M A R IA D O M A R FA Z E N DA
O museu questionado
O museu de arte como um lugar de exposição de narrativas é uma ideia assente na sociedade ocidental. Que as exposições sejam um dispositivo para a construção e produção de discurso, e assim aferindo ao museu uma forma de governabilidade, é algo que tem vindo a ser problematizado desde a sua origem. O museu é talvez um dos lugares em que a dimensão espacial1 e a dimensão temporal2 estão em jogo de forma mais evidente, independentemente do momento de análise ou da biografia do museu em causa. Basta pensarmos que em cada sala de um museu convivem diversos espaços e tempos, e o facto de aquelas serem activadas por quem as visita, trazendo consigo outras referências e narrativas, torna o espaço museológico passível de ser definido como uma «heterotopia», como é proposto por Michel Foucault3: «espaços de crise e de desvio, ordenações concretas de lugares incompatíveis e tempos heterogéneos, dispositivos socialmente isolados mas facilmente “penetráveis” e, por fim, máquinas concretas de imaginação», como descreveu Georges Didi-Huberman4. Própria das heterotopias é então a indefinição entre o que é e quando é, tratando-se de (o museu enquanto) um lugar que suscita gestos e acções mais do que conclusões, o levantamento de perguntas mais do que o encontro de respostas.
1 Sobre a problematização da questão espacial, são muitas as análises do paradigma arquitectónico-discursivo foucaultiano; no entanto, há uma preponderância americana da crítica ao museu, segundo a perspectiva da sua arquitectura, que se distingue da crítica continental, nomeadamente a de Claire Bishop, em Radical Museology, que se centra no discurso institucional sobre os seus conteúdos e que é produzida entre as suas paredes, sobretudo pela acção da curadoria e por via das exposições apresentadas. 2 Sobre a questão da temporalidade é basilar a noção de materialismo histórico benjaminiano, que é matriz para muitas das reflexões e reivindicações por uma nova e multi-historicidade da arte contemporânea, formuladas nas ideias de periodização e anacronismo ou a viragem temporal. 3 Michel Foucault, «Of Other Spaces, Heterotopias» in Architecture, Mouvement, Continuité 5 (1984): 46-49. 4 Georges Didi-Huberman, Atlas ou A Gaia Ciência Inquieta, trad. Renata Correia Botelho e Rui Pires Cabral (Lisboa: IMAGO, 2013): 61.
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Agora nu ao sol, a reler o que escreveste e o que tu escreveste que eu disse, a pôr de minha lavra, a acrescentar pontos de interrogação para um bom desgoverno do leitor – já reparaste como o ponto de interrogação parece uma orelha, e como a interrogação se faz escuta? – fico-me com a ideia de ter abreviado selvaticamente o que entre, ou dos factos corre; e a correr o risco de fazer crer que a aparente distância que hoje posso ter em relação ao vivido, era a mesma que tinha ao vivê-lo, e que o meu viver o vejo com a facilidade de quem olha um peixe sem tripas na tábua da cozinha. Se alguém assim viveu ou se viu vivendo, ou artista assim trabalhou, rico conto de fadas? Nesta grande trapalhada do quotidiano, os maiores males não são o pum-pum das motas ou o tum-tum dos altifalantes. A aldeia é a dois passos. Vivemos nela. E como ela. Numa estação espacial seria a mesma coisa. A aldeia somos nós. Subi contigo ao terraço. Lying naked in the sun, reading again what you wrote and what you wrote that I said, I add my own words, I add question marks to benignly disorient the reader – have you ever noticed how the question mark looks like an ear, and how the question becomes listening? – and I am left with the feeling of having savagely abbreviated what flows between or from the facts; and I run the risk of giving the impression that the apparent distance that now exists between me and the life that I lived is the same as it was when I lived it, and that I see my life with the same ease as someone looking at a gutted fish on the chopping board. If anyone had lived or seen himself living like that, or if an artist had worked liked that, what a rich fairy tale it would be. In this great muddle of daily life, the greatest evils are not the brum-brum of motorcycles or the boom-boom of loudspeakers. The village is two steps away. We live in it. And we live like it. It would be the same thing in a space station. The village is us. I took you up to the terrace with me. J.P. Cabanas de Tavira, Agosto / August 1979 Helena Vaz da Silva com Júlio Pomar. Edições António Ramos, Colecção Afinidades Electivas, Lisboa, 1979: 105.
