Kyra Kyralina

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KYRA KYRALINA

Panait Istrati

KYRA KYRALINA

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes

TÍTULO ORIGINAL: KYRA KYRALINA

© SISTEMA SOLAR, CRL

RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2023

ISBN 978-989-568-041-2

1.ª EDIÇÃO, AGOSTO DE 2023

NA CAPA: EUGÈNE DELACROIX, FEMMES D’ALGER DANS LEUR APPARTEMENT (PORMENOR), 1833

REVISÃO: DIOGO FERREIRA

DEPÓSITO LEGAL: 520194/23

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: TÓRCULO

Panait Istrati descobriu em 1919 Romain Rolland e os dez volumes do seu Jean-Christophe; leu-os e releu-os; estudou-os durante quatro meses página a página com uma grande vontade de escritor e um dicionário na mão que supria as falhas do seu ainda mau francês, um idioma onde ele tropeçava envergonhado, ao pé da desenvoltura que desde criança adquirira em romeno e em turco; mas quando começou a escrever — a escrever em francês as histórias da sua vida — em nada se pareceu com Rolland; as suas raízes romenas dotavam-no de uma melancolia eslava que o encostava muito mais a Gorki e a outras vozes sopradas pelos génios magoados da Rússia.

Joseph Kessel num prefácio às suas Obras Completas refere-se à admiração que o Istrati-escritor lhe merece e resulta essencialmente da experiência pessoal revivida nas suas histórias, a que também seduz a maior parte dos seus leitores: «Amei Istrati pelos lugares que o viram crescer. O lar de Baldovines‚ti com os seus camponeses, pescadores, artesãos rústicos impregnados com as memórias do domínio otomano e os contos, as lendas, as canções do grande rio e das grandes revoltas. E ainda as mais sórdidas ruelas, as mais perigosas de Braila para onde alguém — sobretudo uma criança — era levada, empurrada no meio de uma multidão humana que braceava nas suas correntes a miséria e as cores orientais, os gritos do vendedor ambulante e o tumulto dos bazares, o apelo do largo e o estupro das escumalhas.»

A sua obsessão por Rolland fê-lo escrever uma carta ao homem que nessa época impressionava as letras francesas com o seu extenso romance beethoveniano e quatro anos antes tinha passado para a lista dos prémios Nobel da literatura. No entanto, esta carta foi-lhe devolvida porque uma

distracção — enorme — tinha deixado no sobrescrito referências precisas sobre o endereço do remetente, mas um total vazio quanto ao endereço do destinatário. Istrati estava nessa altura na Suíça, depois de muitos anos de vagabundagem por Orientes e Ocidentes, e vomitava em Lausanne os sangues de uma tuberculose no hospital da Cruz Vermelha americana.

Tinha ali um maravilhoso companheiro chamado Josué Jeshouda, um jovem intelectual judeu que lhe ensinava francês e dava a conhecer, com grandes comentários à mistura, o escritor Romain Rolland. Nessa época Rolland era uma superior referência como humanista, um guia espiritual idealista, um feroz opositor da guerra na sua essência, que voltava corajosamente contra ele o seu país envolvido nesses dias numa guerra contra a Alemanha.

A saída do sanatório suíço, a paz regressada à Europa deram maior intensidade ao sonho onde ele se via escritor; e como Rolland se tinha feito o seu génio tutelar, pediu-lhe conselho numa outra carta de muitas páginas onde desvendava o que tinha de mais íntimo, onde se entregava (num tom que viria a ser o do futuro Istrati contador de histórias) com os seus pensamentos, os seus instintos, as suas fraquezas. Desta vez a carta não foi devolvida por falta de endereço do destinatário, mas porque Rolland tinha mudado de residência. No entanto, Istrati guardou-a consigo como um talismã. Não podia desfazer-se daquele auto-retrato saído da sua verdade mais íntima, de um drama secreto com uma música de palavras onde se reconhecia como escritor.

