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Nathanael West UM MILHÃO CONTA REDONDA
Nathanael West UM MILHÃO CONTA REDONDA ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes capa de
Pedro Proença Uma fábula de riso incómodo. O ditador oculto nos mecanismos da democracia. O «sonho americano» a desmantelar-se.
www.sistemasolar.pt
Nathanael West UM MILHÃO CONTA REDONDA ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se
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Nathanael West
UM MILHÃO CONTA REDONDA ou lemuel pitkin a desmantelar-se
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: A COOL MILLION OR THE DISMANTLING OF LEMUEL PITKIN
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, FEVEREIRO 2015 ISBN 978-989-8566-59-1 NA CAPA: ILUSTRAÇÃO DE PEDRO PROENÇA REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE ——————— DEPÓSITO LEGAL 23230/15 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Durante quatro décadas Hollywood foi governado por pequenos tiranos que fabricavam um entretenimento de grande êxito e superlativo lucro. Tinham mandado construir enormes cubos onde paisagens e ambientes eram iluminados por luzes sábias, olhados por ângulos perspicazes, varridos por movimentos que os excluíam de toda a banalidade; que sabiam, enfim, passar a mais belo, a grandioso ou mesmo a sublime as realidades de um mundo cá de fora, onde outros humanos menos formosos e menos privilegiados viviam. Podíamos entrar num e ser a sumptuosa floresta, entrar no seguinte e apanharmo-nos em plena tempestade de neve; este podia guardar algumas ruas de Paris, aquele qualquer coisa que devíamos tomar por Xangai. E os seus habitantes — as criaturas do cinema com o Sistema da Estrela — povoavam-nos à custa de rostos inventados a poder de massas e tintas, depois de amados pelo foco de luz de grandes especialistas, de terem assumido as responsabilidades de um ícone. («Nós tínhamos rostos», afirmava com nostalgia Gloria Swanson num dos seus últimos filmes.) Quando eles apareciam nesses cubos, vinham com biografias corrigidas pela conveniência dos seus estúdios. Eram coisas distantes com perfeições físicas e de comportamento não tocadas pelas menoridades «do exterior». Nunca Lana Turner podia ser imaginada com uma dor de dentes, nunca Marlene Dietrich com uma constipação; e as sexualidades «transgressoras» retocavam-se numa vida pública falsa, que
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desmentia pelas aparências o inaceitável num cinema só povoado por cidadãos da América Acima de Qualquer Suspeita. Ora, estes mesmos tiranos tão lúcidos e atentos às antenas vigilantes da arte sétima do seu entretenimento, às veleidades violadoras da norma, que puniam sem piedade a singularidade reivindicadora, souberam acreditar com fé ingénua no que resultaria da colaboração literária de grandes escritores da literatura. Importaram por isso talentos, muitos, os que lá foram atraídos pelas benesses do salário a horas, e determinaram-lhes que inventassem, criassem, adaptassem a favor da grande glória desejada ao cinema de Hollywood. Quase todos alcoólicos, incomodavam-se um pouco com a restrição à liberdade consumidora mas também com a rotina de regras cumprida em muito tempo de secretária; por se verem a braços com o que muito pouco ou nada lhes dizia ao talento e à cultura, forçados a fabricar o que afinal não ia à boa graça rasteira dos produtores, e a sofrer a humilhação do seu talento manipulado, desvirtuado, menorizado na mão profissional de outros scripters mais afeitos aos tiques da máquina de realidades retocadas pelo sonho, pelo fim feliz, pelo crime que nunca compensa, pelas morais — as únicas que deviam inculcar-se ao bom povo americano. A relação de nomes sonantes que foram assalariados numa indústria em tudo avessa ao seu mundo de criadores é extensa e em muitos casos compreendida quase como inverosímil. Aldous Huxley… se alguma vez… William Faulkner… o quê?, a personalidade literária toda ao contrário de histórias «visuais» e redutíveis à primazia do diálogo, e depois de sei lá que contorsões uma vez citado como guionista de Land of the Pharaohs (um improvável filme em Howard Hawks), sujeitando-se à convivência com outros nomes pouco mais do que anónimos?