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Agora nu ao sol, a reler o que escreveste e o que tu escreveste que eu disse, a pôr de minha lavra, a acrescentar pontos de interrogação para um bom desgoverno do leitor – já reparaste como o ponto de interrogação parece uma orelha, e como a interrogação se faz escuta? – fico-me com a ideia de ter abreviado selvaticamente o que entre, ou dos factos corre; e a correr o risco de fazer crer que a aparente distância que hoje posso ter em relação ao vivido, era a mesma que tinha ao vivê-lo, e que o meu viver o vejo com a facilidade de quem olha um peixe sem tripas na tábua da cozinha. Se alguém assim viveu ou se viu vivendo, ou artista assim trabalhou, rico conto de fadas? Nesta grande trapalhada do quotidiano, os maiores males não são o pum-pum das motas ou o tum-tum dos altifalantes. A aldeia é a dois passos. Vivemos nela. E como ela. Numa estação espacial seria a mesma coisa. A aldeia somos nós. Subi contigo ao terraço. Lying naked in the sun, reading again what you wrote and what you wrote that I said, I add my own words, I add question marks to benignly disorient the reader – have you ever noticed how the question mark looks like an ear, and how the question becomes listening? – and I am left with the feeling of having savagely abbreviated what flows between or from the facts; and I run the risk of giving the impression that the apparent distance that now exists between me and the life that I lived is the same as it was when I lived it, and that I see my life with the same ease as someone looking at a gutted fish on the chopping board. If anyone had lived or seen himself living like that, or if an artist had worked liked that, what a rich fairy tale it would be. In this great muddle of daily life, the greatest evils are not the brum-brum of motorcycles or the boom-boom of loudspeakers. The village is two steps away. We live in it. And we live like it. It would be the same thing in a space station. The village is us. I took you up to the terrace with me. J.P. Cabanas de Tavira, Agosto / August 1979 Helena Vaz da Silva com Júlio Pomar. Edições António Ramos, Colecção Afinidades Electivas, Lisboa, 1979: 105.
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CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA EGEAC / EGEAC BOARD OF DIRECTORS Joana Gomes Cardoso Lucinda Lopes Manuel Veiga
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR Directora ⁄ Curadora Director ⁄ Curator Sara Antónia Matos Adjunta de Direcção Deputy to the Museum Director Graça Rodrigues Conservação e Produção Conservation and Production Sara Antónia Matos Graça Rodrigues Pedro Faro Comunicação Communication Graça Rodrigues Investigação Research Sara Antónia Matos Pedro Faro Coordenação Editorial Editorial Coordination Sara Antónia Matos Visitas Guiadas Guided Tours Ana Gonçalves Teresa Cardoso Serviços Administrativos Administrative Services Isabel Marques Teresa Cardoso
Atelier-Museu Júlio Pomar Rua do Vale, 7 1200-472 Lisboa Portugal Tel + 351 215 880 793
EXPOSIÇÃO / EXHIBITION Projecto curatorial de: Curatorship Maria do Mar Fazenda Com a participação de: Participation Ana Pérez-Quiroga Andrea Brandão Ângelo Ferreira de Sousa Catarina Botelho Fernanda Fragateiro João Pedro Cachopo Jules Dupré Lúcia Prancha e Sara Fernandes Mafalda Santos Mariana Silva Miguel Loureiro Pedro Nora Ramiro Guerreiro Rodrigo Oliveira Sara & André
Montagem de exposições Exhibition Assembly Laurindo Marta João Nora Fotografia Photography António Jorge Silva Design Gráfico Graphic Design Pedro Nora Agradecimentos Acknowledgements Luísa Sampaio Nancy Contreiras Nuno Soares Paula Rocha Raul de Almeida Nunes (RAN) Rosa Figueiredo Rui Silva
Prémio de Curadoria ⁄ Curatorship Prize Atelier-Museu Júlio Pomar ⁄ EGEAC – 2015 — Já reparaste como o ponto de interrogação parece uma orelha, e como a interrogação se faz escuta?
