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PAUL CÉZANNE — O QUE ELE ME DISSE…
PAUL CÉZANNE por Élie Faure seguido de O QUE ELE ME DISSE… por Joachim Gasquet tradução de
Aníbal Fernandes
Quero morrer a pintar…
www.sistemasolar.pt
PAUL CÉZANNE por Élie Faure seguido de
O QUE ELE ME DISSE… por Joachim
Gasquet
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Cézanne.
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PAUL CÉZANNE por
Élie Faure seguido de
O QUE ELE ME DISSE… por
Joachim Gasquet tradução de
Aníbal Fernandes
2.ª edição
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TÍTULOS ORIGINAIS: PAUL CÉZANNE e CE QU’IL M’A DIT…
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: PAUL CÉZANNE, AUTO-RETRATO, 1883-1885 REVISÃO DE ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO 2012 2.ª EDIÇÃO (REPAGINADA), MAIO 2016 ISBN 978-989-8566-16-4
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ÍNDICE
PAUL CÉZANNE Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paul Cézanne, Élie Faure . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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O QUE ELE ME DISSE… Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O que ele me disse…, Joachim Gasquet . . . . . . . . .
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Origem das citações directas de outros textos . . . . . . 133 O B R A S . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
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Élie Faure PAUL CÉZANNE
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Élie Faure.
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Élie Faure (1873-1937) um médico, mas sobretudo escritor que em jornais, revistas e livros pensava a arte, toda a arte, como «o grande mistério da transposição lírica», e os homens como «construtores» obscuros com um esforço colectivo ignorado, responsável pelo aparecimento dos espíritos superiores no mundo. Para má sorte sua, a ferir o conforto intelectual instalado quando formulava relações nunca antes pressentidas entre ideias, factos e actividades do espírito onde a cultura dos outros não via, não queria, nenhuma possibilidade de associação. E, como se isto lhe não bastasse, ao serviço da sua impertinente lucidez tinha um impulso lírico, aquele a que os seus contraditores apontavam o dedo acusando-o de pouco ajustado ao propósito central dos textos. Mas se nada disto pareceu grave em 1917, quando La Sainte-Face foi um dos mais belos livros sobre a Primeira Guerra Mundial, ou em 1918 quando o seu único romance, La Roue, se propôs sem desmérito entre ficções notáveis desse mesmo ano, ou em 1907 quando se fez autor de Formes et Forces, e em 1921 autor de La Danse sur le Feu et l’Eau, e em 1926 autor de Montaigne et ses Trois Premiers Nés, pareceu-o sempre que era publicado mais um painel de Histoire de l’Art, a sua obra máxima construída com paciência, desde 1907 a 1927, inspiradora de odiosos ataques na imprensa e escolhida para o que hoje, já com esta distância, se avalia como um programado linchamento literário. Esta História, que não deixa nenhum dos seus argumentos por documentar, é expressão lírica do poema plástico que a humanidade concebeu para restituir «a germinação das formas geradas pelo jogo de forças do passado sobre as forças do presente», e vê o homem com um ídolo inteApresentação
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rior que ele toma por definitivo mas ao qual não consegue atribuir feições imutáveis, e instabilizado por um cepticismo perante os valores firmados que o levam a adaptar-se ao mundo móvel e a construir os acidentais estados de equilíbrio a que chamamos «civilizações». Era acusado de ceder a uma escrita que distraía o leitor, a belezas formais como um veneno apaziguador de incómodas incertezas mas demolidor dos alicerces culturais da cultura europeia. Faure teve no final da sua vida esta frase de cansaço: «Arrasto a minha História como uma esfera de chumbo no calcanhar.» Depois da sua morte, um silêncio de décadas deu em 1964 lugar a qualquer coisa como uma ressurreição: as suas Obras Completas editadas por Jean-Jacques Pauvert (houve quem sentisse a surpresa de mais um «belo desconhecido» na