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Neste desacato da roupa niveladora de Hollywood, o caso de Nathanael West é mais compreensível. Avaliamo-lo por romances onde mostra o que quer ser — um contador de histórias «visuais», um construtor da acção «vista» e dialogada, com lugar exíguo para os interregnos onde, em silêncio de diálogo, poderia passar-se a um aprofundamento psicológico das personagens, essas a que ele sabe conferir toda a espessura apenas com o que dizem e fazem, ou seja, propondo-nos qualquer coisa próxima de um cinema lido e realizado na mente de quem o lê. Foram características que o mostraram a Holywood como trunfo apetecível e o levou ao contrato de 1935 em dois estúdios menores e de menor obediência às fórmulas dominadoras daquela indústria do filme: a Republic (do perfil de águia, onde as maiores estrelas eram cavalos e cowboys de série B), a RKO (com a torre que apitava sinais de morse e nos preparava para produtos entalados entre o gosto mais popular e o que interessava ao público apreciador do «desvio», a que apostou em Fred Astaire antes da Metro Goldwyn Mayer o arrastar para musicais de grande estúdio, a que se impôs de peito firme no perigoso momento de rebeldia Citizen Kane, a que acolheu o Joseph von Sternberg de um Macao tardio, com a sua estilização «acima de tudo» já menosprezada e vista como anti-receita pelos mais intransigentes tiranos da máquina). O guionista Nathanael West já era autor de três romances publicados quando teve seis anos de sofrido passeio por argumentos mais e menos insípidos, nunca tocados por um qualquer golpe de asa que chegasse a filme para a memória selectiva de um frequentador de cinemas; e nem pode dizer-se que tenha sido sua sorte póstuma Alfred Hitchcock ter dado uma grande volta ao seu argumento Before the Fact, baseado numa novela de Anthony Berkeley, e tê-lo trans-
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formado no seu Suspicion — o filme do copo de leite luminoso — porque ali não é, depois de tão radical reformulação, citado. Já com dois anos de trabalho em Hollywood, West teve o «argumentista» F. Scott Fitzgerald como companheiro na perda de tempo que os adiava, anestesiava para o que poderiam ter sido, quem saberá dizê-lo?, altos e mais numerosos momentos de criação literária. Fitzgerald sentava-se num terceiro andar dos escritórios da Metro Goldwyn Mayer, é verdade que perturbado pela sensação de «fenda aberta» no talento de escritor, e ali se arrastava por trabalhos que lhe pediam a passagem de Tree Comrades, Madame Curie ou Women a um texto com marca de estúdio bem preservada, ou pela revisão final do argumento mil vezes re-escrito de Gone with the Wind. Não há evidência de relações pessoais muito frequentes entre ambos, embora sejam inegáveis encontros e cartas onde pairava a respeitosa admiração de West pelo escritor mais velho sete anos do que ele, autor de The Great Gatsby e Tender is the Night, o que ele via afundar-se num declínio criativo, com Zelda internada num asilo psiquiátrico, e forçado a trabalhos indignos de um passado que o acolhera entre os mais celebrados talentos literários do país. Também acabariam unidos por uma coincidência literária e uma morte quase simultânea. A coincidência literária está em Hollywood como centro de dois romances pouco amáveis e literariamente poderosos sobre faces pouco visíveis daquele mundo de cinema: Fitzgerald e os dois terços do seu The Last Tycoon, condenado a texto póstumo e incompleto de uma história que reflecte muito das suas relações com Irving Thalberg, a mais alta figura do estúdio que o empregava; Nathanael West e The Day of the Locust, por muitos escolhido como seu melhor romance, apocalipse do «gafanhoto» em sub-
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mundos cruelmente transfigurados daquela indústria de filmes, visão negra e pessimista do chamado «sonho americano». Quanto à quase simultaneidade de um fatal desfecho, ela começa na noite de 20 de Dezembro de 1940, com Fitzgerald a assistir à ante-estreia de This Thing Called Love (uma comédia de Alexander Hall talhada para os tiques de representação de Rosalind Russell e Melwyn Douglas) e a ver no seu regresso a casa um Hollywood que rodava e o entontecia; que anunciava, sem ele saber compreendê-lo, o ataque cardíaco do dia seguinte, de que não seria salvo e fá-lo-ia interromper a escrita de The Last Tycoon nas quase 70 000 palavras que hoje lhe conhecemos bem arrumadas pelo trabalho de Edmund Wilson. Quanto a Nathanael West e Eileen Mckenny, casados apenas há seis meses, tinham feito no México um suplemento tardio à sua lua-de-mel, com ele a caçar patos e codornizes, a tentar esquecer-se da semana que o esperava dentro dos estúdios da RKO e tolhido pelo argumento relutante de Let’s Make Music, quando a rádio lhe anunciou a morte de Fitzgerald. West era ao volante deplorável, e tinha amigos que lhe chamavam «o pior condutor do mundo» porque se distraía, porque a todo o momento mostrava maus reflexos, porque a estacionar não dispensava o espectáculo de uma grande falta de perícia. Ora, as suas qualidades de condutor iriam mostrar-se ainda mais nefastas sob aquela emoção, aquela urgência que o transformavam (digamo-lo com ajuda de John Cassavetes) num «homem sob influência». Às duas e cinquenta e cinco da manhã do dia 22, perto da fronteira mexicana mas já em El Centro, na Califórnia, este West quase a cem à hora não viu, não podia ver, não travou à ordem de um sinal de paragem obrigatória e emaranhou-se com toda a violência dos seus metais noutro
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veículo que ali estava a cumpri-la. De pouco serviram ambulâncias e a corrida louca até ao hospital mais próximo, só com os meios de uma instalação provisória para primeiros socorros a trabalhadores mexicanos. Mas West e a sua mulher teriam em qualquer outro hospital irremediáveis fracturas cranianas, estariam destinados à morte e a ser dissolvidos pela imprensa nos desastres desse mesmo dia — ele obscuro argumentista de cinema e escritor de quatro livros que não conseguiam sair da sombra; ela uma desconhecida, só depois disto destinada a personagem humorística em My Sister Eileen (1942) e All About Eileen (1952), os livros do êxito da sua irmã Ruth McKenney que iria utilizar-lhe o nome e alguma graça em histórias de uma jovem provinciana de Ohio, confundida e amavelmente punida pela vivência urbana de Nova Iorque. * Antes de Hitler já o anti-semitismo da Europa incomodava judeus; e a América aparecia-lhes branda para a sua raça. É certo que em 1945 Arthur Miller publicaria Focus, romance onde «o nariz à judeu» bastava para causar problemas a um americano; mas a trabalhadora América era afável para os êxitos judaicos obcecadamente mercantis, para o seu peso cada vez maior nas finanças, o seu prestígio no mais alto degrau das ciências, das letras e das artes. Todas estas evidências incitaram os pais de West — lituanos judeus da província de Kovno — a sair da sua Europa báltica e a instalar-se em Nova Iorque. E aí lhes nasceu em Outubro de 1903 o seu primeiro filho Nathan Wallenstein Weinstein, o que apagaria mais tarde do nome as sonoridades incómodas para ser apenas o Nathanael West de um tranquilo cidadão americano.