E / And: Ana Bigotte Vieira Anísio Franco António Guerreiro Filipa Oliveira Francisco Tropa Joana Craveiro João Paulo Serafim Katherine Sirois Luís Silva Margarida Brito Alves Maria do Carmo Sousa Lima Nuno Crespo Paulo Pires do Vale Pedro Cabrita Reis Penelope Curtis Raquel Henriques da Silva Ricardo Nicolau Roberto Cremascoli Tomás Maia
D O C U M E N TA C A D E R N O S D O AT E L I E R- M U S E U J Ú L I O P O M A R
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CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA EGEAC / EGEAC BOARD OF DIRECTORS Joana Gomes Cardoso Lucinda Lopes Manuel Veiga
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR Directora ⁄ Curadora Director ⁄ Curator Sara Antónia Matos Adjunta de Direcção Deputy to the Museum Director Graça Rodrigues Conservação e Produção Conservation and Production Sara Antónia Matos Graça Rodrigues Pedro Faro Comunicação Communication Graça Rodrigues Investigação Research Sara Antónia Matos Pedro Faro Coordenação Editorial Editorial Coordination Sara Antónia Matos Visitas Guiadas Guided Tours Ana Gonçalves Teresa Cardoso Serviços Administrativos Administrative Services Isabel Marques Teresa Cardoso
Atelier-Museu Júlio Pomar Rua do Vale, 7 1200-472 Lisboa Portugal Tel + 351 215 880 793
EXPOSIÇÃO / EXHIBITION Projecto curatorial de: Curatorship Maria do Mar Fazenda Com a participação de: Participation Ana Pérez-Quiroga Andrea Brandão Ângelo Ferreira de Sousa Catarina Botelho Fernanda Fragateiro João Pedro Cachopo Jules Dupré Lúcia Prancha e Sara Fernandes Mafalda Santos Mariana Silva Miguel Loureiro Pedro Nora Ramiro Guerreiro Rodrigo Oliveira Sara & André
Montagem de exposições Exhibition Assembly Laurindo Marta João Nora Fotografia Photography António Jorge Silva Design Gráfico Graphic Design Pedro Nora Agradecimentos Acknowledgements Luísa Sampaio Nancy Contreiras Nuno Soares Paula Rocha Raul de Almeida Nunes (RAN) Rosa Figueiredo Rui Silva
Prémio de Curadoria ⁄ Curatorship Prize Atelier-Museu Júlio Pomar ⁄ EGEAC – 2015 — Já reparaste como o ponto de interrogação parece uma orelha, e como a interrogação se faz escuta?
E / And: Ana Bigotte Vieira Anísio Franco António Guerreiro Filipa Oliveira Francisco Tropa Joana Craveiro João Paulo Serafim Katherine Sirois Luís Silva Margarida Brito Alves Maria do Carmo Sousa Lima Nuno Crespo Paulo Pires do Vale Pedro Cabrita Reis Penelope Curtis Raquel Henriques da Silva Ricardo Nicolau Roberto Cremascoli Tomás Maia
D O C U M E N TA C A D E R N O S D O AT E L I E R- M U S E U J Ú L I O P O M A R
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Projecto curatorial de: Curatorship Maria do Mar Fazenda Com a participação de: Participation Ana Pérez-Quiroga Andrea Brandão Ângelo Ferreira de Sousa Catarina Botelho Fernanda Fragateiro João Pedro Cachopo Jules Dupré Lúcia Prancha e Sara Fernandes Mafalda Santos Mariana Silva Miguel Loureiro Pedro Nora Ramiro Guerreiro Rodrigo Oliveira Sara & André
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Projecto curatorial de: Curatorship Maria do Mar Fazenda Com a participação de: Participation Ana Pérez-Quiroga Andrea Brandão Ângelo Ferreira de Sousa Catarina Botelho Fernanda Fragateiro João Pedro Cachopo Jules Dupré Lúcia Prancha e Sara Fernandes Mafalda Santos Mariana Silva Miguel Loureiro Pedro Nora Ramiro Guerreiro Rodrigo Oliveira Sara & André
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SA R A A NTÓ N IA M ATOS
Um museu que se quer parte da vida Prémio de Curadoria Atelier-Museu Júlio Pomar ⁄ EGEAC
Além das funções de conservação, investigação e divulgação da obra de Júlio Pomar, o Atelier‑Museu tem procurado, desde o início da sua actividade (Abril de 2013), promover uma série de acções que visa a abertura do museu às novas gerações de profissionais. Exemplo disso são os estágios de fim de curso que proporciona a estudantes universitários facultando‑lhes uma formação em contexto real de trabalho; os desafios a jovens autores para escreverem textos sobre arte e publicá‑los (em muitos casos, pela primeira vez) nos catálogos do Atelier‑Museu; a recente parceria estabelecida com a Residency Unlimited, em Nova Iorque, que permite enviar um artista português para uma residência artística de três meses naquela cidade; e ainda o Prémio de Curadoria de Arte Contemporânea, instituído em 2015, com a sua primeira edição e materialização, entre Março e Abril de 2016, no espaço do museu. Este é um projecto em que o Atelier‑Museu assume, por excelência, as suas vertentes de atelier e de lugar de projectos específicos. A dimensão do espaço, a sua tipologia, a sua localização na malha antiga da cidade, a receptividade do autor a novas propostas artísticas e curatoriais permitem a esta instituição ter um papel pioneiro na criação de oportunidades para profissionais que estão a ingressar no meio, desse modo contribuindo também para a