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Visconde de Vila-Moura
NOVA SAFO tragédia estranha
apresentação
Aníbal Fernandes
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© SISTEMA SOLAR, CRL (2017) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA NA CAPA: THÉODORE CHASSÉRIAU, SAFO PRECIPITANDO-SE NO MAR…, 1846 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, MARÇO DE 2017 ISBN 978-989-8833-17-4
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No final do século XIX, quando a grande onda romântica deu sinais de se perder num esgotamento de inspiração, as artes — plásticas e literárias — encheram-se de programas marcados pelo sufixo ismo. Queriam apontar novos caminhos que dessem ares renovados ao que se tomava por academia, por «já visto e ouvido». Um dos primeiros chamou-se decadentismo. O nome começou por ser pejorativo, chegado dos académicos que ironizavam os anunciadores do fim do seu reino, mas — com algum sentido de humor — os dessa nova escola adoptaram-no, roubando neste gesto efeito e oportunidade à estratégia que o tinha inventado. Os decadentistas reviam-se no mais amplo sentido de um verso de Paul Verlaine — «eu sou o império no fim da decadência» — achavam-se antítese dos parnasianos, opunham-se à moral e aos costumes burgueses. A atitude continha em si uma evasão da mais directa realidade quotidiana e ganhava complexidades; as de um sentimento hostil aos valores estéticos, morais e sociais da maioria, com predisposição para cantar o homem construído num heroísmo individualista e trágico. Na literatura, o exemplo ficou sobretudo com o herói de A rebours de Joris-Karl Huysmans, com o Dorian Gray de Oscar Wilde, com o Andrea Sperelli de d’Annunzio. Pouco tempo depois, a maior parte dos decadentistas era simbolista: a realidade, que tinha percorrido o seu próprio sonho, passava a embrenhar-se num bosque de símbolos e abria caminho ao modernismo. O decadentismo tinha passado, deixando perduráveis
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representantes da sua preciosidade em imagens e estilo; na França Villiers de l’Isle-Adam, Mallarmé, Corbière, Jean Lorrain… na Inglaterra Walter Pater e Wilde… nos sul-americanos o primeiro Darío, Lugones e Quiroga… na Itália d’Annunzio… Portugal mostrou nesta inspiração Eugénio de Castro (o da sua primeira fase), António Nobre (com evidente lateralidade às suas características centrais) e Camilo Pessanha, todos escritores essencialmente de poesia, ficando esquecido o Visconde de Vila-Moura, único exemplo maior em português de decadentismo na prosa. Nascido em 1877 no concelho de Baião, exterior pelo berço à nobreza e filho de um bacharel em Direito e de uma senhora da Casa da Eira de Porto Manso, revelava com prolongados sobrenomes a vontade de uma marca de «boas famílias». A linha inteira pedida pela sua assinatura juntava, ao Bento do nome próprio, Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo. O seu pai, fundiário de largas terras, garantiu-lhe por toda a vida uma invejável folga material. Foi um adolescente brilhante e bem comportado no Colégio dos Vasconcelos, que abrigava no Porto o que melhor havia de boas origens, e cumpriu conselhos avisados do seu pai: Ao completar os dezasseis anos, disse ele a João Alves (que vai servir-nos aqui em todas as suas falas directas, extraídas do livro O Génio de Vila-Moura), tinha concluído o curso do liceu e o meu primeiro curso de sensibilidade. E, contudo, quão longe era eu ainda de mim! A despeito do mundo de surpresas que, pela inspiração de um homem invulgar, começaram a revelar a minha alma, eu percebi a breve trecho que esse acaso feliz da minha vida fora mais do que uma viagem da minha sensibilidade pela grande Alemanha. A minha alma era profundamente latina. Mais tarde, quando se desenvolveu completamente, dirigiu-se