O inveterado vagabundo resolveu nesta Europa de paz recente manter-se pela França; mas descer de um Paris que o desiludia até ao Midi e mais concretamente a Nice. Voltou — e tudo lhe parecia uma fatalidade — a ver-se apenas como executor de maus trabalhos, como um amante que percorria ligações de má qualidade, como um fotógrafo de rua, nos piores dias a dormir numa retrete fora de uso. E em 1921, como acorde final de um desespero, foi arrastado até à solidão das áleas menos frequentadas de um jardim público, para dar na garganta o corte que pretendia

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ser de um logrado suicídio. Mas não foi. Encontram-no a tempo, levaram-no para um hospital e tiraram-lhe do bolso uma extensa carta com título ( Últimas Palavras) que ele tinha escrito na véspera e repetia mais extensamente, e mais literariamente, o que tinha dois anos antes escrito e não chegara ao destinatário. Os jornais de Nice relataram este caso pintando-o com fortes tons de um desencontro com a vida e qualquer coisa que parecia um bonito romantismo onde brilhava a estrela Romain Rolland. A carta foi enviada por mãos alheias ao escritor, e o escritor espantou-se com aquela vida e o talento literário de quem se revelava assim, numa amarga história de si próprio. Respondeu-lhe e seguiram-se outras cartas, e por fim encontros, e por fim a decisão de prestigiar com o seu peso de laureado na literatura uma revelação que ele já apelidava, sem receio, de «Gorki dos Balcãs».

O mais significativo resultado de tudo isto deu-se em 1924 — o ano em que André Breton publicava Les Pas perdus, Raymond Radiguet surgia com o póstumo Le Bal du comte d’Orgel, Jean Cocteau com Le Grand écart e Jean Giraudoux com Juliette au pays des hommes — quando um desconhecido com estranho nome a soar muito a romeno, mas a mostrar que escrevia em francês, ofereceu ao público uma sedutora história de orientalismos que se chamava Kyra Kyralina. Dois anos antes, este Istrati já tinha quatro obras terminadas — Oncle Anghel, Kir Nicolas, Sotiz e Mikhail — mas o seu «mestre» preferiu-o na estreia literária com esta outra, mais recente e perturbante — que acrescentava ao nome de uma mulher o seu diminutivo — a que surgiu em 1923 na revista Europe e um ano depois em livro e prefaciada por Romain Rolland:

«Nos primeiros dias de Janeiro de 1921, foi-me entregue uma carta que vinha do Hospital de Nice. Tinha sido encontrada no corpo de um desesperado que acabava de dar um golpe na garganta. Havia poucas esperanças de que ele sobrevivesse ao ferimento. Li-a e fui invadido pelo tumulto do génio. Um vento que queimava na planície. Era a confissão de um novo

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Gorki dos países balcânicos. Conseguiram salvá-lo. Eu quis conhecê-lo. Encetámos uma correspondência. Ficámos amigos.

«Chama-se Istrati. Nasceu em Braila, em 1884, filho de um contrabandista que ele não conheceu e de uma camponesa romena, uma admirável mulher com uma vida de trabalho sem tréguas que lhe foi dedicada. Apesar do afecto que tinha por ela, aos doze anos deixou-a, dominado por um demónio da vagabundagem, ou antes, pela devoradora necessidade de conhecer e amar. Vinte anos de vida errante, de extraordinárias aventuras, de extenuantes trabalhos, de vadiagens e sofrimento, queimado pelo sol, encharcado pela chuva, sem pousada e perseguido pelos guardas nocturnos, esfomeado, doente, possuído por paixões e a morrer de miséria. Trabalha em todas as profissões: empregado de café, pasteleiro, serralheiro, caldeireiro, mecânico, servente de pedreiro, cabouqueiro, descarregador, criado, homem-sanduíche, pintor de tabuletas, pintor de paredes, jornalista, fotógrafo… Durante um tempo participa em movimentos revolucionários. Percorre o Egipto, a Síria, Jaffa, Beirute, Damasco e o Líbano, o Oriente, a Grécia, a Itália, muitas vezes sem dinheiro, uma vez a esconder-se num barco onde é durante o caminho descoberto, e de onde é na primeira escala atirado para a costa. Está destituído de tudo mas armazena uma porção de memórias e acontece-lhe com frequência enganar a fome a ler com voracidade, sobretudo os mestres russos e os escritores do Ocidente.