profissionalização e renovação da área das artes. Procurando juntar curadores, artistas e instituições, num momento em que a maioria dos prémios atribuídos em território português, para o domínio das artes, são vocacionados para artistas, o Prémio de Curadoria Atelier‑Museu Júlio Pomar/EGEAC pretende fomentar o exercício no campo da curadoria de arte contemporânea, a produção de fortuna crítica e a realização editorial. O Prémio foi atribuído a partir de um open call, distinguindo um projecto de curadoria de arte contemporânea, com o formato de uma exposição individual ou colectiva. Das vinte e quatro propostas apresentadas a concurso, no qual se requeria um percurso prévio na área da curadoria e da escrita sobre arte como condição de participação, resultou vencedora a proposta da curadora Maria do Mar Fazenda. Além de fomentar um trabalho integrado entre artistas, curadores e críticos/ensaístas, o júri da edição de 2015, composto pela escultora Ângela Ferreira, pelo curador Miguel von Hafe Pérez e pelo 8
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Um museu que se quer parte da vida Prémio de Curadoria Atelier-Museu Júlio Pomar ⁄ EGEAC
Além das funções de conservação, investigação e divulgação da obra de Júlio Pomar, o Atelier‑Museu tem procurado, desde o início da sua actividade (Abril de 2013), promover uma série de acções que visa a abertura do museu às novas gerações de profissionais. Exemplo disso são os estágios de fim de curso que proporciona a estudantes universitários facultando‑lhes uma formação em contexto real de trabalho; os desafios a jovens autores para escreverem textos sobre arte e publicá‑los (em muitos casos, pela primeira vez) nos catálogos do Atelier‑Museu; a recente parceria estabelecida com a Residency Unlimited, em Nova Iorque, que permite enviar um artista português para uma residência artística de três meses naquela cidade; e ainda o Prémio de Curadoria de Arte Contemporânea, instituído em 2015, com a sua primeira edição e materialização, entre Março e Abril de 2016, no espaço do museu. Este é um projecto em que o Atelier‑Museu assume, por excelência, as suas vertentes de atelier e de lugar de projectos específicos. A dimensão do espaço, a sua tipologia, a sua localização na malha antiga da cidade, a receptividade do autor a novas propostas artísticas e curatoriais permitem a esta instituição ter um papel pioneiro na criação de oportunidades para profissionais que estão a ingressar no meio, desse modo contribuindo também para a profissionalização e renovação da área das artes. Procurando juntar curadores, artistas e instituições, num momento em que a maioria dos prémios atribuídos em território português, para o domínio das artes, são vocacionados para artistas, o Prémio de Curadoria Atelier‑Museu Júlio Pomar/EGEAC pretende fomentar o exercício no campo da curadoria de arte contemporânea, a produção de fortuna crítica e a realização editorial. O Prémio foi atribuído a partir de um open call, distinguindo um projecto de curadoria de arte contemporânea, com o formato de uma exposição individual ou colectiva. Das vinte e quatro propostas apresentadas a concurso, no qual se requeria um percurso prévio na área da curadoria e da escrita sobre arte como condição de participação, resultou vencedora a proposta da curadora Maria do Mar Fazenda. Além de fomentar um trabalho integrado entre artistas, curadores e críticos/ensaístas, o júri da edição de 2015, composto pela escultora Ângela Ferreira, pelo curador Miguel von Hafe Pérez e pelo 8
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O museu questionado
O museu de arte como um lugar de exposição de narrativas é uma ideia assente na sociedade ocidental. Que as exposições sejam um dispositivo para a construção e produção de discurso, e assim aferindo ao museu uma forma de governabilidade, é algo que tem vindo a ser problematizado desde a sua origem. O museu é talvez um dos lugares em que a dimensão espacial1 e a dimensão temporal2 estão em jogo de forma mais evidente, independentemente do momento de análise ou da biografia do museu em causa. Basta pensarmos que em cada sala de um museu convivem diversos espaços e tempos, e o facto de aquelas serem activadas por quem as visita, trazendo consigo outras referências e narrativas, torna o espaço museológico passível de ser definido como uma «heterotopia», como é proposto por Michel Foucault3: «espaços de crise e de desvio, ordenações concretas de lugares incompatíveis e tempos heterogéneos, dispositivos socialmente isolados mas facilmente “penetráveis” e, por fim, máquinas concretas de imaginação», como descreveu Georges Didi-Huberman4. Própria das heterotopias é então a indefinição entre o que é e quando é, tratando-se de (o museu enquanto) um lugar que suscita gestos e acções mais do que conclusões, o levantamento de perguntas mais do que o encontro de respostas.