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para os países do sol, daquele sol do espírito latino, que eu nunca encontrara na luz de cinza da alma alemã. E já foi este futuro visconde, com sensibilidades incompreendidas pela trivial maioria que o rodeou na universidade de Coimbra, que lá surgiu antipraxista, a estudar Direito. As minhas primeiras impressões de Coimbra foram más, como são as de todas as pessoas de sensibilidade que venham para demorar-se. […] Coimbra figura como um charco nas minhas primeiras recordações. […] Em Portugal, a tradição andou sempre meiada de porcaria. […] Estava eu no ângulo do Observatório, a ver as águas negras do Mondego, quando veio junto de mim um conhecido grupo de praxistas. Atentei-os com a maior correcção. A breve trecho percebi que não tinham nada de especial a dizer-me, enquanto um deles se desfazia em estupidez, procurando ter alguma graça. […] É sempre o recurso dos inferiores. […] — Sabe o que eu queria ser neste momento? — E ao silêncio de todos: — Ministro da Instrução. […] Sabem para quê? Para proibir a capa e batina na Academia. Não se percebe que andem garotos vestidos de frades. As belezas da cidade acabaram por surgir a mais longo prazo, dentro da solidão interior que lhe doeu sempre e o incomodou entre amenidades da sua vida confortável. Guardo de Coimbra a recordação sem par da minha mocidade; a melancolia das suas tardinhas azuis, bem irmã da melancolia forte da minha alma de então e, sobretudo, a minha ansiedade indefinida que apenas me largou ou se transformou no dia em que eu me entreguei ao mais doce mister do mundo, o mister de Artista. Havia afinal em mim, nesse tempo, um Artista inconsciente a lutar contra a corrente vulgar da vida que me tomou.
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O futuro escritor procurava na matéria do Direito qualquer coisa que se sobrepunha ao seu sentido imediato e escapava à teorização académica: O que me interessava verdadeiramente era aquela parte da razão superior que mal aflorava do regramento da matéria e que foi para mim um primeiro sinal do pensamento superior que movia o mundo. […] Conforme havia prometido ao meu pai, eu formei-me ao fim de cinco anos de curso e com a nota combinada de bom. Mas: Não compreenderam que as minhas aspirações eram outras, porque as minhas necessidades eram outras. Eu passava aquele tempo sem que soubesse definir-me, sem que bem percebesse para quê — a percorrer as grandes obras de literatura e a meditar as primeiras insinuações da vida humana e da paisagem. […] A ansiedade do Artista vale mais do que a geometria mental de todas as academias. Obtida a licenciatura em Direito, o rapaz de vinte e três anos elitista e com ideais monárquicos a vibrarem fortemente na sua formação política, sonhou-se com posição honrosa na nobreza titular. E como dispunha de dinheiro e prestígios de família suficientes para fazer a aquisição de um título nobiliário, correspondeu-lhe nesse mesmo ano o rei D. Carlos I concedendo às suas pretensões, por decreto de 25 de Outubro de 1900, o título que o fazia visconde de Vila-Moura. O jovem visconde tornou-se militante do Partido Regenerador, de onde saiu a maior parte dos presidentes do conselho dessa época; e muito ardor se lhe viu, como deputado das Cortes da Monarquia Constitucional Portuguesa, nos impulsos que quis dar aos caminhos-de-ferro e à vinicultura da sua região nortenha. Mas já a República espreitava. A monarquia portuguesa ia passar pelos tempos conturbados que assassinaram D. Carlos I no Terreiro do Paço e só deram dois anos de reinado ao seu sucessor D. Manuel II.