«É um contador de histórias nato, um contador de histórias do Oriente que encanta e se comove com as suas próprias narrativas; e de uma tal forma se prende a elas, que uma vez começada a história ninguém sabe, nem ele próprio sabe, se vai durar uma hora ou mil e uma noites. O Danúbio e os seus meandros… Este genial contador de histórias é tão irresistível, que na carta escrita na véspera do suicídio interrompe duas vezes os lamentos desesperados para narrar duas histórias humorísticas da sua vida passada.

«Decidi anotar uma parte destas narrativas; ele comprometeu-se a executar uma obra de grande extensão, com dois volumes já neste momento

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escritos. É uma evocação da sua vida; e a obra poderia ser, como a sua vida, dedicada à Amizade, porque ela é neste homem uma paixão sagrada. Ao longo de todo o seu caminho ele pára perante a memória das figuras que encontra; todas têm o enigma do seu destino, que ele tenta penetrar. E cada capítulo do romance forma como que uma novela. Nos volumes que eu conheço, três ou quatro destas novelas são dignas dos mestres russos. Diferem deles pelo temperamento e pela luz, pela decisão do espírito, por uma graça trágica, essa alegria do contador de histórias que liberta a alma oprimida.

«E devemos também lembrar-nos de que o homem que escreveu estas páginas tão vigilantes só aprendeu o francês há sete anos, a ler os nossos clássicos.»

A surpresa de Kyra Kyralina animou um editor a fazer o contrato que deu a conhecer poucos meses depois Oncle Anghel e Présentation des Haïdoucs. E em 1927 a Nouvelles Littéraires já se interessava por ele como entrevistado.

Mas o escritor começava a repartir-se pela literatura e por um entusiasmo revolucionário que via na Rússia soviética o modelo ideal para uma sociedade justa. E a Rússia retribuía-lhe a admiração traduzindo para russo este Gorki da Roménia, que as suas letras cirílicas suavizavam nalgumas palavras, nalguns momentos em que Istrati se exprimia com uma franqueza mais sensual; produzindo em 1927 um filme mudo, baseado em Kyra Kyralina, uma realização frouxa de Boris Glagolin que passava para cinema o segundo e o terceiro capítulos da obra. Istrati foi convidado por Gorki para assistir às festas do décimo aniversário da Revolução de Outubro; e encontrou lá, também seduzido pela aventura soviética, o escritor grego Nikos Kazantzaki. Uniu-os uma grande amizade cimentada pela política; olharam ambos para a Rússia de Estaline com filtros enevoados pela melopeia de uma propaganda hábil, aquela que a esquerda europeia desses dias dogmaticamente aceitava; foram ambos até

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à Grécia, pátria de Kazantzaki, com uma apostólica missão de rua que acabou numa expulsão argumentada em decreto como «perturbação social e agitação comunista».

O regresso à Rússia, e deambulações que desta vez se desviaram e desceram desde as zonas do Kremlin até aos verdadeiros problemas daquele povo, puseram-no aos poucos descrente da Pravda estaliniana ditatorialmente imposta; provocaram-lhe um violento sobressalto onde a realidade soviética sobressaiu com todos os seus defeitos e todas as suas mentiras, agora observados com uma animosidade que vinha soprada pela cruel decepção.

Em 1929, anti-soviético e de novo na França, sentiu que devia escrever um livro político, exterior à saga zograffiana, o que veio a chamar-se Em Direcção a Outra Chama. E se o desiludido Céline escreveu em condições idênticas Mea Culpa, e se o desiludido André Gide escreveu Regresso da URSS e Retoques ao meu Regresso da URSS, Istrati ultrapassou-os na incendiária indignação sobre «prisões em guetos», «asilos psiquiátricos», «gangrena totalitária», no «homem explorado pelo homem» na «burocracia, expressão maligna do poder estalinista».

