar a questão da proximidade em arte, mesmo que possa implicar suposições morais sobre posições de janela indiscreta. No nosso exemplo, a posição de janela indiscreta é muito parecida com a posição de um espião; é provável que o tipo de perguntas que fazemos sobre espionagem tenha um equivalente em arte. «É certo ler romances?» é parecido com «É certo querer saber coisas sobre vidas de outras pessoas?» ou «É certo poder ter acesso aos seus pensamentos?» Existe claramente uma ligação entre um mundo em que a maior parte das respostas a questões sobre se é certo fazer coi-

sas é afirmativa e um mundo em que se encoraja a leitura de romances.

Há porém um segundo sentido para a questão de saber se é certo fazer certas coisas que não é necessariamente ético, ou que pelo menos não o é tão abertamente. É o sentido em que nos podemos interrogar sobre se é boa ideia passar o nosso tempo a examinar pormenores de romances, poemas ou filmes. A palavra ‘leitura’, para referir apenas um caso, parece querer dizer pelo menos duas coisas diferentes. Fora das salas de aula não nos referimos às nossas opiniões sobre livros como leituras. Esse preciosismo técnico, a cujo precipitado se poderia chamar leitura num sentido incomum, emerge apenas em contextos incomuns. Tal sentido incomum será assaz confuso para a vasta maioria dos leitores. A leitura só é uma questão epistémica em contextos incomuns de instrução; nos outros contextos é uma questão de opinião.

Não se pode excluir que um entendimento epistémico da leitura requeira um entendimento epistémico da proximidade. A maior parte dos leitores acha pelo contrário apenas que está próxima dos livros que lê no sentido trivial em que quem está em Nápoles acha que está próximo de Nápoles; tão próximo de facto que 

nem lhe ocorre usar a palavra ‘próximo’ (é neste sentido que não nos ocorre dizer que estamos próximos de nós próprios). Para o leitor incomum de sala de aula, todavia, há sempre a insinuação, embora nem sempre a teoria, de que a proximidade não é trivial, e talvez também de que contém benefícios importantes, que não estão disponíveis ao leitor comum.

Freud observou que os bebés querem ter todas as coisas importantes por perto. Chama-lhe «a função do juízo.» «Na linguagem dos instintos mais arcaicos», acrescenta, os juízos têm a forma «Quero incorporar isto e quero afastar aquilo.»8 Parece estar a sublinhar uma ligação entre proximidade e importância ou, melhor, a sugerir que tal ligação é natural ou, como ele diz, «instintiva». Mesmo que possamos discordar da sua ideia de linguagem dos instintos, existe um paralelo óbvio entre aquilo a que noutro lugar Freud chama «introjecção» e muitas práticas de pessoas crescidas como nós. Veja-se por exemplo o caso de pessoas, e pessoas que são importantes para nós; é frequente queremos tê-las por perto. É também frequente prestar-lhes grande

8 Sigmund Freud. 1925. «Die Verneinung». Gesammelte Werke (A. Freud et al. eds.). London: Imago. 1955. 14:11-15. 13.

atenção. Uma parte importante do vocabulário para as intenções, as emoções, os pensamentos e os planos das pessoas foi possivelmente desenvolvido a respeito de pessoas muito importantes para quem o desenvolveu; outra parte importante desse vocabulário desenvolveu-se a respeito de romances, peças de teatro, filmes e poemas, nomeadamente quando se prestou atenção aos movimentos de pessoas não-existentes e não obstante importantes. A não-existência não diminui a importância, ou, contra Russell, a familiaridade.

Não é assim surpreendente que exista uma ligação entre dominar vocabulários técnicos capazes das distinções mais finas (silepse e zeugma; implicar e pressupor; mostrar e aludir; ler e interpretar; absorção e introspecção; imaginação e imaginação produtiva) e a existência de lugares em que tais vocabulários foram elaborados com demora. Trata-se de lugares onde a proximidade é vizinha da importância; e onde os desenvolvimentos técnicos são vistos como consequência dessa coabitação.

Esta ideia, no entanto, acaba por não funcionar, e por várias razões. Existem indicações de que as proezas técnicas podem florescer, e de que de facto floresceram, em contextos de instrução independentes de qualquer

consideração de admiração ou importância. Uma certa visão da técnica sugere com efeito que as técnicas são melhor desenvolvidas independentemente de tais considerações. O aluno de licenciatura proverbial queixa-se de que o estudo da arte, e a proximidade obrigada em relação a esta, contribuíram em muito para extinguir os interesses artísticos que pudesse anteriormente ter tido (é também talvez significativo que alunos mais avançados tenham deixado de se queixar dessas coisas). Conversamente, o meu interesse e admiração por qualquer coisa ou qualquer pessoa não tem necessariamente de ser expresso através de modos inéditos de descrição dos meus objectos de interesse, e muito menos pela necessidade de distinções mais finas que as que são habituais aos modos mais comuns de falar.

Finalmente, e por razões horacianas, existem casos em que a importância é expressa através da distância. Esses casos incluem não apenas aqueles poemas que é melhor ver de longe, e não apenas aquelas pessoas com quem, e sem quem, não conseguimos viver, mas também as várias ocasiões cordelianas em que não conseguimos içar o coração até à boca. É por isso provável que, embora a ênfase técnica na proximidade tenha permitido a emergência da posição de janela indiscreta

em que normalmente nos encontramos em relação à arte, estejamos, como Grace Kelly aliás sempre suspeitou, na posição de quem ainda não percebe muito bem a ética das janelas indiscretas.

© MIGUEL TAMEN, 2024

© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67B 1150-258 LISBOA

1.ª EDIÇÃO: OUTUBRO DE 2024

ISBN: 978-989-568-147-1

REVISÃO: HELENA ROLDÃO

DEPÓSITO LEGAL: 534642/24

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: TÓRCULO

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