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A República de 1910 indignou visceralmente o visconde. Retirou-se da política e sobrou-lhe o trabalho da escrita ou, como ele gostava de afirmar, de Artista. Já era nesses tempos escritor de dois livros publicados (A Moral na Religião e na Arte, de 1906, e A Vida Mental Portuguesa, de 1908), mas daria agora maior fôlego à literatura. Vivia entre a sua casa do Porto e a casa de Porto Manso, onde tinha nascido. Fazia viagens pelos países que alimentavam a sua ideia superior de cultura. Com pena diligente, deu em 1911 a conhecer Vida Literária e Política, e quando começava a admitir-se que não sairia de um pendor ensaístico, publicou em 1912 o romance Nova Safo que foi escândalo por se afoitar à sublimação das homossexualidades feminina e masculina, por passar sem arrepios pela necrofilia, pela nanofilia e, poderá acrescentar-se com probabilidade, pela pedofilia. O visconde publicou em vida mais trinta obras sem voltar a sobressair como neste romance de uma esquisita sensualidade, que se regista sem lhe encontrar parceiro digno na literatura portuguesa. Decadentista convicto, surpreendia-se quando lhe chamavam romântico: Eu fui, algures, apodado de romântico, eu que ousei um dos mais estranhos e difíceis capítulos da vida humana; a loucura sensual na Nova Safo. Fui apodado de romântico eu, que a tão grande distância do romantismo retomei alguns dos seus maiores motivos, consciente de que estes encerram uma energia universal mais extensa do que todas as escolas. […] O motivo e o estilo não são coisas independentes. É ocasião para fixar sobre isto um pequeno princípio: cada assunto tem o seu estilo próprio. […] A forma é, afinal, a própria ideia quando nós a confiamos ao papel. Sente-se que o visconde de Vila-Moura, obediente ao que instituiu como princípio, oscila neste romance entre o tom naturalista,
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adequado às cenas que se detêm numa acção pouco perturbada pelos sentimentos, e o tom decadentista, bom servidor dos sentimentos, que o leva à escolha de palavras enfáticas e rebuscadas sempre que está em causa aquilo a que ele chama «loucura sensual». O leitor vai ser confrontado com palavras utilizadas num sentido hoje menos do nosso hábito, por exemplo «génio», no texto sempre menos alto e descido a «temperamento» ou «talento», e também com adjectivações que parecem colar ao nome uma qualidade oposta à que seria expectável, no contexto, ver-lhe atribuída. Um dos exemplos mais significativos é o autor apelidar em muitos pontos de «extravagante» ou «exótica» a sexualidade praticada entre pessoas do mesmo sexo ou à margem daquela considerada como acto «normal» pela Bíblia burguesa, balizada em dois preceitos; impor ao homem a conquista do pão, à mulher a dos filhos. E uma e outra se juntam, mercê da liturgia, enchendo códigos e cartilhas. Maria Peregrina, a Nova Safo do romance, tenta argumentar e defender a sua razão sensual de existir, a sexualidade «extravagante» que é conflito dolorosíssimo entre o instinto próprio e a mesquinhez alheia, esse conflito que não resulta da acuidade da inteligência, mas de um mistério emocional; fá-lo sobretudo na longa «Elegia da Morte» que conclui o livro. Maria Peregrina permite-se conceder a si própria o direito a toda a perversão, se perversão é amar a parte bela da matéria. E não se trata de uma atitude onde não caiba Deus: Creio no Deus de todos os cultos, embora aborreça a liturgia que o oculta. A minha bondade aceita em pé de igualdade, lê-se na «Elegia», o amor idealista de Santa Teresa de Jesus — a mística, os impulsos bestiais de Calígula e as ordens alucinadas de Nero, determinando-se em sensualidade ou incendiando Roma para mergulhar a alma sublimemente perversa nas labaredas de uma