literatura francesa); e no ano seguinte a oportunidade de se espalhar em formato de bolso; e em 1966 um momento de grande homenagem, visto em todo o mundo com o filme Pierrot le Fou. Numa altura em que Jean-Luc Godard se esforçava por demonstrar a compatibilidade entre o cinema e a citação literária, pôs Jean-Paul Belmondo numa banheira, com um cigarro entalado nos lábios, e abriu o seu filme com a leitura de quatro trechos de Faure que surgiam interligados e falavam de Velázquez, escolhidos no volume da sua História consagrado à Arte Moderna. Depois da leitura, Pierrot pedia uma aprovação à sua pequena filha: «Não é bonito?» Era Godard num acto de admiração, a reconhecer, a amar um escritor e a fazê-lo pela qualidade que tinha sido, junto dos seus contemporâneos, o seu imperdoável defeito; com o filme mais adiantado voltava subtilmente a admirá-lo mostrando Pierrot a ler essa mesma História da Arte numa sala de cinema, seduzido por ela e indiferente ao filme projectado na tela. O texto Paul Cézanne é de 1914 e está entre os que dedicou a notáveis «construtores do mundo», ou seja, a autores de «um trabalho de organização esboçado numa sociedade destruída». São a esta luz significativas as considerações que a sua História propõe sobre o pintor: «Mesmo quando tenta compor, como nessas extraordinárias reuniões de personagens nuas 12
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onde fez o esforço, visivelmente obcecado pela memória de Poussin, de construir com inabilidade uma longa melodia sensual no meio do grande coro das árvores, do vasto céu, das águas correntes, mostra-se mesmo então livre de toda a espécie de intenção psicológica ou literária. E o seu clacissismo, essa necessidade de ordem e medida que desde a infância o perseguia, mesmo então se engana sobre o seu verdadeiro sentido. Ele provinciano, ele católico, está de acordo com o ritmo secreto do seu século, é impelido em direcção ao organismo desconhecido, que hesita, por forças profundas das quais não tem mais consciência do que os pedreiros das últimas igrejas romanas perante uma nave que ia de repente saltar, aligeirar-se, alongar-se, planar como uma asa com a geração que ascendia.» A.F.
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Os que vivem em Aix dos seus rendimentos, e depois da refeição do meio-dia saem muito apressados de grandes pátios frescos para se dirigir ao dominó quotidiano percorrendo a estreita faixa de sombra que a beira dos telhados conquista ao sol num lado da rua estreita, os cocheiros do caminho Mirabeau que se voltam no assento e, no meio de poeira e barulho de rodas, falam em patoá uns com os outros, os mendigos que escolhem a hora da missa para se aquecer, encostados à parede de Saint-Sauveur, lembram-se de muitas vezes ter visto, nos últimos anos do século anterior e nos primeiros deste século, um velho homem singular. Quase todos lhe conheciam o nome, muito poucos a voz. De manhã, só de vez em quando era visto à hora em que voltava a casa para almoçar porque tinha saído da cidade com a alvorada, rumo ao seu trabalho. À tarde retomava o caminho dos arredores, quase sempre a pé, por vezes num fiacre. À noite deitava-se antes de a mesa ser levantada; nunca jantava fora, nunca recebia visitas. Desde há muito os habitantes de Aix se tinham posto de acordo a seu respeito: o senhor Cézanne era louco. Bastante grande, um pouco curvado, com uma barbicha que às vezes lhe invadia as faces, com bigode branco, testa alta, crânio calvo, parecia um velho soldado que tivesse sofrido maus tratos na vida de quartel. Um nariz roxo, pálpebras caídas, vermelhas e lacrimejantes, o lábio inferior saliente, faziam-lhe o rosto menos marcial. Vestia como um burguês: fato preto, calças um pouco enrodilhadas, chapéu de feltro no Inverno, chapéu de palha no Verão. Muitas vezes com uma bolsa de caça a tiracolo. De vez em quando uma romeira pelos Paul Cézanne