1 Sobre a problematização da questão espacial, são muitas as análises do paradigma arquitectónico-discursivo foucaultiano; no entanto, há uma preponderância americana da crítica ao museu, segundo a perspectiva da sua arquitectura, que se distingue da crítica continental, nomeadamente a de Claire Bishop, em Radical Museology, que se centra no discurso institucional sobre os seus conteúdos e que é produzida entre as suas paredes, sobretudo pela acção da curadoria e por via das exposições apresentadas. 2 Sobre a questão da temporalidade é basilar a noção de materialismo histórico benjaminiano, que é matriz para muitas das reflexões e reivindicações por uma nova e multi-historicidade da arte contemporânea, formuladas nas ideias de periodização e anacronismo ou a viragem temporal. 3 Michel Foucault, «Of Other Spaces, Heterotopias» in Architecture, Mouvement, Continuité 5 (1984): 46-49. 4 Georges Didi-Huberman, Atlas ou A Gaia Ciência Inquieta, trad. Renata Correia Botelho e Rui Pires Cabral (Lisboa: IMAGO, 2013): 61.
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O museu questionado
O museu de arte como um lugar de exposição de narrativas é uma ideia assente na sociedade ocidental. Que as exposições sejam um dispositivo para a construção e produção de discurso, e assim aferindo ao museu uma forma de governabilidade, é algo que tem vindo a ser problematizado desde a sua origem. O museu é talvez um dos lugares em que a dimensão espacial1 e a dimensão temporal2 estão em jogo de forma mais evidente, independentemente do momento de análise ou da biografia do museu em causa. Basta pensarmos que em cada sala de um museu convivem diversos espaços e tempos, e o facto de aquelas serem activadas por quem as visita, trazendo consigo outras referências e narrativas, torna o espaço museológico passível de ser definido como uma «heterotopia», como é proposto por Michel Foucault3: «espaços de crise e de desvio, ordenações concretas de lugares incompatíveis e tempos heterogéneos, dispositivos socialmente isolados mas facilmente “penetráveis” e, por fim, máquinas concretas de imaginação», como descreveu Georges Didi-Huberman4. Própria das heterotopias é então a indefinição entre o que é e quando é, tratando-se de (o museu enquanto) um lugar que suscita gestos e acções mais do que conclusões, o levantamento de perguntas mais do que o encontro de respostas.
1 Sobre a problematização da questão espacial, são muitas as análises do paradigma arquitectónico-discursivo foucaultiano; no entanto, há uma preponderância americana da crítica ao museu, segundo a perspectiva da sua arquitectura, que se distingue da crítica continental, nomeadamente a de Claire Bishop, em Radical Museology, que se centra no discurso institucional sobre os seus conteúdos e que é produzida entre as suas paredes, sobretudo pela acção da curadoria e por via das exposições apresentadas. 2 Sobre a questão da temporalidade é basilar a noção de materialismo histórico benjaminiano, que é matriz para muitas das reflexões e reivindicações por uma nova e multi-historicidade da arte contemporânea, formuladas nas ideias de periodização e anacronismo ou a viragem temporal. 3 Michel Foucault, «Of Other Spaces, Heterotopias» in Architecture, Mouvement, Continuité 5 (1984): 46-49. 4 Georges Didi-Huberman, Atlas ou A Gaia Ciência Inquieta, trad. Renata Correia Botelho e Rui Pires Cabral (Lisboa: IMAGO, 2013): 61.
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