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civilização a arder. Uma experiência de vida moldada por todas as liberdades sensuais foi o que lhe acurou os vícios; sugeriu-lhe a defesa íntegra dos seus actos e criou, paralelamente a um niilismo de sentido, uma Filosofia que prende a uma Liberdade amoral que vai além da outra — a que peja os Códigos, as Bíblias. Maria Peregrina não cabe dentro do mundo, e decide: vou ser o Éter que me sobe à nova Vida. Flaubert afirmou que era a Madame Bovary; o visconde de Vila-Moura poderia ter afirmado: eu sou Maria Peregrina. * Incomodado com a República, o visconde recolhe-se e escreve, mas também viaja. Deixa impressas ficções, detém-se no Camilo dos últimos tempos (para escrever obras como Fanny Owen e Camilo ou As Cinzas de Camilo), passa por ensaios literários e políticos, poemas, prefácios, e na reclusão cultiva uma epistolografia que excede os de valor bem aceite pela época e chega ao ainda mal reconhecido Fernando Pessoa. Porém — má sorte sua — traz do seu turismo (talvez «extravagante») um mal de fugidia classificação; aquele a que os médicos só oferecem, à falta de outro, o nome de febre de Malta. Esta duvidosa febre enfraquece-o, impede-o de ultrapassar na escrita umas quantas notas sem coerência de conjunto. E vale a pena transcrever aqui João Alves nalguns passos do que é larga descrição dos seus últimos dias: «Eu creio que a medicina descobriu muito cedo o mal do Artista. Mas, como este era demasiado grave, mentia sempre aos que o acompanhavam. Os médicos da família, como os outros chamados a auxiliá-los, iludiam-nos a todos dizendo que o Artista sofria uma simples crise de febre de Malta. E assim vivemos meses sem conta, julgando assistir à reabili-
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tação de um corpo, quando afinal assistíamos, às cegas, à sua destruição. Era admirável a cegueira que nos dominava a todos. Vencidos pela mentira piedosa da medicina, nós assistíamos sem ver os sintomas evidentes do agravamento. […] Pouco a pouco, as nossas esperanças começaram a tornar-se numa espécie de alucinação. Porque, dia a dia, o Artista estava mais consumido; dia a dia, a sua voz era mais vagarosa e mais fraca. A pele tomava uma cor terrosa. Os pés e as mãos começaram a inchar frequentemente. Os músculos lassos deixavam cair um pouco o lábio inferior, e as gengivas estavam brancas e ressequidas. Mas nós continuávamos a ver as suas feições enérgicas e o seu olhar poderoso de outros tempos.» No fim do Verão foi decidido levá-lo do Porto para Porto Manso, a casa onde tinha nascido. No dia 3 de Setembro de 1935, o dia em que morreu, «a sua boca não pronunciava uma só palavra Não soltou uma queixa, sequer. […] O Artista tinha as pálpebras caídas pesadamente, os braços inertes, o busto abatido sobre as almofadas. […] Com um esforço infinito, como se removesse um peso imenso de cima do peito, o Artista levantou angustiosamente o busto, ergueu as pálpebras, lançou um olhar perdido pelo quarto, e deixou escapar como um sopro esta palavra: Mãe.» Tinha cinquenta e sete anos de idade, e era celibatário sem descendência; o autor de Nova Safo foi o primeiro, e também o último, visconde de Vila-Moura. A.F.
Nota: Esta edição transcreve integralmente o texto da edição de 1921, actualizado na pontuação e na ortografia (pelo penúltimo Acordo Ortográfico).
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— «O Amor fundiu em mim — Deus, Perversão, Desgraça… «O Bem e o Mal deram a figura que sou — um bronze de sentimento. Realizo o génio sensual da humanidade nevrosada e a vida suave de toda a Beleza humilde! Sou Shakespeare e Bandarra: — tenho no peito o cachoar trágico da muita miséria e altanaria heróica que o inglês referveu em dramas que são a perpetuidade da Dor-génio; e, ao mesmo tempo, a simpleza ingénua da amargura delida por uma quase inconsciência — aquele estranho sentir dos loucos que têm o sestro de viver alegres as suas e as tragédias de um povo, os belos crimes, como as grandes melancolias de uma raça!…» Da Elegia da Morte. Maria Peregrina.