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O pai Weinstein fizera-se com mais dois irmãos conceituado empreiteiro de construção civil numa Nova Iorque já com a vocação de arranhar os céus, mas o seu orgulho de raça decepcionava-se com aquele Nathan sonhado para as qualidades do judeu empreendedor, e afinal menino recolhido e afundado em leituras — precoces se soubermos que leu Tolstoi aos nove e Dostoievski aos doze — desejado como bom aluno e afinal de notas negativas ou só à tangente, e até com a rebeldia de não querer completar o curso dos liceus. Persistências e severidades paternas levaram-no porém às universidades: uma em Massachusetts, que o expulsou por excessos no comportamento, outra em Rhode Island, que o licenciou em 1924. Foi a altura de Mr Weinstein sonhar o filho que iria continuá-lo nos seus estaleiros de Nova Iorque; de querer sangue jovem a oferecer-se no já bem aberto caminho da sua indústria; mas só obteve (e por pouco tempo) uma desatenta e entediada colaboração. Nathanael detestava cimentos e rebocos; preferia-lhes o livro, ou pelo menos empregos com ócios que lhe permitissem os prazeres de insaciável leitor. Conseguiu-o sentado muitas horas em recepções de hotéis baratos de Manhattan; e sabe-se que cedeu gratuitamente quartos vagos a escritores, passando a tê-los à mão para as conversas «que lhe agradavam». Foi nesta interessada generosidade que acedeu aos convívios de William Carlos Williams (com um importante papel na publicação do seu primeiro romance), de Dashiel Hammet, de Erskine Caldwell… entre os que andaram pelos «seus» quartos gratuitos e nos batem agora com som forte nos ouvidos. * «Sois uma geração perdida», dizia Gertrude Stein aos intelectuais americanos de Paris, excluindo-se do rótulo e apontando a dedo os
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que fugiam da Depressão e cultivavam uma proximidade com a cultura europeia — a que sentiam sua, mas na América com um ar de cada vez mais «transportada», mais preterida perante nacionalismos que já reivindicavam a matriz cultural americana. Na sua grande lista citam-se Hemingway, Fitzgerald, Henry Miller, Ezra Pound, T.S. Eliot, John dos Passos… saiba-se embora menos dos que deambulavam sem obra publicada, com a vocação literária a afirmar-se ainda por intenções e algum receio de vê-la precocemente manifestada. É desta ala lateral Nathanael West (só autor de poemas a que não dava ele próprio muito crédito), arrastado em 1927 no mesmo fluxo para viver os três anos de Paris que o deixaram perto da fauna dos círculos literários e lhe consentiram a amizade de Henry Miller e Max Ernst, que o levaram ao centro de duas revistas: a Contact, literária, a Americana, satírica e bom pretexto para ele se mostrar com a ironia dos seus desenhos. Mas desenraizado, mas com uma renda curta de bondosos tios de Nova Iorque no Paris difícil onde se sentia estrangeiro e muito «do lado de lá», decidiu em 1930 o regresso. Esperava-o a mesma rotina dos pequenos hotéis de Manhattan, só abandonada pelo assalto de uma estranha ideia súbita: dentro de si o agricultor, a impaciência por se ver a semear e a cavar numa pequena herdade da Pensilvânia. Foi nesta tranquilidade de paisagens que em 1931 o romancista surgiu. Nathanael West estrear-se-ia com um tema assombrado pelo bizarro dos surrealismos e dos dadaísmos europeus, e cometia o livro inesperado na literatura do seu país: The Dream Life of Balso Snell, com a personagem central introduzida nos intestinos do Cavalo de Tróia, e em contacto nesse trânsito com seres de uma deformada e degradada humanidade; a ouvir-lhes repulsivas histórias que o faziam adormecer e sonhar outras bem mais
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fascinantes. Este texto escatológico e com audácias que a ouvidos americanos pareciam obscenas, pouco percebido pelos leitores que nesse ano bem mais se encontravam no tão americano Sanctuary de William Faulkner, só chegaria à tiragem dos seus quinhentos exemplares quase totalmente por vender e que muito mais censuras teria do que elogios — poucos e chegados de vozes mal ouvidas, atentas aos tons e aos temas das marginalidades literárias. Depois, em 1933, o seu Miss Lonelyhearts teve um crítico a reconhecê-lo como obra de um «génio original» e Edmund Wilson a encontrar-lhe um «humor grotesco da família de Gogol»; entusiasmos solitários que não saberiam inverter o destino de más vendas a esta história de um jornalista da coluna «correio do coração», assinada com o pseudónimo feminino Miss Lonelyhearts, um foco de emoções sentimentais de onde saltava uma comédia amarga e com desfecho sangrento, uma ironia onde espreitava o que poderia chamar-se um riso «bergsoniano». Há uma carta do autor a Scott Fitzgerald que regista em termos contabilísticos esta desilusão: «Boas críticas 15%, más críticas 25%, violentos ataques pessoais 60%. Vendas praticamente nenhumas.» Depois de Miss Lonelyhearts, West cometeu outro desvio ao previsível como tema de romance, e foi a subversão de uma das mais queridas mitologias do país; a do self-made man que nenhum contratempo esmorece, que da pobreza honrada ascende aos muitos dólares do conforto milionário. Para este cometimento que veio a chamar-se Um Milhão Conta Redonda ou Lemuel Pitkin a Desmantelar-se (complicado título que substituiu America, America, o mesmo que Elia Kazan escolheria para o seu filme autobiográfico), West lembrou-se de Voltaire e da peregrinação de Candide, mas sobretudo de Horatio Alger, um autor de optimismos
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patrióticos que viveu entre 1832 e 1899 e se alargou a mais de cem romances incitadores da boa juventude americana ao trabalho e à persistência, os factores que fazem a fórmula do êxito; que teceu uma malha de mil variações sobre dificuldades vencidas e com garantido prémio nas últimas páginas do livro — o prémio do país das oportunidades a quem trilha os caminhos do bom americano. As ameaças que West pressentia na actividade dos movimentos fascistas e no descontentamento político dos conservadores incitou-o a morder em Horatio Alger e na sua literatura de rasteiro patriotismo — a parodiar-lhe as ingenuidades de puritano de Massachusetts, os momentos de incontenção racista, os apelos «ao leitor amigo» para se condoer das personagens designadas por «nosso herói» e «nossa heroína» — e sob esta divertida superfície cometer as crueldades do «desmantelamento» físico de Pitkin, da escolha de Betty para uma das mulheres mais generosamente violadas da literatura americana, para criar um curioso Mr Whipple, ex-presidente dos Estados Unidos que todos estes malefícios justifica com a acção sub-reptícia dos judeus da banca internacional e dos sindicatos bolchevistas, inimigos os mais temíveis da América das Oportunidades. Nathanael West passeia por Voltaire e Alger com uma desenvoltura frenética que convoca o slapstick das farsas do primeiro cinema americano, e leva-a aos limites de uma ficção política onde Lemuel é herói com direito a homenagem pública no seu país governado por um regime fascista. Lemuel (por irónica coincidência morto num teatro, como Lincoln) é elevado a exemplo nacional dos mártires impedidos, por obra de forças externas hostis à nação, de realizar o «sonho americano»; e logra-o graças às partes ausentes e às partes artificiais do seu corpo, valor maior numa América vocacionada para privilegiar os artifícios do real.