Isto teve, como era de prever, desagradáveis consequências. O «Istrati-traidor» viu-se apontado e vilipendiado por uma esquerda francesa onde ainda não havia Sartre; recebeu uma carta de Romain Rolland, que era uma carta de «separação» (só voltariam a corresponder-se em Março de 1935); sentiu-se numa França hostil que lhe cuspia, que lhe voltava a cara, que o fez regressar à Roménia, o seu país natal, onde foi sentido como um grande escritor.

Mas este prestígio nas letras romenas não chegava para o seu sonho de viver com folga material, sustentado apenas pelos direitos devidos à sucessiva publicação da sua obra literária. Não tardou que sentisse a realidade de um Istrati mal pago (ou mesmo não pago); e que se visse obrigado a um trabalho menor, o que fazia dele um leitor de manuscritos de leitura fácil, destinados a uma editora de romances populares.

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Panait Istrati já não tinha mais histórias da sua vida para contar; a saga de Adrien Zograffi tinha chegado literariamente ao fim. E a sua saúde, com progressos sub-reptícios de uma velha e persistente tuberculose, internou-o com muito maus prognósticos num hospital de Bucareste. Morreu em 16 de Abril de 1935. Tem uma lápide no cemitério de Bellu, em Bucareste, aonde foi parar sem serviços religiosos. A sua fama política incomodava a ortodoxia romena. Tinha escrito Em Direcção a Outra Chama?Sim, mas era ainda assim «um comunista».

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A.F.

Adrien atravessou, atordoado, a pequena avenida Da Mãe de Deus, que em Braila vai desde a igreja deste nome até ao Jardim Público.À entrada parou, desorientado e confuso.

— De qualquer forma — exclamou em voz alta — já não sou nenhuma criança!… E acho-me com todo o direito de compreender a vida à minha maneira.

Eram seis da tarde. Dia de trabalho. Ao pé das duas portas principais, as alamedas do Jardim estavam quase desertas e o sol do crepúsculo dourava a areia, com os maciços de lilases a mergulharem na sombra nocturna. Esvoaçavam morcegos em todos os sentidos, como que desamparados. Nas áleas, os bancos postos em linha estavam quase todos livres, salvo em discretos recantos onde jovens casais se abraçavam e faziam, à passagem de importunos, uma cara séria. Adrien, para inspirar sofregamente o ar puro que a areia há pouco regada levantava, a mistura de suaves cheiros que lhe chegava das flores, não reparava em nenhum dos seres humanos por quem passava no seu caminho. Ia a pensar no que não podia entender.

Não entendia, por exemplo, a oposição que a mãe dele levantava à escolha das suas relações, oposição que acabava de explodir com uma violenta troca de palavras entre ela e ele, o seu filho único. Adrien pensava:

— Na sua opinião o Mikhail é um estrangeiro, um suspeito valdevinos, o criado do pasteleiro Kir Nicolas. Mas vejamos!… Eu o que sou?… Um caiador de paredes, ainda por cima antigo criado do mesmo pasteleiro!… Se eu fosse amanhã para outro país, seria forçoso tomarem-me lá por um valdevinos?…

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Irritado, bateu com o pé no chão.

— Raios me partam!… Que revoltante injustiça para o pobre do Mikhail. Gosto dele porque é mais inteligente do que eu, mais instruído, e capaz de aguentar a miséria sem lamúrias! Homessa! Se não lhe apetecer gritar aos quatro ventos quem é, a que país pertence e quantos dentes lhe faltam, não passa de um valdevinos?… Pois bem! Quero ser amigo desse valdevinos!… E isso até me deixa muito contente.

Adrien, distraído, continuou a fazer o seu passeio e ao mesmo tempo a crítica a tudo o que a sua mãe lhe tinha dito; parecia-lhe um total absurdo:

— E a tal história do casamento? Só tenho dezoito anos e já pensa em pôr-me às costas uma palerma qualquer, palerma e talvez parideira, que iria sufocar-me com ternuras e transformar o meu quarto num vazadouro!… Santo Deus!… Até parece que à face da terra não pode fazer-se nada ais inteligente do que desovar pequenos imbecis, encher o mundo de escravos e ficarmos nós próprios como o principal escravo de toda essa bicharada! Não e não!… Bem mais gosto de um amigo como o Mikhail, seja ele dez vezes suspeito. E quanto à censura que me fez, de eu «puxar pela língua das pessoas», palavra que nem sei por que me agradaria andar por aí a «puxar línguas». Talvez porque a luz vem da palavra dos fortes; a prova disso é Deus, que precisou de falar para se fazer Luz. Na calmaria dessa tarde primaveril, o apito de um barco rasgou o ar e o rapaz despertou, sentindo-se ao mesmo tempo atingido por uma cheirosa onda de cravos e rosas.