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i. MARIA PEREGRINA Encontrei-a indolente, distraída, em viagem pelo Minho. Estou a vê-la! — Mulher de trinta anos, cabelos negros, olhar enevoado, sombrio, sobrancelhas luzentes, lábios finos, mostrando a espaço os dentes brancos, rosto moreno, talhado em linhas puras, modelo de bronze precioso de casa antiga, com ademanes de adolescente e artista. Acompanhava-a uma estrangeira mais nova, de cabelos e olhos castanhos, muito branca, boca pequena, de uma beleza vulgar, que abria em riso ingénuo, ar aventureiro de quem segue por um mundo de acaso, ao capricho de outra, da companheira que a envolvia, às vezes, num largo olhar complacente e tenebroso. Percebi entre as duas a mais esquisita intimidade, a que a segunda parecia dar-se passivamente, mas alegre, por comprazer numa generosidade estulta de péssima lassidão. Iam quase à vontade na carruagem, indiferentes à observação estranha, longe do mundo em que viviam, trocando olhares perversos, de uma sensualidade doentia, ali, à face de desconhecidos que só excepcionalmente podiam aceitar com benevolência a vida que denunciavam. Maria Peregrina pareceu-me uma esgotada, figura confusa, a contas com desequilíbrios íntimos que lhe reflectiam fadiga e exotismo. Eu sentara-me em frente da mais nova — a estrangeira de olhos cor de burel, muito apertada num costume de viagem,
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exageradamente cingido, de jeito a denunciar-lhe as formas regulares, irrepreensíveis. Quando entrei tinha ela sobre o lugar que eu devia ocupar uma caixa de couro negro, a que prendiam duas correias unidas por uma fivela. Era a caixa do binóculo de tartaruga com lavrados de oiro que Peregrina tinha na mão. À minha chegada, a estrangeira levantou a caixa. E, como não visse melhor lugar, lançou-a ao ombro esquerdo, com a correia. Maria Peregrina interveio: — Deixa ver, Violet! E, mexendo na correia: — Apertaste a fivela ao contrário, vou compô-la… A inglesa inclinou-se para ela. Olhou em volta, derramando uma luz suave, e quedou a olhar, agradecida, para a companheira. Depois desviou a atenção para as árvores que faziam a escolta da linha férrea, a seguir para as pessoas da carruagem que viu, indiferente como vira as árvores; disse a Peregrina palavras ingénuas de disfarce, acerca do caminho, das horas da jornada; e acabou por tamborilar, a medo, nos vidros da janela. Eu observava, interessado, aquelas figuras que me pareciam tão diferentes e que, no entretanto, se benqueriam mercê de uma qualquer razão de fatalidade. Maria Peregrina usava uma toilette roxo-indeciso, sem enfeites, muito casada às linhas do corpo, obra de qualquer costureiro de Paris ou Londres que quisera honrar a mulher excepcional que fora chamado a vestir, não lhe sacrificando o corpo magnífico, agora flexuoso de doença e cansaço.
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Adivinhava-se nela a mulher de gosto que não discute preço e superioriza a toilette, elegendo os objectos de uso. Traía-lhe levemente a gentileza um certo desmancho. Estendeu a mão anémica, de uma finura aristocrática, para as mãos vulgares de Violet, que indolentemente lhe palpava os diamantes de dois anéis antigos que lhe calçavam os dedos morenos. Usava um terceiro anel em que abria um escudo minúsculo de sinais heráldicos, que eu não podia ler pela distância e me parecia dispensável como inculca de raça, pois que Maria Peregrina a revelava por si. Tinha quedas bruscas, lassidões que reflectia num grande abandono. E foi num desses momentos que a vi sumida nas almofadas da carruagem, falando em surdina à companheira. Percebi que se tratava de uma pequena ordem, disfarçada em pedido. De facto, Violet levantou-se, abriu um saco de camurça creme, escolheu de entre outros um estojo pequeno de metal e ofereceu-o a Peregrina. Esta buscou um tubo comprido de lentículas, tomou duas e entregou o estojo a Violet, que voltou a colocá-lo no saco de camurça. Pude ver o rótulo colado ao vidro violeta. Indicava um excitante invulgar. — Não vais bem? — perguntou Violet ao sentar-se rente à companheira. E mirando-a com atenção: — Estás doente? Tão pálida! Na verdade, ela lembrava uma daquelas figuras em que o talento, a tristeza e a espiritualidade se fundem numa afirmação de decadência.