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ombros. A sua roupa não devia, porém, ser vista de muito perto. Quando consentia que se aproximassem dele fazia-se evidente que não trazia gravata, ou que o colarinho da camisa estava preso por um fio, ou que manchas de tinta lhe marcavam o fato. Evitava o olhar dos que se cruzavam com ele. Mas, quando não conseguia evitá-lo, lia-se no seu uma selvajaria amedrontada, por vezes uma cintilação de fúria que se apagava sob a pálpebra enquanto o andar assumia um ritmo de fuga. Tinha ar de perseguido, de quem procurava as ruas menos frequentadas, e guinava bruscamente para fugir aos que lhe apareciam. Os garotos da rua conheciam-no bem. Iam atrás dele, atiravam-lhe pedras. Cézanne afastava-se tão depressa quanto lho permitiam as velhas pernas. Mas o seu itinerário, que era quase sempre o mesmo, desde a casa da cidade até à casa de campo, desde a casa de campo até ao estúdio, desde o estúdio até à casa da cidade, defendia-o. Só ao domingo se desviava do caminho habitual para ir sentar-se, durante a missa ou durante as vésperas, no banco dos assíduos da catedral loura com uma nave que se enche de folhas de loureiro, laranjeira e carvalho sempre que são abertas as portadas da Sarça Ardente, ali penduradas há cinco séculos por Nicolas Froment de Avinhão, o pintor do rei Renato. Nesse dia da semana havia à porta da igreja duas alas de pobres criaturas que lhe conheciam os bolsos sempre cheios com moedas de maior e menor valor. Muito raramente o encontravam nas ruas de Aix, poeirentas durante o Verão, no Inverno endurecidas pelo mistral e sempre brancas, na companhia de um rapaz desconhecido e diferente, ali, de qualquer outra pessoa. Como era vagamente sabido que o velho proprietário se distraía a pintar, supunha-se que o rapaz fosse um pintor chegado de Marselha para lhe fazer uma visita. Nessas ocasiões ele mudava de aspecto. Falava muito, com gestos largos, parava durante a caminhada, explodia a praguejar com ferocidade. Para os habitantes de Aix não havia, por certo, nenhum excesso assinalável nas entoações 16
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meridionais da sua voz; mas o seu companheiro, em geral chegado de muito mais longe que Marselha, recolhia com simpático interesse aquela música inocente, as sonoridades que sublinham o vigor dos epítetos. Viam-no por vezes a separar-se com brusquidão do jovem, e a desaparecer enquanto resmungava furiosas palavras… Havia nele silêncios que duravam um ano, bruscas expansões de uma hora, saltos de humor e de comportamento que ninguém compreendia… Era um velho selvagem, cândido, irascível e bom.
Paul Cézanne
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Se exceptuarmos uma longa permanência em Paris em que tomou contacto com o seu século, só saiu de Aix-en-Provence para fazer um regresso quase imediato. Noutros lugares a sua apatia encontrava demasiados obstáculos inúteis, e a sua timidez demasiadas ocasiões para sentir a garganta estrangulada e indispor contra si aqueles a quem nunca abandonou uma parcela da sua inteligência nem da sua faculdade de amar. Tinha nascido em 1839. No colégio tinha feito boas humanidades. Não porque fosse muito ardoroso no trabalho. Mas nessa época os professores apelavam bem mais à sensibilidade dos alunos do que à sua razão. Desleixavam até certo ponto os estudos científicos. Como dedicavam os seus cuidados às línguas mortas, nem o grego nem o latim estavam completamente mortos naquele recanto de terra antiga onde a rocha sobe até à flor do solo, onde as linhas das encostas se destacam no céu, onde as cidades estão cheias de ruínas de templos, de aquedutos, de teatros, onde os elementos mediterrânicos da raça poucas misturas sofreram, onde o idioma popular ainda participa intimamente do génio e da estrutura da velha linguagem materna; era um caso idêntico ao daqueles alojamentos de pobres que até ao princípio do século XIX tinham invadido as bancadas, os corredores, os vomitórios das arenas de Nîmes e Arles, mas não lhes tinham alterado a curvatura, a massa e a base. Desde o tempo dos seus estudos, Cézanne manteve uma amizade particular com os velhos artistas latinos que lhe revelaram a poesia de um mundo com horizontes e perfis seus conhecidos. Costumava lê-los no original. Durante os passeios que dava através dos campos de Aix com as suas raras visitas e os 18
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Joachim Gasquet O QUE ELE ME DISSE…
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Joachim Gasquet.
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Joachim Gasquet (1873-1921) deixou na literatura francesa uma imagem quase esquecida de poeta lírico, tendo chegado a dizer-se que a mais forte desde Victor Hugo, e que esse lirismo optimista triunfava sem pejo sobre a dor, a angústia e a morte; e ainda que os seus versos se prejudicavam por um esforço de singularidade verbal, às vezes perturbador do que parecia sua vontade de ordem e harmonia. Só era um dia mais velho do que Élie Faure, mas os seus pulmões — roídos pelo gás clorídrico dos ataques químicos da primeira Guerra Mundial — reduziram-lhe a vida a quarenta e oito anos, os últimos passados numa luta sem êxito pela sobrevivência. Publicou livros de versos, na maior parte com títulos soprados pelos campos da Provença: L’Arbre et les Vents (1901), Printemps (1909), Chants de la Fôret (1920), Bûcher Secret (1921); mas também publicou um drama, Dyonisos, e textos só postumamente conhecidos, como Une Enfance Provençale (1926) ou Jeanne d’Arc (1929). Embora Cézanne fosse amigo de infância do seu pai, Joachim só o conheceu em Abril de 1896 (o ano do retrato onde hoje o vemos, exposto na Galeria de Arte Moderna de Praga e com um aspecto difícil de associar aos vinte e três anos de idade que nessa altura ele tinha). Entre os dois houve um convívio intenso, os quatro anos de encontros e cartas que veremos reflectidos em O Que Ele Me Disse…, aos quais outros se sucederam de relativo afastamento até ao desacordo político que em 1904 definitivamente os separou. O Que Ele Me Disse…, parte independente do seu livro Paul Cézanne escrito em 1912 e 1913 mas só publicado no ano da sua morte, Paul Cézanne
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nunca foi lido por Cézanne, falecido em 1906. Parece ser este, aliás, o destino das memórias que em discurso directo transmitem a mais viva imagem de personalidades que o mundo gostaria de profundamente conhecer. Sabemos de Sócrates o que Platão nos disse a seu respeito numa imagem que é a eleita pelo seu espírito para no-lo revelar; do pensamento, das preocupações e do carácter do Goethe dos últimos anos sabemos o que resulta de Johann Peter Eckermann e do que ele afirma ter-lhe sido dito nas muitas horas de convívio com o escritor, que mais ninguém pôde confirmar. Este Cézanne de Gasquet sai de um procedimento mais elaborado: três longos diálogos são uma combinação de afirmações escritas pelo próprio pintor, de outras colhidas em testemunhos de contemporâneos seus (com origens desvendadas em notas finais, a partir de um trabalho de investigação de P.-M. Doran), e ainda do que Gasquet lhe ouviu ao ar livre de Aix quando o pintor instalava na paisagem provençal o cavalete, e no seu estúdio (pág. 157) ou mesmo em Paris, nas vezes que visitaram juntos o Museu do Louvre. Em 1921, quando este Paul Cézanne foi publicado pela primeira vez, houve quem reconhecesse a autenticidade do discurso e o vocabulário característico de Cézanne, em tantos momentos imprevisível quando se tratava de exprimir as suas ideias sobre pintura, mas igualmente quem sentisse atrás desta inquestionável verdade o estilo literário do próprio Gasquet, com extensos impulsos líricos, preocupado com a verdade coloquial da sua linguagem. Talvez. Mas como em Platão, como em Eckermann, fica-nos de uma intimidade o seu mais vivo relato e atrás dele uma surpreendente imagem humana, aqui do pintor que descobria insuspeitados segredos cromáticos nos rostos, nas maçãs, em tudo, mas ainda mais na sua paisagem amada, a que ele via e decifrava junto ao chão e era observada de muito alto pela montanha de Sainte-Victoire. A.F.
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Sobre a vida de Cézanne eu disse quase tudo o que fiquei a saber, quer convivendo com ele, quer da boca dos que lhe andaram perto. É uma vida de santo. Misturei-lhe o menos possível das suas teorias sobre arte, só contando das conversas o que podia dar relevo a um ponto oculto do seu carácter, esclarecer um dos lados da sua alma misteriosa. São matérias infinitamente delicadas. Por mais objectivos que queiramos ser, um pouco de nós lá penetra sempre, sem termos disso consciência. Além do mais não sou pintor e, por mais respeito que sinta, talvez tenha medo de trair, sem querer, a doutrina profunda, o ensinamento possível de libertar em todos estes discursos. Foi no entanto com devoção que a minha memória fiel os recolheu. Tentarei transcrevê-los com fidelidade, ajudado pelas suas cartas, tanto as que me endereçou como aquelas a que pude chegar ou foram publicadas por quem as recebeu, como é o caso da preciosa correspondência que Émile Bernard nos dá a conhecer no final dos seus Souvenirs. Sempre que puder transcreverei as palavras exactas de Cézanne. Não vou inventar nada — para além da ordem com que as apresento. Para melhor transmitir o seu alcance, depois de longas meditações decidi agrupá-las em três grandes diálogos. À volta de três conversas imaginárias, extraídas de uma centena que tive realmente com ele nos campos, no Louvre e no seu estúdio, juntei tudo o que pude recolher e o que pude recordar das suas ideias sobre a pintura; ele falava, e creio que pensava, assim:
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O Tema «A natureza é mais em profundidade do que à superfície.»
Nesse dia, na zona da Blaque que não fica longe das Mille, a três quartos de hora de Aix e do Jas de Bouffan, debaixo de um grande pinheiro à beira de uma colina verde e vermelha, dominávamos o vale do Arc. Estava um tempo azul e fresco de primeira manhã de Outono no fim do Verão. Escondida com a dobra de uma vertente, a cidade adivinhava-se pelos seus fumos. Voltávamos as costas aos lagos. À direita os horizontes de Luyne e o Pilon du Roi, o mar que se pressente. No chão virgiliano, à nossa frente a Sainte-Victoire imensa, amena e azulada, os valados do Montaiguet, o viaduto de Pont d’Arc, as casas, o estremecimento das árvores, os campos quadrados, o campo de Aix. Cézanne pintava essa paisagem. Estava na casa do seu cunhado. Instalara o cavalete à sombra de um pequeno bosque de pinheiros. Desde há dois meses trabalhava ali, de manhã numa tela, à tarde noutra. A obra «corria bem». Sentia-se satisfeito. A sessão estava quase a terminar. A tela saturava-se lentamente de equilíbrio. A imagem pré-concebida, meditada, linear na sua razão e que ele devia, como era seu hábito, ter esboçado a traço rápido de carvão, já se soltava das manchas coloridas que a cercavam por todos os lados. A paisagem surgia como um brilho ofuscante porque Cézanne circunscrevera com lentidão cada objecto, aferia por assim dizer cada tonalidade; dia após dia, com uma harmonia segura aproximara insensivelmente todos estes valores, ligava-os uns aos outros com uma claridade surda. Os volumes afirmavam-se e a tela alta tendia agora para esse máximo de equilíbrio e saturação que de todas é, segundo Élie Faure, uma característica. O velho mestre sorria-me. 60
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Cézanne — O sol brilha e a esperança ri no coração 1 *. Eu — Esta manhã está satisfeito? Cézanne — Domino o meu tema… (Junta as mãos.) Um tema, veja lá bem, é isto… Eu — Como? Cézanne — Ah! Sim… (Refaz o gesto, afasta as mãos com os dez dedos abertos, reaproxima-as lentamente, lentamente, e depois junta-as, aperta-as, crispa-as, fá-las penetrar uma na outra.) Ora aqui está aquilo por que temos de esperar… Passando alto de mais ou baixo de mais, ardeu tudo. É preciso que não haja nenhuma malha lassa de mais, nenhum buraco por onde a emoção, a luz, a verdade, se escapem. Veja se compreende: eu executo toda a minha tela ao mesmo tempo, em conjunto. Com o mesmo impulso, a mesma fé, aproximo tudo o que se espalha… Tudo o que vemos se dispersa, vai-se, não é verdade? A natureza é sempre a mesma, mas nada do que nos aparece se mantém. A nossa arte deve dar o arrepio da sua duração perante os elementos, a aparência de todas estas alterações. Deve fazer-nos saborear o eterno. O que existirá debaixo dela? Talvez nada. Talvez tudo. Tudo, compreende? Por isso junto estas mãos errantes… À direita, à esquerda, aqui, acolá, em todo o lado capto os seus tons, as suas cores, os seus matizes, e fixo-os, aproximo-os… Fazem linhas. Tornam-se objectos, rochedos, árvores, sem eu imaginar que formam um volume. Têm um valor. Se na minha tela, na minha sensibilidade, estes volumes, estes valores corresponderem aos planos, às manchas que eu lá tenho, que estão debaixo dos nossos olhos, a minha tela junta as mãos. Não vacila. Não passa alto de mais nem baixo de mais. É verdadeira, é densa, está cheia… Mas se eu tiver a menor distracção, o menor desfalecimento, sobretudo se houver um dia em * As chamadas numeradas correspondem a citações contidas em cartas de Cézanne ou noutros documentos, identificados no fim do volume, na pág. 133. (N. do T.)
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que eu interprete de mais, se hoje me arrastar por uma teoria que contraria a de ontem, se pensar enquanto pinto, se intervier, zás!, está tudo perdido. Eu — Se intervier… como? Cézanne — O artista só é um receptáculo de sensações, um cérebro, um aparelho registador… Um bom aparelho, essa é que é essa, frágil, complicado, sobretudo em relação aos outros… Mas se ele intervier, se ousar, se ele, insignificante, se meter voluntariamente no que deve traduzir, infiltra lá a sua pequenez. A obra será inferior. Eu — Para si o artista seria, em suma, inferior à natureza. Cézanne — Não, eu não disse isso. O quê, caiu na esparrela? A arte é uma harmonia paralela à natureza. O que podemos pensar dos imbecis que dizem: o pintor é sempre inferior à natureza2 ? É paralelo a ela. Se não intervier voluntariamente… compreenda bem isto. Toda a sua vontade deve ser de silêncio. Deve fazer calar dentro dele as vozes de todos os preconceitos, esquecer, esquecer, fazer silêncio, ser um eco perfeito. Nessa altura toda a paisagem se inscreverá na sua placa sensível. Para ser fixada na tela, para ser exteriorizada; o ofício intervirá depois; mas o ofício respeitador, que só estará à espera de obedecer e, por conhecer de tal modo a sua língua, traduzir inconscientemente o texto que decifra, os dois textos paralelos, a natureza vista, a natureza sentida, a que ali está… (mostra a planície verde e azul) a que está aqui… (bate na testa) e que devem amalgamar-se para durar, para viver uma vida meio humana, meio divina, a vida da arte, oiça lá bem… a vida de Deus. A paisagem reflecte-se, humaniza-se, pensa-se em mim. Eu objectivo-a, projecto-a, fixo-a na minha tela… No outro dia falou-me de Kant. Talvez eu vá dizer inépcias, mas parece-me que serei a consciência subjectiva desta paisagem, como a minha tela será a sua consciência objectiva3. A minha tela, a paisagem, ambas exteriores a mim mas uma caótica, fugidia, confusa, sem vida lógica, fora de toda a razão; a outra perma62
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nente, sensível, categorizada, a participar na modalidade, no drama das ideias… na sua individualidade. Eu sei. Eu sei… É uma interpretação. Não sou um universitário. À frente de Dumesnil não teria a audácia de me aventurar assim*… Ah! Santo Deus! Como invejo a sua juventude! Tudo o que lá ferve! Mas o tempo pressiona-me… Eu talvez faça mal em dizer este género de piadas… Nada de teorias! Obras… As teorias perdem os homens. É preciso termos a danada de uma seiva, uma vitalidade inesgotável, para lhes resistir. Eu devia ser mais sereno, compreender que todos estes entusiasmos já não são na minha idade muito permitidos… Hão-de fazer sempre com que eu me perca4. Tinha-se tornado sombrio. Depois de uma explosão de entusiasmo era frequente recair assim na prostração. Não devíamos tentar tirá-lo da sua melancolia. Ficava furioso. Sofria… Depois de um longo silêncio voltou a agarrar nos pincéis, a olhar sucessivamente para a tela e para o tema. Não. Não. Olhe. Ela não está aqui. A harmonia geral não está aqui. Esta tela não sente nada. Diga-me que perfume se liberta. Que cheiro liberta? Vamos lá ver… Eu — O aroma dos pinheiros. Cézanne — Diz-me isso porque estes dois grandes pinheiros balançam no primeiro plano os seus ramos… Mas é uma sensação visual… Aliás, o aroma muito azul dos pinheiros, que ao sol é acre, deve casar-se com o aroma verde das planícies que todas as manhãs ali se refrescam, com o aroma das pedras, o longínquo perfume a mármore da Sainte-Victoire. Não o transmiti. É preciso transmiti-lo. E nas cores, sem literatura. Como Baudelaire e Zola, que inebriam misteriosamente um verso inteiro ou uma frase inteira com a simples justaposição das palavras. Quando a sensação atinge a sua plenitude, * Georges-Edouard Dumesnil, filósofo, professor de Gasquet em Aix. Cézanne gostava de discutir com ele, e chegou a oferecer-lhe dois quadros. (N. doT.)
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OBRAS
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Rodin, Balzac, 1891-1897.
Obras
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Cézanne, Natureza-Morta com Frutos, 1879-80.
Cézanne, A Mesa de Cozinha, 1888-90.
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Obras
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Cézanne, Natureza-Morta com Estatueta, 1894-95.
Obras
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Cézanne, Banhistas ao Ar Livre, 1890-1891.
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Obras
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Cézanne, Estudo de Banhistas, 1895-1898.
Obras
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Cézanne, Velha com Terço, 1895.
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Cézanne, Joachim Gasquet, 1896.
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe
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Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Messalina — romance da antiga Roma, Alfred Jarry O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence
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PAUL CÉZANNE — O QUE ELE ME DISSE…
PAUL CÉZANNE por Élie Faure seguido de O QUE ELE ME DISSE… por Joachim Gasquet tradução de
Aníbal Fernandes
Quero morrer a pintar…
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PAUL CÉZANNE por Élie Faure seguido de
O QUE ELE ME DISSE… por Joachim
Gasquet