Meteu-se pelo grande caminho pedonal que contorna a beira do baixio plano e domina o porto e o Danúbio. Parado por um instante, contemplou os milhares de lâmpadas eléctricas que brilhavam nos barcos ancorados no porto, e o seu peito encheu-se com um irresistível desejo de viagem:

— Senhor! Como deve ser bom estar num desses navios que deslizam nos mares e descobrem outras paragens, outros mundos!…

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Aborrecido por não poder entregar-se a um tal desejo, baixou a cabeça e prosseguiu o seu passeio. Foi quando ouviu alguém atrás de si a chamá-lo:

— Adrien!…

Voltou-se. Acabara de ultrapassar um banco onde estava um homem sentado, a fumar e com as pernas cruzadas. Mas a escuridão e a sua miopia não lhe permitiram reconhecê-lo. O homem não se pôs de pé; foi Adrien quem se aproximou, um pouco contrariado, até soltar uma exclamação de prazer:

— Stavro!…

Depois de um aperto de mão, Adrien sentou-se ao seu lado.

O mercador de feiras Stavro — a quem chamavam geralmente «o Limonadas» por causa da droga que ele lá vendia — era primo em segundo grau da mãe de Adrien e uma figura outrora bem conhecida nos licenciosos meios dos subúrbios; hoje esquecida, enterrada pela passagem de trinta anos e pelo desprezo de um escândalo que o seu temperamento naquela época tinha feito.

Um pouco mais alto do que a média, de um louro insípido, sem cor, muito magro e enrugado; com grandes olhos azuis, ora francos e sinceros, ora velhacos e fugidios, conforme as circunstâncias, a espelharem toda a sua vida. Vida aos tombos, atormentada pela sua nómada e estranha natureza; vida apanhada desde os vinte e cinco pelo maquinismo triste da sociedade (casamento com uma rapariga rica, formosa e sentimental) que ele deixou um ano mais tarde coberto de vergonha e com o coração massacrado, o carácter pervertido. Adrien conhecia por alto a sua história. Sem chegar a pormenores, a mãe costumava contar-lha como exemplo de uma odiosa vida; ele, porém, extraia dela conclusões totalmente opostas; e por mais de uma vez, com o instinto que existia no fundo da sua alma tinha-se debruçado sobre Stavro como se ele fosse um instrumento de música com um timbre que desejava ouvir; mas ele, o instrumento, revelara-se fugidio.

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De resto, só se tinham visto três vezes, quando muito quatro, e sempre fora de casa. Como qualquer casa honesta, a da sua mãe fechava-se a Stavro. Além do mais, que conversa poderia ter um desconsiderado feirante com um muito vigiado garoto, cheio de mimo e carinho?

Todos consideravam Stavro um «fala-barato»; e era-o, na verdade, e queria sê-lo. Metido numa roupa gasta e pingona, mesmo que fosse nova, com um ar de aldeão citadino, a camisa por engomar e sem colarinho, um ar de alquilador larápio, desfazia-se em falatórios e gestos que divertiam as pessoas mas levavam-nas a humilhá-lo e a desconsiderá-lo.

Abordava conhecidos em plena rua, chamando-os por alcunhas bem merecidas e cómicas, mas nunca susceptíveis de ofender. Muitas pegaram. Se uma pessoa lhe agradava, levava-a até ao café; pedia meio litro de vinho, mas depois de um brinde ia ao pátio «fazer uma necessidade» e nunca mais aparecia. E se o encontro era «sarna», dizia-lhe com um ar muito despachado:

— Tens Fulano à tua espera no café que tu sabes. Vai lá depressa!… Mas o grande entusiasmo de Adrien ia para as cabeças de tzir 1 e para a caixa de tabaco de Stavro. A meio de uma conversa, ele tirava da algibeira uma dessas cabecinhas de peixe secas, com uma grande boca rasgada, aberta, e com mão leve pendurava-a na aba do casaco do interlocutor tagarela; e, para grande gáudio de quem passava, o sujeito saía dali a passear pela rua uma cabeça que lhe mordia a roupa. Com a caixa de tabaco ainda era melhor. No Oriente é habitual ver-se aquele que deseja enrolar um cigarro pedir a tabaqueira a quem estiver perto de si. Stavro não se coibia de fazê-lo ao que primeiro lhe aparecesse pela frente; mas depois de servido não devolvia, com o agradecimento da praxe, a tabaqueira ao dono: metia-a num bolso furado e fazia-a cair no chão. Apressava-se a apanhá-la e a limpá-la; pedia desculpa, e fazendo de conta que pretendia enfiá-la no bolso do seu pro-

1 Espécie de arenque fumado.*

* Todas as notas de fim de página são do autor, excepto as expressamente indicadas como do tradutor.

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prietário, largava-a fora do sítio. A pobre caixa de metal, com banho de níquel ou de cartão comprimido, ia parar outra vez ao chão:

— Ah! A minha falta de jeito!

— Não tem importância, senhor — era a habitual resposta do mistificado, enquanto examinava o objecto ferido e a assistência morria de riso.

Mas Stavro não voltava a pôr a vista em cima da tabaqueira que tivesse sofrido um dia os seus maus tratos.

Foi com estas piadas que Adrien começou a gostar dele, embora estranhas coisas o tivessem entretanto perturbado e confundido; às vezes, no meio de brincadeiras e disparates Stavro voltava-se muito sério para Adrien, a fixá-lo com um olhar claro, calmo e superior, como o que deitamos aos bondosos e ingénuos olhos de um bezerro. E nessas alturas Adrien sentia-se diminuído pelo feirante, seduzido pelo iletrado. Isto tinha-lhe parecido inexplicável, e levava-o a observá-lo. Mas estas ocasiões eram raras. Era muito raro, o misterioso e perturbante olhar a que Adrien secretamente chamava «do outro Stavro» e só a ele se dirigia.

Mas um dia — (dez meses antes do encontro no jardim) — ele tinha ido com «o Limonadas» ao merceeiro — um grego velho e taciturno que lhe fornecia açúcar e limões — e de repente viu aparecer «o outro Stavro». Adrien não despegou dele os seus olhos.

Os três sozinhos num canto da loja mal iluminado, Stavro com as rugas da cara apagadas, as feições mais amenas, os olhos muito abertos, fixos e luminosos, olhava para o rosto balofo e fechado do merceeiro enquanto ia dizendo com timidez mas firmeza, e a ser aprovado pelo outro com acenos de cabeça:

— Isto vai mal… Kir Margoulis… Não faz calor, e a limonada não se vende… Ando a comer as minhas economias e o seu açúcar… Portanto veja se percebe! Desta vez ainda não vou pagar, hem? Vai ser como nas outras: se eu morrer, perde os dez francos.

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Avarento mas conhecedor de homens, o comerciante concedia crédito com um aperto de mão tão seco como a sua própria vida.

Lá fora, com a mercadoria debaixo do braço, Stavro fez de imediato um trocadilho, deu uma palmada num homem qualquer, que mal conhecia, e saltou ao pé-coxinho:

— Levei-o na curva, Adrien, levei-o na curva! — segredou-lhe ao ouvido.

— Qual quê, Stavro! — protestava Adrien. — Não o levaste na curva, vais pagar-lhe!…

— Pois vou, Adrien, se não morrer vou pagar-lhe… Mas se morrer, pagará o diabo por mim!…

— Se morreres… isso é outra questão… Dizeres que o levaste na curva seria dizer que és desonesto…

— Talvez o seja…

— Não, Stavro, estás a querer enganar-me; não és desonesto!

Stavro parou de repente, empurrou o companheiro contra uma paliçada, e recuperando durante um instante a sua imagem de temor e domínio, atirou à cara de Adrien:

— Sou desonesto, sim senhor!… Sou, Adrien, infelizmente sou muito desonesto!

Ao dizê-lo fez menção de se afastar; mas o outro, tomado por uma espécie de pânico agarrou-o pelo forro do casaco, parou-o, e com voz abafada gritou:

— Vem cá, Stavro! Agora vais dizer-me a verdade!… Vejo em ti dois homens; qual é o verdadeiro? O bom? Ou o patife?

Stavro lutava consigo próprio:

— Sei lá!

E saindo-lhe brutalmente das mãos:

— Deixa-me em paz! — gritou zangado. E um pouco mais adiante, por julgar que tinha ofendido o rapaz acrescentou: — Vou dizer-to quando já tiveres largado os cueiros.

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Nunca mais se tinham encontrado. Stavro batia as feiras entre Março e Outubro; no Inverno vendia castanhas assadas, sabe Deus onde. Só vinha a Braila abastecer-se.

Naquele dia, Adrien gostou tanto de encontrá-lo no banco do jardim como os ribeiros devem gostar de juntar-se aos rios, e os rios de se espalharem no seio dos mares.

Contrariamente ao seu hábito, Stavro dessa vez falou pouco; o que ainda agradou mais a Adrien. À luz amarelada do anoitecer examinou-lhe o rosto sem notar nenhuma diferença. Ninguém saberia avaliar-lhe a idade com aceitável rigor. Reparou, porém, que o louro pálido das fontesestava a ficar de um branco de fumo.

— Por que me olhas assim? — perguntou Stavro irritado. — Não estou à venda.

— Bem sei, mas queria ver se ainda és novo ou estás velho.

— Estou novo e velho como os pardais…

— Tens razão, Stavro, és um pardal! — E depois de uma curta pausa: — Não queres a minha tabaqueira para te entreteres a atirá-la ao chão? Isso talvez te lembre que sempre senti curiosidade em saber de onde vens, para onde vais e como correm os teus negócios.

— De onde venho e para onde vou, pouco importa; mas quero dizer-te que os negócios não me correm muito mal. O que não impede, franganote, de eu me sentir agora bastante aborrecido!

Deu uma palmada no joelho de Adrien.

— É raro isso acontecer-te — replicou o rapaz. — E por que andas tu aborrecido, meu velho? Há falta de limões?

— De limões, não; mas os «vadios honestos» de antigamente fizeram-se raros.

— Vadios honestos! — exclamou Adrien. — É um paradoxo: os vadios não podem ser honestos!

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— Achas que sim? Pois olha! Eu conheço vários. Stavro dobrou-se pelas coxas e assim ficou, de olhos postos no chão. Adrien sentiu que ele falava a sério, e quis saber mais. Mas foi, apesar disso, prudente:

— Podes dizer-me por que diabo precisas de um vadio?

— Para me acompanhar até à feira de S… na próxima quinta-feira. Não por minha causa, a bem dizer, mas é como se fosse… Sabes que eu tenho nas feiras o hábito de ficar ao pé de um vendedor de crepes. Aquela gentinha come-os, sente-se cheia de sede, e ali estou eu com a limonada; ora, de vez em quando uma pitada de sal na massa dos crepes… (Como vês, sou desonesto!…) Pois bem, um homem dos crepes já eu arranjei, é o Kir Nicolas…

— O Kir Nicolas! — disse Adrien sobressaltado.

— … O vosso vizinho, o teu antigo patrão. Mas vê lá tu que o empecilho é ele não poder largar o forno para ir à feira. Por isso preciso de arranjar um «vadio honesto» que acompanhe o Mikhail, o criado dele, para apanhar as moedas enquanto o outro frita os crepes no azeite.

Procuro desde há dois dias esse «vadio honesto». — Com voz grave e triste concluiu: — Braila está cada vez mais pobre em homens !

Adrien sentiu-se atravessado por um choque eléctrico. Pôs-se de pé à frente do «Limonadas» e disse:

— Stavro! Achas-me digno de ser o vadio honesto que procuras?

O feirante levantou a cabeça:

— Falas a sério?…

— Palavra de vadio honesto! Vou convosco!

Stavro deu um salto simiesco e gritou:

— Dá cá esses ossos, ó filho de uma romena apaixonada e de um aventureiro da Cefalónia!… És um digno descendente dos teus antepassados…

— O que sabes tu dos meus antepassados?

— Oh! Que foram, com certeza, grandes vadios!

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LIVROS SISTEMA SOLAR

Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo

O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain

No sentido da noite, Jean Genet

Com os loucos, Albert Londres

Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James

O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier

A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco

Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet

David Golder, Irene Nemirowsky

As lágrimas de Eros, Georges Bataille

As lojas de canela, Bruno Schulz

O mentiroso, Henry James

As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire

Amor de perdição, Camilo Castelo Branco

Judeus errantes, Joseph Roth

A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence

Porgy e Bess, DuBose Heyward

O aperto do parafuso, Henry James

Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach

Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville

Histórias da areia, Isabelle Eberhardt

O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna

Autobiografia, Thomas Bernhard

Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe

Greco ou

O segredo de Toledo, Maurice Barrès

Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton

Dicionário filosófico, Voltaire

A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides

O raposo, D.H. Lawrence

Bom Crioulo, Adolfo Caminha

O meu corpo e eu, René Crevel

Manon Lescaut, Padre Prévost

O duelo, Joseph Conrad

A felicidade dos tristes, Luc Dietrich

Inferno, August Strindberg

Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West

Freya das sete ilhas, Joseph Conrad

O nascimento da arte, Georges Bataille

Os ombros da marquesa, Émile Zola

O livro branco, Jean Cocteau

Verdes moradas, W.H. Hudson

A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné

Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès

Messalina, Alfred Jarry

O Capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón

Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva

Visão invisível, Jean Cocteau

A liberdade ou o amor, Robert Desnos

A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence

O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle

Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg

Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad

O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono

O dicionário do diabo, Ambrose Bierce

A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco

O caso Kurílov, Irène Némirowsky

A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson

Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura

Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand

Rimbaud-Verlaine, o estranho casal

O rato da América, Jacques Lanzmann

As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel

Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones

Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James

O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo

sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan

Derborence, Charles Ferdinand Ramuz O farol de amor, Rachilde

Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière

A minha vida, Isadora Duncan

Rakhil, Isabelle Eberhardt

Fuga sem fim, Joseph Roth

O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans

Tufão, Joseph Conrad

Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud

Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud

Eu, Antonin Artaud

A morte difícil, René Crevel

A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth

O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne

Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn

As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski

Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán

Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry

Balkis (A Lenda num Café), Gérard de Nerval

Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos

O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud

Riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev

A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné

Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde

O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes

Entre a espada e a parede, Tristan Bernard

A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen

Os meus Oscar Wilde, André Gide

As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw

Meu irmão feminino — «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva

Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz

O filho de duas mães, Edith Wharton

A armadilha, Emmanuel Bove

Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès

Erotika Biblion, Conde de Mirabeau

A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet

Paludes, André Gide

O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins

Sol, D.H. Lawrence

Cagliostro, Vicente Huidobro

As magias do Ceilão, Francis de Croisset

Má sorte que ela fosse puta, John Ford

Chita — uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn

A mulher 100 cabeças, Max Ernst

A dificuldade de ser, Jean Cocteau

O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen

A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat

Casa de incesto, Anaïs Nin

Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel

Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont

Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac

Babilónia, René Crevel

O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier

Carmilla, Sheridan Le Fanu

Mulheres na vida, Guy de Maupassant

O plantador de Malata, Joseph Conrad

A mandrágora, Jean Lorrain

A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre

Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud

O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard

Salomé, Salomés…, Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Guillaume Apollinaire e ainda Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa

Battling Malone, Pugilista, Louis Hémon

Kyra Kyralina, Panait Istrati

Codine, Panait Istrati

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