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Era um busto fim-de-raça, o de Peregrina, sombria, extenuada numa indolente indignidade, abandonando-se aos nervos, vencida e pedindo à Química o empréstimo de excitantes, sofismas ruinosos da mocidade em desbarato. E, no entanto, só pude vê-la com piedade. Era inferior julgar segundo a minha saúde moral o caso infeliz da mulher estranha, que parecia reflectir nos seus quebramentos o drama lento de uma vida exótica. E, como quer que percebesse que pela primeira vez olhava para os passageiros que formavam a ala fronteira à sua, numa expressão de inquérito e vago pedido de socorro, vendo o seu desassossego lembrei-me de que podia este ser da posição que tomara e ofereci-lhe o meu lugar. Provavelmente, disse, ela ia mal no sentido da máquina; que o meu lugar era melhor e lho dispensaria. Atentou-me com surpresa, e depois de alguma hesitação: — É verdade, suponho que me tem feito mal a posição que escolhi. Mas não desejo o sacrificio de v. Levantei-me. Por sua vez levantou-se; volveu a fitar-me, reconhecida, sorriu forçadamente, e sentou-se. Percebi que o pequeno esforço lhe aumentara a fadiga; transfigurou-se. Os largos olhos escuros, habitualmente serenos, indecisos, moveram-se numa agitação de labareda íntima, para logo quedarem, vagos. Depois de curta hesitação, encostou-se às almofadas e adormeceu. Dormiu um sono pequeno, de três quartos de hora.
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Naquele estado de abatimento, pareceu-me a única maneira de sossegar. De repente o comboio estremeceu, galgando numa velocidade imprevista. Peregrina, que acordou aos primeiros solavancos, dirigiu-se-me: — Fez-me bem mudar de lugar. Estou melhor e muito reconhecida à gentileza de v. Dormi não sei por quanto tempo, o tempo bastante a cobrar forças que, de súbito, me faltaram. E eu, solícito e curioso: — Mas V. Ex.ª sofre ainda? Talvez fatigada pela viagem… — É certo — respondeu, animada pela minha curiosidade — estou fatigadíssima. Venho de longe, de muito longe. Sabe v.? — Há um facto que se dá semelhantemente em todos os países. É a impotência, a impostura da medicina em face da doença. Todo o seu empenho é encobrir as deficiências do mister, iludir, mistificar os pobres doentes. «Enfim — sublinhou com um riso amargo — não podemos querer-lhe mal! «A despeito de todos os epigramas com que temos flagelado os médicos — à menor coisa os procuramos. Não ocorre chamar qualquer artífice… Na maioria dos casos valeria o mesmo. «Pergunta-me v. o que tenho? Sei lá o que tenho! Tenho o mal de viver — uma doença longe da medicina, que me lassa os nervos, cria desejos e sensações inconsumíveis, que me irrita e alheia das coisas consagradas e me afina a sensibilidade para coisas pequeníssimas — minhas futilezas preciosas. Sou indiferente às trovoadas, e irrita-me o zunir duma abelha. Tenho o maior desprezo pela moral de toda a gente; faço do avesso dessa moral uma verdadeira religião, um culto fervorosíssimo.
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«Envenenei-me outro dia com um ramo de flores de madressilva. Tive um prazer doloroso na aspiração desse aroma que sorvi, cheia de sensualidade, até cair sobre uma banqueta, tonteada, numa síncope que foi o espanto do médico que me tratou. «Quando cobrei ânimo e lhe expliquei o que se passara, supôs-me doida; sobretudo quando lhe falei em envenenamento. Afirmou que a flor da madressilva não era veneno catalogado. E, como o convidasse a explicar as minhas perturbações — a síncope, a garganta em fogo, a sede, os espasmos, o arrefecimento — todo o cortejo da intoxicação violenta, pareceu resolver-se pelo diagnóstico que aventei; fingiu tratar-me, e arrimou-se, em matéria de explicação, ao velho bordão — de que eu era uma histérica; que o meu caso, devia sinalar, era curioso; que cada histérica tinha, de facto, as suas particularidades, perturbações, exigências, um tratamento próprio. E com isso me calou… «Que lucrava em amesquinhá-lo? Se nunca amesquinhara conscientemente alguém, menos me ocorria maltratar quem afinal reflectia, segundo o rito da ciência, uma trapaça inteligente que podia ter satisfeito outros menos exigentes do que eu.» Maria Peregrina falava com entusiasmo, mas de repente abrandou-se para dizer, quase indolente: — Agora reparo, estou a incomodá-lo. Que pode interessar-lhe a história das minhas fraquezas? «Ainda na hipótese de que me ouça com vagar, os factos que ilustram o meu caso, se lhe interessassem, magoá-lo-iam. E não tenho o direito de pagar a gentileza de há pouco lamuriando-lhe a minha vida desagradável. Mas esta não pode, não deve mesmo interessá-lo.»