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Com Um Milhão Conta Redonda, West expôs-se numa fábula que provocou sobretudo um riso incómodo à maior parte dos seus leitores americanos. Estava-se em 1934, num país ainda combalido pela Depressão, e algumas vozes de aplauso destoaram numa quase totalidade de críticas que embora reconhecessem a eficácia do seu humor negro reprovavam o pessimismo «forçado e injusto», incapaz de celebrar o que já eram os seus muito evidentes êxitos sociais e económicos; inclinado, pelo contrário, a profetizar-lhe um destino político que não podia deixar de fazer eco ao da Alemanha, desde o ano anterior governada por um feroz ditador de direita com legitimidade democrática. O burlesco Mr Whipple só dispunha de uma força bélica limitada a Tropas de Assalto dignas de um exército de opereta; mas, como no caso germânico, tinha sido também ele favorecido pela mesma perversidade, oculta nos saudáveis mecanismos da democracia. Um Milhão Conta Redonda teve em 1940 um momento em que as suas polémicas virtudes seduziram um estúdio de Hollywood; e West recebeu dez mil dólares pelos direitos da sua adptação cinematográfica — estranha opção numa época em que o cinema americano respondia a um máximo de vocação patriótica e bem mais interessado estava no herói escorreito e vencedor, ou em anestesiar os sobressaltos do quotidiano com comédias e filmes musicais. A hostil ironia da sua história chegou ao argumento escrito; mas, como era de esperar, dissuadiu todos os produtores que foram por ela confrontados. Miss Lonelyhearts teve direito a um filme muito afastado da obra literária, logo no ano da sua publicação, e em 1958 a outro com Montgomery Clift e um happy end; The Day of the Locust foi filmado em 1975 por John Schlesinger, cabendo ao actor William Atherton interpretar a personagem que pintava O Incên-
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dio de Los Angeles; mas continua a não haver nenhuma transposição para cinema de Um Milhão Conta Redonda. Cinquenta anos depois do aparecimento nas livrarias deste estranho objecto literário, Harold Bloom pôde olhá-lo com serenidade crítica e elegê-lo em Western Canon como distúrbio típico, bom exemplo do que chamou «Idade Caótica» da literatura americana — aquela onde foram combatidos sob fórmulas impertinentes os valores da América conservadora com raízes profundas na sua expressão escrita. A partir de 1935 West trabalhou como argumentista de filmes e traiu o ritmo de romancista que desde 1931 se afirmava com um livro por ano. Foi-lhe preciso um silêncio de cinco até The Day of the Locust, o seu último e hoje mais célebre romance que não teve nesses dias uma voz a pressentir-lhe esta durabilidade, este lugar de referência entre as aventuras literárias laterais às grandes estrelas e aos grandes produtores de Holywood — as de um Hollywood de falhados, de «gafanhotos» que fervilham no sub-mundo dos seus invisíveis operários. O escritor Nathanael West viria a morrer um ano mais tarde, na madrugada de 22 de Dezembro de 1940, e a ser esquecido em mais dez anos de sombra. Foi depois iluminado por entusiasmos críticos e tiragens que souberam trabalhar para a eficácia da sua descoberta póstuma. Muitos pareceram surpreendidos; mas não o poeta William Carlos Williams, que escreveu: «Teria de acontecer…» (referindo-se ao êxito tardio do escritor — do ex-recepcionista que gratuitamente o instalava em pobres hotéis de Manhattan), explicando assim a sua razão: «porque ele foi the finest talent of our age». A.F.
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«John D. Rockefeller daria um milhão conta redonda por um estômago como o teu.» (velho ditado)
1. A casa de Mrs Sarah Pitkin, viúva de idade avançada, estava num alto com vista para o Rat River, perto da cidade de Ottsville no Estado de Vermont. Era uma habitação modesta, em bastante más condições de habitabilidade, embora ela e o seu filho único Lemuel lhe tivessem extraordinária afeição. Apesar de o edifício não ser desde há algum tempo pintado, devido ao aperto financeiro desta pequena família, ainda tinha um forte encanto. A sua arquitectura seria capaz de despertar enorme interesse a um coleccionador de velharias que passasse por acaso à sua frente. Fora construído nos tempos da campanha do general Stark contra os Britânicos, e as suas linhas reflectiam a energia desse exército com fileiras onde alguns Pitkin tinham marchado. Estava uma tarde de Outono no seu fim quando Mrs Pitkin, tranquilamente sentada na sala, ouviu alguém bater à sua humilde porta. Porque não tinha criados, era seu hábito ir ela própria abri-la. — Mr Slemp! — exclamou, ao reconhecer no visitante o abastado jurista da aldeia. — Sou eu, Mrs Pitkin. Um pequeno negócio aqui me traz. — Não quer entrar? — disse a viúva, com uma surpresa que não lhe fazia esquecer as boas maneiras.
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— Creio que vou abusar por pouco tempo da sua hospitalidade — disse o jurista num tom suave. — Tem passado bem? — Obrigada, senhor… bastante bem — disse a viúva mostrando o caminho para a sala de estar. — Sente-se na cadeira de baloiço, Mr Slemp — acrescentou a apontar para a melhor cadeira que na sua modesta sala havia. — É muita amabilidade sua — disse o jurista sentando-se delicadamente na cadeira que lhe tinham mostrado. — Onde está o seu filho Lemuel? — continuou o jurista. — Na escola. Mas pouco falta para chegar a casa. Nunca se perde pelo caminho. Na voz da mãe sentia-se de certa forma o orgulho que tinha no seu rapaz. — Ainda na escola! — exclamou Mr Slemp. — Não devia ajudá-la a sustentar a casa? — Não — respondeu orgulhosamente a viúva. — Dou, como o meu filho, muita importância à instrução. Mas vem propor-me um negócio? — Ah, venho, Mrs Pitkin. E receio que um negócio para si desagradável. Tenho porém a certeza de que vai levar em conta eu falar em nome de outro. — Desagradável! — repetiu Mrs Pitkin, apreensiva. — Sim. Mr Joshua Bird, o juiz de paz Bird, encarregou-me de executar a hipoteca sobre a sua casa. Isto é, ordenará a sua execução — apressou-se a acrescentar — se não tiver daqui a três meses os fundos necessários, quando for vencido o prazo. — Que esperança posso ter de pagar? — disse a viúva com a voz alterada. — Eu julgava que o juiz Bird visse com satisfação o prolongamento do prazo, uma vez que lhe pagamos com juros a doze por cento.
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— Lamento, Mrs Pitkin, lamento-o sinceramente, mas ele decidiu não o renovar. Quer o dinheiro ou a propriedade. O jurista agarrou no seu chapéu e fez uma respeitosa vénia, deixando a viúva sozinha e banhada em lágrimas. (Ao leitor talvez interesse saber que eu tinha razão na minha conjectura. Um decorador de interiores passara à frente da casa e ficara fortemente impressionado com o seu aspecto. Tinha contactado o juiz Bird com o objectivo de a comprar, e a respeitável personagem decidira executar a hipoteca da casa de Mrs Pitkin. O nome que causava esta tragédia era Asa Goldstein, e a sua firma a «Exteriores e Interiores da Época Colonial». Mr Golsdtein projectava cortá-la em pedaços e expô-los na montra do seu estabelecimento da Quinta Avenida.) Quando o jurista Slemp saiu da humilde habitação encontrou à entrada Lemuel, o filho da viúva. E pela porta aberta o rapaz vislumbrou a sua mãe lavada em lágrimas. Perguntou a Mr Slemp: — O que disse à minha mãe, para ela estar a chorar? — Afasta-te, rapaz! — exclamou o jurista. E empurrou com muita força o pobre Lem, ao ponto de ele cair desde os degraus do pórtico até à cave infelizmente aberta. Quando Lem conseguiu sair de lá, Mr Slemp estava longe, a fazer o seu caminho na estrada. Apesar de só ter dezassete anos, o nosso herói era robusto e corajoso, e só a intervenção da sua mãe impediu que fosse atrás do jurista. Ao ouvir-lhe a voz pousou o machado que já tinha erguido, e a correr entrou em casa para a confortar. A pobre viúva pôs o filho a par de tudo o que contámos, e mergulharam os dois numa profunda angústia. Bem podiam
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martitizar o cérebro, porque nenhuma forma descobriam de manter sobre as suas cabeças aquele tecto. Desesperado, Lem acabou por tomar a decisão de falar com Mr Nathan Whipple, o mais eminente habitante da cidade. Mr Whipple tinha sido presidente dos Estados Unidos, e era desde o Maine até à Califórnia afectuosamente conhecido como Whipple «Shagpoke»1. Depois de quatro anos de êxito no poder tinha amachucado o chapéu-alto, é caso para dizê-lo, até fazer dele um ferro de arado; e recusando-se a concorrer uma segunda vez ao lugar, preferiu o regresso ao Ottsville natal e voltar a ser um banal cidadão. Passava o tempo metido na garagem, o seu buraco, ou então no Banco Nacional de Rat River, onde era presidente. Mr Whipple tinha muitas vezes mostrado que se interessava por Lem, e o rapaz pensou que ele talvez quisesse ajudar a sua mãe a salvar a casa.
2. Shagpoke Whipple vivia na rua principal de Ottsville, numa casa de madeira com dois andares que tinha à frente um relvado estreito e nas traseiras uma garagem que em tempos fora um galinheiro. Ambas as construções tinham um ar sólido e acolhedor; aliás, ninguém se atreveria a causar qualquer perturbação no interior daquele domínio. 1
Ou seja, qualquer coisa como «O Trunfa Alta». (N. do T.)
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A casa tanto servia de residência como de lugar de atendimento; o rés-do-chão estava reservado aos escritórios do banco, e o primeiro andar funcionava como habitação do ex-presidente. No pórtico, perto da porta da entrada, havia uma grande tabuleta de bronze: BANCO NACIONAL DE RAT RIVER
Nathan Whipple «Shagpoke» PRES.
Talvez houvesse algumas pessoas a não concordarem que uma parte da habitação estivesse transformada num banco, em especial por se tratar de Mr Whipple, que lidara de perto com cabeças coroadas. Mas Shagpoke não era vaidoso, e era do género forreta. Tinha feito sempre economias; desde os cinco anos de idade, altura em que recebeu a primeira moeda, vencera o ilusório prazer de a investir num rebuçado, e assim procedeu até à época em que foi eleito presidente dos Estados Unidos. Uma das suas máximas favoritas era: «Não ensines a tua avó a chupar ovos.» Queria com isto dizer que os prazeres do corpo são como as avós: se elas começarem a chupar ovos, não param até os ovos (as carteiras) ficarem vazios. Quando Lem começou a subir o desvio que ia dar à casa de Mr Whipple, o sol estava a descer com rapidez no horizonte. Todas as tardes o ex-presidente arreava àquela hora a bandeira que flutuava por cima da garagem, e fazia um discurso ao grande número de habitantes da cidade que parava para ver a cerimónia. Depois de o grande homem regressar de Washington tinha havido um primeiro ano em que se juntava ali uma verdadeira multidão;
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mas já diminuíra tanto, que o nosso herói ao aproximar-se da casa só viu um escuteiro solitário a observá-la. De resto um rapaz que ali não estava de livre vontade mas porque o seu pai, ansioso por obter um empréstimo do banco, lhe ordenara que o fizesse. Lem tirou o chapéu e esperou respeitosamente que Mr Whipple terminasse o discurso. — Salvé, Velha Bandeira Estrelada! Possas ser a alegria e o orgulho do coração americano quando as tuas sumptuosas dobras brincarem ao ar do Verão e os teus esfarrapados pedaços mal puderem distinguir-se através das nuvens da guerra! Possas flutuar sempre com honra, esperança e proveito, com uma glória e um fervor patriótico sem mácula na cúpula do Capitólio, na planície de tendas, na ponta do mastaréu da gávea e no telhado desta garagem! Ao dizer estas palavras, Shagpoke arriou a bandeira que tinha feito muitos dos nossos melhores sangrarem e morrerem, mantendo-a ternamente apertada nos braços. O escuteiro saiu dali a correr, e Lem aproximou-se para saudar o orador. — Gostaria de dar-lhe uma palavra — disse o nosso herói. — Mas com certeza — retorquiu Mr Whipple com a sua natural bondade. — Nunca estou muito ocupado, tratando-se de discutir problemas da juventude, porque a única esperança de uma nação está na sua juventude. Vem até ao meu buraco — acrescentou. O quarto onde Lem entrou atrás de Mr Whipple, ficava no fundo da garagem. Tinha uma mobília extremamente simples; tudo quanto lá havia era alguns caixotes, um barril de biscoitos, dois escarradores de cobre, um fogão aceso e um retrato de Lincoln.
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Quando o nosso herói se sentou num dos caixotes, Shagpoke inclinou-se para o barril dos biscoitos e aproximou do fogão as suas botas-de-elástico. Com uma cuspidela bem calculada venceu a distância até ao escarrador mais próximo, e pediu ao moço que começasse a falar. Vou no entanto dar um salto até à última frase da narrativa, porque não seria boa escolha relatar tudo quanto Lem disse sobre a sua difícil situação. — Visto isso — concluiu o nosso herói — a casa da minha mãe só se salva se o seu banco se responsabilizar pela hipoteca do juiz Bird. — Mesmo que me fosse possível fazê-lo, não estaria a auxiliar-vos emprestando dinheiro — foi a surpreendente resposta que Mr Whipple deu ao rapaz. — Porquê, senhor? — perguntou Lem, incapaz de ocultar a sua grande decepção. — Por achar que seria um erro. És novo de mais para pedir um empréstimo. — Mas o que posso então fazer? — perguntou Lem, desesperado. — Faltam três meses até eles poderem vender a vossa casa — disse Mr Whipple. — Não desanimes. Estamos numa terra de oportunidades, e o mundo é uma ostra. — Mas como posso ganhar aqui e em tão pouco tempo quinhentos dólares (era o valor nominal da hipoteca)? — perguntou Lem intrigado com as palavras um tanto enigmáticas do ex-presidente. — Precisarás de ser tu a descobri-lo, mas nunca te disse que tens de continuar em Ottsville. Faz o mesmo que eu quando tinha a tua idade. Vai para o mundo e vence por ti próprio.
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Lem reflectiu durante um momento neste conselho. Quando voltou a falar, fê-lo com coragem e determinação. — O senhor tem razão. Vou sair daqui e fazer fortuna. Os olhos do nosso herói brilharam com uma luz que denunciava a força de um nobre coração. — Pois bem — respondeu Mr Whipple com um genuíno contentamento. — Como já te disse, o mundo é uma ostra que só espera por mãos capazes de abri-la. Mas as mãos nuas são as melhores. Tens dinheiro? — Qualquer coisa que não chega a um dólar — disse Lem com ar triste. — É muito pouco, meu jovem amigo, mas pode ser suficiente porque tens cara de pessoa honesta, e isso vale mais do que ouro. Quando saí de casa para tentar a sorte tinha trinta e cinco dólares, e bom seria teres pelo menos o mesmo. — Sim, bom seria — concordou Lem. — Não tens nenhuma garantia adicional? — perguntou Mr Whipple. — Garantia adicional? — repetiu Lem, com cultura sobre negócios muito limitada e sem sequer saber o que a expressão significava. — Um fiador do empréstimo — disse Mr Whipple. — Não, senhor, receio que não. — A tua mãe tem uma vaca, não tem? — Sim, a Velha Sue. O rapaz ficou com um rosto enfiado, só de pensar que abdicaria dessa fiel servidora. — Acho que posso adiantar vinte e cinco dólares por ela, talvez trinta — disse Mr Whipple.
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— Mas ela custa mais de cem, e ainda por cima é quem nos dá leite, manteiga e queijo, a maior parte do nosso pobre alimento. — Não estás a compreender — disse Mr Whipple com um ar paciente. — A tua mãe pode ficar com a vaca até a letra que assinar se vencer daqui a sessenta dias. Esta nova obrigação será mais um incentivo a espicaçar-te na senda do êxito. — Mas se eu fracassar? — perguntou Lem. Não é que lhe faltasse o ânimo, diga-se a verdade, mas como era jovem queria ser encorajado. Mr Whipple percebeu aquilo que o rapaz sentia, e fez um esforço para o tranquilizar. — A América — disse com um ar muito sério — é a terra das oportunidades. Toma a seu cuidado os honestos e os empreendedores, e nunca os desampara enquanto forem ambas as coisas. Não se trata de uma opinião, mas de fé. No dia em que os americanos deixarem de acreditar nisto, a América estará perdida. «Deixa-me avisar-te; vais encontrar no mundo um certo número de trocistas que vão rir-se de ti e tentar magoar-te. Vão dizer-te que o John D. Rockefeller era ladrão; que Henry Ford e outros grandes homens também o eram. Mas não lhes dês crédito. A história de Rockefeller e de Ford é a de todos os grandes americanos, e deves esforçar-te para fazeres a tua própria história. Nasceste, como eles, pobre e numa fazenda. E à custa de honestidade e empreendimento não poderás deixar, como eles, de ter êxito.» Não será preciso dizer que as palavras do ex-presidente encorajaram o nosso jovem herói como outras idênticas tinham animado a juventude deste país, desde a época em que ele se li-
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bertou do jugo britânico. Prometeu partir imediatamente de Ottsville, e fazer o mesmo que Rockefeller e Ford tinham feito. Mr Whipple redigiu os documentos que a mãe do rapaz teria de assinar, e acompanhou-o até ele sair do seu antro. Depois, quando o rapaz se foi embora o grande homem voltou-se para o retrato de Lincoln pendurado na parede, e em silêncio comungou com a sua imagem.
3. O caminho que o nosso herói tinha de tomar de regresso a casa era uma vereda que acompanhava o Rat River. E quando passou numa zona arborizada, cortou uma vara grossa com um grande nó na extremidade. Estava ele a agitar o varapau como um chefe de orquestra a sua batuta, quando foi sobressaltado pelo grito de uma jovem. Voltou a cabeça e viu alguém assustado, a ser perseguido por um cão feroz. Um rápido olhar fê-lo reconhecer Betty Prail, a rapariga que lhe inspirava uma dessas paixões que a juventude alimenta. Betty também o reconheceu no mesmo instante. — Mr Pitkin, ajude-me! — exclamou com as mãos entrelaçadas pela aflição. — Vou fazê-lo — disse Lem com um ar decidido. Armado com a vara tão oportunamente cortada, deu uma corrida que o pôs entre a rapariga e o perseguidor, e com toda a força descarregou a extremidade nodosa no lombo do cão. O furioso animal — um grande buledogue — desviou para Lem
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a sua atenção, e com um uivo feroz atirou-se a ele. Mas o nosso herói estava vigilante e à espera do ataque. Saltou para o lado, e com enorme energia descarregou a vara na cabeça do cão fazendo-o cair, um tanto atordoado e com a língua trémula a sair-lhe da boca. «Não posso deixar que isto termine assim», pensou Lem; «quando voltar a si, mais perigoso se vai mostrar.» Duas pancadas na fera caída traçaram-lhe o destino. E deixaram-na em estado de não voltar a fazer mal. — Obrigado, Mr Pitkin! — exclamou Betty com um vestígio de cor a regressar-lhe às faces. Apanhei um enorme susto. — Não me espanta — disse Lem. — Via-se que o animal estava irritado. — E como foi corajoso! — disse a jovem com admiração. — Não é preciso muita coragem para bater com uma vara na cabeça de um cão — respondeu Lem com modéstia. — Muitos rapazes teriam fugido — disse ela. — O quê! Deixando-a desprotegida? — Lem estava indignado. — Só um cobarde faria isso. — O Tom Baxter vinha comigo, e fugiu. — E viu o cão correr atrás de si? — Viu. — E o que fez ele? — Saltou por cima de um muro de pedras. — Só posso dizer que não sou desse género — respondeu Lem. — Vê como sai espuma da boca do cão? Creio que está raivoso. — Que horror! — exclamou Betty, arrepiada. — Já tinha suspeitado disso?
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— Sim, logo que o vi. — E mesmo assim atreveu-se a enfrentá-lo? — Era mais seguro do que correr — disse Lem, a fazer pouco caso do incidente. — Mas de quem é afinal este cão? — Posso dizê-lo — respondeu-lhe uma voz agressiva. Lem voltou a cabeça e deu com um indivíduo corpulento, cerca de três anos mais velho do que ele, com um rosto onde parecia predominar uma animalesca brutalidade. Nem mais nem menos o Tom Baxter, o ferrabrás da cidade. — O que fizeste ao meu cão? — perguntou num tom irritado. Interpelado neste tom, Lem foi induzido a pensar que era inútil mostrar delicadeza com tão grosseiro indivíduo. — Matei-o — foi a lacónica resposta. — E que ideia foi essa de matares o meu cão? — perguntou o ferrabrás muito irado. — Tu é que devias ter a ideia de manter a fera presa onde não faça aos outros nenhum mal — disse Lem. — Aliás, viste-o atacar Miss Prail. Por que não intervieste? — Vou dar cabo de ti, até não teres um só pedaço teu com vida — foi a resposta de Baxter, acrescentada por uma praga. — É melhor não tentares… — disse Lem com muita calma. — Está a parecer-me que achavas melhor eu deixar o cão morder Miss Prail. — Não a teria mordido. — Ia mordê-la. Corria atrás dela com essa intenção. — Não passava de uma brincadeira. — Visto isso, a espuma da boca só era brincadeira — disse Lem. — O cão estava raivoso. Devias agradecer eu tê-lo matado, porque acabaria por morder-te.
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— Isso não pega — respondeu Baxter num tom arruaceiro. — É mais do que posso engolir. — Mas é a verdade — disse Betty Prail, fazendo ouvir pela primeira vez a sua voz. — É claro que tomas o seu partido — disse o jovem açougueiro (porque era esta a sua profissão) — mas não é isso o que interessa. Paguei pelo cão cinco dólares, e se ele não me reembolsar dou cabo dele. — Não vou fazer nada que se pareça com isso — disse Lem num tom calmo. — Um cão como este deve ser morto, e ninguém tem o direito de deixá-lo correr por aí à solta, pondo em risco a vida de inocentes. Da próxima vez que tiveres cinco dólares, investe-os melhor. — Não queres pagar-me essa quantia? — gritou o ferrabrás, exaltado. — Vais ficar com a cabeça partida. — Faz lá isso — respondeu Lem. — Tenho qualquer coisa a dizer a tal respeito. E pôs-se em guarda, de acordo com as regras de um combate. — Oh, Mr Pitkin, não lute com ele — disse Betty muito inquieta — é muito mais forte… — Parece-me que não tardará a sabê-lo — resmungou o adversário de Lem. Que Tom Baxter era maior e mais forte do que o nosso herói, não havia dúvidas. Mas dava-se o caso de não saber utilizar a sua força. Não passava de uma brutalidade sem disciplina. Se conseguisse rodear com os braços o peito do adversário, tê-lo-ia à sua mercê; mas como Lem tinha consciência disso, optou por não lhe dar essa oportunidade. Era muito ágil no boxe, e com tranquilidade e prudência pôs-se na defensiva.
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Quando Baxter se atirou a ele, pensando que teria nas suas mãos o franzino opositor, foi recebido no rosto com dois murros rápidos, um no nariz e o outro num olho, qualquer deles com o efeito de lhe fazer a cabeça andar à roda. — Por causa disto vais ficar sem conserto — berrou com enlouquecida fúria. Mas quando voltou a atirar-se não protegeu o rosto. O que teve como resultado mais dois murros, a acertarem-lhe desta vez no outro olho e na boca. Baxter estava estupefacto. Tinha esperado fazer à primeira investida «um ajuste de contas» com Lem; mas via-o em vez disso à sua frente, fresco e intacto, e era ele quem sentia o nariz e a boca a sangrarem, e os dois olhos sem conseguirem abrir-se. Parou de imediato, fixando Lem o melhor que podia com os seus olhos magoados, mas a deixar o nosso herói surpreendido porque estava a sorrir-lhe. — Pois bem — disse ele a sacudir a cabeça e um tanto envergonhado. — És o melhor. Tenho mau feitio, é um facto, mas sei reconhecer que me engano. Aqui tens a minha mão, como prova de que não te quero mal. Lem estendeu-lhe de igual forma a sua, sem recear que a amigável oferta do gabarola pudesse ser um ardil. Como indivíduo de boa fé, achava que todos eram como ele. Mas ainda Baxter estava a apertar a mão do pobre rapaz, e já o puxava para um abraço que lhe fez perder os sentidos. Tão grande angústia Betty sentia por causa de Lem, que deu um grito e desmaiou. Quando Baxter a ouviu gritar, deixou cair no chão a sua vítima e aproximou-se dela, que continuava inanimada. Durante momentos inclinou-se sobre o seu
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corpo, a admirar-lhe a beleza. E havia um brilho animal nos seus pequenos olhos de suíno.
4. Sinto relutância em deixar Miss Prail entregue ao abraço libertino de Tom Baxter e dar início a novo capítulo; mas não consigo, para lá do instante em que o ferrabrás despiu a infeliz rapariga, prosseguir com decência a minha narrativa. No entanto, como Miss Prail é a heroína deste romance, gostaria de aproveitar a ocasião para contar alguma coisa do seu passado. No dia em que fez doze anos Betty ficou órfã, devido à morte simultânea dos seus dois pais num incêndio que também destruiu os poucos bens susceptíveis de serem adquiridos por herança. Neste incêndio, ou antes, na ocasião em que ele ocorreu, teve uma perda acrescentada à outra, e nunca conseguiu recuperá-la. A herdade dos Prail estava situada a cerca de três milhas de Ottsville, à beira de um mau caminho; e os bombeiros voluntários, que tinham a seu cargo todos os incêndios do distrito, não mostraram muito entusiasmo a levar para lá o material de intervenção. Para dizer a verdade, a companhia de bombeiros de Ottsville era composta por um grupo de jovens mais interessados em anedotas sujas, jogos de damas e aguardentes de maçã, do que combater fogos. Quando a notícia da catástrofe chegou ao quartel, os bombeiros voluntários estavam todos
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, George Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg
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Nathanael West UM MILHÃO CONTA REDONDA
Nathanael West UM MILHÃO CONTA REDONDA ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes capa de
Pedro Proença Uma fábula de riso incómodo. O ditador oculto nos mecanismos da democracia. O «sonho americano» a desmantelar-se.
www.sistemasolar.pt
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