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Protestei, e fi-lo de forma que me pareceu conquistar-lhe a confiança. Enquanto conversávamos, Peregrina mal se distraía de Violet, para quem olhava a miúdo, e que a meu lado, diante dela, seguia a conversa com meia atenção. É quase tão difícil encontrar quem ouça bem como quem fale bem. Violet abria clareiras de indiferença na história da companheira, uma história exótica, singularmente complicada, em que li todo um índice de miséria. Pareceu-me que Violet, talvez pouco conhecedora de português, não podia ouvir bem. A maior parte dos esclarecimentos de Peregrina devia escapar à sua percepção; mas um não sei quê de afinidade dava o traço de união entre aquelas almas que eu supunha fundamentalmente diversas. O comboio parou. — Estamos na Trofa — informou um passageiro. Violet desceu da rede o saco de camurça creme, preparando-se para sair. — Já?! — perguntou Peregrina, esquecida dos trabalhos da viagem, ou na previsão de piores horas. E, buscando um bilhete, entregou-me o nome litografado e esclareceu: — Vou para Lares, a quatro léguas de Guimarães. Tenho lá sombras e silêncio. Venho fugida à estúrdia civilizada, às grandes iluminações com que a cidade estraga a Noite. São as pragas que mais temo — o barulho e a muita luz! «Enfim, se algum dia quiser descansar, visitar a toupeira de Lares…» — Também desço, vou para Guimarães. Muito obrigado.
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Saímos rapidamente, e foi já no tramway de Guimarães que paguei a amabilidade de Maria Peregrina dizendo o nome e explicando que passeava pelo Minho e ia àquela cidade tirar impressões novas das coisas velhas, visto andar muito ao avesso das glórias contemporâneas. Fez-se silêncio sobre a minha informação. Lemos a um tempo os nomes trocados. Verificámos que nos conhecíamos. Ela lera um livro meu, com que simpatizara, disse, mercê das suas rebeldias. Por minha parte, esclareci, tinha lido os seus volumes — Nova Safo e Emparedada. Este era um livro em que ela ampliara, segundo o seu caso, os desgostos de um poeta brasileiro — o Poeta Negro. Este lutara contra o preconceito de cor, sofrera todo o desprezo geralmente votado à sua casta e fizera deste desprezo um capítulo de Evocações, doloroso. Maria Peregrina Álvares de Lorena e Vila-Verde, que eu conhecia pelas revistas e por aqueles livros, urdira a Emparedada — a sua obra-prima, para editar dores íntimas. As paredes que mostrava ao público — a um pequeno público, eram os preconceitos de toda a ordem que lhe entravavam a acção. Sofrera más vontades, vexames e desabafara em páginas notáveis, mau grado serem decadentes, doentias. Para toda a parte para que voltava o espírito encontrava paredes escuras e espessas, tatuadas de obscenidades, alusivas a predilecções suas. A sociedade destinara-lhe uma cela estreita, quando a natureza lhe dera um talento largo e uma sensibilidade enorme, caldeados de um certo fatalismo sensual que lhe abarcava e impopularizava a obra.
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Assentava, plena de orgulho, que essa impopularidade era o contraste do seu génio aventuroso. Mas a sensibilidade abria conflito com a moral média; e daí as torturas. Não pretendia que a seguissem e admirassem nos seus delírios; aspirava a que a respeitassem em homenagem ao génio dos seus defeitos, que amava acima da sua obra. Ora, este conflito, os voos, as quedas bruscas, tudo o que no temperamento pode haver de grande, e tudo o que a carne pode dar de vil — tais eram os temas dos seus versos geniais, enfiados naquele dizer estranho. No fundo, o livro era a sua história — uma autobiografia. Aludi, com entusiasmo, aos Sonetos presos num lindo aro, a uma titulação leal e exacta: — Procurando alguém… Expliquei que a única superioridade que me arrogava sobre o grande número de confrades era a de acompanhar a própria Beleza que eu não sentia. Tinha uma concepção de Beleza que prendia ao meu temperamento — era a que naturalmente mais exteriorizava. Mas não me era difícil descer ao íntimo de uma alma exótica, para viver tempestades alheias. Conversámos até Guimarães. Seguiu os dados que incidentemente lhe forneci e inquiriu, amável, da minha orientação não esclarecida pelo livro que lera. Falámos do debate intelectual do momento. Vieram a propósito velhos cultos. Cada um de nós tinha concertado um Céu para os seus santos — um Céu de Arte limitado, que mal encheria duas páginas de Folhinha…
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Vi s c o n d e d e Vi l a - M o u r a
Falei da obra revolucionária de Dostoievski, d’Annunzio, da cruzada de Anatole, Maeterlinck, Nietzsche, Wilde e outros; confrontei a aspiração dos recém-cruzados da ideia-nova com o positivismo estreito dos últimos cinquenta anos. Que os novos, afirmei, se propunham esbandalhar os diques mal cimentados do bolorento realismo; que a grande obra do homem era, afinal, a alma do homem utilizada, praticada além-fronteiras do vulgar. Que Zola, por exemplo, apontara todas as grosserias, os aleijões do corpo, mas não compreendera os delicados aleijões da Alma, excessos do sentido; materializara o talento numa causa rude. A sua alma não dera a expressão de uma Arte superior e exacta segundo o espírito. Assim também Eça, entre nós, negativista e bolandeiro, bizarro e dispersivo: no fundo um homem de letras com técnica estrangeirada, cortada à feição dos seus fraques, segundo os modelos de Paris, terra incaracterística, cosmopolita, transportada a Portugal em amostras da sua prosa de contrastes, de uma rítmica forçada. Por isso o génio de Camilo, mais o de Fialho, haviam batido o seu talento relativo, que liquidou numa reduzida memória concebida com mácula do pecado original de Teixeira Lopes — o doloroso artista. Que a pele da geração passada — a que vestira o realismo — era uma pele espessa, escamosa e áspera como a do crocodilo. A missão nova era outra. O nosso empenho devia ser, parecia-me, arquivar todas as descobertas que vão além do comum, tomá-las como factos, fazer da dúvida uma força, caminhar sobre a ideia conquistada,
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formular novas teses, aceitar o bem e o mal, a vida criada e latente, tomar os próprios devaneios como factos, pois que a imaginação é também um facto e primordial, notável. Assim, à Beleza do sentimento sucedera na ordem crítica a escola do motivo averiguado. Para nós — sentimento, os dados positivos, segundo a escola anterior, toda a elementação criada ou latente vão dar a uma escola nova, religiosa, universal, compatível com todas as razões e servindo a concepção da Vida segundo os processos mais largos e alevantados. Primeiro a Literatura da Beleza medida a compasso, feita precisão; a esta seguiu-se uma Arte exclusivamente sentimental; nós assistimos ao exagero inverso que quase nos deu a negação do sentimento. O papel dos escritores de hoje, apostolava eu — quase ao findar da viagem — era apagar os preconceitos aproveitando tudo, e partindo da Literatura das ideias e dos factos para a Literatura das imagens, caminhando confiadamente sem exclusivismo e sem pressas. — Sim, é verdade — confirmou Peregrina — o que perdeu os passados foi pretenderem fazer girar a terra em volta deles. —Veja V. Ex.ª — continuei — os nossos liliputianos do Positivismo. «Teófilo Braga, por exemplo, deixa este mundo com a ideia de que esgotou a especulação mental; escreveu, supõe, a última palavra da grande síntese poética e filosófica da Nacionalidade; e a sua morte, parece-lhe, porá ponto na vida de Portugal, enchendo e fechando o Panteão…» — Guimarães! — gritou o empregado. Chegáramos. Maria Peregrina ao despedir-se insistiu: